João Soares: um pedagogo republicano. Testemunho de Mário Soares
João Soares: um pedagogo republicano. Testemunho de Mário Soares
Maria do Rosário Batalha conversa com Mário Soares
*
Mário Soaresnasceu em Lisboa, a 7 de Dezembro de 1924. Concluiu em 1951, a
licenciatura em Ciências Histórico-Filosófi-cas e, em 1957, o curso de Direito.
Como advogado, defendeu, em tribunais plenários, inúmeros opositores ao regime.
Devido às constantes perseguições que a polícia política lhe fazia, viu-se
obrigado, em 1971, a refugiar-se em Paris. Foi um dos fundadores, em 1973, do
Partido Socialista, do qual foi o primeiro secretário-geral. Regressou a Lisboa
em 1974, logo após o derrube do regime, tendo sido chamado a desempenhar as
funções de Ministro dos Negócios Estrangeiros. Foi primeiro-ministro de 1976 a
1978 e de 1983 à 1985. Negociou, de 1977 a 1985, com pleno sucesso, a entrada
de Portugal na Comunidade Europeia (actual União Europeia). Foi presidente da
República dois mandatos sucessivos, de 1986 a 1996, tendo iniciado as chamadas
presidências abertas.Desempenhou, posteriormente, as funções de eurodeputado no
Parlamento Europeu. Actualmente, tem-se dedicado à escrita, à coordenação da
Fundação a que deu o seu nome e à intervenção em inúmeros congressos e debates.
Maria do Rosário Batalha:Quer falar-me um pouco sobre o seu pai, um importante
pedagogo republicano?
Mário Soares:O meu Pai foi, efectivamente, professor e, além disso, um pedagogo
de excepção. O que são coisas diferentes. Foi professor dos Pupilos do
Exército, desde a sua criação em 1911 e, depois fundador - e director - de dois
colégios privados: o Bairro Escolar do Estoril e o Colégio Moderno, que ainda
hoje existe e é dirigido pela sua neta, Isabel Soares. E além disso, publicou
livros didácticos: uma História Universal, em três volumes, para os alunos
liceais de história, publicado pela "Coimbra Editora", então
dirigida por Salazar; e o Atlas Escolar Português, com variadíssimas edições,
as últimas da responsabilidade da "Sá da Costa"; e o livro
"Quadros da História de Portugal", em parceria com Chagas Franco e
com a colaboração de Roque Lino e Alberto de Sousa, que durante décadas foi
usado em todas as escolas primárias e secundárias do País; e "Portugal
Minha Terra", em parceria com Eliseo de Campos, um livro de educação
cívica republicana.
MRB - Qual a imagem que guarda do seu Pai enquanto republicano?
MS - Sempre adorei o meu Pai. Enquanto republicano e depois como combatente e
antifascista. O meu Pai teve uma vida de conspirador, na clandestinidade,
muitas vezes, na Espanha Republicana, tendo sido amigo e admirador de Azaña.
Nesse período mal o via. A minha Mãe, que também sempre adorei e era uma mulher
de armas, ia encontrarse com meu Pai, furtivamente, nos lugares mais estranhos
e levava-me sempre com ela. Isso deu a meus olhos uma imagem romântica do meu
Pai de lutador intemerato pelas Causas nobres e justas. Por isso fui sempre
solidário, com ele, bem como a minha Mãe e os meus dois meios Irmãos, que
viviam connosco. Depois de uma longa deportação nos Açores - e de um julgamento
no Tribunal Militar de Santa Clara - em 1935 meu Pai voltou a Casa e fundou
justamente o Colégio Moderno, onde passámos a viver. Sobreveio-lhe então longa
doença, tendo-lhe sido cortada uma perna. Foi um longo e difícil período, onde
seguimos pela Rádio Madrid a derrota dos republicanos espanhóis, em 1936. Foi
então, durante a convalescença de meu Pai que ele começou a exercer uma grande
influência sobre mim. Discreta, sem sombra de autoritarismo ou de
proteccionismo, sempre pela persuasão. Nessa altura eu já era - com doze, treze
anos - republicano dos sete costados e, orgulhosamente, anti-fascista. Lembro-
me de ter posto uma gravata preta quando da morte de Afonso Costa, então
exilado em Paris...
MRB -Considera que esses valores ainda estão actuais?
MS -Actualíssimos. Estamos a sair de uma fase do mundo que agoniza: o
neoliberalismo e a economia de casino; e outra que nasce, estribada
precisamente nos velhos valores: da paz, da solidariedade, do mercado, com
regras éticas, do respeito pelas questões sociais - valorizando o trabalho e o
empreendorismo face ao capital - pela defesa de regras ambientais, para
combater as ameaças que pesam sobre o Planeta, etc.
MRB -Qual a importância que o seu pai atribuía à educação para o progresso do
país?
MS -Era, obviamente, a pedra chave para os republicanos, que fizeram um esforço
titânico para a generalizar a toda a população. Porque os republicanos punham à
frente de tudo os valores humanos -o homem (e a mulher, claro, em igualdade) no
centro do Mundo - e as pessoas tinham que ser educadas para se poderem realizar
e progredir.
MRB -O que levou o seu pai a criar o Colégio Moderno?
MS - Com a ditadura o meu Pai perdeu tudo. Era deputado e o Parlamento foi
encerrado. Foi demitido dias depois do 28 de Maio de 1926, de Vogal do Conselho
Superior de Finanças (hoje Tribunal de Contas), perdeu o seu lugar de deputado,
por o Parlamento ter sido encerrado, e, algum tempo depois, de Professor dos
Pupilos do Exército de que tinha sido fundador. Ponha-lhe por cima disto, a
clandestinidade, as prisões e a deportação, etc. e perceberá que então o meu
Pai, como ele dizia, "se encontrava crivado de dívidas". Como era
professor fundou o Colégio, que nos fez sobreviver...
MRB - Sabe quais eram, no campo educativo, os autores de referência para o seu
Pai?
MS - O meu Pai tinha uma boa formação em Humanidades -hoje diz-se Ciências
Sociais - com destaque para a História, Geografia e Literatura. Era um homem
muito culto, licenciado em Teologia pela Universidade de Coimbra e que aprendeu
muito latim. Deixou aliás uma razoável biblioteca. Quanto a referências, no
campo educativo, confesso que não sei.
MRB - O seu Pai foi, como sabe, autor de manuais escolares. Conhece este livro
didáctico da sua autoria "Portugal Nossa Terra - Educação Cívica?"
Qual é a sua opinião sobre este livro?
MS -Obviamente que conheço, como todos os seus livros. Quanto ao
"Portugal nossa Terra", é um livro datado, com uma visão do nosso
País tipicamente republicana. A acentuação da ideia da Pátria - como um valor
insubstituível - é típica do que lhe digo.
MRB - Qual foi a importância e o impacto que este manual teve na época?
MS - Na altura suponho que muito. Com a ditadura foi praticamente posto fora de
circulação. As concepções eram outras. Voltou-se ao horror à liberdade, ao
integrismo católico e a uma condição imperial (como o Acto Colonial) das nossas
"províncias ultramarinas", como se dizia na República...
Lisboa, 28 de Outubro de 2008
* Entrevista realizada no âmbito de uma tese de mestrado.
Revista Lusófona de Educação
Centro de Estudos e Intervenção em Educação e Formação (CeiEF)
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