As Contradições do Ocidente: Visões Alternativas da Ordem Mundial
As Contradições do Ocidente: Visões Alternativas da Ordem Mundial
Luís António Pais Bernardo
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Cemil Aydin
The Politics of Anti-Westernism in Asia: Visions of World Order in Pan-Islamic
and Pan-Asian Thought
Nova York,
Columbia University Press, 2007, 299 páginas
A tese de doutoramento de Cemil Aydin, defendida em Harvard, resume o percurso
intelectual do autor (ainda curto, mas já significativo). Aydin tem procurado
matizar a discussão académica actual em torno da história das ideias e das
elites intelectuais e políticas, temáticas vulgarmente focadas nos espaços
físicos e simbólicos dos impérios coloniais europeus. Com esse intuito, o autor
procura alargar o escopo da discussão a outros contextos, particularmente ao
mundo islâmico, com ênfase no Império Otomano após 1815, e na turbulenta
história contemporânea do Japão. Além disso, Aydin inova ao legar o
protagonismo aos dois contextos intelectuais já referidos, traçando a evolução
dos discursos e das narrativas acerca da ideia de «sociedade internacional» que
tiveram origem nos dois espaços socioculturais. O «Ocidente», ao invés do
«Oriente» (para contentar os seguidores menos atentos de Edward Said), torna-se
objecto de teorização e discussão. Uma das consequências previsíveis desta
atitude analítica é o confronto com a tese culturalista de Samuel Huntington,
subsumida na popular, mas enganadora, expressão de «choque de civilizações». Ao
transformar o «antiocidentalismo» em fenómeno histórico, político e
intelectual, o autor descarta a ideia de que as formulações intelectuais são
tributárias de uma qualquer «cultura».
A GENEALOGIA DE DUAS CORRENTES INTELECTUAIS
A obra que pretendemos recensear tem, como balizas cronológicas, os anos de
1839 e 1945. Cemil Aydin efectua a descrição e discussão de duas «visões da
ordem mundial», uma definida como «pan-islâmica», com origem na elite
intelectual otomana, e outra definida como «pan-asiática», com origem na elite
intelectual japonesa. Embora funcione numa lógica diacrónica, o autor pretende,
na medida do possível, testar uma hipótese: «foi a crise de legitimidade de um
sistema internacional único e globalizado que produziu visões pan-islâmicas e
pan-asiáticas da ordem mundial» (p. 6). Assim, o texto está estruturado em
torno de seis capítulos, que versam acerca do mesmo número de processos, com
duração variável, os quais terão, na opinião de Aydin, modificado os
equilíbrios da ordem mundial e a percepção dessas mutações pelas elites
intelectuais otomanas e japonesas. Os seis capítulos são divisíveis em três
fases, na nossa opinião: no período 1839-1882, a descoberta da imagem do
«Ocidente» e início das formulações discursivas em torno da universalidade dos
princípios civilizacionais preconizados pelo Ocidente (pp. 15-37); no período
1882-1905, a transição para uma pluralidade de discursos e conceptualizações do
«Ocidente» enquanto imagem (pp. 39-71); e, por fim, no período 1905-1945, o
surgimento do «antiocidentalismo» enquanto corrente discursiva coerente, com
influência política e largamente difundida entre os grupos sociais que
constituem o foco principal de Cemil Aydin (pp. 71-203).
A ORDEM MUNDIAL EUROCÊNTRICA EM QUESTÃO
Na primeira fase, o autor argumenta que a concorrência de dois fenómenos foi o
factor essencial para a eclosão dos discursos em torno do «Ocidente»: por um
lado, a descoberta das Luzes e a percepção idiossincrática da universalidade
civilizacional europeia; por outro, a crescente tendência para a imperialização
da política internacional. Quanto ao primeiro factor, Aydin afirma que o
principal esforço foi feito no sentido de desconstruir a noção de que os
princípios civilizacionais europeus teriam, como base, uma qualquer essência
cultural. O progresso seria um efeito da vontade política reformista. As
reformas Tanzimat, iniciadas em 1839,e a restauração Meiji, com início em 1868,
são explicáveis, segundo o autor, pelo desemparelhamento entre os conceitos de
civilização e essência cultural. As elites intelectuais japonesas e otomanas
esperavam, através das reformas, cumprir dois objectivos. Por um lado, atingir
um grau civilizacional equiparado ao do Ocidente; por outro, e com base nessa
progressão, reforçar a sua legitimidade na sociedade internacional, a qual
estaria estruturada em torno de uma percepção material do capital tecnológico e
socioeconómico. A partir de 1880, essa percepção seria posta em causa pela
progressiva imperialização da política externa europeia e pela influência
crescente do discurso orientalista entre as elites intelectuais e políticas
europeias.
O IMPACTO DA EXPANSÃO IMPERIAL
O autor escolheu a invasão do Egipto pelo Império Britânico como momento
definidor da segunda fase (pp. 40-43). O momento da invasão é claramente
enquadrável num movimento generalizado de expansão imperial europeia, que
teria, na Berlim de Bismarck, em 1884, um momento fulcral. Em 1882, William
Gladstone chefiava, pela segunda vez, o Executivo britânico, fortemente
influenciado pela experiência britânica no Raj e pelo discurso de Silvestre de
Sacy e Ernest Renan (pp. 40, 53 e 65-66). Renan é, aliás, objecto de discussão
por parte do autor (pp. 47-54). No Japão, o gorar da expectativa em torno da
vitória sobre a China, em 1895, juntou-se a uma percepção partilhada pelas
elites intelectuais otomanas e japonesas. O civilizacionismo liberal e a
universalidade, fundamentos da ordem mundial estabelecidos pelo Ocidente, eram
desrespeitados pela discursividade ocidental, que deplorava o atraso oriental e
atribuía-o a características essenciais de um «Oriente» difuso. A pluralização
dos discursos e a desconstrução da «bonomia» ocidental, à medida que a expansão
imperial tomava lugar, possibilitou o surgimento, em pleno, das correntes
intelectuais de que a obra se ocupa: as visões pan-islâmica e pan-asiática.
Contudo, tal como o autor afirma, a crítica pan-islâmica e pan-asiática «estava
maioritariamente limitada ao Ocidente imperialista identificado com a ordem
mundial, e, na verdade, o antiocidentalismo, neste período, continuou a fazer
referência aos valores das Luzes proclamados pelo Ocidente» (p. 69).
O ANTIOCIDENTALISMO PLENAMENTE ESTABELECIDO
A partir da guerra Rússia-Japão, em 1905, esta perspectiva perderia
atractividade. A ordem mundial eurocêntrica, baseada na presunção do
desequilíbrio de forças favorável às potências europeias, havia perdido a
legitimidade de que auferira (p. 91). Além disso, a percepção da contradição
entre o discurso universalista das Luzes e a expansão imperial, a partir de
1880, deixou de ser um efeito colateral da reflexão otomana e japonesa em torno
do Ocidente; passou a ser o seu núcleo constitutivo. A vitória do Japão tornava
possível a ascensão de uma potência não europeia à esfera mais exclusiva da
sociedade internacional, e, em toda a Ásia, o Japão foi promovido à categoria
de exemplo. Assim, a perda de legitimidade da ordem mundial eurocêntrica
constituía uma consequência lógica do declínio moral do Ocidente (p. 88-90). O
surgimento de uma imagem decadente do Ocidente daria lugar à construção de uma
imagem auto-orientalizada, que contraporia, ao materialismo decadente das
potências ocidentais, a vitalidade espiritual do Oriente (p. 92). No entanto, a
eclosão da I Guerra Mundial não intensificou a produção intelectual dos autores
antiocidentalistas; embora as visões pan-islâmica e pan-asiática tenham
exercido alguma influência nas opções estratégicas do Império Otomano e do
Japão, durante o conflito, a necessidade de estabelecer alianças com potências
europeias limitou a influência das visões pan-islâmica e pan-asiática. No
período pós-1919, a descrição da trajectória inversamente proporcional dos
nacionalismos e dos transnacionalismos é esclarecedora: a República de Mustafa
Kemal Atatürk e a extinção do califado demonstra a falta de influência da visão
pan-islâmica, ao passo que, no Japão, uma miscelânea ultraconservadora de
nacionalismo imperial ' que o autor associa à visão pan-asiática ' foi um dos
motores da invasão da Manchúria, em 1931. A influência dos intelectuais pan-
asiáticos era evidente, mas a corrente intelectual era, igualmente, deturpada
em benefício de imperativos estratégicos.
APRECIAÇÃO CRÍTICA
Dadas as características da obra, decidimos dividir as observações finais em
duas partes. A primeira diz respeito a aspectos formais; a segunda discorrerá
acerca de aspectos substantivos.
Apesar de ser uma tese de doutoramento vertida em livro, trata-se, em todo o
caso, de uma obra cuja erudição impressiona pela profundidade e amplitude. A
recolha documental e bibliográfica é notável, especialmente pela preocupação em
utilizar documentação e bibliografia nas línguas originais. Dominar o japonês e
o turco pré-reforma republicana constitui uma valência excepcional. Para além
disto, a expressão escrita do autor é rigorosa e clara, característica que terá
sido auxiliada pela divisão formal do texto: o encadeamento entre capítulos é
irrepreensível, até porque não procura inovar em termos de periodização '
embora a convencionalidade da diacronia constitua um problema que abordaremos
abaixo.
Em termos substantivos, a obra é inovadora, pelos contextos submetidos a
análise e pela tentativa de atribuir uma voz própria às elites otomanas e
japonesas, sem deixar de localizar a produção intelectual num contexto político
específico. A mesma influência está patente na atitude anticulturalista do
autor, que procura descrever o carácter multiforme dos grupos sociais e ideias
em questão. Além disso, o abandono da noção de periferia é uma estratégia
frutuosa, na medida em que permite a Aydin explorar, por exemplo, os fluxos
intelectuais existentes entre elites otomanas, japonesas e nacionalistas
hindus.
A nosso ver, a obra apresenta fragilidades que se reportam a dois aspectos: a
falta de teorização e a arbitrariedade da periodização. Apesar de ter
delimitado o seu corpusdocumental em função do objecto, de ter definido uma
hipótese de trabalho e a metodologia apropriada à exploração historiográfica, o
autor não apresentou um quadro teórico coerente, prescindindo da definição de
conceitos. O caso mais flagrante é o de «visões da ordem mundial»: embora
refira que se trata de uma noção tributária da «imaginação» de Benedict
Anderson, Aydin não explora as várias vertentes de uma noção tão difusa. Quanto
à arbitrariedade da periodização, a escolha das balizas cronológicas não parece
ser significativa, obedecendo mais a um critério de conveniência que ao rigor
da análise. Julgamos que o argumento foi adaptado à diacronia convencionalmente
aceite, em detrimento da inovação em termos de eventos e processos menos
óbvios. A título de exemplo, a inclusão da Conferência de Bandung na narrativa
também teria sido significativa.
Contudo, estes reparos são meros apontamentos, e não uma objecção empírica ou
retórica. O autor efectuou uma análise política da produção intelectual otomana
e japonesa de enorme relevância, abrindo novos caminhos de investigação.
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