As instituições internacionais e o crash de 2008
No final do segundo conflito mundial, os Estados Unidos, com o apoio dos países
europeus, lançaram as bases de uma ordem económica internacional assente num
conjunto de instituições encarregues de assegurar a difusão dos princípios da
economia de mercado, garantir a estabilidade das taxas de câmbio e remover os
obstáculos ao comércio mundial. O sistema institucional definido em Bretton
Woods perdurou sem grandes transformações ao longo das últimas seis décadas.
Todavia, por efeito da globalização, o mundo assistiu ao aparecimento de novas
potências económicas, como a China e a Índia.
A ascensão dos países emergentes, com a consequente redução do diferencial de
desenvolvimento económico com os países industrializados, veio reforçar algumas
anomalias existentes nas organizações económicas internacionais, as quais
projectam ainda a hegemonia ocidental vigente ao tempo da sua fundação.
Situação que levanta problemas de legitimidade e representatividade no
funcionamento destas instituições e vem reforçar a necessidade de um consenso
da comunidade internacional sobre a reforma do sistema institucional.
O crash de 2008 colocou em evidência as fragilidades do actual sistema
internacional, em particular, a ineficácia dos mecanismos de governação global,
bem como a necessidade de maior regulação dos mercados financeiros a nível
mundial. De onde resulta a necessidade de reforçar os poderes de actuação das
organizações internacionais de natureza financeira, como o Fundo Monetário
Internacional (fmi), conferindo‑lhes novo fôlego que permita fazer face aos
desafios causados pelo processo de globalização.
Este artigo pretende realizar uma reflexão sobre a adequação do sistema de
organizações económicas internacionais aos novos equilíbrios de poder
resultantes do processo de globalização. Em particular, sobre a capacidade para
as instituições existentes lidarem com os desafios que se colocam ao sistema
financeiro internacional e ao comércio mundial, em situações de crise global
como aquela que resulta do crash de 2008. Assim, o texto começa por fornecer
uma breve panorâmica das instituições financeiras internacionais estabelecidas
na sequência da Conferência de Bretton Woods, abordando em seguida o sistema
comercial multilateral instituído pelo acordo do gatt, de onde resultou mais
tarde a Organização Mundial de Comércio (omc). Antes de analisar a problemática
da reforma das organizações internacionais de modo a reflectirem as mudanças
causadas pelo processo de globalização, o artigo faz referência ao aparecimento
da instância que melhor parece traduzir os equilíbrios existentes na era
actual, o chamado Grupo dos Vinte (G-20).
AS ORGANIZAÇÕES ECONÓMICAS INTERNACIONAIS
No rescaldo da II Guerra Mundial foi estabelecido um novo sistema de
instituições internacionais. Todavia, o sistema internacional promovido pelas
potências vencedoras do conflito apresentou uma clivagem fundamental entre as
suas dimensões política e económica. Assim, e em resultado do esforço de
guerra, os chamados países aliados favoreceram a criação de uma organização
internacional que visava a garantia da paz e segurança entre os estados, bem
como a resolução pacífica de conflitos, as Nações Unidas (onu). A ideia da sua
criação, assim como os princípios e normas que regulam o seu funcionamento,
foram definidos pelo comum acordo dos Estados Unidos, União Soviética e Reino
Unido, antes mesmo da Conferência de São Francisco ter elaborado a respectiva
Carta constitutiva.
Todavia, no tocante às organizações económicas internacionais criadas no
rescaldo do segundo conflito mundial, não se verificou o mesmo tipo de consenso
entre as potências aliadas. Desde logo, porque os Estados Unidos e a União
Soviética defendiam princípios antagónicos sobre o funcionamento da economia.
Assim, os Estados Unidos pretendiam expandir o seu modelo económico à escala
global, aproveitando a sua posição privilegiada relativamente às demais
potências internacionais. Na verdade, os Estados Unidos foram o único país cujo
território não foi praticamente afectado pelo esforço de guerra tendo, por
outro lado, conseguido acumular um largo volume de capitais para investir no
estrangeiro. No entanto, os Estados Unidos defrontavam-se com numerosos
obstáculos de natureza proteccionista para poderem empreender a difusão dos
princípios da economia de mercado e do comércio livre, os quais haviam sido
erguidos pelos estados na sequência da depressão económica da década de 1930
1
Por isso, os Estados Unidos pretenderam lançar as bases de um sistema económico
internacional que visasse a prossecução dos objectivos da economia de mercado e
da livre concorrência. Para o efeito, consideraram que seria necessário
estabelecer instituições que removessem os diferentes tipos de obstáculos e
dificuldades existentes ao regular funcionamento do mercado. Assim, os Estados
Unidos, com o apoio do Reino Unido, promoveram a realização da Conferência de
Bretton Woods, em 1944, da qual resultou a criação de uma instituição que
assegurasse a estabilidade monetária internacional, impedindo que os governos
nacionais pudessem realizar desvalorizações competitivas das respectivas
divisas, como tinha sido prática no período que precedeu a II Guerra Mundial.
Para além da regulação do sistema monetário, o Fundo Monetário Internacional
(FMI) deveria também apoiar financeiramente os estados que enfrentassem
dificuldades temporárias de tesouraria em virtude de desequilíbrios na balança
de pagamentos provocados pela flutuação do preço de certos produtos nos
mercados internacionais.
De par com o FMI, os Acordos de Bretton Woods determinaram também a criação de
uma organização encarregue de recolher capitais nos mercados financeiros
internacionais, com o objectivo de conceder empréstimos aos estados carenciados
de investimento estrangeiro, sobretudo, aos países que tinham sido mais
duramente afectados pelos efeitos da guerra – o Banco Internacional para a
Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD), conhecido por Banco Mundial.
Para além das instituições financeiras de Bretton Woods, os Estados Unidos
pretenderam dotar o sistema internacional de um pilar que se ocupasse do
incremento do comércio internacional, com o propósito específico de remover as
barreiras nacionais à livre circulação de produtos industriais. Esta terceira
dimensão das relações económicas internacionais foi inicialmente formulada
através da ideia de uma Organização Internacional de Comércio, para cuja
criação foi realizada a Conferência de Havana, em 1947. No entanto, e por
motivos de política interna, os Estados Unidos desinteressaram-se da formação
de uma instituição que visasse a promoção do comércio livre, pelo que
preferiram uma solução sucedânea, que consistiu na assinatura de um acordo
comercial multilateral, com o objectivo de reduzir as tarifas aduaneiras, o
chamado General Agreement on Tariffs and Trade (GATT), de 1947.
AS ORGANIZAÇÕES FINANCEIRAS
O FMI e o Banco Mundial são considerados agências especializadas das Nações
Unidas, com vocação universal. Ou seja, com um número de estados-membros
próximo daquele da ONU. Todavia, as organizações de Bretton Woods diferem
profundamente das demais organizações onusianas no tocante à composição
institucional e ao exercício do poder de decisão. Com efeito, as organizações
onusianas seguem tendencialmente o princípio democrático da igualdade formal
dos estados nas questões relativas à representação nacional nos respectivos
órgãos e ao peso específico de cada Estado na tomada das deliberações. Com
excepção óbvia do Conselho de Segurança das Nações Unidas que, por motivos
históricos, reflecte uma lógica aristocrática de funcionamento, a qual foi
imposta pelas potências vencedoras do segundo conflito mundial.
Recorde-se, desde logo, que o FMI e o Banco Mundial são organizações
internacionais de natureza financeira. O que significa que os estadosmembros
destas organizações são obrigados, no momento da sua adesão, a subscrever uma
determinada percentagem no capital destas entidades. A lógica de funcionamento
destas organizações está condicionada pelo montante de capital subscrito por
cada Estado-membro, o que significa que os países com maior percentagem de
capital subscrito têm um tratamento preferencial na composição dos órgãos da
respectiva instituição e, sobretudo, dispõem de um maior número de votos na
formação das suas deliberações. Na verdade, as decisões são tomadas com base
num sistema de voto ponderado dos estados-membros, cujo peso específico depende
do montante da subscrição de cada país no capital da organização.
Atendendo ao contexto político-económico da criação das organizações de Bretton
Woods, resulta que a maior percentagem de capital é detida pelo conjunto dos
chamados países industrializados, com destaque para os Estados Unidos e para as
principais potências da Europa Ocidental. Estes atribuíram-se o direito de
designar membros permanentes no conselho de administração de cada uma das
organizações, como ainda estabeleceram que o responsável máximo pelo FMI seria
proveniente de um país europeu, enquanto que a presidência do Banco Mundial
competiria a um norteamericano. Para além de que os Estados Unidos e os países
europeus detêm uma posição de controlo sobre o capital das instituições, que
lhes permite controlar o respectivo processo de decisão. Na verdade, os
chamados países industrializados detinham cerca de 60 por cento do montante
global de votos no FMI, cabendo o remanescente aos países em desenvolvimento e
países emergentes.
O equilíbrio fundacional de poder nas instituições de Bretton Woods foi-se
mantendo ao longo do tempo, apesar de algumas alterações que foram sendo
introduzidas no peso específico de certos estados-membros. Com as
transformações na economia mundial decorrentes do processo de globalização, que
introduziram uma crescente deslocação da riqueza dos países ocidentais para as
chamadas economias emergentes, a hegemonia dos países industrializados foi
sendo crescentemente contestada
2
. Em resultado da pressão exercida pelos países em desenvolvimento, foi
realizada uma reforma do sistema de voto no FMI em 2008, visando aumentar o
poder de voto dos países em desenvolvimento e dos países emergentes, bem como
simplificar o próprio mecanismo de definição das quotas nacionais. Com esta
reforma, verificou-se um aumento relativo do peso específico de alguns países
emergentes, como a China, a Coreia do Sul, a Índia, o Brasil e a Turquia, e uma
ligeira alteração no equilíbrio existente entre países industrializados e
demais estados, em termos que o primeiro grupo detinha cerca de 60 por cento
dos votos antes da reforma, tendo essa percentagem sido reduzida alguns poucos
pontos percentuais. Todavia, a reforma operada no funcionamento do FMI ficou
aquém das expectativas da maioria dos países não ocidentais pois nem a
alteração do peso específico de países emergentes como a China – que viu o seu
voto aumentado em menos de um por cento, continuando abaixo do voto atribuído à
França ou ao Reino Unido – nem o equilíbrio global entre países
industrializados versus países em desenvolvimento e economias emergentes foram
significativamente alterados, de forma a reflectir as mutações em curso na
economia mundial
3
.
O SISTEMA COMERCIAL
O pilar comercial das relações económicas internacionais do período pósguerra
assentou no acordo do GATT, o qual comportava para os estados signatários a
obrigação de proceder a reduções graduais dos direitos aduaneiros que incidiam
sobre o comércio de produtos industriais. Tais reduções foram realizadas nas
chamadas rondas comerciais, as quais começaram por ter uma abordagem negocial
de tipo bilateral, sendo as concessões generalizadas aos restantes países por
via da cláusula da nação mais favorecida. Com efeito, os primeiros quatro
ciclos negociais foram dominados pelos Estados Unidos, que negociavam
separadamente com os - diferentes estados reduções às tarifas aduaneiras. Com o
aparecimento da Comunidade Europeia, a qual representava os seus estados-
membros na qualidade de união aduaneira, os Estados Unidos depararam-se com um
rival dotado de maior capacidade negocial. Daí que as rondas negociais
realizadas a partir da década de 1960 tenham sido quase sempre dominadas pelas
negociações entre os Estados Unidos e a Europa Ocidental.
Na sequência da ronda negocial do Uruguai, iniciada em 1986, a Comunidade
Europeia pressionou no sentido da criação da OMC, a qual foi estabelecida em
1994, pelo acordo que encerrou aquele ciclo de negociações. A OMC veio colocar
o comércio internacional numa dimensão constitucional, pretendendo estabelecer
uma base estável de regulação comercial, a qual inclui um sistema de resolução
de litígios comerciais surgidos entre estadosmembros, bem como um mecanismo de
supervisão das políticas comerciais nacionais. Por outro lado, a OMC incorporou
os resultados dos ciclos negociais precedentes.
De referir que a ronda do Uruguai foi considerada o primeiro ciclo negocial da
sociedade pós-industrial. Na verdade, nos países industrializados o sector
terciário havia destronado a indústria na formação da riqueza nacional e no
volume de transacções comerciais. Pelo que os países industrializados se
bateram pela inclusão dos serviços no quadro das negociações comerciais
multilaterais. Assim, o ciclo do Uruguai adoptou um acordo geral sobre o
comércio de serviços, o GATS. Todavia, as pretensões dos países
industrializados não se confinaram ao alargamento ao domínio dos serviços dos
princípios sobre liberalização comercial, tendo incluído também no código de
comércio multilateral regras sobre propriedade intelectual, em virtude da
pressão exercida pelas indústrias farmacêutica e de software.
Em contrapartida, os países em desenvolvimento exigiram que o âmbito de
aplicação das regras do GATT de 1994 não se cingisse aos produtos industriais,
mas abrangesse também o comércio agrícola. Com efeito, os países industriais
mantinham um conjunto de procedimentos de apoio à sua agricultura, tais como a
aplicação de elevados direitos aduaneiros, mecanismos de auxílio ao rendimento
dos agricultores, e um regime de subsídios à exportação de produtos agrícolas,
que impediam um acesso justo e competitivo dos produtos provenientes dos países
em desenvolvimento. Pelo que a agricultura passou a incorporar a agenda das
negociações comerciais multilaterais, em virtude da ronda do Uruguai.
A OMC é uma entidade distinta das suas congéneres de Bretton Woods. Desde logo,
rege-se por uma lógica democrática, com a aplicação do princípio da igualdade
de todos os estados-membros no quadro do seu processo de decisão. Por outro
lado, não existem posições privilegiadas no tocante à composição das suas
instituições. No entanto, o aspecto mais singular da OMC no confronto com as
demais organizações económicas internacionais residirá nos mecanismos de
implementação das suas decisões. Com efeito, a OMC dispõe de um sistema de
resolução de diferendos entre estados-membros que prevê a existência de meios
tendentes a assegurar o cumprimento das decisões proferidas. Assim, sempre que
no âmbito de um litígio entre estados o painel encarregue de analisar o
diferendo considerar que um país infringiu as obrigações existentes no quadro
da OMC, é permitido que o Estado lesado possa aplicar represálias comerciais
até à cessação efectiva do comportamento proibido. Na medida em que compete ao
Estado lesado indicar os sectores objecto de medidas de retaliação comercial,
as quais poderão ser aplicadas a qualquer tipo de produtos, o sistema permite
que a parte lesada individualize os bens mais sensíveis para o Estado infractor
e, deste modo, alterar de modo mais célere o seu comportamento de forma a obter
a execução da decisão proferida pelo painel da OMC. Pelo que um dos avanços
verificados com a criação da OMC consistiu no progresso realizado no mecanismo
de enforcement das suas decisões.
Com a entrada em funcionamento da OMC, e o processo de globalização a atingir o
máximo fulgor durante a segunda metade da década de 1990, foi decidido lançar
um novo ciclo de negociações multilaterais. O novo ciclo deveria ter sido
iniciado em 1999, por ocasião da conferência ministerial da OMC em Seattle.
Todavia, as manifestações de protesto ocorridas, e os confrontos subsequentes,
não permitiram concretizar esse propósito. Pelo que foi na posterior
conferência ministerial da OMC, realizada no Qatar, em Novembro de 2001, que se
iniciou a chamada «Ronda de Doha».
O DOHA ROUND
O ciclo negocial de Doha pretendia ser a «Ronda do Desenvolvimento», no sentido
em que deveria produzir resultados que permitissem à maioria dos estados-
membros da OMC retirarem vantagens efectivas da liberalização do comércio
mundial. Na verdade, mais de três quartos dos membros da OMC são países em
desenvolvimento, sendo que a Ronda de Doha se deveria ocupar preferencialmente
da situação destes estados, combinando dois objectivos específicos da agenda
económica internacional: liberalização comercial e desenvolvimento. Assim, a
Declaração de Doha afirmava que os países em desenvolvimento deveriam partilhar
as vantagens do crescimento do comércio internacional. A área considerada
estratégica para o objectivo do desenvolvimento é a agricultura. A forma como
deveria ser privilegiada a meta do desenvolvimento implicava a facilitação do
acesso dos produtos dos países em desenvolvimento aos mercados do hemisfério
norte, nomeadamente, através da redução das tarifas aduaneiras que incidem
sobre as respectivas importações, bem como o desmantelamento dos subsídios
nacionais à produção.
A definição clara das prioridades da Ronda de Doha produziu uma alteração nas
estratégias negociais. Com efeito, as rondas comerciais precedentes foram
dominadas pelos países industrializados, em particular, Estados Unidos,
Comunidade Europeia, Japão e Canadá. A partir da Conferência de Cancún, em
2003, assistiu-se ao aparecimento de novos protagonistas que se opuseram às
tentativas de algumas potências tradicionais imporem as suas preferências na
agenda negocial. Com efeito, a Comunidade Europeia e o Japão pretenderam
incorporar nas negociações comerciais assuntos como o estatuto do investimento
estrangeiro, a política de concorrência e a transparência, de forma a obterem
contrapartidas dos países em desenvolvimento pelas concessões a realizar no
sector agrícola. Esta atitude levou os países em desenvolvimento – liderados
pelo Brasil, a Índia e a África do Sul – a abandonarem as negociações em
Cancún, facto que constituiu um primeiro sinal da determinação das economias
emergentes conseguirem maior equilíbrio negocial
4
.
Um dos factores que tem vindo a perturbar as negociações multilaterais de Doha
é a realização concomitante de uma vaga de acordos regionais e bilaterais de
comércio livre, promovidos sobretudo pelos Estados Unidos e pela União Europeia
(UE). Tais acordos, cujo número se situa na casa das centenas, foram
inicialmente despoletados pelos Estados Unidos numa estratégia de competitive
liberalization, a qual consistia em exercer pressão sobre os principais
parceiros comerciais com vista à obtenção de determinadas concessões no âmbito
multilateral. Todavia, o alastramento brutal dos acordos bilaterais acabou por
ocupar o terreno das negociações multilaterais, retirando progressiva
importância à ronda comercial em curso
5
. O impasse negocial em que o ciclo de Doha parece ter caído ultimamente
reflecte de algum modo a desvalorização a que foi votado por efeito da
multiplicação dos acordos bilaterais, para além da recente escalada
proteccionista resultante da postura adoptada pelos governos nacionais na
sequência do crash de 2008.
Por outro lado, o aspecto susceptível de criar maiores distorções nos fluxos
comerciais internacionais na actualidade tem a ver com a política cambial de
certos estados-membros. Na verdade, a manipulação artificial das taxas de
câmbio, em particular as políticas tendentes à subvalorização da moeda nacional
por parte de alguns países exportadores, equivalem na prática à imposição de
tarifas aduaneiras à importação de bens e serviços e, inversamente, produzem o
efeito de subsídios à exportação dos produtos nacionais. Todavia, sucede que no
sistema internacional a questão das taxas de câmbio releva da jurisdição do
FMI, o qual desde 1971 tem demonstrado reduzida capacidade para influenciar a
política cambial dos estados membros. É importante estabelecer mecanismos de
cooperação entre o FMI e a OMC com vista a uma abordagem global dos efeitos das
políticas cambiais dos estados sobre o comércio internacional, aproveitando o
sistema de enforcement existente no âmbito da OMC para combater as distorções
nas trocas comerciais provocadas por desvalorizações competitivas de
determinadas divisas nacionais
6
.
O G-20
Um desenvolvimento interessante da comunidade internacional tem sido o chamado
Grupo dos Vinte (G-20). A emergência do G-20 está intimamente associada ao
processo de globalização, e às insuficiências demonstradas pelas instituições
internacionais, e também pelos fóruns informais, para lidar com os desafios
colocados pela intensificação das relações económicas à escala mundial. Ou
seja, a incapacidade das instituições de Bretton Woods para liderarem com os
novos desafios suscitados pelo processo de globalização, bem como das
instâncias surgidas no seu seio, como o grupo dos países industrializados, o
chamado G-7.
As circunstâncias que determinaram o aparecimento do G-20 estão relacionadas
com os receios dos efeitos globais das várias crises económicas e financeiras
ocorridas ao longo da década de 1990. Assim, a crise cambial que afectou o
México em 1995, com o seu potencial de alastramento a toda a América Latina; ou
a dimensão mais profunda da crise verificada nas economias asiáticas, a partir
de 1997, bem como a crise financeira que assolou a Rússia em 1998. O efeito
conjugado destes acontecimentos levou ao receio que as relações económicas num
mundo globalizado pudessem ser afectadas por uma depressão à escala mundial,
com efeitos comparáveis à crise de 1929
7
.
Nesse contexto, as principais potências económicas acordaram na necessidade de
criação de um fórum de debate sobre os temas centrais do processo de
globalização, com um alcance mais amplo que aquele proporcionado pelas
organizações internacionais e demais instâncias existentes. Com efeito, a nova
entidade deveria ser capaz de permitir superar alguns antagonismos que
caracterizavam o funcionamento das instituições financeiras internacionais, tal
como a clivagem entre Norte e Sul, e associar os países industrializados a um
conjunto de economias emergentes, com elevado potencial de crescimento.
Terá sido pelo esforço conjunto das autoridades dos Estados Unidos e do Canadá
que se formou em 1999 um grupo de ministros das finanças e governadores dos
bancos centrais oriundos dos países do chamado G-8, bem como da China, Índia,
Brasil, Coreia do Sul, Austrália, África do Sul, Argentina, México, Turquia,
Indonésia e Arábia Saudita. Do núcleo do G-20 fazem parte, ainda, a UE, assim
como o director-geral do FMI e o presidente do Banco Mundial. Um dos méritos do
G-20 foi ter sido capaz de acordar em princípios comuns no tocante ao sistema
económico internacional, englobando a agenda do desenvolvimento, bem como
definir prioridades mais amplas do que as resultantes da ortodoxia do chamado
consenso de Washington
8
.
Não será de estranhar que face ao eclodir do crash de 2008 o G-20 tenha
aparecido como a instância escolhida para lidar com a reacção da comunidade
internacional à profunda recessão que afectou a economia mundial. Na verdade, a
preferência das grandes potências pelo G-20 significa a superação da velha
ordem económica internacional dominada pelos países industrializados, que
tinham o G-7 como fórum tradicional de debate e concertação sobre o estado da
economia mundial. Por isso, a opção pelo G-20 como entidade de referência para
definir estratégias com vista a evitar que a recessão causada pela crise de
2008 possa transformar-se numa profunda depressão significa, também, o
reconhecimento que os países industrializados necessitam do consenso e empenho
das economias emergentes para poder gizar um plano eficaz para o relançamento
da economia mundial.
O G-20 será, provavelmente, a instância que melhor traduz a nova realidade
internacional gerada por efeito da globalização, com o protagonismo crescente
das economias emergentes e a deslocação de riqueza e pujança económica dos
países ocidentais para a Ásia. Por outro lado, e independentemente do futuro
que este grupo possa ter como instância internacional, o G-20 representa a
primeira tentativa para agregar um núcleo de potências que reflicta a
diversidade e complexidade de um mundo globalizado e tendencialmente
multipolar, abarcando países industrializados e em desenvolvimento, países do
Norte e do Sul, países ocidentais e dos demais continentes. E, elemento não
despiciendo numa conjuntura política marcada por acentuados contrastes
civilizacionais, inclui também países de maioria islâmica.
A REFORMA DO SISTEMA INSTITUCIONAL
Como se referiu, as instituições de Bretton Woods projectavam o equilíbrio de
poderes existente ao tempo da sua criação. No fundo, um mundo politicamente
dominado pelas grandes potências vencedoras da guerra, mas com uma linha
divisória bastante clara no tocante à essência das relações económicas
internacionais. Ao tempo, os Estados Unidos estavam empenhados em prosseguir
uma campanha que permitisse alargar o âmbito das economias de mercado à escala
global, apoiando os esforços de reconstrução económica dos estados afectados
pelo conflito militar, lançando as bases de um sistema monetário internacional
estável e promovendo a liberalização do comércio mundial.
Este sistema, apesar das várias alterações que foi sofrendo ao longo das
últimas seis décadas – a mais significativa das quais terá sido a criação da
OMC –, enfrenta problemas de representatividade e legitimidade em virtude das
transformações verificadas nas relações económicas, por efeito do processo de
globalização. Na verdade, um dos efeitos da chamada globalização foi ter
promovido uma alteração dos equilíbrios entre as potências económicas à escala
universal, permitindo o aparecimento de um grupo de países emergentes, com
potencial para transformarem as relações de poder económico. De entre os países
emergentes, a China e a Índia merecem especial destaque pelo progresso
económico realizado nas décadas recentes, pela dimensão dos respectivos
mercados nacionais e pelo potencial de crescimento revelado.
O desafio que se coloca aos países ocidentais é saber como acomodar as chamadas
potências emergentes numa ordem económica internacional pautada por valores
ocidentais, e governada por um sistema de regras que reflectia a hegemonia do
Ocidente no âmbito das relações económicas
9
. No caso concreto das organizações criadas em Bretton Woods resulta claro que
países como a China e a Índia estão sub-representados no funcionamento dessas
instituições, e que nem mesmo as alterações realizadas em 2008 no mecanismo de
voto permitiram atribuir-lhes um peso compatível com a importância crescente
que vêm ocupando na economia mundial. A título de exemplo, na reforma operada
ao sistema de voto do FMI, em 2008, o peso específico da China foi aumentado de
2,98 por cento para uns meros 3,72 por cento, ficando muito aquém da
importância efectiva que detém no sistema financeiro internacional.
Não será difícil entender que se as instituições económicas internacionais não
forem capazes de projectar no seu modo de funcionamento interno as alterações
verificadas no equilíbrio económico global, dificilmente terão capacidade para
lidar com os desafios e os problemas com que serão confrontadas no século XXI.
Neste sentido o problema que se coloca ao sistema institucional é o de
encontrar um consenso que permita alterar o modelo de representação nacional
existente, e o correspondente peso específico dos diferentes países, no seio
das principais organizações económicas. No fundo, importa perceber se os países
ocidentais terão capacidade para preservar o acervo institucional que se tem
ocupado da regulação das relações económicas internacionais, reformando-o de
modo a reflectir as alterações geoeconómicas entretanto verificadas, ou se
preferem correr o risco de os países emergentes deixarem de se rever no sistema
institucional existente e preferirem a sua substituição por organizações que,
na sua óptica, se configurem como mais representativas. Na verdade, para que o
FMI possa desempenhar plenamente as suas funções, em particular, emitir avisos
aos seus membros sobre os riscos de instabilidade financeira a nível global que
certos comportamentos económicos poderão provocar, exercendo uma efectiva
função de vigilância sobre as políticas dos grandes estados, o FMI necessita de
uma legitimidade política acrescida, a qual dependerá de um modo de
representação equilibrado das grandes potências económicas. A título de
exemplo, é sabido como a crise financeira de 2008 foi, em parte, desencadeada
pela política de excessiva acumulação de divisas estrangeiras pelas autoridades
chinesas, as quais acabaram por financiar o défice orçamental dos Estados
Unidos, durante cerca de uma década. Todavia, seria difícil para o FMI advertir
com sucesso a China para os riscos de tal política, pela diminuta legitimidade
que a instituição dispõe junto das instâncias governamentais chinesas, e não
tendo a autoridade necessária para influenciar uma alteração das suas
orientações macroeconómicas. Do mesmo modo, o FMI enquanto instituição
incumbida da supervisão do sistema financeiro internacional, não dispõe de um
nível razoável de independência face aos Estados Unidos para advertir as suas
autoridades dos riscos causados ao equilíbrio financeiro global por uma
política continuada de endividamento externo, com vista a financiar um
insustentável grau de consumo doméstico
10
.
Um das lições que parece poder retirar-se do crash de 2008 terá sido a relação
existente entre a crise financeira e a eficácia dos mecanismos de governação
global. O consenso que parece ter emergido sobre a necessidade de maior
regulação do sistema financeiro a nível mundial vem reforçar a exigência de
maior protagonismo do FMI. Todavia, para que o FMI possa pugnar de modo válido
pela estabilidade financeira global, a instituição terá de dispor de
legitimidade junto dos principais actores económicos internacionais. Como
pressuposto do incremento da legitimidade do Fundo encontra-se a questão da
reforma institucional. Pelo que a comunidade internacional terá de encontrar um
modo de realizar uma reforma dos mecanismos de representação nacional e do
direito de voto de cada Estado-membro, capaz de reflectir os actuais
equilíbrios económicos internacionais. Em particular, consagrando uma
representação adequada dos países emergentes e das economias em
desenvolvimento.
Se a crise actual parece ter posto em causa a hegemonia ocidental sobre a
economia internacional, seria o momento de os países industrializados
equacionarem o sistema de representação existente nas instituições de Bretton
Woods, abrindo caminho a um novo modelo de governação destas instituições. O
que significaria menor peso dos países ocidentais, os quais mantêm um
discutível controlo do funcionamento destas entidades. Em particular, os países
europeus deverão preparar-se para reduzir a percentagem global de votos que
dispõem na formação das deliberações, eventualmente num contexto mais amplo de
reforma que poderá passar pela reformulação do tipo de participação dos
estadosmembros da UE, ou dos países da Zona Euro, através da consolidação das
respectivas posições nacionais
11
.
CONCLUSÃO
A «ascensão do resto do mundo», na expressão de Fareed Zakaria
12
, em consequência do processo de globalização veio pôr em causa o status quo
existente nas instituições internacionais. Em particular, a situação tornou-se
mais pertinente no tocante às organizações de natureza financeira, em virtude
dos princípios que determinam a representação dos estados-membros e o exercício
do poder de decisão. O controlo que os países ocidentais exercem sobre o
funcionamento dessas entidades não é consentâneo com os novos equilíbrios de
poder económico a nível mundial. Deste modo, compete aos países ocidentais
encarar a nova realidade global e equacionar entre a manutenção do actual
sistema institucional internacional, que é uma criação sua e projecta valores e
princípios inspirados pelo modelo económico ocidental – dotando-o de um
conjunto de reformas nos mecanismos de representação nacional e do exercício do
direito de voto que reflictam a importância efectiva das potências emergentes –
ou persistir na manutenção da hegemonia ocidental no funcionamento dessas
entidades, o que acabará por alienar o interesse das economias emergentes sobre
a utilidade de tais organizações.
O crash de 2008 evidenciou a relação existente entre globalização financeira e
a insuficiência dos mecanismos de governação internacional. O que acentua a
necessidade das instituições internacionais de carácter financeiro reforçarem a
sua função reguladora e supervisora do sistema internacional, em particular, o
FMI. Todavia, as instituições de Bretton Woods continuam reféns de uma lógica
de funcionamento que afecta a sua representatividade junto da comunidade
internacional, bem como atinge a legitimidade da sua actuação. Neste contexto,
parece interessante a emergência do G-20 como fórum preferencial de debate e
concertação das grandes potências económicas face aos desafios que se colocam à
economia global. Será, porventura, o prenúncio do fim da incontestada hegemonia
ocidental, e um sinal no sentido de uma maior democratização do sistema
internacional.
NOTAS
1
CASSESE, A. – International Law in a Divided World. Oxford: Clarendon Press,
1994, p. 323.
2
ALTMAN, R. – «The Great Crash, 2008. A geopolitical setback for the West». In
Foreign Affairs. Vol. 88, N.º 1, 2009, p. 3.
3
Para uma análise das alterações introduzidas pela reforma de 2008, ver o site
do FMI, em: http://www.imf.org/external/np/exr/ib/2008/040108.htm
4
BHAGWATI, J. – «From Seattle to Hong Kong». In Foreign Affairs. Vol. 85, N.º
1, 2006, p. 70.
5
MATTOO, A., ARVIND, A. – «From Doha to the Next Bretton Woods: a New
Multilateral Trade Agenda». In Foreign Affairs. Vol. 88, N.º 1, 2009, p. 16.
6
Ibidem, p. 20.
7
MARTIN, P. – «A global answer to global problems». In Foreign Affairs. Vol.
84, N.º 3, 2005, p. 28.
8 Ibidem, p. 30.
9
DREXNER, D. – «The New New World Order». In Foreign Affairs. Vol. 86, N.º 2,
2007, p. 35.
10
PISANI-FERRY, J. – «International Governance. Is the G-20 the right forum?».
In Bruegel Policy Contribution, 2009/05, p. 5. Ver: http://www.bruegel.org/
Public/Publication_detail.php?ID=1171&publicationID=14823
11
Ibidem, p. 6.
12 ZAKARIA, F. – O Mundo Pós-Americano. Lisboa: Gradiva, 2008, p. 12.