A «escola prudentíssima» e o fim do Ultramar
A «escola prudentíssima» e o fim do Ultramar
Filipe Ribeiro de Meneses*
PEDRO AIRES OLIVEIRA
Os Despojos da Aliança: A Grã-Bretanha e a Questão Colonial Portuguesa 1945-
1975
Lisboa,
Tinta-da-China,
2007, 598 páginas
Os Despojos da Aliança, adaptação da tese de doutoramento de Pedro Aires
Oliveira, tem como objectivo explicar o papel britânico «no desenvolvimento e
desfecho da crise do colonialismo português». Como o autor reconhece na
Introdução, este tema tem sido preterido por uma historiografia que identifica
como primacial a relação transatlântica, relegando as ligações entre Portugal e
as outras potências coloniais para um segundo plano. Aires Oliveira defende,
porém, que o relacionamento entre Lisboa e Londres merece ser compreendido não
apenas porque, num plano abstracto, a influência britânica em Portugal
permanecia forte, mas também porque os pontos de contacto reais entre os dois
países eram significativos. Se por um lado a Grã-Bretanha continuava a ser o
mais importante parceiro comercial de Portugal, forçando Lisboa a seguir
Londres no labirinto da construção europeia, por outro os interesses comuns na
esfera colonial eram inúmeros e levavam a uma cooperação constante e íntima que
não existia no relacionamento entre Portugal e os Estados Unidos.
PORTUGAL, A GRÃ-BRETANHA E AS COLÓNIAS
Em 1945, ponto de partida para o livro (embora as considerações sobre a
evolução da aliança desde as suas origens mais remotas sejam um modelo de
síntese e clareza), as relações entre Portugal e a GrãBretanha estavam num bom
momento. Eram várias as áreas em que os interesses dos dois países se cruzavam,
e, por uma vez, não existiam ameaças sérias às colónias portuguesas. A intenção
do Governo trabalhista em apostar no desenvolvimento da África subsariana era
vista com bons olhos por um Governo português que temia o instinto
anticolonialista de Washington. Dada a importância geográfica de algumas
posições-chave do império colonial português ' saliente-se o porto da Beira ',
o que Londres pedia a Lisboa era que investisse em África, de forma a
acompanhar as necessidades económicas e estratégicas da velha aliada. O Governo
de Salazar estava disposto a concordar com qualquer iniciativa que não
ameaçasse a soberania portuguesa. Já o Estado Português da Índia era um ponto
de discórdia, pois Londres não lhe diagnosticava um futuro viável: mas esta era
uma questão táctica e não estratégica. A Grã-Bretanha não era ainda
anticolonialista; simplesmente não estava de acordo com a política seguida por
Salazar em relação a Goa.
Aires Oliveira não se limita a traçar a simples evolução das relações luso-
britânicas em matéria colonial. Dedica um capítulo inteiro aos «olhares
britânicos sobre o colonialismo português», usando as conclusões a que chega
para interpretar as decisões tomadas pelo Foreign Office no período em questão.
Até meados da década de 1950, as colónias portuguesas eram vistas como
territórios subaproveitados onde imperavam práticas laborais chocantes. A baixa
remuneração da administração colonial era apontada como uma das causas desta
situação. Henrique Galvão não era o único observador a denunciar estas
práticas; funcionários diplomáticos e consulares mantinham Londres a par da
situação nas colónias portuguesas, enquanto missionários e jornalistas
esclareciam a opinião pública sobre Angola e Moçambique. A principal
preocupação britânica não era, porém, denunciar os abusos cometidos em
território português, mas antes avisar o Governo de Salazar de que os ventos
sendo semeados iriam, mais tarde ou mais cedo, resultar em tempestades
impossíveis de controlar, dada a natureza da presença portuguesa ' fraca em
recursos humanos e materiais ' em África.
A PRESERVAÇÃO DA ALIANÇA BRITÂNICA?
Tudo mudou no final da década de 1950. Embora as colónias portuguesas
estivessem a embarcar no processo de desenvolvimento económico vaticinado pelos
observadores britânicos, a onda anticolonialista que varreu o mundo levou
Londres a abandonar os seus sonhos africanos e a preparar uma descolonização
que criou, num curto espaço de tempo, dezenas de novos países. Uma a uma as
outras potências coloniais aceitaram este desfecho, com uma excepção: Portugal.
Para Salazar, a mudança de atitude de Londres representava uma traição única,
não só a Portugal, como a todo o Ocidente. Corria-se o risco de entregar o
continente africano a Moscovo; mas mesmo se tal não acontecesse, conseguindo a
Grã-Bretanha controlar indirectamente as suas ex-colónias, Portugal, pobre de
meios, perderia toda a sua influência em África. Os resultados seriam
imprevisíveis para Portugal, para a Península Ibérica e para o resto da Europa.
O que representava, então, a aliança? O desenlace final da crise de Goa
agravou este estado de espírito. Confrontado com as preparações militares da
União Indiana para o assalto à Índia portuguesa, o Governo de Salazar, pela
primeira vez, invocou a aliança, pedindo o uso de aeródromos britânicos para
assegurar o reforço das tropas em Goa. A resposta foi negativa. Procedeu-se
então a uma análise da aliança, e do seu valor, um processo sugerido por
Salazar à Assembleia Nacional. A favor da preservação da aliança, do lado
britânico, estavam as chefias militares, mas diplomatas e políticos eram mais
cautelosos: melhor era não definir quaisquer obrigações para com Portugal,
tanto mais que era impossível calcular a duração do Estado Novo, tirando assim
partido da ambiguidade resultante. Tal estado de espírito sobreviveu ao
regresso ao poder do Partido Trabalhista, em 1964. Do lado português, após o
desabafo de Salazar (lido por Mário de Figueiredo em São Bento), pouco se fez,
e a onda de anglofobia que acompanhou a perda de Goa perdeu gradualmente a sua
força.
Aires Oliveira não apresenta a posição britânica quanto a Portugal como sendo
monolítica; segue a evolução dos debates entre o Foreign Office e outros
ministérios, dentro do próprio Foreign Office, na imprensa e no Parlamento,
mostrando como uma rede de interesses à escala global, aliada às políticas
impostas pela Guerra Fria, levaram a um afastamento subtil dos dois aliados.
Não faltava quem, em Londres, entendesse a posição de Salazar, e por ela
tivesse grande simpatia; mas um a um os opinion-makers passaram-se para o lado
do nacionalismo africano, deixando os amigos de Salazar cada vez mais isolados.
Raramente se terá conseguido, numa monografia portuguesa, explicar tão bem os
processos pelos quais um governo estrangeiro se rege, e as pressões a que está
sujeito. Neste caso, as pressões mais importantes eram exercidas pelos países
da Commonwealth, como resposta à aproximação estratégica empreendida por
Lisboa, Salisbúria e Pretória. O apoio político e prático de Salazar ao regime
de Ian Smith, prestado apesar de inúmeros avisos britânicos, exasperou Harold
Wilson, e motivou a mais grave crise do período entre Londres e Lisboa,
receando-se mesmo que esta pudesse passar do campo diplomático para o militar
através de um golpe de mão britânico sobre o porto da Beira, mais uma vez no
centro das atenções. O conteúdo das cartas trocadas por Wilson e Salazar nesta
altura foi, no mínimo, corrosivo, e se Wilson ganhou a escaramuça,
neutralizando a Beira como ponto de descarregamento de petróleo para a Rodésia,
Salazar ganhou a batalha, pois este abastecimento continuou a ser feito por
outras vias, graças ao apoio sul-africano.
Se, até à II Guerra Mundial a aliança inglesa representou um entrave às
aspirações territoriais da África do Sul, então, a partir de 1965, a África do
Sul, graças ao seu poderio económico e militar, afirmouse como um parceiro
preferencial para a preservação do Portugal ultramarino, o que permitiu ao
Governo de Salazar desafiar os seus adversários, incluindo o Governo britânico.
Esta inversão de papéis reflecte bem o facto de, como escreve Aires Oliveira,
nos finais dos anos de 1960, «as relações luso-britânicas» terem «resvalado
para aquele que foi talvez o seu ponto mais baixo de sempre desde a II Guerra
Mundial». Talvez se pudesse ir mais longe: desde o Ultimato de 1890? A situação
desanuviou-se um pouco com a chegada de Marcelo Caetano ao poder, em 1968
(devido em parte ao acelerar do desenvolvimento económico de Angola, que atraiu
as atenções britânicas), e com o regresso ao poder do Partido Conservador, em
1970. Voltou o diálogo entre as duas capitais. Foi mesmo tomada a decisão de
festejar os seiscentos anos da aliança, e de convidar Marcelo Caetano a visitar
Londres: mas a notícia do massacre de Wiriyamu levou à mobilização de todas as
forças anticolonialistas na Grã-Bretanha contra a visita e à exploração
política do caso por parte dos trabalhistas, com Harold Wilson a pedir a
expulsão de Portugal da NATO. Wiriyamu acabou por dominar a estada de Caetano
em Londres, se bem que o Governo de Ted Heath tentasse escudar o seu convidado.
A ALIANÇA e a descolonização portuguesa
Nos meses que antecederam o 25 de Abril, a opinião britânica sobre o futuro do
domínio colonial português em África mudou. A situação política em Lisboa
cristalizara, desfazendo-se a miragem de evolução liberal; a situação económica
tendia a piorar; e as informações chegadas de África sobre a situação militar
eram desanimadoras. Em finais de Fevereiro, Harold Wilson, cujo partido tinha
entretanto sofrido uma violenta guinada à esquerda, voltou ao poder. Anunciava-
se uma nova crispação, que nunca veio a suceder graças à queda de Caetano.
Aires Oliveira conclui Os Despojos da Aliança examinando o papel deste governo
trabalhista no processo de descolonização portuguesa: um papel de intermediário
entre Lisboa e o nacionalismo africano. Quis Londres aconselhar Lisboa quanto
ao caminho a seguir (descolonização e entrega do poder aos movimentos
nacionalistas) ' o que, entre outros resultados, permitiria o «apertar das
roscas do regime de sanções a Salisbury» ' mas também recomendar paciência aos
seus parceiros da Commonwealth, de forma a não fragilizar os democratas
portugueses, cuja obra se adivinhava difícil. Angola baralhou os cálculos do
Foreign Office, que, seduzido por Jonas Savimbi, se inclinou inicialmente para
a UNITA. Quanto a Timor, «episódio menos feliz», a reacção britânica foi a de
reduzir ao máximo a sua exposição à crise, tentando ' com sucesso ' que esta
passasse despercebida na opinião pública.
Este último capítulo do livro, no qual Portugal parece já ultrapassado pelos
acontecimentos, aponta já para uma obra a realizar: uma investigação do período
entre o 25 de Abril e o fim do apartheid, usando fontes europeias, americanas e
africanas. Contentemo-nos, entretanto, com esta obra de Pedro Aires Oliveira,
valiosíssima contribuição para um melhor entendimento das últimas décadas da
África portuguesa e demonstração exemplar do valor da história diplomática.
* Professor no Departamento de História Moderna da National University of
Ireland, Maynooth. Autor de vários livros de história contemporânea, entre os
quais União Sagrada e Sidonismo (2000) e Franco and the Spanish Civil War
(2005). Prepara actualmente uma biografia de Salazar.
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