Rússia
Rússia
Maria Raquel Freire*
Steve LeVine, Putin's Labyrinth: Spies, Murder, and the Dark Heart of the New
Russia
Nova York, Random House, 2008, 194 pp.
Steve LeVine, responsável pela secção de política externa da revista Newsweek,
conhecia bem a União Soviética, acompanhou a transição pós-soviética e
redescobre neste volume a nova Rússia sob a presidência de Vladimir Putin. Como
o autor afirma, trata-se de uma «crónica sobre violência na Rússia moderna»,
onde são analisados detalhadamente alguns dos casos mais mediáticos de mortes
brutais, como a de Anna Politkovskaia ou Alexander Litvinenko; exílios
forçados, como o de Boris Berezovsky; e relatos de sobreviventes do assalto de
2002 ao teatro em Moscovo, onde a sorte dos reféns foi ditada por uma resposta
violenta das autoridades.
Num tom forte, onde as palavras «assassínio», «espionagem» e «rapto» são
constantes na descrição do «coração negro» da nova Rússia, a análise é
fundamentada em documentos oficiais, conversas com familiares e amigos das
vítimas, e entrevistas a pessoas ligadas ao poder central. LeVine sublinha a
mudança fundamental na forma como os assassínios de Estado eram conduzidos nos
tempos da União Soviética, de forma violenta mas encoberta, uma vez que a
imagem de ordem era fundamental. Com Boris Ieltsin o padrão inverte-se, e as
violações das «regras do jogo» sucedem-se com a prática de actos brutais a
tornar-se frequente à luz do dia. O cidadão comum torna-se um alvo fácil no
fogo cruzado de vinganças e lutas intersticiais pelo poder, entre os mais
poderosos ' os oligarcas ' e a afirmação de um submundo paralelo dominado pela
«máfia russa». De acordo com o autor, assim que Vladimir Putin assume a
presidência, é estabelecido um contrato social entre as máfias e o Estado. Isto
significa que estes grupos obscuros passam a fazer parte da nova ordem,
trabalhando para empresas de segurança ao mais alto nível, incluindo
ministérios e empresas estatais. De facto, já em finais de 2006, cerca de 78
por cento da elite política e económica na Rússia era constituída pelos
siloviki (membros das agências de segurança e militares da Rússia). O objectivo
claro subjacente a esta alteração prende-se com a necessidade de, novamente, se
assumir uma imagem de ordem, interna e externamente, para que o
reposicionamento da Rússia no sistema internacional possa ser consolidado. No
entanto, os assassinatos, raptos e relatos vários que o livro descreve
demonstram que os «assassínios de Estado» estão de regresso, e que uma política
de medo se reinstalou na nova Rússia. A palavra de ordem é, por isso,
eliminação de qualquer ameaça ao regime. Uma escrita densa que revela os
pormenores de teias infindáveis de contactos, redes, personagens, e dinâmicas
do que constitui o complexo «labirinto de Putin».
Edward Lucas, The New Cold War: Putin's Russia and the Threat to the West
Nova York, Palgrave Macmillan, 2008, 261 pp.
Edward Lucas, especialista sobre a Europa de Leste do The Economist, inicia a
sua análise neste livro com os assassinatos brutais de Anna Politkovskaia e
Alexander Litvinenko como sinais claros de uma Rússia a reverter-se no período
pós-Boris Ieltsin aos velhos princípios soviéticos e, desse modo, a constituir
uma séria ameaça para os seus próprios cidadãos e para o exterior. No
entanto,de acordo com Lucas, o mundo tem-se mantido complacente e desatento
face a estes desenvolvimentos. E reforça que, actualmente, a «luta contra o
terrorismo» parece permitir o mesmo erro. As acções que se seguiram, como a
intervenção no Iraque ou o tratamento dos prisioneiros em Guantánamo, tornaram-
se a arma de propaganda mais potente contra os Estados Unidos e os seus
aliados.
Ao longo da presidência de Vladimir Putin a retórica adensou-se e as relações
com os Estados Unidos tornaram-se cáusticas. Este contexto é definido pelo
autor como «a nova Guerra Fria», uma terminologia que o próprio entende como
alvo de críticas face a algum exagero terminológico, uma vez que o contexto e
as dinâmicas são diferentes. No entanto, Edward Lucas defende que os sinais são
claros: vários países ocidentais têm-se insurgido contra a Rússia,
especialmente os Estados Unidos, o Reino Unido e alguns antigos estados
comunistas; os estados mais próximos do Kremlin são parte da galeria pária:
Síria, Venezuela e Irão, mais uma mão cheia de repúblicas ex-soviéticas, como a
Bielorrússia e o Tajiquistão. Também se tem aproximado da China, em particular
no âmbito da Organização de Cooperação de Xangai, sendo que não é segredo o seu
desejo de manutenção de direitos sobre o antigo império, e de contenção de
quaisquer acções contrárias aos seus interesses. De facto, Putin afirmou que a
maior catástrofe geopolítica do século XX foi o colapso da União Soviética.
Deste modo, o autor argumenta que «o Ocidente está a perder a nova Guerra Fria,
quando ainda nem notou que ela já começou». Ao longo de nove capítulos, Lucas
descreve a chegada de Vladimir Putin ao poder e a consolidação de políticas de
controlo, incluindo violência, censura e repressão. Analisa ainda em detalhe a
economia russa, desconstrói a ideia de que não existe uma «ideologia russa», e
explica a arma mais significativa do Kremlin, a energia, seguida das questões
militares e de segurança. Conclui com possíveis opções para que o Ocidente
ganhe esta nova Guerra Fria, ressuscitando o princípio de segurança colectiva
para lidar com as políticas de «dividir para reinar» que a Rússia tem
prosseguido.
O autor apresenta uma análise interessante mas que acaba por reforçar o
argumento contrário de que, de facto, as diferenças existentes nos modelos de
desenvolvimento político, social e económico não fazem do contexto de tensão
uma nova Guerra Fria, sendo antes reflexo das dificuldades de ajustamento a um
contexto internacional diferenciado e a dinâmicas em mutação.
Anne de Tinguy (org.), Moscou et le Monde: l'Ambition de la Grandeur: Une
Illusion?
Paris, Éditions Autrement, 2008, 217 pp.
Dirigido por Anne de Tinguy, professora e investigadora na Sciences Po, Paris,
o livro assume o regresso da Rússia ao cenário internacional como um dado
adquirido que suscita várias interrogações e algumas inquietações a Ocidente.
A postura russa resulta da sua visão do mundo (em plena mutação e onde «o mito
da unipolaridade de afundou definitivamente no Iraque»), e da conjugação de
factores internos e externos, sendo um dos melhores exemplos a subida nos
preços dos combustíveis fósseis a partir de 2000, ano em que Vladimir Putin
assume a presidência do país. Partindo do princípio que poder económico se
traduz em poder político, esta leitura do Kremlin torna as relações da Rússia
com o Ocidente (leia-se Estados Unidos e União Europeia) menos permeável a
críticas relativamente à sua concepção de democracia e direitos humanos. De
facto, a Rússia entende que o modelo ocidental não é adequado, e advoga uma
definição própria de democracia. A maturação da postura russa consagra-se, de
acordo com Anne de Tinguy, com os acontecimento de 11 de Setembro de 2001, os
alargamentos da NATO e da União Europeia, acontecimentos que, conjugados com o
crescimento interno, permitem uma postura simultaneamente reactiva e assertiva
russa, que acaba por ter como reflexo a popularidade interna de Putin. Os
problemas da transição, no entanto, persistem: essencialmente a nível
«identitário e estratégico». Acresce às relações a Ocidente a dimensão
asiática, com impacto claro nas opções de política externa e que Vladimir Putin
contorna ao definir a Rússia como uma «potência euro-asiática». Em finais do
seu segundo mandato, a «Rússia já não é o homem doente da Europa»; mas no mundo
euro-atlântico a Rússia não encontrou ainda o seu lugar. O paradigma da
transição democrática parece não conseguir dar lugar a um novo modelo no
relacionamento da Rússia com o Ocidente: «o Kremlin desorienta os seus
parceiros sem propor um novo relacionamento que estes considerem construtivo».
As perspectivas permanecem em aberto quanto ao futuro da Rússia, uma vez que
persistem problemas estruturais essencialmente a nível económico (parca
diversificação de investimentos) e demográfico.
Num volume que conta com a excelência analítica de Vladimir Baranovsky, num
capítulo sobre o processo de formulação da política externa russa, são depois
levantadas questões fundamentais e analisados os desafios estruturais à
manutenção da nova Rússia nas relações internacionais como potência estratégica
de relevo, com base nos pressupostos mencionados, tornando este volume uma
leitura a recomendar.
Robert Levgold (ed.), Russian Foreign policy in the 21st Century & the
Shadow of the Past
Nova York, Columbia University Press, 2007, 534 pp.
Professor na Columbia University, em Nova York, Robert Levgold procura neste
volume, com o contributo de vários autores, analisar a política externa russa
actual à luz de quatro séculos de história. Através da identificação de eixos
estruturantes na história russa, as várias contribuições procuram fundamentar
padrões de continuidade e mudança na busca de entendimentos para dinâmicas e
processos actuais.
Primeiro, a política externa russa tem sido moldada pela procura constante de
estabilização das fronteiras, de forma mais agreste a Ocidente e Sul e menos a
Leste, deixando marcas nas políticas russas e criando um sentimento permanente
de «insegurança». Segundo, ao longo da sua história a ligação entre questões
económicas e de segurança nacional manteve sempre expressão na política
externa, ora promovendo, ora complicando as relações com vizinhos e outras
potências. Nada de novo nas análises de política externa russa nos dias de
hoje. Terceiro, desde o século XV que o processo de engrandecimento territorial
é prosseguido com base no princípio de unidade eslava, sendo cunhado não de
«expansão», mas de «unificação». Ou seja, a missão imperial subjugada a um
entendimento de comunidade eslava partilhado, mesmo que de forma dominante a
nível político. No entanto, não significando a identificação de uma identidade
una num quadro multiétnico fragmentado ' ou seja, as reminiscências de um
império multinacional, uma pesada herança do passado, e a resistência a
reformas e mudança, a contribuírem para as dificuldades em ultrapassar esta
identidade nacional fragmentada. Quarto, a procura de alianças, essencialmente
de conveniência, e a postura face à ordem internacional, com base em princípios
de colaboração com instituições internacionais como forma de assegurar a não
alteração do status quo, especialmente face a estados revisionistas (a Alemanha
e a França surgem como exemplos).
Com base nestes pressupostos, o livro explora padrões históricos que permitem
de algum modo perceber o que é novo e o que não é assim tão novo na política
externa russa. O cruzamento de todos estes factores e o modo como eles
funcionam, ora como adjuvantes, ora como óbices à formulação e implementação da
política externa russa, são aqui analisados. Os diferentes contributos
concorrem para o entendimento de que os traços do passado continuam muito
presentes na Rússia de hoje. Esta terá por isso de provar que a «democracia
soberana» não é um equivalente simplificado de «autoritarismo burocrático». Mas
tal como o termo que a antecedeu, «democracia de gestão», a expressão
permanece contraditória: «soberana» significa não interferência e «democracia»
é entendida como um modelo de desenvolvimento com características próprias e
específicas à Rússia. As possibilidades de abertura da política externa e a
direcção que esta vai tomar dependerão, por isto mesmo, do modo como as
desvantagens e obstáculos que a Rússia enfrenta, especialmente em termos
internos, venham a ser mitigados, ultrapassados ou isolados. O peso do passado
nas políticas actuais da Rússia dependerá da forma como esta conseguir lidar
com o mesmo, optimizando as escolhas e possibilidades que o presente e o futuro
lhe oferecem.
* Professora auxiliar na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
Doutora em Relações Internacionais pela Universidade de Kent (Canterbury, Reino
Unido). Autora de Conflict and Security in the Former Soviet Union: the Role of
the OSCE (2003).
Rua Dona Estefânia, 195, 5 D
1000-155 Lisboa
Portugal
ipri@ipri.pt