A guerra dos mundos
A guerra dos mundos
João Pedro Vieira *
Anthony Pagden
Worlds at War: The 2,500-Year Struggle between East and West
Oxford,
Oxford University Press,
2008, xxvi + 548 páginas
[tradução portuguesa nas Edições 70]
O PASSADO À LUZ DO PRESENTE
A violência das reacções do mundo islâmico à influência ocidental motivou, nas
últimas décadas, um crescente interesse pelas relações entre Ocidente e
Oriente. A equação das relações entre o Ocidente e o Oriente especificamente
islâmico tem dominado essa linha de investigação, acompanhada menos
frequentemente pela indagação das raízes históricas profundas de um conflito
reconhecidamente estrutural e mais antigo que a própria Europa e o islão.
Anthony Pagden, professor em Ciência e História Política na Universidade da
Califórnia, é um dos autores que mais recentemente contribuiu para o
conhecimento da densidade histórica desse conflito, mergulhando muito para além
dos horizontes históricos habitualmente examinados. Em Worlds at War, Pagden
procura traçar as origens longínquas e a evolução, tanto autêntica como
fictícia, do antagonismo civilizacional entre Ocidente e Oriente. Ao longo dos
seus doze capítulos, Pagden procura também ensaiar e fundamentar respostas a
questões-chave actuais como a superioridade do desenvolvimento socioeconómico
ocidental, a evolução política e económica divergente entre Ocidente e islão,
ou ainda o fracasso genérico da democracia nos países islâmicos do Médio
Oriente. O autor assume explicitamente uma posição ocidental e salienta a
vertente também ela ocidental desse relacionamento, expressando claramente a
sua convicção nos efeitos genericamente benéficos das realizações do Ocidente
secular ' «People live longer lives; they live freer lives, they may even live
happier lives»(p. 458).
A documentação da vasta rede de processos históricos que daí assoma é
suplementada por vinte e uma ilustrações, que individualizam grandes figuras e
acontecimentos de dimensão real ou mítica ilustrativos do conflito entre
Ocidente e Oriente, e cinco mapas, que vão apresentando o ponto de situação
geopolítico desse confronto, passando pelas suas fases mais significativas.
DESFIANDO AS MALHAS DE UM LONGO ANTAGONISMO
No prefácio ao estudo, Pagden lança o tema do antagonismo entre Ocidente e
Oriente através do fenómeno da globalização. De facto, é altamente
significativo que o esbatimento das fronteiras físicas e culturais a nível
mundial não tenha resultado no desvanecimento progressivo desse conflito
profundo, cujas origens se intersectam com as próprias origens da Europa e da
civilização ocidental. Embora os limites entre os blocos civilizacionais se
tenham sempre mostrado fluidos e a identidade dos protagonistas se tenha
transformado ao longo do percurso, as fronteiras então definidas mantêm-se
ainda hoje perfeitamente operantes.
Se a primeira definição dessas fronteiras remonta aos neo-assírios, coube a
Heródoto a identificação de dois complexos civilizacionais distintos, com
antecedentes míticos no Rapto de Europa e na Guerra de Tróia. Para Heródoto e
toda a tradição intelectual grega e latina (e posteriormente ocidental), a
diferença fundamental entre Ocidente e Oriente residia na civilização, com a
sua cultura e os seus valores, e na forma de organização política: era, em
suma, a diferença entre a virtude e o vício, a liberdade e a escravidão. As
Guerras Pérsicas tiveram uma importância fulcral na configuração primitiva do
conflito, representando o primeiro choque entre duas «civilizações» em formação
e a primeira tentativa, fracassada, de unificação entre Europa e Ásia.
À flutuação das fronteiras políticas correspondeu, desde o início, uma dinâmica
bidireccional que oscilava entre o endurecimento e a dissipação das fronteiras
civilizacionais entre os dois mundos, dissipação essa para a qual o maior
contributo na Antiguidade foi aportado pelo domínio cosmopolita e universalista
do Império Romano, na esteira do exemplo de Alexandre Magno. Curiosamente, os
gregos, outrora representantes da matriz ocidental, foram relegados pelos
romanos para um Oriente falso, sumptuoso, lascivo e despótico. O cristianismo,
de origem oriental, assimilou as pretensões universalistas do Império, mas veio
a revelar-se uma ameaça ao processo cultural integrador, tolerante e
universalista de Roma. A assunção desse legado antigo pela Igreja trouxe
consigo ambições políticas que estiveram na origem de uma longa história de
confrontação entre sacerdotium e imperium. No século xii, essa confrontação
entrou em processo de resolução em benefício do Império, do expansionismo
europeu iniciado pelas Cruzadas, um dos mais dramáticos e brutais confrontos
entre Ocidente e Oriente, e de uma concepção secular de poder.
Com o islão, que continha potentes ambições de expansão universal fundadas na
religião e preconizava a fusão inextricável entre as esferas religiosa e
política, o antagonismo entre Ocidente e Oriente assumiu contornos
predominantemente religiosos. Adquirindo um aspecto mais intolerante, a
dicotomização do conflito potenciada pelo islão agravou-se com o final do
período de explosão criativa que o caracterizara até ao século xii e com a
vitória ubíqua da ortodoxia religiosa.
Após o movimento das Cruzadas, cujas repercussões simbólicas reverberaram
através dos séculos até à actualidade, a Europa, em parte pressionada pelas
sucessivas derrotas militares, começava a desenvolver as primeiras tentativas
de compreensão do islão. O islão foi sentido durante toda a medievalidade e
parte da modernidade como uma terrível ameaça, exponencialmente encarnada pelo
Império Otomano. Todavia, a inversão dos equilíbrios político-militares
iniciada no século xvii denunciava a transformação profunda da relação entre
Ocidente e Oriente em curso.
O desenvolvimento tecnológico, intelectual e científico da Europa, conquistado
à custa do efeito estimulante de violentas fracturas internas, começava a
elevá-la gradualmente a uma posição de superioridade. A época das Luzes
ofereceu o molde para a formação da mais importante das matrizes culturais da
Europa e evidenciou, juntamente com o aumento das relações comerciais e
diplomáticas, o contraste entre o subdesenvolvimento, a ignorância, o
fanatismo, a estagnação das sociedades orientais, e o despotismo sufocante dos
seus regimes, por um lado, e a liberdade, racionalidade, conhecimento e
progresso que supostamente definiam o Ocidente, por outro.
A ocupação napoleónica do Egipto, aparentemente epifenoménica, acabou por
despoletar um conjunto de grandes mutações no mundo árabe islâmico do Médio
Oriente e na relação entre Ocidente e Oriente. Para Pagden, as campanhas
napoleónicas foram a origem longínqua do nacionalismo árabe e do projecto de
criação de um Estado judaico na Palestina, para além de instilarem na
consciência de algumas elites muçulmanas a necessidade de modernização,
processo de que o Egipto seria um dos primeiros exemplos. No Império Otomano, o
processo reformista desencadeado na primeira metade do século xix resultou na
modernização do Estado e especialmente numa secularização parcial da sociedade
turca sem paralelo no mundo islâmico.
O recrudescimento do interesse político e estratégico do Médio Oriente para o
Ocidente nunca parou de aumentar desde então, assumindo cada vez maior
intensidade. A intensificação da influência política e comercial ocidental
sobre o Médio Oriente amplificou os contactos entre ambos os blocos e estimulou
reflexões, da parte árabe-islâmica, sobre o subdesenvolvimento crónico das suas
sociedades. Com o colapso do Império Otomano durante a I Guerra Mundial, o
Médio Oriente viu drasticamente redefinidos os seus equilíbrios geopolíticos e
assistiu ao pico da presença e domínio ocidentais. A difusão dos nacionalismos
e o surgimento de uma nova vaga de governantes autocratas como Nasser e Sadam
Hussain, mais ou menos herdeiros do reformismo islâmico da segunda metade do
século xix, impulsionaram aparentemente o processo de modernização dos
principais países islâmicos da região.
Porém, as derrotas militares, políticas e ideológicas perante o Estado de
Israel, o fracasso do pan-arabismo e os resultados limitados ou mesmo
decepcionantes dos processos de reforma, abriram a oportunidade para a ascensão
de movimentos radicais formados na sequência do recuo político britânico da
região e da criação do Estado de Israel. O ponto de viragem ocorreu com a
Revolução Iraniana. O islão recuperava subitamente a sua dimensão expansionista
e de domínio universal, na sua faceta mais intolerante e irredutível. O
islamismo radical, sob a égide da religião e da jihaduniversal, tomava a
dianteira de um fenómeno de contestação e subversão em larga escala. O inimigo,
do cultural e religiosamente outro a potências políticas específicas,
transfigurou-se rapidamente na própria civilização ocidental.
Afinal, quais as diferenças de fundo actuais entre Ocidente e Oriente islâmico?
Quais os motivos da incapacidade dessas sociedades para gerar um
desenvolvimento socioeconómico sustentável e para a implantação de formas de
governação mais representativas e igualitárias? Pagden conclui, sem novidade,
que a razão fundamental repousa na relação entre religião e política: enquanto
no islão impera o decreto divino, a lei religiosa, o respeito imobilista pela
tradição, no Ocidente é o primado da lei secular ' fruto da vontade humana '
que prevalece, garantindo a defesa dos valores estabelecidos pelas Luzes, a
grande conquista civilizacional da Europa e do Ocidente. A igualdade, a
justiça, o respeito pelos direitos humanos, são garantidos pelo menos natural
dos regimes políticos, a democracia, que não pode ser implementada em países
sem preparação, nem uma tradição cultural estruturalmente semelhante à
ocidental: a democracia não faz simplesmente sentido para a maior parte do
mundo árabe islâmico (p. 453).
Em última instância, não é apenas a estrutura do conflito entre Ocidente e
Oriente, juntamente com as suas fronteiras, que se conserva basicamente a
mesma: é o mesmo projecto utópico de unificação universal que continua vivo.
HISTORIOGRAFIA E COMPROMISSO IDEOLÓGICO
A síntese de conteúdos acima delineada permite seguir latamente a evolução da
narrativa, mas não evidencia, no entanto, algumas estruturas discursivas cuja
apreensão colabora na optimização da leitura do estudo de Pagden. A mais
importante dessas estruturas consistirá porventura no posicionamento ideológico
explícito do autor, conforme já mencionado.
De facto, o autor não faz qualquer esforço para dissimular as suas convicções
ideológicas no concernente ao modelo de organização política e social que deve
enquadrar a vida colectiva ' a democracia liberal e uma «sociedade secular
esclarecida e liberal» ' e à influência perniciosa dos «mitos monoteístas» na
história da humanidade (pp. xx-xxi). Para Pagden, o Ocidente secular e a
democracia liberal são, em última instância, os motores do desenvolvimento
socioeconómico mundial cujos benefícios são já sentidos por grande parte do
mundo, e os ideais de matriz iluminista têm nessa irradiação benéfica uma
função primacial (pp. 458-459). Esses valores, na sua óptica, continuam a
garantir a resistência bem-sucedida a todo o género de ameaças, desde o
fundamentalismo ao relativismo cultural (p. 266). Porém, o autor está
perfeitamente consciente de que, embora seja o melhor regime disponível e o
mais promissor na defesa e promoção de valores como a liberdade, a igualdade e
o humanismo, a democracia não é perfeita, não é uma via exclusiva para o
desenvolvimento e tem um tortuoso processo de afirmação por trás.
Pagden deixa portanto que o presente funcione de certo modo como guia do
passado, sem contudo forçar leituras. Os capítulos finais do estudo são, por
isso, cruciais, representando o desembocar de um esforço interpretativo
direccionado para a explicação do presente, como se pode observar, por exemplo,
na seguinte passagem: «Tornou-se agora possível para alguém de origem
paquistanesa, nascido na Grã-Bretanha, falante de outra língua que não o
inglês, rebentar-se a si e a uns quantos outros numa soalheira tarde londrina a
7 de Julho de 2005, em retaliação pelas humilhações infligidas sobre populações
de que nada sabia, em locais distantes do mundo que nunca tinha visitado»
(p. 437).
As afinidades ideológicas do autor com o modelo sociopolítico democrático
liberal e secular apenas circunscritamente afectam a capacidade crítica
requerida pela análise historiográfica. Curiosamente, essa fragilidade não se
faz sentir onde os problemas de objectividade se suporiam mais preocupantes: o
período contemporâneo é uma área onde Pagden assume um tom tendencialmente mais
sóbrio e ponderado. Efectivamente, a sua visão sobre as épocas moderna e
contemporânea é mais circunstanciada, mais sistemática e penetrante do que no
que se refere às épocas antiga e medieval. Um único reparo se impõe: Pagden
aparenta encarar a globalização apenas pelo seu lado positivo, investindo assim
numa utopia de raiz iluminista e ignorando a influência do fenómeno na
radicalização das reacções islâmicas ao Ocidente.
Pelo contrário, é para a época clássica que o discurso do autor, amiúde
tributário de fontes bastante enviesadas (por exemplo, Suetónio), revela menos
trabalho crítico. Assim, os sucessores de Augusto são descritos como «uma
sucessão de governantes corruptos e incompetentes» (p. 78); Calígula é por sua
vez caracterizado como «sadista neurótico inquieto com propensão para o
incesto» (p. 79), enquanto Cláudio recebe o rótulo de «cruel e sanguinário» (p.
80), sendo Nero «o mais destrutivo de todos», uma personalidade profundamente
patológica, obscena (ibidem). O contraponto da visão difamatória da dinastia
júlio-claudiana é a visão apologética do período dos Antoninos enquanto aurea
aetas(por exemplo,pp. 57, 81).
A utilização nem sempre criteriosa das fontes clássicas levanta, por sua vez, a
questão mais abrangente da relação entre fontes eminentemente literárias, a
criação literária e representação historiográfica, na medida em que o autor
reaproveita por vezes a elaboração literária das fontes para narrar eventos
históricos ou lendários. O acompanhamento das campanhas militares do exército
persa por Xerxes (p.26 e segs.), ou a descrição da sumptuosa chegada de
Cleópatra a Tarso (p. 71), oferecem a Pagden oportunidades para a inserção de
descrições de superior beleza literária, explorando sobretudo a vertente do
imaginário. Mas o aproveitamento do debate constitucional entre Otanes,
Megabizo e Dario como fonte histórica, por exemplo, parece excessivo (pp. 9-
12). Não estará o autor neste caso, como noutros, a resvalar para uma sobre-
representação historiográfica da dimensão real e ideológica da história?
Privilegiar o plano do imaginário não resultará numa sobrevalorização das
proporções do conflito civilizacional, particularmente nas suas fases iniciais?
A discussão destes aspectos, entre outros, como a existência de algumas gralhas
e incorrecções terminológicas, destina-se a despertar a atenção crítica do
leitor, e não a dissuadi-lo da relevância de um estudo de grande interesse e
valor que funde, num discurso envolvente e estimulante, temáticas e contextos
históricos tão díspares. As visões por vezes redutoras que Pagden oferece, mais
que deficiências, mostram pelo contrário os limites naturais de um trabalho de
síntese de grande envergadura que exige uma vastíssima mobilização de
conhecimentos e uma apreciável plasticidade mental. É particularmente louvável
o constante esforço do autor para mostrar e discutir a faceta oriental do
conflito e as representações sobre o Ocidente que lhe estão associadas. Worlds
at Waré sem dúvida um estudo digno da atenção demorada de todos os que
pretenderem perscrutar de forma integrada as transformações e natureza de um
conflito que parece sobreviver a todos os seus protagonistas e se estende para
além de todos os fins da história anunciados.
* Licenciado em História pela FCSH ' UNL. Mestrando em História Antiga na
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
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Portugal
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