O Maquiavel democrático
O Maquiavel democrático
Cláudia Almeida[*] e Isabel Alcario[**]
Entre o seu inovador Political Order in Changing Societies(1968)e o controverso
Clash of Civilizationsand the Remaking of World Order(1996), Samuel P.
Huntington publica aquele que é, para Diamond, o seu livro mais perfeito, do
ponto de vista do pensamento analítico, e perdurável, pela perspectiva global
que dá ao fenómeno da democratização[1]. Falamos de The Third Wave:
Democratization in the Late Twentieth Century(1991).
Nestas três marcantes obras observamos uma mudança de interesses do proeminente
académico de Harvard, dado que os seus objectos de estudo coincidem com
fenómenos contemporâneos. O estudo de eventos e fenómenos, com início num
determinado período e ainda em desenvolvimento, é aliás constante em toda a
investigação de Huntington, tendo implícitas formulações políticas[2]. Tal é
particularmente presente na obra The Third Wave,em que o autor abandona o seu
papel de politólogo e assume o de consultor político, o aspirante a «Maquiavel
democrático», nomeadamente ao apresentar «guidelines for democratizers»[3].
Para compreender sucintamente a ideia de mudança de interesses que caracteriza
a investigação de Huntington e assim extrair os contributos fundamentais do
premiado livro The Third Wave, importa começar por estabelecer uma ponte entre
as três obras mencionadas. Em Political Order,o que estava em causa era não só
o surgimento de novos países independentes na década de 1960, como também os
períodos de instabilidade e violência que seguiram à independência. Nesse
sentido, Huntington apresenta um argumento de contra-reacção ao optimismo sobre
a capacidade da modernização económica gerar democracias estáveis; ao invés, a
modernização pode conduzir ao declínio da ordem política e, consequentemente, à
instabilidade. Para a estabilidade política, o mais importante não é a forma de
governo mas sim o seu grau de institucionalização, conclusão que leva o autor a
considerar que a ajuda ao desenvolvimento político dos novos países deverá
passar primeiramente pela construção de instituições políticas efectivas.
Porém, com a expansão global da democracia, o interesse de Huntington desloca-
se para o tema da democratização. O autor escreve então The Third
Wave,procurando explicar as transições para a democracia em 30 países,
ocorridas nas décadas de 1970 e 1980, e com consequências «positivas para a
liberdade individual, a estabilidade doméstica, a paz internacional e os
Estados Unidos da América»[4]. Este estudo apresenta um carácter distinto,
tanto pelo âmbito alargado e global do fenómeno da democratização como pela
concepção das transições como movimentos conjuntos de países que dão origem às
chamadas vagas de democratização.
Já na obraClash of Civilizations, o autor desafia o optimismo de que a queda do
Muro de Berlim marcaria o triunfo e a assimilação global dos valores
ocidentais, nomeadamente do modelo de democracia liberal,ao argumentar quea
principal fonte de conflito e de ameaça à ordem mundial do pós-Guerra Fria
assentará na variável «cultura». Ou seja, o conflito violento entre estados
resultará de um choque entre culturas e civilizações.
Dezoito anos volvidos da publicação de The Third Wave, trinta e cinco após o
início da terceira vaga de democratizações, vinte depois da queda do Muro de
Berlim e cerca de um ano depois da morte de Samuel P. Huntington, porquê
revisitar esta obra?
Desde logo, porque se mantém a contemporaneidade do fenómeno em análise, ou
seja, a terceira vaga de democratização corresponde a um processo em
desenvolvimento. Revelador deste aspecto é o reconhecimento que o próprio
Huntington faz, logo no prefácio do livro, do problema da contemporaneidade da
sua investigação, referindo que, por tratar de eventos ainda em
desenvolvimento, a sua análise deverá ser vista como uma avaliação e uma
explicação preliminares do que considera ser um acontecimento político marcante
à escala global das últimas décadas do século xx[5]: a transição de 30 países
de sistemas políticos não democráticos, para os quais o autor acaba por
utilizar o termo autoritários sem estabelecer distinções quanto à natureza
destes regimes, para democráticos e que apelida de terceira vaga de
democratização, expressão que rapidamente se estabeleceu no léxico da ciência
política e das relações internacionais[6].
Aliás, o próprio conceito de democratização que Huntington apresenta define
precisamente um processo que envolve o fim de um regime autoritário, a
instalação e a consolidação de um regime democrático[7]. Deste modo, o que
poderia ser entendido como uma certa vulnerabilidade da sua análise, acaba por
garantir a presença inalienável e a perdurabilidade da sua obra nos estudos
sobre transições democráticas. Tanto que desde logo assume, também no prefácio,
que será possível uma explicação mais satisfatória do fenómeno da terceira vaga
de democratização quando este chegar ao fim, ou, pelo menos, quando atingir um
estado mais completo[8].
Mas afinal, quando podemos afirmar que um dado processo de democratização
chegou ao fim? Isto é, à luz da definição de Huntington, quando é possível
dizer que cada momento que constitui o processo de democratização está
concluído? Estas questões continuam a animar o debate académico sobre
democracia, democratização e promoção democrática com consequências ao nível da
formulação de políticas.
A obra The Third Wave constitui então um contributo fundamental para o estudo
das transições políticas ao apresentar a ideia de um movimento conjunto de
países com regimes não democráticos para democráticos, «que ocorrem em
determinado período de tempo e que superam significativamente as transições em
sentido inverso no mesmo período», existindo, contudo, a possibilidade de
reversibilidade destes movimentos de mudança de regime político[9]
. Significa isto que uma vaga de democratização pode reverter para uma não
democrática, pelo que se torna essencial a consolidação do regime político após
a transição. Na verdade, a cautela de Huntington é historicamente fundamentada,
na medida em que às duas primeiras vagas de democratização (1828-1926; 1943-
1962) se seguiram duas vagas reversas (1922-1942; 1958-1975). Por outro lado, o
tema das transições democráticas vem de encontro à questão da democratização
como elemento-chave para entender a mudança e reconfiguração políticas do pós-
Guerra Fria e que continua a alimentar o debate académico neste novo século.
Nesta proposta de Huntington, está patente o que podemos adjectivar de
entusiasmo académico pelo significado empírico das transições democráticas. Mas
se esse entusiasmo conduziu a um boom de investigações nas décadas de 1980 e
1990, com académicos como Diamond e Plattner, por exemplo, a apontarem para o
ressurgimento global da democracia, no início deste século este ressurgimento
dá lugar a uma divergência global de democracias[10]. Hoje, a democracia já não
se encontra numa fase de escalada global, vivendo-se, de acordo com O'Donnell,
um período de desencanto, em que é clara a existência de uma variedade de
democracias[11]. Mais ainda, várias das democracias surgidas na terceira vaga
estão em perigo, existindo mais que nunca a necessidade de reflectir sobre como
podem estas democracias funcionar melhor[12].
Diamond alerta que, para sabermos se a democracia continuará em expansão ou
mesmo se se manterá o número actual de regimes democráticos, importa saber como
chegar a esse número[13]. Questão fundamental pois, subjacente à ideia de como
contar, encontramos o problema da conceptualização da democracia, aliás
transversal em todos os estudos sobre democracia. Collier e Levitsky, por
exemplo, ilustram bem esse problema ao referirem que estamos perante uma
situação de «democracias com adjectivos», querendo com isto dizer que existe
uma proliferação de formas conceptuais[14]. Desta forma, as vagas de
democratização apresentam aos académicos o desafio de lidar conceptualmente com
uma grande variedade de regimes pós-autoritários.
Huntington opta, na linha de Schumpeter e Dahl, por uma concepção mínima de
democracia, já que permite parâmetros que tornam possível avaliar até que ponto
determinado sistema político é democrático, comparar sistemas e verificar se
evoluem no sentido de mais ou menos natureza democrática[15]. Nesta concepção
mínima (essencialmente procedimental), as eleições são um elemento nuclear e a
forma como a democracia opera. Na terceira vaga foram também o meio de
enfraquecimento dos regimes autoritários até à sua transição. Parafraseando
Huntington, as eleições dão não só vida à democracia como também representam a
morte das ditaduras[16]. Outros autores há, como Stepan e Linz ou Karl, que são
mais prudentes na hora de avaliar o papel da realização de eleições e o seu
potencial democratizador, ao alertarem para a existência de uma «falácia
eleitoralista»[17] . Na mesma linha, também Brynen, Korany e Noble, ao falarem
sobre os processos de liberalização política no mundo árabe, consideram que a
realização de eleições não pode ser confundida com a essência da democracia
[18].
Certo é que o significado da realização de eleições para os processos de
democratização atravessa todo um debate absolutamente essencial na hora de
promover a democracia. No caso da proposta de Huntington, diríamos que há todo
um problema de balizar os três momentos que fazem parte do processo de
democratização: o que é e não é regime democrático?, como e quando há ou não
transição para a democracia?, quando chega esta ao fim e passamos para a
consolidação?, ou quando podemos afirmar que um processo de democratização
chegou ao fim num dado país?
Também Huntington, ao reflectir mais tarde sobre o futuro da terceira vaga,
entra na relação eleições e democracia. Pergunta-se justamente se as eleições
são tudo quanto existe para a democracia[19]. Importante nesta sequência de
ideias é mais uma vez a reflexão de Diamond que, ao questionar se a terceira
vaga terá chegado ao fim, apresenta uma distinção-chave entre democracias
eleitorais e democracias liberais[20]. Esta distinção resulta de grande
importância, pelas implicações práticas para os estrategas da promoção
democrática.
Nesta sequência, Huntington pergunta se na actual fase da terceira vaga devem
estes (os estrategas) dar prioridade à promoção de democracias eleitorais nos
mais de 50 países não-livres que não têm qualquer forma de democracia ou devem
estes dar prioridade àqueles que já têm democracias eleitorais. Diamond
responde que o futuro da democracia e da sua ideia depende do imperativo da
democratização: as democracias liberais devem consolidar-se e as eleitorais
devem ser aprofundadas e liberalizar-se politicamente para que as suas
instituições possam ser valorizadas pelas populações[21].
Apesar de reconhecer o seu pessimismo relativamente às perspectivas de
democratização em regiões do mundo que não conhecem a democracia e de apontar
alguns obstáculos culturais ao processo, como nos regimes que associam
marxismo-leninismo a argumentos nacionalistas, ou as concepções
antidemocráticas das doutrinas religiosas do islamismo e do confucionismo, e
económicos ' o nível de desenvolvimento económico de um dado país ', Huntington
não deixa de expressar o seu optimismo quanto à expansão da democracia no mundo
[22].
Todavia, os acontecimentos políticos em diversas regiões do mundo, sobretudo em
África, na Ásia e na América Latina, levam-nos a pensar cada vez mais na
persistência do autoritarismo e na existência de regimes sobre os quais muitas
vezes se ouve dizer que estão «presos» na transição (stuck in transition), mas
que, na verdade, são regimes cuja natureza ambígua de elementos autoritários e
democráticos[23] faz que hoje exista uma miríade de termos, cada vez mais
estabelecidos na ciência política, em que destacamos a formulação de regimes
híbridos, desenvolvida mais recentemente por Morlino.[24]
Dito isto, The Third Wave de Huntington é ao mesmo tempo um contributo teórico
sólido para os processos de democratização e com implicações práticas para as
políticas de promoção da democracia. Podemos enquadrar esta obra num entusiasmo
ponderado pela expansão da democracia, pois para Huntington estes movimentos de
mudança política não são unidireccionais existindo sempre a possibilidade de
reversibilidade. Apesar das perspectivas menos optimistas e de cautela em
relação à expansão e sobrevivência da democracia, os processos de
democratização são de facto um fenómeno-chave também neste começo de um novo
século. Sobre a visão de desencanto ou de cautela quanto ao futuro da
democracia, é interessante como Huntington, mantendo uma postura minimalista,
responde:
«Democracy does not mean that problems will be solved; it means that
rulers can be removed; and the essence of democratic behaviour is
doing the latter because it is impossible to do the former.
Disillusionment and the lowered expectations it produces are the
foundation of democratic stability. Democracy becomes consolidated
when people learn that democracy is a solution to the problem of
tyranny, but not necessarily anything else.»[25].
NOTAS
[1] Diamond, Larry ' «The fp debate: Samuel Huntington's legacy». In Foreign
Policy.Janeiro de 2009. Consultado em: Novembro de 2009. Disponível em http://
www.foreignpolicy.com/story/cms.php?story_id=4617
[2] Ver entrevista a Samuel Huntington: Munck, Gerardo L., e Snyder, Richard '
«Order and conflict in global perspective». In Passion, Craft, and Method in
Comparative Politics. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2007, p.
225.
[3] Huntington, Samuel P ' The Third Wave Democratization in the Late Twentieh.
University of Oklahoma Press, 1991, p. xv.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem, p. xiv.
[6] Iniciada com a transição portuguesa, a terceira vaga desenrolou-se na
Europa do Sul, na América Latina, na Europa de Leste e em determinados países
da Ásia e de África.
[7] Ibidem, nota 3, p. 35.
[8] Ibidem, p. xv.
[9] Huntington acrescenta ainda que «uma vaga envolve geralmente a
liberalização ou a democratização parcial em sistemas políticos que não se
tornam completamente democráticos» (Ibidem, nota 1, p. 15).
[10] Diamond, Larry, e Plattner, Marc F. ' The Global Resurgence of
Democracies. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1993;Diamond,
Larry, e Plattner, Marc F. ' The Global Divergence of Democracies. Baltimore:
The Johns Hopkins University Press, 2001.
[11] O'Donnell, Guillermo A. ' «The perpetual crises of democracy».InJournal of
Democracy. Vol. 18, N.º 1, 2007, pp. 5-11.
[12] Cf. Stepan, Alfred ' Democracies in Danger. Baltimore: The Johns Hopkins
University Press, 2009.
[13] Diamond, Larry ' «Is the Third Wave over?». In Journal of Democracy.Vol.
7, N.º 3, 1996, pp. 20-37.
[14] In «Democracy with adjectives. Conceptual innovation in comparative
research». World Politics. N.º 49, Abril de 1997, pp. 430-51.
[15] Ibidem, nota 3, p. 7.
[16] Ibidem, p. 174.
[17] Linz, Juan J., e Stepan, Alfred ' Problems of Democratic Transition and
Consolidation. Baltimore e Londres: The Johns Hopkins University Press, 1996,
pp. 3-15; Karl, Terry Lynn ' «From democracy to democratization and back:
before transitions from autoritarian rule». In CDDRL working papers. N.º 45,
2005. Consultado em: Julho de 2008. Disponível em: http://iis-db.stanford.edu/
pubs/20960/Karlsep05.pdf 55p.
[18] Brynen, Rex, Korany, Bahgat, e Noble, Paul ' Political Liberalization and
Democratization in the Arab World. Colorado: Lynne Rienner Publishers, 1995, p.
4.
[19] «After twenty years: the future of the Third Wave». In Journal of
Democracy. Vol. 8, N.º 4, 1997, pp. 3-12.
[20] As democracias eleitorais têm governos que resultam de eleições livres e
justas aceitáveis, mas com a ausência das garantias de direitos e liberdades
que existem em democracias liberais, sendo que nesta última, existem também
restrições ao nível do poder do executivo, poder judicial independente que
garanta o império da lei, protecção de direitos individuais e liberdade de
expressão, associação, crença e participação, consideração pelos direitos das
minorias, limites à capacidade do poder de influenciar a processo eleitoral,
garantias contra a detenção arbitrária e a brutalidade policial, a não censura,
e um controlo mínimo dos media pelo governo. Cf. Huntington, Samuel P. ' «After
twenty years: the future of the Third Wave». In Journal of Democracy. Vol. 8,
N.º 4, 1997, p. 7, e Diamond, Larry ' «Thinking about hybrid regimes». In
Journal of Democracy. Vol. 13, N.º 2, Abril de 2002, pp. 25-29.
[21] Ibidem, nota 7, pp. 34-5.
[22] No capítulo 6, o autor identifica como condições que favorecem a
consolidação de novas democracias a existência de uma experiência prévia de
democracia (mesmo que falhada), de um elevado nível de desenvolvimento
económico, de um contexto internacional favorável, a forma pacífica como terá
decorrido a transição e a calendarização da transição face à vaga global, isto
é, caso se tenha desenvolvido na fase inicial da vaga, é mais provável que
tenha sido motivada por factores internos do que por influências externas.
[23] São esencialmente «sistemas ambíguos que combinam a aceitação retórica da
democracia liberal, a existência de algumas instituições democráticas formais e
respeito por uma esfera limitada de liberdades civis e políticas com traços
essencialmente autoritários» (in Ottaway, Marina ' Democracy Challenged: The
Rise of Semi-Authoritarianism. Washington: Carnegie Endowment for International
Peace, 2003, p. 3.
[24] Regimes híbridos são definidos por Morlino como regimes que «adquiriram
algumas instituições e procedimentos característicos da democracia, mas não
outros, e ao mesmo tempo retiveram algumas características de regimes
tradicionais ou autoritários» (Morlino, Leonardo ' «Are there hybrid regimes?
Or are they just an optical illusion?». In European Political Science Review.
Vol. 1, N.º 2, 2009, p. 280.
[25] Ibidem, nota 3, p. 263.
[*]Doutoranda da Universidade Complutense de Madrid e também assistente de
investigação no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. As
suas principais linhas de investigação são eleições pós-guerra, transições
guerra-democracia, peacebuilding, partidos políticos nas novas democracias,
África.
[**]Mestre em História das Relações Internacionais pelo ISCTE com uma tese
intitulada O Processo de Liberalização Política em Marrocos (1992-2007): Uma
transição adiada e Doutoranda em Ciência Política na Universidade de Lisboa.
Investigadora no IPRI-UNL e assistente de investigação no Projecto Transições
Ibéricas à Democracia: Portugal e Espanha em Perspectiva Comparada do ICS-UL.
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