Quem são os americanos? O impulso neonativista de Samuel Huntington
Quem são os americanos? O impulso neonativista de Samuel Huntington
Teresa Botelho[*]
Há mais de duzentos anos, um ex-soldado francês que depois da derrota do seu
país contra os ingleses se tinha fixado em Nova York, reflectia sobre a
natureza da identidade do novo país, lançando a pergunta «quem é então o
americano, este novo homem?» [1] e oferecia como resposta uma celebração das
potencialidades transformadoras da ordem económica e social da nação recém-
criada. O «novo homem», afiançava J. Hector de Crèvecoeur é alguém que
substituiu os seus preconceitos antigos por outros, que derivam do «novo modo
de vida que abraçou, do novo governo a que obedece, e do novo estatuto que
adquiriu». O motor do processo de criação da nova identidade que descreve, não
é uma ideologia, religião, língua, ou cultura, mas a oportunidade de progresso
individual: «Aqui a recompensa do seu trabalho decorre naturalmente do
progresso do seu trabalho» e «mulheres e filhos que antes lhe pediam em vão um
pedaço de pão, agora, roliços e brincalhões, ajudam de boa vontade o seu pai a
limpar os campos» e a produzir riqueza «sem que nenhuma parte seja exigida por
um príncipe déspota, um abade rico ou um senhor poderoso». Crèvecoeur aponta o
progresso material como criador de civismo democrático, libertando o novo
americano do «mecanismo de subordinação, e servilismo de disposição que a
pobreza lhe ensinou».
Esta visão minimalista de uma identidade americana consolidada pelo auto-
interesse e mantida coesa pelas instituições, aberta a todos, começou a ser
questionada no início do século xix por nativistas, defensores de critérios
restritivos de acesso à nacionalidade que pretendiam excluir grupos imigrantes
considerados culturalmente incompatíveis com o ethos nacional ' primeiro os
irlandeses, depois os chineses, os japoneses, os italianos, os judeus da Europa
Central.
Samuel Huntington no seu último livro, Who Are We?The Challenges to America's
National Identity, revisita o argumento nativista, dirigindo-o agora contra os
imigrantes hispânicos e a sua aparentemente irredutível alteridade.
As suas premissas baseiam-se numa leitura particular dos factores de construção
da identidade americana que, na ausência de factores de uniformidade como
ancestralidade ou religião comuns, é definida em termos de ethos social. O
credo americano que, para Huntington, tem a marca original da fundação anglo-
protestante, é definido em termos de um conjunto de variáveis que lhe dão forma
' uma língua predominante (o inglês), uma sensibilidade religiosa (o
cristianismo nas suas diversas variantes), o primado da lei de origem inglesa,
com a sua ênfase na responsabilidade dos governantes e nos direitos individuais
dos cidadãos, a ética de trabalho e uma crença optimista na perfectibilidade do
indivíduo e da sociedade.
A NOVA IDENTIDADE AMERICANA
Huntington, como pensador sofisticado que é, não equaciona estes valores anglo-
protestantes com grupos específicos, e não questiona que anteriores vagas de
imigrantes de perfis religiosos ou culturais diversos tenham feito seu o credo
americano. No entanto, a natureza da presente imigração hispânica torna-a, a
seu ver, qualitativamente diferente das vagas de imigrantes anteriores por um
conjunto de razões: em primeiro lugar, ocorre num período em que o credo
americano dá mostras de significativa perda de poder operativo, devido ao que
descreve como assaltos às sua premissas pelas sensibilidades multiculturais, à
saliência das identidades de grupo e às diásporas transnacionais, que afectaram
em particular as percepções das elites económicas e culturais que se revêem em
padrões de cosmopolitismo.
Em segundo lugar, as características demográficas e geográficas da nova
imigração hispânica tornam-na distinta, já que, enquanto vagas anteriores
(nomeadamente as que, entre o fim da Guerra Civil e o início da I Guerra
Mundial, trouxeram à América mais de 27 milhões de imigrantes) se
caracterizaram pela diversidade de origem geográfica e nacional, a presente
vaga tem origem maioritária num único país, o México, com uma fronteira
contígua e extremamente porosa com os Estados Unidos; esta proveniência
confere-lhe uniformidade linguística e cultural e contínua intimidade com o
país de origem. Por outro lado, esta comunidade apresenta um alto padrão de
natalidade, sendo previsível que constitua 25 por cento da população dos
Estados Unidos em 2050.
A este conjunto de factores, agravado pela concentração geográfica de
hispânicos em certas zonas do país ' não só Miami e a Califórnia, mas também o
Sudoeste dos Estados Unidos ' e por uma história de conflito territorial (parte
do território dos Estados Unidos foi conquistada ao México), Huntington,
citando fontes informais mexicanas e hispânicas, acrescenta sugestões altamente
subjectivas e questionáveis sobre as diferenças culturais que tornariam os
novos imigrantes pouco adaptáveis ao credo americano ' a sua pretensa falta de
ética de trabalho e de espírito de iniciativa, a sua incapacidade de planear
para o futuro, a sua aceitação tácita da pobreza, o seu desprezo pela educação.
O REMATE DE HUNTINGTON
As conclusões que Huntington extrai desta amálgama de dados objectivos e
subjectivos são altamente especulativas e, surpreendentemente para um realista
que nos habituou a um pensamento rigoroso, parecem motivadas por paixão
ideológica, que ele mesmo admite ao declarar que Who Are We? é modelado pela
sua identidade de patriota e académico. No seu papel assumido de defensor do
primado da influência da cultura anglo-protestante e do credo fundacional dos
Estados Unidos, Huntington avisa que a unidade cultural e política do país está
em perigo, porque a grande minoria hispânica é demasiado diferente e
autoconfiante para aceitar o percurso de americanização de outros grupos
imigrantes anteriores. Muito ligada emocional e fisicamente ao país de origem,
ancorada em enclaves onde não sente pressão nem para aprender inglês, nem para
adoptar os valores pragmáticos americanos, esta imigração, a não ser travada,
poderá transformar os Estados Unidos num Canadá, com o seu próprio Quebeque
hispânico, ou numa Bélgica, com as suas complexas relações interlinguísticas.
Os equívocos do argumento de Huntington decorrem da sua leitura da história da
imigração e construção de identidade nos Estados Unidos, da sua utilização dos
medidores do comportamento da comunidade hispânica, e de uma desconcertante
falta de confiança na adaptabilidade e atractividade do credo americano e do
mundo pragmático que construiu.
A leitura que Huntington faz da americanização de vagas anteriores de
imigrantes é apresentada em termos de um movimento sem reciprocidade, em que o
recém-chegado aceita, voluntária ou involuntariamente, os termos de um pacto
previamente estabelecido, que não tem vontade ou capacidade de modelar. No
entanto, a experiência dos grupos imigrantes, amplamente documentada na sua
memória colectiva por memórias, literatura e expressão artística, é de
negociação dos termos desse pacto, ao longo de várias gerações. Por outro lado,
os seus concidadãos não são impermeáveis ao enriquecimento cultural que os
imigrantes trazem ao todo nacional. Huntington menospreza a negociação entre
grupos étnicos, em que o resultado final é mais rico do que as partes. Basta
imaginar o cinema americano ou o mundo da ciência e das artes do século xx sem
os imigrantes judeus do século xix, para prever o impacto que os novos
americanos de origem hispânica (e asiática) virão a ter na cultura americana do
século xxi.
A construção da identidade americana é, e sempre foi, um processo em que grupos
sobre os quais se faziam as mesmas especulações que Huntington agora tece sobre
os hispânicos, se tornaram, em duas ou três gerações, partes tão integrais do
tecido nacional que não é possível imaginar os Estados Unidos sem eles. O
exemplo dos irlandeses, que começam a chegar em números avassaladores a partir
de 1830, pobres, pouco educados e católicos, acusados de lealdade dupla, de
falta de autonomia cívica, de falta de ética de trabalho e de muito mais,
ilumina esta discussão. Vilipendiados pelos nativistas do século xix, seriam já
considerados não problemáticos no início do século xx, incluídos no que o
Congressista Martin Dies, um notório racista, descreveria como a «velha
imigração caucasiana», em contraste com a nova imigração da Europa Central e do
Sul, então considerada incompatível com o modelo americano.
Por outro lado, Huntington ignora, ou lê de forma muito peculiar, dados
importantes sobre o comportamento dos hispano-americanos. Alan Wolfe[2] chama a
atenção para o número de baixas hispânica nas Forças Armadas no Iraque, em que
a percentagem ronda os 12 por cento, correspondente ao seu peso actual na
população dos Estados Unidos, apontando que arriscar a vida para defender os
interesses de um novo país é a mais alta marca de lealdade que um imigrante
pode dar.
Um outro sinal de integração que Huntington interpreta idiossincraticamente é o
índice de casamentos interétnicos que rondam, de acordo com a mais recente
estatística que oferece, de 1998, 28 por cento do total. Este factor,
normalmente considerado como sintomático de um processo avançado de integração,
é descrito como tendo o efeito oposto, em que o membro não hispânico do casal e
os filhos se identificam como hispânicos, uma conclusão retirada de um único
estudo e que não tem em conta a curta história da imigração que descreve.
Mas o factor mais inesperado das reflexões de Huntington é a falta de confiança
que parece ter no credo americano, que por vezes define como um conjunto de
traços culturais, e não como um agregado de ideias sobre o que os Estados
Unidos devem ser, combinado com um conjunto de expectativas sobre o
funcionamento social reflectido da vida quotidiana. Este credo tem sido
apropriado por gerações de imigrantes de todas as etnias e religiões, e a noção
de que a sua fraqueza é tal que pode ser ferido de morte por uma comunidade
ainda em processo de negociação identitária, não parece nem lógico nem
operativo.
Que os Estados Unidos enfrentam um problema grave de imigração ilegal vinda dos
vizinhos do Sul é irrefutável. Que Huntington tenha usado a sua monumental
capacidade intelectual para invectivar os seus novos concidadãos, ao invés de
propor, desapaixonadamente, soluções pragmáticas para o atenuar, é lamentável.
NOTAS
[1] Apud Gjerde, Jon (ed.) ' Major Problems in American Immigration and Ethnic
History.Boston: Houghton Mifflin, 1998, p. 76 (minha tradução).
[2] Wolfe, Alan ' Native son: Samuel Huntington defends the homeland. In
Foreign Affairs.Vol. 83, N.º 3. Maio-Junho de 2004 pp. 120-125.
[*]Professora auxiliar da FCSH ' UNL, onde lecciona Estudos Americanos.
Doutorou-se na Universidade de Cambridge, Grã-Bretanha, e fez cursos de
especialização sobre política externa americana, na Universidade de Harvard.
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