A «casa europeia» de Lisboa
O Tratado de Lisboa é um tratado materialmente constitucional. Como já o eram,
aliás, os seus antecessores (de Roma a Nice). Mas não é «o» Tratado
Constitucional ou mesmo a «Constituição Europeia» de que falava Valéry Giscard
d'Estaing na sessão de encerramento da Convenção sobre o Futuro da Europa.
Lisboa não passará à História como a Filadélfia europeia
Vistas as coisas de um ponto de vista jurídico não haverá grande diferença. A
sua materialidade não depende da nomenclatura escolhida.
Mas ' felizmente! ' a realidade política é bem mais rica do que esse terreno
estreito em que os juristas se digladiam em torno de conceitos, mecanismos
procedimentais, regras de hierarquia normativa ou mais ou menos complexas
engenharias institucionais.
Ora, no plano político, mesmo que 80 por cento (ou mais ) do defunto Tratado
Constitucional tenham sido retomados no Tratado de Lisboa, a diferença de
enquadramento dos tratados de 2004 e de 2009 está carregada de significado e
de implicações.
Com efeito, muitos dos críticos do Tratado Constitucional apontaram-lhe o dedo
acusador por ser «um passo maior que a perna», ou seja, por se propor alcançar
objectivos desproporcionais em relação ao que o consenso político permitia. Os
defensores do tratado, por seu turno, embora reconfortados com a forte
continuidade substantiva do Tratado Constitucional e do Tratado de Lisboa,
mesmo assim não conseguem esconder uma certa desilusão por, na passada, ter
sido abandonada a ambição «refundadora» ou «relegitimadora» que tinham imputado
ao Tratado Constitucional.
Não será este (ainda) o momento para contabilizar ganhos e perdas para cada um
dos lados destas barricadas.
Mas não deixa de ser curioso registar que alguns dos símbolos e das principais
referências de uma lógica de desenvolvimento mais marcadamente supranacional,
ou, se assim se preferir, de um projecto de vocação mais marcadamente federal,
acabaram por averbar alguns recuos nas inovações introduzidas pelo Tratado de
Lisboa. Só que alguns desses recuos de uma leitura mais federalista do futuro
da União estavam incluídos no próprio Tratado Constitucional!
Por isso, raras vezes terá sido tão injusto brandir, como o foi no ataque
desferido contra o Tratado Constitucional, o fantasma do (impropriamente
chamado) «federalismo europeu» ' na realidade com mais propriedade poderia
falar-se no espectro de um «super-Estado europeu», centralista e padronizador!
Dir-se-ia que os detractores do Tratado Constitucional levaram mais a sério o
epíteto de «Constituição Europeia» do que a maioria dos seus próprios
defensores
Atesta-o, desde logo, a clarificação do modelo de atribuições e competências,
de repartição das esferas de poder entre a União e os seus estados-membros, a
qual afasta do horizonte previsível desta União a existência de um «poder
constituinte europeu», alicerçado na vontade democrática de um demos europeu e
dotado da suprema faculdade de livremente decidir acerca da sua própria
regulação fundamental!
Nos termos do Tratado de Lisboa, são os estados soberanos que definem esse
móbil comum, estatuem os objectivos a prosseguir conjuntamente no âmbito da
União, estipulam os seus limites em função do princípio da subsidiariedade (e
respectivos mecanismos de controlo e de salvaguarda) e explicitam a via
possível de devolução desses poderes em benefício desses mesmos estados-
membros.
Ainda que o essencial deste modelo de atribuições e competências se possa ter
como decorrendo já do antecedente Tratado Constitucional, a verdade é que a
explicitação deste quadro fundamental, em termos de regras jurídicas e de uma
grelha de competências (exclusivas, partilhadas, coordenação de políticas e
acções de apoio, nos termos dos artigos 2.º a 6.º do tratado sobre o
Funcionamento da União Europeia), não pode deixar de ser objecto de uma leitura
política sobre o seu significado e alcance futuro segundo as concretas
modalidades acolhidas no Tratado de Lisboa.
O ponto mais significativo, neste aspecto, constitui a previsão, constante do
artigo 50.º, segundo a qual um Estado-membro é livre de abandonar a União em
conformidade com as respectivas regras constitucionais e segundo as regras dos
tratados, agora inovatoriamente introduzidas, aplicáveis à sua retirada da
União. É bem certo que nunca ninguém afirmou que tal não seria já possível à
luz dos tratados anteriormente vigentes, mas até à adopção do Tratado
Constitucional não havia sido sentida a necessidade de explicitar tal corolário
da específica natureza da União Europeia. Acresce ainda que se mantém
inalterada a regra da unanimidade tanto para efeitos de aprovação como de
alteração dos próprios tratados (a «decisão constitucional» em sentido
material).
Este «quadro existencial» da União, assim conceptualizado e explicitado, foi
transposto praticamente inalterado para o Tratado de Lisboa e entrou plenamente
em vigor a 1 de Dezembro de 2009!
À luz do que acabamos de descrever será interessante ver que releituras serão
agora feitas do mote federalista (mantido inalterado no Preâmbulo do Tratado da
União e no respectivo artigo 1.º) de «continuar o processo de criação de uma
união cada vez mais estreita entre os povos da Europa»
Resguardemo-nos, contudo, de tirar conclusões prematuras acerca do júbilo
imediatista dos que vêem nesta clarificação do quadro de repartição de
competências entre a União e os estados-membros assim acolhida no Tratado de
Lisboa, um triunfo de uma visão marcadamente intergovernamental da União.
A DIMENSÃO CIDADÃ DO TRATADO
Com efeito, convém não subestimar a resiliência do denominado «método
comunitário», do seu lastro de mais de cinquenta anos de integração, do seu
comprovado valor acrescentado na regulação das relações de poder e de
composição de interesses entre estados de muito diferente dimensão e de grande
diversidade de prioridades nacionais. E, last but not least, importa não
descartar prematuramente a dimensão cidadã da integração europeia que, em
última instância, constitui um factor legitimador e de consentimento popular do
próprio processo de integração europeia.
Dito de outro modo: o objectivo de reconfortar os estados-membros no
respeitante à clarificação do modelo político e institucional da União,
plasmado no Tratado de Lisboa, não alterou substancialmente a natureza da
própria União Europeia ' uma União de Estados e de Povos! Esta dupla natureza
da União foi, pois, preservada na perspectiva da sua evolução futura.
Por isso, o Tratado de Lisboa não deixou de cuidar também do reforço da
dimensão cidadã da União, na senda da melhor lógica compromissória, tradicional
no projecto europeu.
Desde logo, seguindo a via percorrida por uma evolução institucional continuada
ao longo das últimas três décadas, o Tratado de Lisboa marca um ponto
culminante no reforço do protagonismo e dos poderes do Parlamento Europeu,
enquanto órgão representativo dos cidadãos europeus, expressão de uma União de
Povos! O que se traduz quer na ampliação dos poderes legislativos exercidos
conjuntamente com o Conselho, quer no que diz respeito ao reforço da relação de
dependência e de responsabilização da Comissão perante o Parlamento Europeu.
No plano dos princípios, o Tratado de Lisboa enfatiza o valor da participação
dos cidadãos na esfera pública europeia (artigo 11.º), completado por um
específico direito de iniciativa legislativa popular solicitando à Comissão a
apresentação de uma proposta. O que se apresenta convergente com a
revalorização do diálogo social e o reconhecimento do papel específico dos
partidos políticos no quadro europeu.
No plano dos valores, a dimensão de uma União de cidadãos resulta realçada quer
pelo reconhecimento de força jurídica vinculativa (e no mesmo plano dos
tratados) à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, quer pela
decisão de adesão da União Europeia à Convenção Europeia para a Protecção dos
Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (artigo 6.º).
A questão do estatuto jurídico dos Direitos Fundamentais no quadro da União é
um tema recorrente, pelo menos desde o final da década de 1970. O debate ganhou
novo vigor a partir da consagração da cidadania europeia no Tratado de
Maastricht, em 1992.
A existência de uma «Bill of Rights» própria da União Europeia constitui,
indubitavelmente, uma componente indissociável de uma ambição constitucional
para a União. Coerentemente, o Tratado Constitucional acolhia a Carta dos
Direitos Fundamentais na parte ii da Lei Fundamental europeia.
Abandonada uma matriz assumidamente constitucional pelo Tratado de Lisboa, não
se verificou, contudo, qualquer perda de força jurídica no tocante à Carta dos
Direitos Fundamentais. Sem embargo, o compromisso de Lisboa acabou por
consentir um extenso elenco de derrogações aplicáveis ao Reino Unido e, em
certa medida, à Polónia e à República Checa, excepções estas que não haviam
sido introduzidas no Tratado Constitucional. Mas o alcance prático, no plano
jurídico, destas derrogações ainda permanece em aberto, na pendência da sua
efectiva invocação junto dos tribunais nacionais envolvidos e dos próprios
tribunais europeus, isto para além da imediata função política que tais
derrogações manifestamente comportam e que foi, aliás, determinante para a sua
aceitação pelos restantes estados-membros.
É possível, pois, concluir que o Tratado de Lisboa consagra directamente o
estatuto materialmente constitucional da Carta dos Direitos Fundamentais no seu
artigo 6.º (por remissão para a carta proclamada pelas três instituições
europeias ' Parlamento, Conselho e Comissão '), com as condições de aplicação
constantes das denominadas «cláusulas horizontais» da carta (artigos 51.º a
54.º). Em paralelo, o mesmo tratado reforça a obrigação de adesão da União à
Convenção Europeia dos Direitos do Homem (por contraponto a uma mera cláusula
de habilitação dessa adesão que se continha no Tratado Constitucional).
Acresce que os valores da cidadania europeia permanecem no cerne da definição
do «interesse geral europeu», que cabe à Comissão zelar no exercício das suas
funções e à luz das suas prerrogativas próprias de independência. Nesta
vertente, não é de somenos que as prerrogativas, poderes e estatuto
institucional da Comissão não tenham sido nem diminuídos nem afectados
significativamente pelo novo equilíbrio resultante do quadro institucional
instituído pelo Tratado de Lisboa (muito em especial no tocante ao monopólio do
exercício da iniciativa legislativa, nos poderes específicos de controlo e de
sancionamento dos estados-membros e no complexo de prerrogativas que os
tratados lhe conferem no âmbito do processo legislativo face ao Conselho e face
ao próprio Parlamento Europeu).
Ensina-nos a história destes cinquenta anos de integração europeia que uma
coisa são os dados de partida, outra as realidades com que somos confrontados à
chegada! Os tratados põem, a vontade política das instituições, dos estados-
membros e dos cidadãos dispõem!
O fascínio do arquitecto que projecta uma casa não se queda apenas pelas formas
que escolhe ou pelos espaços que concebe, mas estende-se sobretudo às
possibilidades de projectos de vida que assim se abrem às pessoas que a vierem
a ocupar e nela vierem a viver!
Os juristas que traçam os tratados, e os políticos que os aprovam e por eles
assumem a responsabilidade política, embora desprovidos, tantas vezes, da
pulsão estética do arquitecto, também sabem, contudo, que a dinâmica política
de quem vier a ocupar os espaços abertos e preencher as margens de acção
conferidas pelas leis é que verdadeiramente lhes traça o seu destino. E não
raro são tão surpreendidos pelo uso feito das «suas» leis tanto quanto os
arquitectos o são pelo concreto destino das «suas» casas
A ESTRUTURA DE PILARES DA UE
Estas evidências são particularmente marcantes naquele ponto que se pode
considerar como o mais inovador do Tratado de Lisboa traduzido na abolição da
estrutura de pilares da União que havia sido introduzida pelo Tratado de
Maastricht e a que o Tratado Constitucional já havia traçado um fim.
O Tratado de Lisboa pretendeu, assim, resolver a «questão maior» do estatuto
jurídico da política externa e de segurança comum (instrumental para a
afirmação do papel da União Europeia no mundo).
Decididos a reconhecer que a natureza estanque de uma política externa e de
segurança comum exclusivamente intergovernamental (tal como consagrada desde
Maastricht) não teria condições de perdurar no tempo (pelo menos à luz das
ambições fixadas pela retórica dos líderes europeus face a um mundo em
acelerada mudança ), mas, ao mesmo tempo, reconhecendo a inviabilidade de
reunir o consenso necessário no sentido de uma pura e simples integração da
PESC no quadro típico comunitário (a denominada «comunitarização»), os autores
do Tratado Constitucional e, no essencial, de igual modo, os do Tratado de
Lisboa acabaram por acolher uma solução híbrida ' nem a continuidade de um
«pilar» próprio de pura matriz intergovernamental nem a pura e simples
subsunção da política externa e de segurança ao quadro típico do método
comunitário, mas antes um modelo tributário de ambas as dinâmicas, segundo
critérios de equilíbrio e de coexistência afeiçoados à especificidade das
matérias em causa (muito em especial à componente de defesa, ancorada numa
modalidade original denominada de «cooperação estruturada» e até certo ponto
inspirada no modelo da União Económica e Monetária).
A solução assim encontrada traduziu-se, pois, na manutenção, no plano dos
processos de decisão essenciais, dos concretos mecanismos típicos da cooperação
intergovernamental (designadamente a dominância quase absoluta da regra da
unanimidade na tomada de decisões), mas, ao mesmo tempo, no estabelecimento de
uma «ponte» (ou um «ponto de convergência») com a componente especificamente
comunitária, seja das relações externas comunitárias seja da vertente externa
das políticas internas comunitárias ' mediante a criação do cargo de alta
representante para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança
(liderando um Serviço Europeu para a Acção Externa autónomo em relação ao
Conselho e à Comissão). Esta alta representante simultaneamente preside ao
Conselho dos Negócios Estrangeiros (incumbindo-lhe a execução da política
externa e de segurança na qualidade de mandatária do Conselho) e assume o cargo
de vice-presidente da Comissão (nessa dimensão assegurando a coordenação das
diferentes competências externas da Comissão).
Esta solução (que alguns diriam «tipicamente europeia», na precisa medida em
que pretende recolher o melhor de dois mundos!) tem o mérito da denominada
«ambiguidade criativa». Na realidade, o seu alcance último dependerá sobretudo
dos quadros de referência e das acções que vierem a ser adoptadas na prática.
Daí algumas das desconfianças já expressas quanto ao modelo escolhido. Com
efeito, os defensores da comunitarização da PESC receiam que o modelo conduza à
reapropriação das competências externas comunitárias por parte dos estados-
membros (muito em especial por aqueles que têm uma dimensão mais activa das
suas políticas externas e maior peso próprio na cena internacional), enquanto
os intergovernamentalistas desconfiam que a «união pessoal» na alta
representante das funções acima identificadas possa levar a uma progressiva
«contaminação» da política externa e de segurança pelo método comunitário
servido pela rodada máquina da Comissão
Os próximos meses e os precedentes que neles forem criados permitirão ver mais
claro quais serão as linhas de equilíbrio que progressivamente se estabelecerão
entre estas dinâmicas identificadas, cada uma delas dotada das suas
características próprias e do seu específico registo histórico. E se não é
possível levar a débito do novo modelo institucional o recente falhanço da
Cimeira de Copenhaga, e sobretudo o flopque foi a participação da União nessa
mesma cimeira, em bom rigor também não é possível antecipar que, se o quadro
institucional do Tratado de Lisboa já estivesse suficientemente implementado e
devidamente rodado, as insuficiências de que União deu provas teriam podido ser
efectivamente ultrapassadas
Contudo, o que decerto ninguém poderá negar é que, em larga medida, o
julgamento global sobre as virtudes do Tratado de Lisboa será sobretudo feito
no terreno das diferenças que se vierem a registar no âmbito da PESC. Porque é
neste plano que se joga a difícil afirmação do estatuto próprio da União
Europeia num mundo em convulsão e em acelerada reformulação dos equilíbrios de
forças globais. E porque, tendo disso consciência aguda, os próprios cidadãos
europeus definirão a sua própria vontade e a sua predisposição para o consenso
quanto ao aprofundamento da integração europeia, até no plano do
desenvolvimento das próprias políticas internas europeias, à luz do valor
acrescentado que a União represente na cena internacional.
Para tanto exige-se liderança e solidariedade. Dois valores que o arquitecto
tinha decerto em mente quando projectou a «casa europeia» que leva a marca de
Lisboa. Esperemos, pois, que também ele seja surpreendido positivamente pelo
uso que dela venha a ser feito pelos seus ocupantes!
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