O Tratado de Lisboa e o paradoxo comunitário que linhas divisórias entre os
estados-membros e a UE?
O Tratado de Lisboa e o paradoxo comunitárioque linhas divisórias entre os
estados-membros e a UE?
Luís Lobo-Fernandes
Professor catedrático de Ciência Política e Relações Internacionais na
Universidade do Minho e titular da cátedra Jean Monnet de Integração Política
Europeia.
STEPHEN C. SIEBERSON
Dividing Lines Between the European Union and its Member States: The Impact of
the Treaty of Lisbon
The Hague, The Netherlands, T.M.C. Asser Press, 2008, 298 páginas
O livro de Stephen C. Sieberson, intitulado Dividing Lines Between the European
Union and its Member States: The Impact of the Treaty of Lisbon, é uma das
primeiras publicações de grande fôlego sobre o Tratado de Lisboa que entrou em
vigor no passado dia 1 de Dezembro de 2009. Trata-se de um excelente trabalho
que merece, por certo, uma audiência alargada de cientistas políticos,
estudiosos das relações internacionais, juristas, economistas e decisores
interessados no projecto europeu. O livro aborda de forma criteriosa um assunto
da maior relevância ' a delicada relação entre as competências próprias da
União Europeia (UE) e os estados-membros ' propiciando uma discussão detalhada
sobre a questão de saber se o novo tratado altera as «linhas divisórias»
anteriormente existentes ou seja, se a nova configuração institucional confere
mais poder central a Bruxelas. Ora, a interessante imagem de «linhas
divisórias» de Sieberson serve aqui como uma espécie de metáfora para toda a
história da integração europeia. As soberanias europeias decidiram agrupar-se
para benefício comum mas, como o autor argumenta, não querem perder a sua
autonomia relativa nesse processo.
Sieberson, actualmente docente na Creighton University School of Law, examina o
Tratado de Lisboa não seguindo a «sequência» das suas provisões, mas antes
optando por uma série de passos lógicos organizados em torno de cinco grandes
partes: as emendas aos tratados, o carácter da UE, instituições e processos de
decisão, as áreas de acção própria da UE e uma conclusão. O esforço de
Sieberson representa um contributo importante na clarificação das
particularidades da vida institucional europeia, fazendo também referência à
questão da democracia (existência de um demos).
A UE é um paradoxo empolgante. Não é um Estado, e nada leva a crer que se
transforme em tal, mas os seus membros cometeram-se ao longo do tempo a
compartilhar as suas soberanias, algo sem paralelo e mesmo «revolucionário» no
seio do ciclo histórico vestefaliano. A UE opera num arco alargado de
competências de «tipo estadual». Como refere Sieberson, a UE é uma construção
híbrida com dimensões supranacionais significativas, sobretudo na área das
regras económicas e monetárias, e da regulação europeia. O mercado interno é
hoje o core da nova UE, tendo evoluído para um sistema dinâmico,
consideravelmente complexo. Mas, a UE é bastante mais do que um mercado comum,
com aspirações a refinar um novo modelo europeu de sociedade.
A apurada análise de Sieberson levanta interrogações fundamentais que vão ao
encontro dos principais dilemas da integração e que, em rigor, permitem uma
actualização particularmente útil da agenda da investigação sobre a integração
europeia. Estas incluem, entre outras:
Que autoridade deve ser atribuída às instituições europeias?
Que instrumentos e procedimentos de decisão devem ser empregues?
Qual o grau de influência dos estados-membros nas instituições?
Numa UE, ainda em expansão, como deve ser gerido o mercado interno? Deverá
ser contemplado um papel para os estados-membros na sua prossecução?
Como podem as instituições europeias e os processos políticos ser mais
democráticos? Pode a democracia «pura» existir na UE?
Como devem ser conduzidas as relações externas, a segurança e a defesa?
Quanta integração é necessária e onde deve parar?
Não existem abordagens fáceis para todo este amplo espectro de questões. Como o
autor sugere ' para consideração dos leitores ' duas dimensões contraditórias
emergem de imediato: por um lado, o Tratado de Lisboa é na sua maior parte
«fiel» aos tratados anteriores em preservar as linhas divisórias existentes
entre a UE e os seus estados-membros; por outro, parece sinalizar uma «nova
ordem legal», reduzindo os três pilares a dois, e criando uma UE robustecida
com personalidade legal. O Tratado de Lisboa também adopta a Carta Europeia dos
Direitos Fundamentais como um documento com o mesmo valor legal dos tratados.
Pode eventualmente argumentar-se que tais desenvolvimentos representam mais
estilo do que substância. Sieberson sugere que a melhor posição é talvez
considerar que existe alguma substância nas mudanças realizadas, o que poderá
indiciar alguma alteração no rumo da integração. O autor explicita que ao
conceder personalidade legal à ue, o Tratado de Lisboa oferece-nos uma entidade
com estatura acrescida. Ademais, a eliminação do terceiro pilar alimenta o
carácter «mais supranacional» da União.
É perceptível que o Tratado de Lisboa propõe um importante aumento da
autoridade legislativa do Parlamento Europeu (PE). A extensão do processo de
co-decisão ' que passa doravante a ser a regra geral no processo legislativo '
a mais de 50 domínios coloca o PE mais próximo do Conselho relativamente à
grande maioria da legislação da UE. O Parlamento ganha uma nova centralidade na
arquitectura institucional da UE, e adquire também novas competências
importantes em matéria de orçamento e de acordos internacionais. Podemos dizer
que o novo tratado expande, pois, a co-decisão ao torná-la parte do processo
legislativo regular. As novas áreas de co-decisão incluem sectores-chave como a
energia, transportes, regulação delegada, e o direito de estabelecimento.
Também para lá do seu papel próprio em matéria do orçamento, o novo tratado
confere poderes de «plafonamento» em várias categorias de despesas da UE. No
que respeita ao objectivo de aumentar a transparência no funcionamento geral da
União, o texto consagra o carácter público das reuniões, e oferece ao público o
direito de livre acesso aos documentos do Parlamento. A Iniciativa dos Cidadãos
prevê a possibilidade de um milhão de cidadãos ' de entre uma população de
cerca de 475 milhões ' convidarem a Comissão a apresentar uma nova proposta.
Estas provisões não têm precedentes nos tratados anteriores. Porém, deve
sublinhar-se que continua a não ser contemplada a possibilidade de um direito
de iniciativa legislativa por parte do PE.
Os responsáveis pelo novo tratado enfatizaram de forma bastante visível tanto
os limites da acção da UE como a soberania dos estados-membros. Por exemplo, a
impossibilidade do PE em desalojar o Conselho Europeu e o Conselho de Ministros
dos centros críticos da decisão demonstra, de acordo com Sieberson, a ausência
de um sistema completo de checks and balances a nível da UE, bem como a
continuidade da afirmação do poder dos estados-membros (p. 165). Segundo
Sieberson, tal como acontece com os tratados anteriores, o Tratado de Lisboa
está permeado de linguagem que sublinha a proeminência e integridade dos
estados-membros, bem como as suas competências dentro do sistema comunitário.
Em particular, de acordo com o chamado principle of conferral (pp. 137-139) '
que está agora mais claramente articulado no novo tratado ' à União só será
permitido actuar dentro dos limites da autoridade outorgada pelos estados-
membros. Não obstante, a afirmação do Parlamento Europeu na arquitectura
institucional parece ser agora um dado inultrapassável, contribuindo quer para
a hibridez do edifício europeu, quer para acentuar aquilo que tenho designado
de excepcionalismo comunitário.
Mas, como Sieberson assinala, um traço fascinante da União europeia é que o seu
cunho fundacional tem sempre dois lados distintos. Na mesma linha, a
clarificação das competências do novo tratado revela dois sentidos contrários:
confirma a propriedade de alguma acção da União, e simultaneamente define os
limites a essa mesma acção dando maior ênfase aos poderes dos estados-membros.
Neste sentido, o Tratado de Lisboa vai efectivamente em direcções opostas.
Poderíamos dizer que tal ambiguidade ' que se adensa com o novo figurino '
torna o paradoxo comunitário ainda mais obscuro. Perante esta solução (que
constituiu o compromisso possível, segundo a esperada lógica do mínimo
denominador comum), impõe-se todavia perguntar até que ponto será possível
sustentar o elevado patamar de integração económica e monetária já alcançado,
com um nível muito mais fraco de integração política, aquilo que Amitai Etzioni
designou de «halfway supranationality»[i].
O tratado inclui, sublinha Sieberson, garantias consideráveis para os governos
nacionais na forma de interpretações mais restritivas da acção das instituições
comuns, no sentido de acautelar quaisquer «incursões» da União nas áreas que
são prerrogativas dos estados-membros. A regra perene do interesse nacional
reemerge de forma mais vincada na actual fase do processo europeu, com
expressões inesperadas de competição estratégica entre os três grandes.
Precisamente por isso, os estados-membros carregam agora uma maior
responsabilidade política.
O alcance da construção europeia é deveras único, configurando uma garantia
real de paz para todo o continente europeu. A investigação oportuna de Stephen
C. Sieberson mostra como, e até que ponto, o Tratado de Lisboa é
intrinsecamente similar à ue que lhe precedeu, mesmo quando as linhas
divisórias entre os estados-membros e a União não são preservadas na sua
totalidade. O futuro próximo propiciará seguramente respostas mais explícitas,
que as proposições analíticas de Sieberson ajudam em todo o caso a antecipar.
NOTA
[i] Cf. Etzioni, Amitai ' Political Unification Revisited: On Building
Supranational Communities. Lanham, MD: Lexington Books, 2001, p. xxiv.
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