O Princípio da sustentabilidade como Princípio estruturante do Direito
Constitucional
O Princípio da sustentabilidade como Princípio estruturante do Direito
Constitucional
José Joaquim Gomes Canotilho
*
Faculdade de Direito da universidade de Coimbra.
I. Referências normativas
1. O princípio da sustentabilidade recebe uma consagração expressa no texto
constitucional português. É configurado (i) como tarefa fundamental no artigo
9.º/e (“defender a natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais e
assegurar o correcto ordenamento do território”); (ii) como princípio
fundamental da organização económica no artigo 80.º/d (“Propriedade pública dos
recursos naturais…”); (iii) como incumbência prioritária do Estado nos artigos
81.º/a (“…promover o aumento do bem-estar social (…) no quadro de uma
estratégia de uma estratégia de desenvolvimento sustentável”), 81.º/m (“Adoptar
uma política nacional de energia (…) com preservação dos recursos naturais e
equilíbrio ecológico”) e 81.º/n (“Adoptar uma política nacional da água, com
aproveitamento, planeamento e gestão racional dos recursos hídricos”); (iiii)
como direito fundamental no artigo 66.º/1 (“Todos têm o direito a um ambiente
de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado”); (iiiii) como dever
jusfundamental do Estado e dos cidadãos, no artigo 66.º/2 (“Para assegurar o
direito ao ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável, incumbe ao
Estado, por meio de organismos próprios e com o envolvimento e a participação
dos cidadãos…”); (iiiiii) como princípio vector e integrador de políticas
públicasno artigo 66.º/2/c, d, e, f, g (política de ordenamento do território,
política cultural, política económica e fiscal, política educativa, política
regional).
2. A dimensão jurídico-constitucional do princípio da sustentabilidade encontra
numerosas densificações noutros textos, a começar pelos Estatutos das Regiões
Autónomas que hoje incluem matérias anteriormente incluídas pelo texto
constitucional no âmbito do “interesse específico das Regiões Autónomas”
(valorização dos recursos humanos e qualidade de vida, património, defesa do
ambiente e equilíbrio ecológico).
3. Assumem particular relevo as disposições textuais do direito da União
Europeia referentes ao ambiente (cfr. artigo 191.º e segs. e, em geral, todo o
Título XX do Tratado sobre o funcionamento da União Europeia). Nelas se
estabelecem linhas da política da União destinadas à prossecução da
preservação, protecção e melhoria da qualidade do ambiente, da utilização
prudente e racional dos recursos naturais, promoção de medidas destinadas a
enfrentar os problemas regionais ou mundiais do ambiente, e designadamente as
alterações climáticas.
4. Nos países de língua portuguesa (CPLP), deparamos com importantes inovações,
a nível textual, na Constituição Brasileira de 1988. No Capítulo dedicado ao
“Meio Ambiente” consagra-se o direito e o dever de defender e preservar o
ambiente para as “presentes e futuras gerações”, de preservar e reestruturar os
processos ecológicos essenciais, de preservar a diversidade e a integridade do
património genético, de proteger a fauna e a flora, de promover a educação
ambiental. Digna de menção é também a Constituição de S. Tomé e Príncipe de
1990, impondo o equilíbrio e da natureza e ambiente (artigo 10.º).
II – Sentido jurídico-constitucional
1. Um conhecido juspublicista alemão (Peter Häberle) escreveu recentemente “que
é tempo de considerar a sustentabilidade comoelemento estrutural típico do
Estado que hoje designamos Estado Constitucional”
[1]
. Mais do que isso: a sustentabilidade configura-se como uma dimensão
autocompreensiva de uma constituição que leve a sério a salvaguarda da
comunidade política em que se insere. Alguns autores aludem mesmo ao
aparecimento de um novo paradigma secular, do género daqueles que se sucederam
na génese e desenvolvimento do constitucionalismo (humanismo no séc. XVIII,
questão social no séc. XIX, democracia social no séc. XX, e sustentabilidade no
séc. XXI).
2. Tal como outros princípios estruturantes do Estado Constitucional –
democracia, liberdade, juridicidade, igualdade – o princípio da
sustentabilidade é um princípio aberto carecido de concretização conformadora e
que não transporta soluções prontas, vivendo de ponderações e de decisões
problemáticas. É possível, porém, recortar, desde logo, o imperativo categórico
que está na génese do princípio da sustentabilidade e, se se preferir, da
evolução sustentável: os humanos devem organizar os seus comportamentos e
acções de forma a não viverem: (i) à custa da natureza; (ii) à custa de outros
seres humanos; (iii) à custa de outras nações; (iiii) à custa de outras
gerações. Em termos mais jurídico-políticos, dir-se-á que o princípio da
sustentabilidade transporta três dimensões básicas: (1) a sustentabilidade
interestatal, impondo a equidade entre países pobres e países ricos; (2) a
sustentabilidade geracional que aponta para a equidade entre diferentes grupos
etários da mesma geração (exemplo: jovem e velho); (3) a sustentabilidade
intergeracional impositiva da equidade entre pessoas vivas no presente e
pessoas que nascerão no futuro.
3. Não é fácil, da mesma forma que acontece com outros princípios já
anteriormente mencionados, determinar o conteúdo jurídico
[2]
do princípio da sustentabilidade. Alguns autores consideram-no como um
“conceito de moda e em moda” favorecedor de ocultações ideológicas (era e é a
tese de muitos neoconservadores norte-americanos). Outros rotulam-no de
“conceito holístico” inteiramente assente em conceitos também holísticos como
são os da globalização, integração, justiça intergeracional, participação,
equidade geracional. Outros ainda vêem nele um “conceito-chave”, um “conceito
represa” que, à semelhança do princípio do Estado de direito e do princípio
democrático, pressupõem operações metódicas de optimização e de concretização.
4. Convém distinguir entre sustentabilidade em sentido restrito ou ecológico e
sustentabilidade em sentido amplo. A sustentabilidade em sentido restrito
aponta para a protecção/manutenção a longo prazo de recursos através do
planeamento, economização e obrigações de condutas e de resultados. De modo
mais analítico, considera-se que a sustentabilidade ecológica deve impor: (1)
que a taxa de consumo de recursos renováveis não pode ser maior que a sua taxa
de regeneração; (2) que os recursos não renováveis devem ser utilizados em
termos de poupança ecologicamente racional, de forma que as futuras gerações
possam também, futuramente, dispor destes (princípio da eficiência, princípio
da substituição tecnológica, etc.); (3) que os volumes de poluição não possam
ultrapassar quantitativa e qualitativamente a capacidade de regeneração dos
meios físicos e ambientais; (4) que a medida temporal das “agressões” humanas
esteja numa relação equilibrada com o processo de renovação temporal; (5) que
as ingerências “nucleares” na natureza devem primeiro evitar-se e, a título
subsidiário, compensar-se e restituir-se.
5. A sustentabilidade em sentido amplo procura captar aquilo que a doutrina
actual designa por “três pilares da sustentabilidade”: (i) pilar I – a
sustentabilidade ecológica; (ii) pilar II – a sustentabilidade económica; (iii)
pilar III – a sustentabilidade social
[3]
. Neste sentido, a sustentabilidade perfila-se como um “conceito federador”
que, progressivamente, vem definindo as condições e pressupostos jurídicos do
contexto da evolução sustentável. No direito internacional, a sustentabilidade
é institucionalizada como um quadro de direcção política nas relações entre os
Estados (exs.: Convenção sobre as mudanças climáticas, Convenção sobre a
biodiversidade, Convenção sobre o património cultural).
6. No contexto do direito da União Europeia, é adequado falar de um princípio
constitucional da União Europeia densificado directamente através de princípios
directamente vinculativos dos Estados-Membros e mediatamente operativo no
âmbito das políticas ambientais dos mesmos Estados (Tratado de Maastricht, art.
2.º; Tratado de Amesterdão, preâmbulo, art. 2.º, 6.º e 177.º; Carta dos
Direitos Fundamentais, art. 37.º, inserida no Tratado de Lisboa (art. 6.º);
Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia segundo o Tratado de Lisboa,
art. 191.º).
7. O princípio da sustentabilidade aponta para a necessidade de novos esquemas
de direcção propiciadores de um verdadeiro Estado de direito ambiental. Isto
implica que, ao lado dos tradicionais esquemas de ordem, permissão e proibição
vasados em actos de poder público, se assista ao recurso a diversas formas de
“estímulo” destinadas a promover programas de sustentabilidade (exemplo:
política fiscal de incentivo a tecnologia limpa, estímulo para a efectivação de
políticas de energia à base de recursos renováveis). Nestes “estímulos” ou
“incentivos” que, muitas vezes, se traduzem em preferências ou internalizações
de efeitos externos, devem observar-se as exigências normativas do Estado de
direito ambiental quanto às competências (legislador e executivo) e aos
princípios (proibição do excesso, igualdade). Nesse sentido, a transformação do
direito e da governação segundo o princípio da sustentabilidade não significa a
preterição da observância de outros princípios estruturantes como o princípio
do Estado de direito e o princípio democrático
[4]
.
III – Juridicidade ambiental
[5]
1.Instrumentos conformadores
8. Não pertence a uma lei-quadro fundamental, como é a Constituição, fixar
concretamente os instrumentos políticos, económicos, jurídicos, técnicos e
científicos indispensáveis à solução dos problemas ecológico-ambientais, sejam
eles da primeira ou da segunda geração. Também neste aspecto, o texto
constitucional português é um texto aberto. Tanto acolhe instrumentos dúcteis
como a informação, o procedimento, a autoregulação e a flexibilização, como
instrumentos directivos reconduzíveis a planos e controlos ambientais
estratégicos. Em termos teóricos e práticos, é visível uma oscilação entre dois
paradigmas: (1) o paradigma da flexibilização dos modos, formas e procedimentos
julgados adequados à defesa e protecção do ambiente; (2) o paradigma do
planeamento orientador e directivo preocupado, nos últimos tempos, com o
déficite de comando e eficácia dos instrumentos de flexibilização jurídico-
ambiental. A primeira orientação anda associada a postulados teóricos
veiculados por diversos cultores da sociedade de informação, da
processualização do direito e das teorias dos sistemas autopoiéticos. O segundo
paradigma surge como uma tentativa de recuperação da ideia de comando e
direcção considerada como indispensável à prossecução da tarefa básica do novo
século: a sustentabilidade ecológico-ambiental
[6]
.
9. Uma posição particular demonstrativa da nova ordem ambiental inspirada nas
ideias de global legal pluralism e de good governance ambiental, é a que
procura fugir aos códigos binários da forma jurídica (directividade/
flexibilização) e aos códigos binários das éticas ou moralidades ecológico-
ambientais (“natureza como recurso”/ “natureza como santuário”) através da
institucionalização de mecanismos nacionais e internacionais de cooperação e
controlo da prossecução das metas ambientais
[7]
.
10. Deve reconhecer-se que os progressos da juridicidade ambiental começaram,
no ordenamento jurídico português, com a Constituição de 1976 e com a Lei de
Bases do Ambiente de 1987. Desde o seu texto originário que a Constituição da
República Portuguesa incluiu no catálogo dos direitos económicos, sociais e
culturais o direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente
equilibrado (art. 66.º) como direito constitucional fundamental. Esta opção dos
constituintes portugueses no sentido de elevar à dignidade de direito
fundamental o direito do ambiente não deixou de ter um relevantíssimo
significado no plano jus-ambiental. Independentemente de se saber se o direito
ao ambiente é um verdadeiro direito subjectivo, tornou-se claro que a
problematização constitucional deste direito não deveria limitar-se ao recorte
do ambiente como tarefa ambiental do Estado. A orientação jus-subjectiva da
Constituição Portuguesa é tanto mais de assinalar quanto se assiste, ainda
hoje, à elaboração de robustas posições doutrinárias contra a jus-
fundamentalização do ambiente
[8]
. Precisamente por isso, a primeira ideia forte do enquadramento jurídico-
constitucional do ambiente é a de que no ordenamento jurídico português a
conformação jurídico-subjectiva do ambiente é indissociável da sua conformação
jurídico-objectiva.
11. As dimensões essenciais da juridicidade ambiental poderão resumir-se da
seguinte forma: (i) dimensão garantístico-defensiva, no sentido de direito de
defesa contra ingerências ou intervenções do Estado e demais poderes públicos;
(ii) dimensão positivo-prestacional, pois cumpre ao Estado e a todas as
entidades públicas assegurar a organização, procedimento e processos de
realização do direito do ambiente; (iii) dimensão jurídica irradiante para todo
o ordenamento, vinculando as entidades privadas ao respeito do direito dos
particulares ao ambiente; (iiii) dimensão jurídico-participativa, impondo e
permitindo aos cidadãos e à sociedade civil o dever de defender os bens e
direitos ambientais.
12. A força normativa da Constituição ambiental dependerá da concretização do
programa jurídico-constitucional, pois qualquer Constituição do ambiente só
poderá lograr força normativa se os vários agentes – públicos e privados – que
actuem sobre o ambiente o colocarem como fim e medida das suas decisões
[9]
. Neste sentido, é legítimo falar de ecologização da ordem jurídica portuguesa
sob vários pontos de vista. Em primeiro lugar, o direito do ambiente, além do
seu conteúdo e força própria como direito constitucional fundamental, ergue-se
a bem constitucional devendo os vários decisores (legislador, tribunais,
administração) tomar em conta na solução de conflitosconstitucionais esta
reserva constitucional do bem ambiente. Em segundo lugar, a liberdade de
conformação política do legislador no âmbito das políticas ambientais tem menos
folga no que respeita à reversibilidade político-jurídica da protecção
ambiental, sendo-lhe vedado adoptar novas políticas que se traduzam em
retrocesso retroactivo de posições jurídico-ambientais fortemente enraizadas na
cultura dos povos e na consciência jurídica geral. Em terceiro lugar, o
sucessivo e reiterado incumprimento dos preceitos da Constituição do ambiente
(nos vários níveis: nacional, europeu e internacional) poderá gerar situações
de omissão constitucional conducentes à responsabilidade ecológica e ambiental
do Estado. Em quarto lugar, o Estado (e demais operadores públicos e privados)
é obrigado a um agir activo e positivo na protecção do ambiente, qualquer que
seja a forma jurídica dessa actuação (normativa, planeadora, executiva,
judicial). Esta protecção, como se verá adiante, vai muito para além da defesa
contra simples perigos, antes exige um particular dever de cuidado perante os
riscos típicos da sociedade de risco.
13. No seu conjunto, as dimensões jurídico-ambientais e jurídico-ecológicas
permitem falar de um Estado de direito ambiental e ecológico. O Estado de
direito, hoje, só é Estado de direito se for um Estado protector do ambiente e
garantidor do direito ao ambiente; mas o Estado ambiental e ecológico só será
Estado de direito se cumprir os deveresde juridicidade impostos à actuação dos
poderes públicos. Como se irá ver nos desenvolvimentos seguintes, a
juridicidade ambiental deve adequar-se às exigências de um Estado
constitucional ecológico e de uma democracia sustentada
[10]
.A natureza de princípio conferida a muitas normas estruturantes da
Constituição ambiental – princípio do desenvolvimento sustentável, princípio do
aproveitamento racional dos recursos, princípio da salvaguarda da capacidade de
renovação e de estabilidade ecológica, princípio da solidariedade entre
gerações – obrigará a uma metódica constitucional de concretização
particularmente centrada nos critérios de ponderaçãoe de optimização dos
interesses ambientais e ecológicos.
2. O desenvolvimento do Estado de direito democrático e ambiental – a
responsabilidade de longa duração
14. A articulação de problemas ecológicos de primeira geração com os problemas
de segunda geração obriga a dar arrimo jurídico-constitucional a novas
categorias dogmático-constitucionais. Aludiremos, em primeiro lugar, à chamada
responsabilidade de longa duração
[11]
. A responsabilidade de longa duração convoca, como sugerimos no capítulo
anterior, quatro princípios básicos intrinsecamente relacionados: o princípio
do desenvolvimento sustentável (art. 66.º/2), o princípio do aproveitamento
racional dos recursos (art. 66.º/2/b), o princípio da salvaguarda da capacidade
de renovação e estabilidade ecológica destes recursos (art. 66.º/2/d) e o
princípio da solidariedade entre gerações (art. 66.º/2/d).
15. Como é sabido, o tema da responsabilidade de longa duração ganhou acuidade
depois da Conferência do Rio de Janeiro de 1992 ancorada no princípio de
“Sustainable Development”. Em termos jurídico-constitucionais, ela implica,
desde logo, a obrigatoriedade de os Estados (e outras constelações políticas)
adoptarem medidas de protecção ordenadas à garantia da sobrevivência da espécie
humana e da existência condigna das futuras gerações. Neste sentido, medidas de
protecção e de prevenção adequadas são todas aquelas que, em termos de
precaução, limitam ou neutralizam a causação de danos ao ambiente, cuja
irreversibilidade total ou parcial gera efeitos, danos e desequilíbrios
negativamente perturbadores da sobrevivência condigna da vida humana
(responsabilidade antropocêntrica) e de todas as formas de vida centradas no
equilíbrio e estabilidade dos ecossistemas naturais ou transformados
(responsabilidade ecocêntrica)
[12]
.
16. A responsabilidade de longa duração pressupõe a obrigatoriedade não apenas
de o Estado adoptar medidas de protecção adequadas mas também o dever de
observar o princípio do nível de protecção elevado quanto à defesa dos
componentes ambientais naturais. Embora a Constituição Portuguesa não consagre
expressis verbis este princípio, ele vem servindo de parâmetro e de
standardmaterial no ordenamento jurídico da União Europeia (no âmbito do
ambiente, da saúde, do emprego). Coloca-se, desde logo, o problema de saber se
existe um direito a um mínimo de existência ecológico
[13]
. Talvez seja mais rigoroso, no contexto conceptual do direito português, falar
de um núcleo essencial de um direito fundamental ao ambiente e à qualidade de
vida. Este núcleo essencial pressupõe, desde logo, a procura do nível mais
adequado de acção, ou seja, que a execução das medidas de política do ambiente
tenha em consideração o nível mais adequado de acção, seja ele de âmbito
internacional, nacional, regional, local ou sectorial (art. 3.º/f da Lei de
Bases do Ambiente). A Constituição não exige, porém, a protecção máxima do
ambiente como pressuposto ineliminável da salvaguarda do núcleo essencial do
direito ao ambiente se com isso se pretende significar a proibição de qualquer
intervenção humana prejudicial ao ambiente. Mas já é razoável convocar o
princípio da proibição de retrocesso no sentido de que as políticas ambientais
– desde logo as políticas ambientais do Estado – são obrigadas a melhorar o
nível de protecção já assegurado pelos vários complexos normativo-ambientais
(Constituição, tratados internacionais, direito comunitário europeu e leis)
[14]
. A proibição do retrocesso não deve interpretar-se como proibição de qualquer
retrocesso referido a normas concretas ou como proibição geral de retrocesso.
Não se pode falar de retrocesso quando forem adoptadas medidas compensatórias
adequadas para intervenções lesivas no ambiente, sobretudo quando estas medidas
contribuírem para uma clara melhoria da situação ambiental. De qualquer modo,
há hoje determinantes heterónomas – constitucional e internacionalmente
impostas – possibilitadoras da delimitação normativa constitucional do nível
adequado de protecção. Situam-se aqui – na qualidade de determinantes
heterónomas – os princípios de desenvolvimento sustentável, do aproveitamento
racional dos recursos, da salvaguarda da capacidade de renovação ecológica e do
princípio da solidariedade entre gerações.
17. Além disso, as agressões ao direito ao ambiente, traduzidas sobretudo na
perturbação da integridade dos componentes ambientais naturais, carecem de
justificação adequada caso se trate também de restrições ao núcleo essencial do
direito ao ambiente e qualidade de vida na sua dimensão de direito, liberdade e
garantia. Dentre as ponderações a incluir na justificação adequada deve
incluir-se o juízo sobre alternativas ambiental e ecologicamente amigas, desde
que elas se revelem adequadas, necessárias e proporcionais
[15]
.
3. O princípio da solidariedade entre gerações
18. A Constituição Portuguesa faz menção expressa ao princípio da solidariedade
entre gerações. O significado básico do princípio é o de obrigar as gerações
presentes a incluir como medida de acção e de ponderação os interesses das
gerações futuras. Os interesses destas gerações são particularmente
evidenciáveis em três campos problemáticos: (i) o campo das alterações
irreversíveis dos ecossistemas terrestres em consequência dos efeitos
cumulativos das actividades humanas (quer no plano espacial, quer no plano
temporal); (ii) o campo do esgotamento dos recursos, derivado de um
aproveitamento não racional e da indiferença relativamente à capacidade de
renovação e da estabilidade ecológica; (iii) o campo dos riscos duradouros. O
texto constitucional não se refere a direitos das futuras gerações. As
dificuldades teorético-dogmáticas e jurídico-dogmáticas no recorte de um
sujeito de direitos e de relações jurídicas nebulosamente identificado como
“gerações futuras” e “futuras gerações” leva muitos autores a acentuarem que o
que está em causa é a inclusão dos interesses das gerações futurasnos
princípios materiais de actuação político-constitucionalmente relevantes.
19. Pretende-se, além disso, que a inclusão desses interesses ganhe
efectividade e operacionalidade prática. Articulado com outros princípios, o
princípio da solidariedade entre gerações pressupõe logo, como ponto de
partida, a efectivação do princípio da precaução. Configurado como verdadeiro
princípio fundante e primário
[16]
da protecção dos interesses das futuras gerações é ele que impõe
prioritariamente e antecipadamente a adopção de medidas preventivas e justifica
a aplicação de outros princípios como o da responsabilizaçãoe da utilização das
melhores tecnologias disponíveis. O princípio da responsabilização, ao implicar
a assumpção das consequências pelos agentes causadores de danos ao ambiente,
significa imputação de custos e obrigação de medidas de compensação e de
recuperação que conduzirão à consideração, de forma antecipativa, dos efeitos
imediatos ou a prazo das respectivas actuações ambientalmente relevantes.
4. O princípio do risco ambiental proporcional
20. A literatura juspublicística, à semelhança do que acontece com outros ramos
do saber, passou a incorporar como tema quase obrigatório o risco ambiental.
Abundam, hoje, obras sobre a problemática do risco perspectivado em termos
políticos, económicos, sociológicos e filosóficos. Nada mais natural que ele
adquira também centralidade dogmática e metódica no âmbito do direito
constitucional
[17]
. Vamos aqui dar como adquiridas as compreensões teóricas do risco e limitar-
nos ao enquadramento constitucional do risco ambiental.
21. O direito constitucional acompanha o esforço da doutrina no sentido de se
alicerçar a determinação jurídica dos valores limite do risco ambientalmente
danoso através da exigência da protecção do direito ao ambiente segundo o
estádio mais avançado da ciência e da técnica.Isto significa que o princípio da
melhor defesa possível dos perigos e os princípios da precaução e da prevenção
do risco ambiental segundo o patamar mais avançado da ciência e da técnica
marcam também os limites da razão prática no plano do direito constitucional. E
não cabe a uma Constituição aderir a postulados filosóficos de segurança
(“segurança deterministicamente determinada”, “segurança probabilisticamente
determinada”)
[18]
para extrinsecar o desenvolvimento jurídico-constitucional de concretização do
risco. De qualquer modo, o que parece constitucionalmente aceitável é tentar
uma aproximação à fixação normativa de valores limite através de princípios
jurídico-constitucionais. Neste contexto, o primeiro princípio a ter em conta é
o princípio da proporcionalidade dos riscos que se pode formular assim: a
probabilidade da ocorrência de acontecimentos ou resultados danosos é tanto
mais real quanto mais graves forem as espécies de danos e os resultados danosos
que estão em jogo. Esta fórmula, que não anda muito longe da seguida pela
jurisprudência alemã, põe em evidência que o risco, ao exigir particulares
deveres de precaução, não pode ser determinado independentemente do potencial
danoso.
22.O segundo princípio constitucional é o princípio da protecção dinâmica do
direito ao ambiente (e de todos os direitos fundamentais) segundo o estádio,
evolução e progresso dos conhecimentos da técnica de segurança. Sob o ponto de
vista do direito constitucional só são aceitáveis os riscos de agressão ao
direito ao ambiente que não podiam ser previstos segundo os critérios de
segurança probabilística mais actuais (ex.: directivas do Euratom, guia de
segurança da IAEB).
23. O terceiro princípio é o princípio da obrigatoriedade da precaução, mesmo
que os juízos de prognose permaneçam na insegurança. A falta de certeza
científica absoluta não desvincula o Estado do dever de assumir a
responsabilidade de protecção ambiental e ecológica, reforçando os standards de
precaução e prevenção de agressões e danos ambientais
[19]
. Se é uma utopia pretender com o princípio da precaução um “grau zero” de
risco ambiental, já é razoável assumir, a nível normativo – desde logo
normativo-constitucional –, a necessidade de as “ignorâncias tecnológicas” e
dos “slogans políticos” darem origem a regras densificadoras das “ciências
incertas”
[20]
. Dentre estas regras densificadoras incluir-se-ão novos modelos probatórios,
como a inversão do ónus da prova, as conferências de consenso e os standards de
fiabilidade probatória.
Notas
[1]
Cfr. Peter Häberle, “Nachhaltigkeit und Gemeineuropäisches Verfassungsrecht”,
in Wolfgang Kahl (org.), Nachhaltigkeit als Verbundbegriff, Tübingen, 2008, p.
200.
[2]
Cfr. Wolfgang Kahl, “Einleitung:Nachhaltigkeit als Verbundbegriff”, in
Wolfgang Kahl (org.), Nachhaltigkeit als Verbundbegriff, Tübingen, 2008, p. 12
e segs.
[3]
Cfr. Wolfgang Kahl, “Einleitung:Nachhaltigkeit als Verbundbegriff”, in
Wolfgang Kahl (org.), Nachhaltigkeit als Verbundbegriff, Tübingen, 2008.
[4]
Veja-se, precisamente, Klaus Bosselmann, The Principle of Sustainability,
Transponing Law and Governance, 2008; Maria da Glória Garcia, O Lugar do
Direito do Ambiente na Protecção do Ambiente, Coimbra, 2007, p. 369 e segs.
[5]
Seguimos de perto o que escrevemos em J.J. Gomes Canotilho/J. Rubens Morato
Leite (org.), Direito Constitucional Ambiental Luso-Brasileiro, São Paulo, 3.ª
ed., 2003.
[6]
Uma visão global e actualizada do problema ver-se-á em Felix Ekardt,
Steuerungsdefizite vom Umweltrecht – Ursachen unter besonder Berücksichtigung
des Naturschutsrecht und das Grundrechte. Zugleich zur Relevanz religiösen
Säkularisats im öffentlichen Recht, 2001. Do mesmo Autor veja-se também o
recente trabalho “Information, Verfahren, Selbsregulierung, Flexibilisierung.
Instrumente eines effektiven Umweltrechts?”, in Natura und Recht, 4/2005, p.
215 e segs.
[7]
O exemplo mais elaborado de good governance global é o do Protocolo de Quioto
que entrou em vigor em 16 de Fevereiro de 2005. Veja-se o ilustrativo estudo de
C. Kreuter – Kirchhof, “Dinamisierung des internationalen Klimaschutzregimes
durch Institutionalisierung” in ZaörRV (Zeitschrift für ausländisches
öffentliches Recht und Völkerrecht), 65 (2005), p. 967 e segs. Entre a
literatura jusambiental em língua portuguesa cfr. Maria da Glória Garcia, O
Lugar do Direito do Ambiente na Protecção do Ambiente, cit., p. 348 e segs.
[8]
Para uma visão global da discussão vide Michael Kloepfer, “Umweltschutz und
Verfassungsrecht”, in DVBL, 1988, p. 305 e segs. Veja-se a série de argumentos
jurídico-dogmáticos contra o reconhecimento de um direito fundamental ao
ambiente em Astrid Epiney, anotação do art. 20.ºem Mangoldt/Klein/Starck,
Bonner Grundgesetz Kommentar, 4.ª ed., vol. 2.º, München, 2000, p. 203 e segs.
[9]
Veja-se, neste sentido, Ch. Caliess, Rechtsstaat und Umwelstaat, Tübingen,
2001, p. 74 e segs. Alexandra Aragão, “Direito Constitucional do Ambiente e a
União Europeia”, in J.J. Gomes Canotilho/J. Rubens Morato Leite (org.),
Direito Constitucional Ambiental Luso-Brasileiro, cit., p. 36 e segs.
[10]
As expressões pertencem a Rudolf Steinberg, Der Ökologische Verfassungsstaat,
1998, p. 126 e segs.
[11]
O conceito do texto é tributário do conceito alemão Langzeitverantwortung.
Cfr., precisamente, a obra de Gethmann/Kloepfer/Nutzinger,
Langzeitverantwortung im Umweltstaat, 1993. Esta responsabilidade de longa
duração insere-se numa ideia de protecção ecológico-ambiental dirigida à
posteridade. A literatura germânica fala aqui de Nachweltschutz.
[12]
Veja-se L. Michel, Staatszwecke, Staatsziele und Grundrechtsinterpretation
unter besonderes Berücksichtigung der Positivierung des Umweltschutzs in
Grundgesetz, Frankfurt/M., 1986, p. 277 e segs.
[13]
Vide K. Whechter, “Umweltschutz als Staatsziel“, in Natur und Recht, 1996, p.
321 e segs; Alexandra Aragão, O Princípio do Nível Elevado de Protecção e a
Renovação Ecológica do Direito do Ambiente e dos Resíduos, Coimbra, 2006.
[14]
Note-se que não se trata, em rigor, de rigidificar uma garantia de perpetuação
do actual complexo normativo-ambiental. Seria, por isso, mais adequado – até
porque se dá centralidade à defesa da integridade dos componentes ambientais
naturais – falar de uma proibição de retrocesso ecológico. Cfr., precisamente,
M. Kloepfer, Umweltrecht, 3.ª ed., § 3.º, anotação 38. Há que ter em conta,
porém, as garantias jurídico-normativas do nível de protecção como eventual
limite às desregulações do ambiente por imposições económicas. Veja-se, por
exemplo, Kadelbach, “Verfassungsrechtliche Grenzen für Deregulierungen des
Ordnungsverwaltungsrecht”, in Kritische Viertel Jahresschrift, 1997, p. 263.
[15]
Veja-se, entre outros, o estudo de Bernsdorf, “Positivierung des Umweltschutzs
im Grundgesetz”, Natur und Recht, 1997, p. 328 e segs.
[16]
Assim, A. Epiney, Umweltrecht in der europaïschen Union, 1997, p. 101 e segs.
[17]
Cfr. a exposição de José Rubens Morato Leite sobre a sociedade de risco e o
Estado, in J.J.Gomes Canotilho/J. Rubens Morato Leite (org.), Direito
Constitucional Ambiental Luso-Brasileiro.
[18]
Sobre a determinação da segurança contra riscos, vide Rengeling,
Probabilistische Methoden für der atomrechtlichen Schadenvorsorge, 1986, p. 217
e segs.
[19]
Vide J. Cameron/W. Wade-Gery/ J. Abouchan, “Precautionary Principle and Future
generations” in E. Agius/S. Basutti (org.), Future Generations and
International Law, 1998, p. 93 e segs.
[20]
Cfr. M. Tallachim, “Ambiente e diritto della scienza incerta”, in S. Grassi/
M. Cecchetti/ a. Andronio (org.), Ambiente e Diritto, I, Firenze, 1999, p. 58 e
segs.
Nota Curricular
*
José Joaquim Gomes Canotilho
, conhecido jurista é professor catedrático da Faculdade de Direito da
universidade de Coimbra. É um dos maiores especialistas portugueses em Direito
constitucional. Tem exercido funções docentes em conhecidas Universidades
portuguesas e estrangeiras. Recebeu em 2003 o prestigiante prémio Fernando
pessoa e foi condecorado com a Comenda da Ordem da Liberdade em 2004. Entre as
suas obras destaque-se Direito Constitucional e Teoria da Constituição editado
pela Almedina que em 2008 estava já na 7.ª Edição.
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