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EuPTHUHu1646-740X2014000100004

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National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN1646-740X
Year2014
Issue0001
Article number00004

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Os físicos e a medicina da alma no Orto do Esposo

Apesar de todas as suas virtudes, aquele prodigioso físico do capítulo I do Livro III do Orto do Esposo1 não teria suspeitado vir a renascer pelo punho imaginativo de Jorge de Sena no século XX. Na categoria actancial em que surge, no interior da obra medieva de anónimo autor, ele é o mais notável, porque, ao derramar o seu sangue virgem,2 salva a vida a uma nobre dama e ao seu exército, constituído por 500 cavaleiros. Por sete vezes será imersa a senhora do castelo no casto líquido que correra nas veias do príncipe, recuperando nesse banho a sua qu??tura natural.3 Depois de varios físicos terem tentado, em vão, curá-la é o pródigo viandante que traz o revigoramento à castelã e ressuscita os soldados mortos.Dom de excecionalidade à parte (que três prebendas fortalecem), o jovem físico não é o único a assomar ao longo dos quatro Livros da obra quatrocentista com capacidade de dirimir afeções e de inverter o curso da morte, como veremos.

No Prólogo da obra, o autor acredita que a leitura do OE pode revelar-se proveitosa para um público abrangente que contempla, entre outros, alguns filhos da vulnerabilidade. Relembremos o passo: asy em este liuro som conteudas mujtas cousas pera mãtim?to e deleitaçom e meezinha e cõsolaçõ das almas () ca em este liuro achara () o tybo que sse accenda e o fraco con que se conforte e o o ?fermo que seia sãão e o sãão que seia guardado em sua saude e o cansado que seia recriado…”.4 Conforto moral e restabelecimento corporal parecem dimanar de uma medicina da alma que a lectio divina integra e aprofunda, pois as palavras de Deus () som leytoayro e meezinha pera saude e consolaçom da alma”.5 Pela leitura integral do escrito ascético português, constata-se que os físicos6 surgem no interior dos exempla, ora como praticantes da ciência médica, ora assumindo papéis mais sui generis confirmando atos de fé7 e lutando contra forças demoníacas8 que se apossam dos corpos. Esta última faceta aproxima tais personagens da tradição dos antigos magi,familiarizados com o sobrenatural e com a presciência, dimensões que Thorndike harmoniza na sua obra de referência sobre o assunto.9 A relação entre a ciência e a religião atesta- se, por exemplo, na recriação do desafio que Dinis lança a S. Paulo de curar um cego, não sem uma advertência preliminar: Mais huses de palauras magicas, qua per u?tura sabes tu taaes palauras que am este poderio.”10 Na senda desta contaminação de funções, também comparecem na obra, um escollar nigromateco”11 e um encantador.12 Apesar de tudo, a physicamantém-sena ala das ciências seculares, cuidando daquilo que menos interessa (aparentemente) à medicina da alma. A esta importa a dissipação da pestelença do peccado”13 e a restauratio post mortem, pelo que o sofrimento da carne, encarado com naturalidade, faz parte do trajeto de libertação salvífica. Não admira, por isso, que o vocabulário usado para descrever as doenças físicas seja aplicado na análise das afeções da alma,14 que vive em permanente luta contra o visco mundanal. Escusado será também dizer que neste artigo fazemos um uso provocatório da expressão medicina da alma, na medida em que ela radica em correntes da filosofia antiga, cuja influência o cristianismo nem sempre reconhece, mas que são prova das afinidades entre saber clássico e religião cristã. Basta para isso ler as reflexões de Volke sobre o epicurismo,15 que mostram a tendência para colocar, lado a lado, le philosophe et le médecin, l’ignorance du non-philosophe et la maladie, apprentissage de la philosophie / guérison”.16 Naquele que é um acrisolado convite à renúncia do corpo e das suas seduções, o papel do físico é disputado por outros agentes, tais como os simples e puros de coração, que não são apenas os eleitos do Senhor, como concentram qualidades para se salvaren a si mesmos,17 e os santos.18 Porém, o supremo buticayro e huguentayro”19 é Deus, cujo nome tem propriedades medicinais exímias. Na verdade, estabelecendo uma grande afinidade com os In Canticade S. Bernardo, os capítulos dos Livro I do OE enfatizam o poder balsâmico e reparador do nome de Deus, sinónimo de saúde, mãyar e meezinha”20 contra todalas ?firmidades e chagas da alma e do corpo”.21 E que chaga vem a ser esta senão a do pecado original, que a falta de e a entrega às tentações minam? No seu Comentário ao Cântico dos Cânticos, Bernardo de Claraval fala do caelestis medicus”,22 e, pela repetição da laudatória frase Oleum effusum nomem tuum, reflete sobre as propriedades curativas dos sagrados unguentos,23 anunciando ainda que Unus idemque cibus et aegrotis est medicina, et aegratativis dieta; porro et débiles confortat, et delectat valentes. Unus idemque cibus et languorem sanatm et servat sanitatem, et corpus nutrit, et palato sapit.”24 Achaques, desânimos e dúvidas, de índole anímica e moral, encontram no Senhor a indefectível fonte de cura e lenitivo. Reparação para os sentidos cansados25 e mezinha que resgata a alma do laço da morte",26 o nome de Jesus é vaso medicinal que encerra o testemunho de Lucas 7, 21 (E na mesma hora curou muitos de enfermidades, e males, e espíritos maus, e deu vista a muitos cegos). Daí que salvação e saúde sejam as promessas apresentadas em uníssono para coroar o bom cristão, sarando todas as feridas que o aguilhão terreno lhe pode infligir.

É ainda São Bernardo que nos ilumina quanto à impossibilidade de o físico medir forças com o caelestis medicus: Haec omnia mihi sonat, cum insonuerint Iesus.

Sumo itaque mihi exempla de homine, et auxilium a potente: illa tamquam pigmentarias species, hoc tamquam unde acuam eas; et facio confectionem, cui similem medicorum nemo facere possit.”27 Por conseguinte, na fidelidade a esta tradição exegética revela-se igualmente discreta a comparência dos físicos no OE. Na obra de espiritualidade monástica portuguesa o bem-estar do corpo é de somenos importância, para não mencionar (em contexto extra-verbal) certa animosidade histórica da Igreja com uma ciência que passará a ser monopolizada por braço laico28 e a transpor os hortos medicinais dos mosteiros. Os homens ligados à arte de curar que aqui surgem parecem, assim, migrar de catenae e de compilações de exempla onde superstição e pseudociência, bem e mal andam de mãos dadas.

Bem diferentes dos expedientes dos físicos são os recursos usados pelo Senhor no socorro dos penitentes.29 No horto místico não podem faltar as especias aromaticas”,30 a partir das quais se fazem santos remédios. São as heruas virtuosas do orto da Sancta Scriptura que ajudam a dispor contra as ?firmidades spirituaes”31 e os frutos da cultura monástica que prescreve um modus vivendi beato, com lugar para o prazer spiritual”.32 É exatamente neste filão que se encaixa uma possível identificação entre algumas correntes da filosofia antiga e a medicina da alma cristã, aspeto supracitado. Verifica-se, por exemplo, alguma harmonia entre estóicos, epicuristas e autores cristãos quanto à necessidade de fugir aos bens efémeros para evitar perturbações da alma. Transversal ainda é a proclamação do domínio do espírito sobre o corpo,33 que deve ser dominado com panos vis”.34 Ossatura digna, porque simbólica, existe mesmo uma a da ecclesia que acolhe todos os fiéis. Contudo, também ela sucumbe à enfermidade se a Igreja militante for negligente. A imagem apresentada num dos exempla do OE fala por si.35 As almas corrompidas e relaxadas colocam em perigo a integridade da morada cristã. Todavia, embora existam maus serviçais, a misericórdia de Deus é infinita e as suas palavras atuam como remédios eficazes para quem revelar vontade em obter a salvação. Assim, no OE, não se prescinde dos conselhos de leitura da Sacra pagina,36 cuja ruminatio integra um processo de purificação interior e de conhecimento: este liuro deue hom? tomar da mão de Jhesu Christo, rogando-o muy humildosamente e receb?do-o grande deseyo e mastigãdo-o grande sabor e corporãdo-o ?na sua alma”.37 Numa leitura complementar, verifica-se que nos sermões do Abade de Claraval é benquista a intercessão da sabedoria na convalescença dos enfermos: 15. O Sapientia! Quanta arte medendi in vino et oleo animae meae sanitatem restauras, fortiter suavis et suaviter fortis! Fortis pro me, et suavis mihi.

Denique attingis a fine usque ad finem fortiter er disponis omnia suaviter, propellens inimicum et infirmum fovens. Sana me Domine et sanabor .38 A par de Deus, também os apóstolos são nostri medici”39, ao passo que se desvaloriza a opinião médica de outras figuras credenciadas na época (e ao longo de vários séculos), verdadeiras auctoritates na literatura especializada: Num Hippocratis seu Galieni sententiam, aut certe de schola, Epsicuri, debui proponere vobis? Christi sum discipulus, Christi discipulus loquor: ego si peregrinum dogma induxero, ipse peccavi. Epicurs atque Hippocra, corporis alter voluptatem, alter bonam habitudinem praefert; meus Magister utriusque rei contemptum praedicat. Animae in corpore vitam quam summo studio iste unde sustentet, ille unde et delectet, inquirit atque inquirere docet,Salvator monet et perdere.”40 Menosprezar a materialidade e a aparência em favor da entrega despojada a Deus, numa conquista de valores eternos que ultrapassam a vaidade, a beleza e o cuidado com o carneum animae ergastulum são regras basilares para a elevação espiritual.41 A alma saúde ao corpo, mas o contrário não parece ser verdade. Confrontado com o dilema de salvar a alma ou de sofrer pacientemente, até ao fim dos seus dias, várias maleitas corporais,42 S. Gregório não tergiversará na hora de escolher o castigo físico, com vista à redenção. A saúde espiritual justifica que se sacrifique o corpo verdadeiro cárcere da alma , porque o estado de doença é o que mais se adequa à obtenção da virtude.43 Tolhido fisicamente, o homem está menos exposto às armadilhas do demónio, perdendo a vontade de se divertir44 e de correr atrás de bens transitórios. O exemplo mais à mão encontra-se em St. Petronilha,45 que o pai deixava jazer enferma, a fim de garantir a incorruptibilidade do seu amor a Deus.

Desta feita, também os mártires suportam corajosamente a dor durante os atos de flagelação a que são sujeitos,46 encarando a desfiguração como um passo libertador para alcançar a cidade celeste, sob um manto de leveza. Não deixa de ser impressiva a proclamação do Papa Inocêncio V no leito da morte, num misto de desencanto e de pessimismo antropológico: E ora vede hu som as rodas do curso da minha vida, hu he a nobreza da minha geeraçom, hu he a ciencia, hu as riquezas que me ualerõ agora, e hu he a fremusura do meu corpo! E, dizendo esto, discobrio-se ?nos peitos e pareceo a todos tam mesquinho e tam cõsumido que parecia Lazaro ressuscitado do moym?to, per que mostraua que a fremusura dos corpos deue seer desprezada como cousa fugidia e que dura muy pouco.”47 Na mesma linha, Alexandre Magno, ao sofrer uma arremetida dos inimigos que lhe provocou uma ferida muito dolorosa, diz com ironia: Todos me diz? que eu som filho de Jupiter, deus do ceeo, mas esta chagua braada e diz que eu som hom? mortal.”48 Conclui-se que tanto o sofrimento como a iminência da morte agudizam a humildade e intensificam a consciência da fragilidade humana, predisposição essencial para o salvífico desfecho. Em coerência com a sensibilidade cristã, na representação de cenas agónicas que antecedem a partida deste mundo são os clérigos que permanecem à cabeceira do moribundo. Às vezes, também assoma o demónio para angariar as almas que se entregam à perdição.

Se para o homem medieval qualquer distúrbio físico radica no pecado, é comum serem os religiosos e os sábios a intercederem pelo paciente.49 A prescrição da virtude50 e a condenação da luxúria estão no âmago de uma scientia salutaris que a physica não domina, porque o seu objetivo primeiro é mitigar a dor e curar padecimentos que saltem à vista dos olhos sensíveis.

Ao coração do homem de , que tem consciência de ser feito de lodo e cinza,51 é grata a ideia de supliciar o corpo para recuperar a sua condição de ser à imagem e semelhança de Deus. Não está, porém, entre as funções do físico exercer uma medicina da alma que purifique e reconduza os homens ao seu Criador. Mais próximo desta via medicinal parece estar o filósofo antigo para quem as paixões têm de ser extirpadas e a vida reduzida à essencialidade. Mas, por ora, não podemos substituir personagens, pois era a presença dos físicos no OE que queríamos assinalar ao longo destas linhas. A profícua relação entre filosofia e medicina da alma terá de ficar para uma outra reflexão.


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