Senhores e Camponeses num espaço de fronteira: Estudo da projecção portuguesa
do domínio monástico de Santa Maria de Oia nos séculos XII a XV
APRESENTAÇÃO DE TESES
Senhores e Camponeses num espaço de fronteira. Estudo da projecção portuguesa
do domínio monástico de Santa Maria de Oia nos séculos XII a XV.
Ana Paula Leite Rodrigues*
*Universidade de Santiago de Compostela/ Instituto de Estudos Medievais,
Facultade de Xeografía e Historia, Departamento de Historia Medieval e Moderna,
15782 Santiago de Compostela, Espanha. E-mail: anapaulalr@sapo.pt
Data recepção do texto: 12 de Maio de 2015
O objecto de estudo e as fontes
O mosteiro de Santa Maria de Oia, situado entre o mar e a montanha, a igual
distância das localidades de Baiona e A Guarda, na costa do Sudoeste da Galiza,
surgiu como comunidade religiosa plenamente organizada em 1145. Nesse mesmo
ano, esta instituição galega recebeu em doação propriedades sitas na margem
portuguesa do rio Minho, concretamente, nas localidades de Mozelos (Paredes de
Coura) e Verdoejo (Valença). Pouco depois, na sequência da conquista da vila de
Torres Vedras pelo exército cristão liderado por D. Afonso Henriques, o monarca
concedeu ao mosteiro de Oia a herdade da Fanga da Fé, localizada no termo da
vila citada. As décadas de 1140 e 1150 constituíram, portanto, momentos de suma
importância para a história e evolução do mosteiro de Oia. Neste período
congregaram-se dois fenómenos fundamentais: a sua criação e o início da
expansão territorial na região do Baixo Miño galego e, simultaneamente, o
dealbar do seu património transfronteiriço disseminado pelas regiões
portuguesas do Entre Lima e Minho e da Estremadura Central.
O estudo do mosteiro de Oia na época medieval não constitui, de nenhuma
maneira, um tema novo no seio da historiografia galega e portuguesa. Em 1971
foi publicado o estudo de María del Carmen Pallares Méndez e Ermelindo Portela
Silva sobre a região galega do Baixo Miño, que incluía uma parte inteiramente
dedicada ao domínio do mosteiro de Santa Maria de Oia na Galiza1. Apenas cinco
anos depois, em 1976, era publicada a tese de doutoramento de Ermelindo Portela
Silva – La región del obispado de Tuy en los siglos XII a XV. Una sociedad en
la expansión y en la crisis2 – na qual o mosteiro de Oia e o seu património
voltavam a assumir um papel protagonista no contexto das principais
instituições senhoriais da região em estudo.
Apesar de estes dois trabalhos de referência incluírem múltiplas alusões e
reflexões sobre a componente transfronteiriça do património e senhorio do
mosteiro, seria necessário esperar pela década de 1980 para se conhecer o
primeiro trabalho de relevo integralmente dedicado à presença de Oia em
território português. Trata-se da comunicação apresentada por José Marques, em
1983, no II Colóquio Galaico-Minhoto, realizado em Santiago de Compostela, e
posteriormente publicada sob o título “O mosteiro de Oia e a Granja da Silva,
no contexto das relações luso-castelhanas dos séculos XIV-XV”3. A partir desse
momento, o cariz transfronteiriço do domínio de Santa Maria de Oia vai sendo
objecto de análise de várias investigações, das quais poder-se-ia destacar
outro artigo de José Marques, que deu a conhecer vários documentos régios
portugueses4>, nomeadamente de D. João I, presentes no acervo documental de Oia
e ausentes das chancelaria do rei, e a tese de doutoramento de Amélia Aguiar
Andrade5, cuja proposta de estudo sobre a presença e vicissitudes do poder
senhorial e régio na região da fronteira do rio Minho inclui várias referências
ao mosteiro de Oia.
A estes estudos, nas quais se destaca o núcleo de propriedades do mosteiro de
Oia sediado na região do Entre Lima e Minho, haveria que acrescentar outras
três obras de referência que aludem, por sua vez, à presença da instituição
monástica protagonista da nossa investigação na zona da Estremadura Central,
concretamente no termo de Torres Vedras. Já em 1974, Manuel Clemente, na sua
tese de licenciatura6, chamava a atenção para os bens de cariz rústico
possuídos por Oia na localidade torriense da Fanga da Fé, arrolados numa
inquirição de 1309, ordenada pelo bispo de Lisboa às propriedades e rendas dos
territórios adjacentes às quatro igrejas da vila de Torres Vedras. Quase duas
décadas depois, Pedro Gomes Barbosa, em 19927, reflectia sobre a interessante
relação entre a presença do mosteiro de Oia no território em questão e a
existência de colónias de galegos no contexto histórico da conquista e ocupação
portuguesa da Estremadura Central. Em 1995, Ana Maria Rodrigues faria
igualmente alusão ao mosteiro de Oia na sua ampla investigação dedicada à vila
e ao termo de Torres Vedras nos finais do medievo8.
Não obstante a qualidade dos trabalhos citados, a extensão e riqueza do
património do mosteiro de Oia em Portugal, assim como a teia de relações
estabelecidas com diferentes autoridades, indivíduos, instituições e grupos
sociais do lado sul do rio Minho, merecia, no nosso entender, um estudo
integral que problematizasse de forma mais incisiva a informação
disponibilizada por um fundo documental rico. Desde os seus inícios, a evolução
do património e do domínio do mosteiro de Oia pautou-se pelo seu cariz
transfronteiriço, pelo que o conhecimento e análise da sua presença em
território português contribui para uma visão bem mais completa da história
desta instituição, assim como da sua inclusão no panorama das relações entre
Portugal e a Galiza ao longo da Idade Média.
Uma análise exaustiva do conteúdo do acervo documental medieval do mosteiro de
Oia, constituído por 1280 pergaminhos conservados no Archivo Histórico Nacional
de Madrid datados de entre 1130 e 1495, permitiu-nos compreender que, dentro
deste conjunto de documentos, os diplomas referentes à relação de Oia com o
território, as autoridades e a população portuguesa constituem um corpus
documental susceptível de oferecer respostas suficientemente esclarecedores às
problemáticas que nos propomos analisar sobre a projecção da propriedade e do
poder senhorial do mosteiro galego em Portugal. Pudemos chegar a esta conclusão
baseando-nos, não tanto na quantidade de documentos relativos à presença do
mosteiro em Portugal, mas sim na qualidade e riqueza da informação que
oferecem. Esta selecção documental a que fazemos referência compõem-se de 230
pergaminhos, com datas estabelecidas entre 1145 e 1495, as quais, por sua vez,
marcam as balizas cronológicas deste estudo por se tratarem do primeiro e
último documentos que mencionam o património e a presença do mosteiro de Oia em
Portugal no período medieval. O conjunto documental em questão representa uma
percentagem quantitativamente pouco significativa do total do acervo do
mosteiro de Oia (cerca de 18%). Porém, esta desproporção é, como dissemos,
aparente, uma vez que o seu conteúdo – colmatado e coadjuvado por um conjunto
de fontes medievais portuguesas de diferente proveniência bem como pelos
restantes pergaminhos do acervo do mosteiro relativos ao seu património
localizado na Galiza – proporciona informação suficiente para dar resposta às
questões que conformam as problemáticas desta investigação.
O património transfronteiriço do mosteiro de Oia
Quando, a 29 de Agosto de 1145, Paio Guterres da Silva, nobre português e monge
de Oia, decidiu deixar em testamento ao seu mosteiro propriedades pouco
distantes da margem sul do rio Minho impôs à recentemente criada comunidade
monástica de Oia um destino que, durante longos séculos, ficaria marcado por um
permanente cruzar da fronteira. Uma fronteira que nessa mesma época se assumia
já como linha de separação política e limite territorial do também então jovem
reino de Portugal. Com efeito, a plena organização da comunidade religiosa de
Oia, o início da construção do seu conjunto patrimonial em território português
e a consolidação da autonomia do reino fundado por D. Afonso Henriques
constituíram feitos históricos contemporâneos e cuja relação se assumiu de suma
relevância para o porvir do mosteiro galego.
É provável que a generosidade de Paio Guterres da Silva para com a instituição
que escolheu como lugar de retiro, depois de uma vida activa nos planos
político e militar, estivesse imbuída pela influência das estratégias que
moviam aquele a quem considerava o seu senhor. Os laços de união que
relacionavam Paio Guterres e D. Afonso Henriques assim o fazem prever. Apesar
de recente, Oia era um mosteiro cujo património e poder cedo cresceram sob os
auspícios das mais altas dignidades regionais e régias. Personagens de tão
destacado relevo como o bispo Paio de Tui ou o monarca D. Afonso VII de Leão e
Castela, acérrimos defensores da abertura dos seus territórios às novas
correntes reformistas da Igreja, viam com bons e generosos olhos a formação de
uma comunidade desde o início influenciada pela ideologia e costumes difundidos
por Bernardo de Claraval. Na outra margem do rio Minho, D. Afonso Henriques
soube também compreender o potencial desta nova instituição, embora, claro
está, a sua interpretação se submetesse aos interesses que o moviam por
contraposição aos de seu primo. De entre estes interesses e objectivos teriam
pesado, acima de tudo, as ambições do monarca português sobre o território do
sul da Galiza, enquadradas no seu duplo projecto de expansão territorial do
reino. Contar com a lealdade e apoio de uma instituição jovem e prometedora,
localizada na região desejada e cujo património crescia rapidamente e se
expandia pelos férteis vales do Baixo Miño, interessaria, sem dúvida, a D.
Afonso Henriques.
Apesar da frustração dos planos de expansão em direcção ao Norte, e do
consequente reforço absoluto da marcha conquistadora em direcção ao Sul
muçulmano, D. Afonso Henriques soube compreender a utilidade que o apoio a um
cenóbio galego poderia ter ao ser enquadrado na outra vertente da estratégia
expansionista. Desta forma, a evolução do panorama político e territorial de
Portugal influenciava de maneira directa o mosteiro de Oia e o seu património.
A determinante conquista da praça de Torres Vedras às forças islâmicas, em
1148, impôs a necessidade premente de garantir a sua posse em mãos cristãs. O
mosteiro de Oia passou, pois, através de uma doação régia – a da herdade da
Fanga da Fé – a incorporar o conjunto selecto de instituições a que o rei
delegou a tarefa e a responsabilidade de ocupar, cultivar e povoar o termo de
Torres Vedras, assim como o de outras localidades da Estremadura Central.
Estavam lançadas as bases do que viria a tornar-se o património de Oia em
Portugal, dividido em dois núcleos de propriedades distantes e diferentes, um
no extremo norte do Entre Lima e Minho e outro, precisamente, na região da
Estremadura.
No Entre Lima e Minho, para além da doação de Paio Guterres da Silva, a
documentação refere mais actos similares, exemplos de generosidade para com o
mosteiro por parte de membros de todos os sectores da sociedade, com particular
destaque para o clero e a nobreza local. Às doações juntaram-se poucas compras
e alguns escambos que, acima de tudo, revelavam um desejo de organizar o
património do mosteiro de Oia no Entre Lima e Minho por forma a concentrá-lo o
mais possível. O conjunto de bens deste núcleo foi crescendo, espalhando-se por
diferentes freguesias correspondentes aos actuais territórios dos municípios de
Caminha, Paredes de Coura, Melgaço, Valença e Vila Nova de Cerveira. Nestes
dois últimos, concentrou-se a maioria das propriedades de Oia, que compuseram
um património de cariz eminentemente rural. Esta concentração encontra
justificação lógica numa das grandes premissas do tipo de gestão característico
dos cenóbios cistercienses. Com efeito, a granja da Silva, situada na
localidade de Santa Maria da Silva, em Valença, exercia as funções inerentes a
este tipo de complexo económico e de gestão de todas as propriedades adjacentes
a ela que eram, precisamente, as do núcleo em questão.
No núcleo da Estremadura, que agrupava propriedades situadas no âmbito
territorial da diocese de Lisboa, a distribuição dos bens do mosteiro de Oia
assumia um carácter mais disperso. Apesar de uma maior concentração de bens no
termo da vila de Torres Vedras, o estatuto de proprietário da instituição
galega atingia também a vila e o termo de Atouguia e o centro da própria urbe
olisiponense. Também neste núcleo, a granja da Fanga da Fé, no termo de Torres
Vedras, parece ter assumido as funções, similares às da granja da Silva no
Norte, de centro de gestão e arrecadação de rendas e produtos de boa parte das
propriedades envolventes.
A existência de granjas e um sistema de gestão das propriedades assente na
cessão do domínio útil através de contratos enfitêuticos constituem pontos
comuns aos dois núcleos que compunham o senhorio de Oia em território
português. Não obstante, a distância entre ambos e as peculiaridades
geográficas, históricas, sociais e culturais que acompanharam a evolução de
cada um implicaram, como seria de esperar, diferenças consideráveis. Diferenças
traduzidas numa dupla estratégia de gestão aplicada por uma mesma instituição
senhorial conforme com a idiossincrasia de um património particular e
heterogéneo. No núcleo do Entre Lima e Minho, os contratos enfitêuticos deixam
entrever uma estratégia de gestão patrimonial assente num maior controlo
directo da instituição senhorial sobre os camponeses e a produção. Na
Estremadura, esta premissa era substituída por uma necessidade premente de
obter um nível de rendimentos que permitisse a manutenção de um património que,
ao estar tão distante do próprio mosteiro, acarretava uma série de dificuldades
logísticas difíceis de ultrapassar. Em termos concretos, estas realidades
expressam-se, sobretudo, pela prevalência dos emprazamentos em três vidas no
caso do núcleo do Entre Lima e Minho por contraposição aos contratos de
aforamento, perpétuos e hereditários, no caso das propriedades sitas em parte
do território da diocese de Lisboa.
No primeiro núcleo de propriedades, assim como na Galiza, o mosteiro de Oia
apostava, pois, por ceder o domínio útil de parte das suas propriedades
recorrendo a contratos cuja duração limitada permitia uma maior e mais
constante actualização das rendas e, de igual forma, um controlo mais directo
da produção, condição facilitada, aliás, pela proximidade entre este núcleo e o
próprio mosteiro, centro principal de todo o património. Por sua vez, os bens
situados na Estremadura, por comparação com o núcleo do Norte, estavam
submetidos em muito maior medida a um regime de exploração directa, pelo que a
quantidade de contratos enfitêuticos era bem mais reduzida. As quatro granjas –
da Fanga da Fé, Jardim, Enxara e Atouguia – bem como propriedades altamente
rentáveis como as salinas da Atouguia, de acordo com os dados proporcionados
pela documentação, não teriam sido cedidas através de contratos enfitêuticos.
No entanto, as evidências documentais relativas ao regime de exploração
indirecta aplicado neste núcleo, revelam que as propriedades eram cedidas a
título perpétuo e hereditário. A abdicação de um controlo tão directo como no
núcleo do Entre Lima e Minho via-se compensada, todavia, por uma enumeração e
imposição das obrigações dos enfiteutas em relação à instituição senhorial,
traduzidas, por exemplo, em vínculos de vassalagem, exacção de tributos de
cariz senhorial ausentes nos contratos do núcleo do Norte ou a obrigação de
todos os descentes dos foreiros primitivos residirem na propriedade aforada.
De acordo com a documentação, as estratégias de gestão aplicadas a ambos os
núcleos do território português viram-se afectadas, não só pelas implicações
inerentes às particularidades do conjunto patrimonial de Oia, mas também por
conjunturas externas, alheias ao mosteiro e que, por conseguinte, escapavam ao
seu controlo. Tanto no Norte como no Sul, os documentos, e muito
particularmente as preciosas informações proporcionadas pelo conteúdo dos
contratos enfitêuticos, revelam dois períodos díspares e bem diferenciados. No
Entre Lima e Minho, por exemplo, as terríveis consequências da Grande
Pestilência de 1348, os efeitos dos consecutivos enfrentamentos militares entre
Portugal e Castela que marcaram os reinados de D. Fernando e D. João I, assim
como a difícil conjuntura que se seguiu à luta travada entre D. Afonso V e seu
tio, o infante D. Pedro, afectaram sobremaneira o património raiano de Oia. A
abdicação de contratos, os casos de penúria revelados através das referências
aos familiares do mosteiro, a necessidade de reconstruir os bens emprazados ou
o aumento dos contratos de uma vida revelam um panorama depressivo, a partir de
finais do século XIV e ao longo de toda a centúria seguinte. No núcleo da
Estremadura, para além dos efeitos da Peste, que também aqui se fizeram sentir
de forma avassaladora, a relação estabelecida pelo mosteiro de Oia com o rei de
Portugal, no contexto particular da guerra que enfrentou D. João I de Portugal
ao seu homónimo castelhano e no panorama geral europeu do Grande Cisma, aliada
à intensificação das fortes pressões exercidas contra Oia por entidades
senhoriais competidoras no território em questão – com destaque para o bispado
de Lisboa e a própria Coroa – chegaram ao ponto de determinar o fim da presença
do cenóbio galego nesta região e, por conseguinte, o abandono do núcleo de
propriedades da Estremadura, na primeira metade do século XV.
As redes de relações estabelecidas pelo mosteiro de Oia em Portugal
Os documentos emitidos pelos diferentes monarcas durante o período cronológico
a que nos reportamos – 1145 e 1495 – são os que, em grande medida, permitem
abordar e analisar um dos principais temas desta investigação. Contribuem estes
para a compreensão do papel e posição do mosteiro galego de Oia no seio de
algumas das mais importantes estratégias políticas empreendidas desde tempos de
D. Afonso Henriques até D. Afonso V, tanto ao nível do reino de Portugal como
das relações diplomáticas entabuladas com as Coroas vizinhas de Leão e Castela.
O objectivo da nossa investigação neste campo foi compreender de que forma a
origem e os diferentes ritmos e etapas da formação e consolidação do reino de
Portugal afectaram ou interferiram na fixação e evolução do património de Oia
em território português. E também, em que medida foi afectada a instituição
monástica pelos meandros da política diplomática entre Portugal e Leão e
Castela ao longo do período cronológico em análise.
A doação de D. Afonso Henriques marcou um precedente e forjou o que seria a
tendência geral, poucas vezes interrompida, da relação entre o mosteiro de Oia
e os reis de Portugal. Sabemos que esta doação foi incrementada por D. Sancho I
e confirmada por D. Sancho II. A boa relação entre a Coroa portuguesa e o
cenóbio oiense mantinha-se, portanto. Já no reinado de D. Afonso III, o monarca
concedeu ao mosteiro galego um privilégio de protecção, guarda e encomenda que
seria confirmado pelo seu sucessor, D. Dinis, e posteriormente por diferentes
reis, tais como D. Fernando e D. João I. Durante a guerra que enfrentou D.
Afonso IV de Portugal ao seu genro, D. Afonso XI de Castela (1336-1339), o
mosteiro de Oia viu como as autoridades portuguesas embargavam a granja da
Silva, centro do património do Entre Lima e Minho. Tratava-se de uma acção
comum neste tipo de conflitos transfronteiriços, como comuns foram também as
ordens de devolução dos bens expropriados emitidas pelo monarca português em
1340 e 1342. Os problemas relativos às relações diplomáticas entre Portugal e
Castela, nomeadamente aqueles que acabavam em confrontos bélicos mais ou menos
duradouros, parecem ter sido os únicos capazes de inverter uma relação marcada
pela cordialidade e a generosidade dos monarcas portugueses em relação ao
mosteiro galego.
Contudo, cabe destacar a deterioração desta relação nos reinados de D. João I e
de seu filho D. Duarte. Com efeito, o Mestre de Avis, numa tentativa de cativar
o apoio da instituição galega no decorrer da guerra com Castela (1383-1411) e
no contexto do Grande Cisma, concedeu ao mosteiro importantíssimos privilégios
de salvo-conduto, que permitiam à comunidade religiosa cruzar a fronteira do
rio Minho e aceder aos seus núcleos de propriedades mesmo em situação de
guerra. Esta generosidade teria como contrapartida a exigência imposta ao abade
de Oia de permanecer fiel a Portugal e aos seus interesses durante o conflito.
O mais do que provável desrespeito desta ordem por parte do abade teria estado
na origem do embargo massivo das propriedades e direitos detidos por Oia na
Estremadura, uma vez terminada a guerra. Se, anteriormente, o mosteiro de Oia
tinha sido capaz de recuperar a plena possessão dos bens do Entre Lima e Minho,
embargados em 1384, o mesmo não teria ocorrido, nesta ocasião, com os da
Estremadura. Realmente, desde a expropriação até 1434, não existe qualquer
referência aos mesmos no seio da documentação do mosteiro. Esta última data
assinala o momento em que, através de um contrato francamente desfavorável a
Oia, o mosteiro decidiu ceder todos os seus bens sitos na Estremadura a D.
Duarte, pelo valor de 500 coroas de ouro.
A relação com as autoridades régias, através dos diferentes monarcas e seus
representantes locais, não constituiu, de forma alguma, a única rede de poderes
em que o mosteiro de Oia se inseriu. Nos capítulos cinco e seis da nossa tese
pretende-se, precisamente, evidenciar esta realidade, que de forma tão
expressiva deixou na documentação do mosteiro vestígios claros e elucidativos.
Com efeito, os documentos revelam que o mosteiro de Oia teve que enfrentar
indivíduos e instituições cujo exercício do poder a nível local os convertia em
rivais, embora em certas e determinadas ocasiões, pudessem também ser aliados.
No âmbito territorial do Entre Lima e Minho, onde as linhagens da nobreza se
impunham como importantes representantes e executores do poder senhorial leigo,
os documentos revelam interessantes vectores de uma relação complexa entabulada
pelo mosteiro com algumas delas. A documentação destaca, de forma premente,
duas das famílias da nobreza cavaleiresca cujo poder e património se expandiam
pelas mesmas regiões que os de Oia, os Cerveiras e os Velhos. Neste caso, o
mosteiro de Oia relacionava-se com poderes que poderíamos considerar similares
e competidores directos. Os interesses demonstrados por ambas as partes, no
âmbito de um conjunto de contactos marcados por uma tensão constante, eram em
tudo convergentes, no sentido em que previam o aumento, concentração ou defesa
dos respectivos direitos patrimoniais e senhoriais. Por outro lado, a ausência
de referências a este tipo de relações no núcleo mais meridional é de todo
natural, ou não se tratasse o Entre Lima e Minho de um bastião da nobreza, ao
contrário do que sucedia com a Estremadura, onde os poderes a que Oia se teve
que enfrentar eram outros, que não deixaram lugar ao estabelecimento de
alianças estratégicas como no caso das famílias nobres ou dos escudeiros do
Norte.
Boa parte das relações entabuladas por Oia com diferentes representantes e
graus da hierarquia eclesiástica surgem em relação ao núcleo da Estremadura.
Quando, em 1194, o bispo de Lisboa e o abade de Oia reclamaram ambos os
direitos sobre os dízimos da igreja da Enxara, davam início a um pleito que se
prolongaria e se intensificaria no século XIV. Os rendimentos obtidos pelo
mosteiro de Oia no território da diocese de Lisboa, em particular os de cariz
eclesiástico, cedo chocaram com os interesses de vários prelados, desejosos de
potencializar a plena organização do território de uma diocese que se
restaurara aquando da conquista da cidade de Lisboa, em 1147. O conflito
intensificou-se, precisamente, a partir de 1309, data em que é ordenada uma
inquirição aos dízimos das quatro igrejas matrizes de Torres Vedras. A luta
pela isenção do pagamento destes e outros tributos às autoridades eclesiásticas
locais por parte do mosteiro de Oia, ia, portanto, contra os objectivos e
desejos de uma instituição cada vez mais poderosa, por tratar-se da diocese da
capital e, também, sobretudo a partir da data da inquirição e na década de
1320, por ter como líder um homem como frei Estêvão, muito próximo da corte
régia. A divisão de poderes não era, nesta região, tão antiga e clara como no
Norte senhorial. O mosteiro de Oia devia, por isso, tentar afirmar-se e
implementar-se como um dos poderes novos, recentes e fazer valer os seus
direitos face a instituições a priori mais poderosas, com mais projecção
territorial e apoios. O esforço económico e humano imposto por uma querela
judicial longa e que implicou um contacto directo de Oia com as mais altas
esferas da Igreja – desde a metrópole de Santiago de Compostela, de que Lisboa
era sufragânea, até à Cúria papal – determinou, juntamente com os efeitos da
crise do século XIV, da guerra entre Portugal e Castela de 1383-1411 (e da sua
projecção num contexto internacional marcado pela Guerra dos Cem Anos e pelo
Grande Cisma) e as ambições de D. Duarte sobre as propriedades de Oia, o fim da
presença de Oia na Estremadura.
Apesar do fracasso que simbolizou esta querela para os interesses patrimoniais
de Oia no Sul do território português, a mesma foi determinante para o
estabelecimento de uma série de contactos com outros poderes eclesiásticos,
assim como a inclusão do mosteiro num contexto tão importante para o Portugal
político e eclesiástico medieval como a questão das obediências. Com efeito, as
denúncias presentes no corpus de Oia contra o bispo de Lisboa apresentadas à Sé
compostelana, e à de Braga antes de 1199, são reveladoras de um panorama que,
também no âmbito eclesiástico, incluía de forma tão vinculante a questão
transfronteiriça. Uma questão, aliás, bem mais premente nos problemas e
enfrentamentos judiciais entabulados por Oia contra autoridades eclesiásticas
no seio do território diocesano de Tui. Como é sabido, até finais do século
XIV, as fronteiras do bispado tudense não se adaptaram à divisão política dos
reinos de Portugal e Castela. Neste sentido, são facilmente detectáveis na
documentação os contactos estabelecidos com a diocese de Tui ou a arquidiocese
de Braga, da qual era sufragânea, devido a questões conflituosas decorrentes
das disputas de direitos de igrejas tanto galegas como do Noroeste português.
Como refere Iñaki Martín Viso, “la experiencia de la frontera aúna en un mismo
fenómeno relaciones conflictivas y vinculaciones de carácter más pacífico, por
lo que considerarla exclusivamente desde una u otra perspectiva impide observar
su complejidad”9. Sem dúvida, esta definição pode aplicar-se perfeitamente ao
tema deste estudo, podendo mesmo considerar-se como uma expressão mais do que
correcta da conclusão geral a que chegamos através da investigação sobre o
património português do mosteiro galego de Santa Maria de Oia. A complexidade
da fronteira e do “fronteiriço” foi, sem dívida, um dos aspectos mais
fundamentais da presença de Oia em território português, cuja evolução se
pautou, precisamente, pela oscilação entre momentos e conjunturas de conflito e
de boa relação. No núcleo do Entre Lima e Minho, por exemplo, a fronteira
política entre dois reinos não significou um impedimento à gestão e
desenvolvimento do património de Oia. Aí, o cariz problemático ou conflituoso
da fronteira inseriu-se muito mais no que poderíamos designar por fronteiras
internas, delimitações de poderes, ambições e interesses opostos. Foi o que
sucedeu com as tensões verificadas entre o mosteiro e membros da linhagem dos
Cerveiras, por exemplo, que tinham como pano de fundo uma noção fluída e mesmo
contínua do território transfronteiriço. Neste sentido, a relação do mosteiro
de Oia com as duas margens do rio Minho enquadrava-se perfeitamente no cenário
que abrangia, de forma geral, as populações raianas, que sem dificuldades e
impedimentos cruzavam o rio para viver, casar, ou possuir propriedades. Só as
guerras e os conflitos diplomáticos entre os dois reinos puderam quebrar esta
rotina e, mesmo assim, de forma temporária.
No Sul, no núcleo da Estremadura, a presença de uma instituição galega como
proprietária e senhora de um património rico e disperso foi mais problemática.
Contudo, não por se tratar de uma instituição galega – condição, aliás,
responsável em boa medida pelo apoio concedido pelos primeiros monarcas
portuguesas – mas, sobretudo, pelas dificuldades inerentes à distância que
separava Oia deste núcleo de propriedades e, uma vez mais, como no caso da
nobreza nortenha, pela delimitação interna de poderes. O mosteiro de Oia tinha
sido incluído no processo de organização do território recém conquistado da
Estremadura Central, mas a evolução dos acontecimentos fez com que fosse
suplantado por instituições mais fortes e poderosas, acabando por abdicar deste
património. As afinidades que, num primeiro momento, uniram o mosteiro de Oia à
população galega na região, protagonista também da sua organização territorial,
não foi suficiente para fazer frente às despesas que um património longínquo,
rico e cobiçado acarretava.
Para o mosteiro de Oia, como para todos aqueles para quem a fronteira
representava pouco mais que uma imposição das altas esferas do poder político,
o rio Minho assumiu-se muito mais como uma via de passagem, um elemento de
união, do que uma barreira ou um entrave que se activava, quase exclusivamente,
em épocas de guerra e conflito. As fronteiras internas, as dos poderes
competidores, essas eram comuns a qualquer zona, território ou país e a elas o
mosteiro teve de enfrentara-se tanto em Portugal como na Galiza.
COMO CITAR ESTE ARTIGO
Referência electrónica:
RODRIGUES, Ana Paula Leite – “Apresentação de Tese /Thesis Presentation.
Senhores e Camponeses num espaço de fronteira. Estudo da projecção portuguesa
do domínio monástico de Santa Maria de Oia nos séculos XII a XV. Tese de
Doutoramento em História Medieval apresentada à Facultade de Xeografía e
Historia da Universidade de Santiago de Compostela, Dezembro de 2014.
Orientação do Professor Doutor Ermelindo Portela Silva (USC) e coorientação da
Professora Doutora Amélia Aguiar Andrade (FCSH-UNL)”. Medievalista [Em linha].
Nº 18 (Julho - Dezembro 2015). [Consultado dd.mm.aaaa]. Disponível em http://
www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA18\. ISSN 1646-740X.
Notas
1
Pallares Méndez, María del Carmen e Portela Silva, Ermelindo – El Bajo Valle
del Miño en los siglos XII y XIII. Economía agraria y estructura social.
Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de Compostela, 1971.
2
Portela Silva, Ermelindo – La región del obispado de Tuy en los siglos XII a
XV. Una sociedad en la expansión y en la crisis. Santiago de Compostela: El Eco
Franciscano, 1976.
3
Marques, José – “O mosteiro de Oia e a Granja da Silva, no contexto das
relações luso-castelhanas dos séculos XIV-XV”. in MARQUES, José – Relações
entre Portugal e Castela nos finais da Idade Média.s. l.: Fundação Calouste
Gulbenkian/Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1994, pp.
205-233.
4
Marques, José – “Cartas inéditas de D. João I no Arquivo Histórico Nacional de
Madrid. Novos elementos para o estudo das relações galaico-portuguesas nos
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à Faculdade de Letras de Lisboa.
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e da Cultura. Coimbra; Viseu. 4 (2004), p. 9.