Hipertensão portal esquistossomótica: influência do fluxo sangüíneo portal nos
níveis séricos das enzimas hepáticas
ARTIGO ORIGINALORIGINAL ARTICLEINTRODUÇÃO
A Organização Mundial de Saúde estima que a esquistossomose acometa mais de 200
milhões de pessoas em todo o mundo, representando a principal causa mundial de
hipertensão portal e acometendo geralmente indivíduos jovens(24, 30). No
Brasil, é estimado o número de 8 a 18 milhões de infestados pelo Schistosoma
mansoni(30), atingindo principalmente uma faixa de contínua endemicidade que se
estende pelos Estados do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas,
Sergipe, Bahia e Minas Gerais(10).
A hemorragia digestiva alta por varizes esofagogástricas é a principal
manifestação da hipertensão portal esquistossomótica (HPE) e, também, a
principal complicação com altos índices de morbimortalidade(12, 29).
Para evitar o ressangramento, existem na atualidade duas técnicas cirúrgicas
mais praticadas e estudadas: a desconexão azigoportal com esplenectomia (DAPE)
e a derivação esplenorrenal distal (DERD). O tratamento cirúrgico ideal ainda
não foi atingido, estando as opções cirúrgicas entre o eficiente controle da
recidiva hemorrágica, contudo com proibitivos índices de encefalopatia hepática
(no caso da DERD), e o não aparecimento de encefalopatia, mas com taxas maiores
de ressangramento digestivo (DAPE)(1, 5, 14, 30, 31).
A avaliação da hemodinâmica hepática pode esclarecer sobre a fisiopatogenia e
sobre as alterações observadas nos diferentes tipos de cirurgias(9, 31). Os
métodos mais usados para esta avaliação utilizam-se de medidas invasivas.
Entretanto, através do surgimento da ultra-sonografia Doppler duplex, houve a
possibilidade de obtenção de medidas não-invasivas da velocidade sangüínea,
permitindo o cálculo do fluxo sangüíneo. Desta forma, obteve-se um exame de
simples execução, baixo custo e não-invasivo, apresentando-se bastante útil na
avaliação, planejamento terapêutico e acompanhamento do paciente com
hipertensão portal(8, 15, 17, 19, 26, 32, 38).
Muitos trabalhos têm estudado, em pacientes com hipertensão portal cirrótica, a
dependência da função hepática ao fluxo sangüíneo hepático e ao fluxo sangüíneo
portal (FP)(11, 18, 20, 21, 28). Esses trabalhos evidenciam uma interferência
importante do FP na atividade funcional do fígado. É conhecido, entretanto, que
a hipertensão portal cirrótica é localizada nos sinusóides (hipertensão portal
sinusoidal) e que se associa à lesão hepatocelular importante. Deste modo, a
função destas células está comprometida e estas se tornam lábeis às mudanças de
sua perfusão. Já os pacientes com HPE têm, geralmente, a arquitetura lobular e
a função hepática mantidas, sendo as alterações vasculares hepáticas e do
sistema porta os aspectos fundamentais mais expressivos na fisiopatologia da
HPE(9, 23). Estes aspectos transformam a HPE num bom modelo para estudo da
fisiologia do FP na atividade funcional do fígado.
Neste sentido e observando que existem poucos estudos na literatura abordando a
relação da função hepática com o FP na HPE(7), elaborou-se a presente pesquisa
que teve como objetivos: 1) determinar se há correlação significativa entre o
perfil hepático (avaliado através das dosagens de albumina (ALB), TGO, TGP,
bilirrubina direta (BD) e indireta (BI), FA, GGT e tempo de protrombina (TP) e
o FP, e 2) identificar qual a variável do perfil hepático mais representativa
da influência do FP na atividade funcional hepática nos pacientes com HPE.
PACIENTES E MÉTODOS
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do hospital e um consentimento
escrito foi obtido de cada paciente. Realizou-se estudo retrospectivo com 64
pacientes com HPE, sendo 19 (29,69%) não-operados, 23 (35,94%) submetidos a
DAPE e 22 (34,37%) submetidos a DERD. Os dados foram coletados no período entre
maio de 1996 e maio de 1999. Os pacientes foram agrupados e avaliados em
quartis de acordo com o FP, conforme ilustrado na Figura_1.
A composição da casuística dos diferentes quartis foi homogênea, não havendo
diferença significativa referente às médias de idade, peso e altura dos
pacientes (P >0,05) nos diferentes quartis, bem como referente ao tempo de pós-
operatório (P= 0,1145).
Para compor os grupos, foram utilizados os seguintes critérios de inclusão: 1)
idade entre 15 e 70 anos, 2) diagnóstico de esquistossomose hepatoesplênica com
hipertensão portal, confirmado pelo achado endoscópico de varizes
esofagogástricas, 3) antecedente de hemorragia digestiva alta, 4) intervalo
mínimo de 15 dias entre o episódio hemorrágico e os exames de FP e do perfil
hepático.
Consideraram-se critérios de exclusão: 1) antecedente de alcoolismo, 2)
presença de cardiopatia ou pneumopatia clinicamente importantes, 3) evidência
de qualquer outra hepatopatia, 4) presença de febre ou processo infeccioso
agudo, 5) presença de trombose de veias esplênica ou mesentérica superior, 6)
presença de trombose de anastomose esplenorrenal.
O perfil laboratorial hepático dos pacientes foi avaliado através dos valores
obtidos com a dosagem sérica da ALB, transaminase glutâmico-oxalacética (TGO),
transaminase glutâmico-pirúvica (TGP), BD e BI, fosfatase alcalina (FA) e gama-
glutamil transferase (GGT). Essas dosagens foram realizadas pelo método
colorimétrico automatizado do Cobas Mira Plus Chemistry System® (Roche
Diagnostic System Incorporated). O TP(36) também foi utilizado, sendo realizado
o teste de Quick(25).
O FP foi mensurado através do Doppler duplex colorido (Toshiba SSH 140 com
transdutor eletrônico convexo de 3,75 MHz, indicado para o estudo de vasos em
profundidade no organismo) realizado sempre pelo mesmo profissional e o mesmo
aparelho para todos os pacientes, evitando o risco de variação entre
observadores(33). As medições foram feitas em triplicata (considerou-se a média
das três aferições) e obtidas no tronco da veia porta antes da bifurcação,
através de corte oblíquo subcostal direito(26, 37). Considerando a influência
da fase digestiva sobre o fluxo venoso esplâncnico, cada paciente foi orientado
a comparecer em jejum de 12 horas e a tomar 40 gotas de Luftal® (Bristol-Myers
Squibb Brasil S/A, São Paulo, SP) na noite anterior e na manhã do exame. A
posição padronizada para o estudo foi o decúbito dorsal horizontal assumido
após 15 a 30 minutos de descanso (sentado sem atividade), para obviar a
interferência postural e da atividade física(33).
Os planos de corte ultra-sonográficos foram sempre os mesmos para todos os
pacientes e seguiram a padronização da Organização Mundial da Saúde no uso da
ultra-sonografia para avaliação do fígado, baço e sistema vascular esplâncnico
na HPE(38). Acrescente-se o fato de que os cortes aludidos foram sempre obtidos
durante a mesma fase da respiração, evitando as variações com o ciclo
respiratório.
Cada variável do perfil laboratorial hepático foi correlacionada com o FP.
Os resultados foram analisados através de regressão linear, coeficiente de
correlação de Pearson, teste do qui-quadrado e análise de variância de um via
(one-way ANOVA), seguido do teste de Tukey. Os resultados foram significativos
quando P <0,05. Foi utilizado o programa PRISM®, versão 3.02, 1999, da GraphPad
Software Incorporated.
RESULTADOS
O FP dos 64 pacientes avaliados apresentou média de 1.194,38 mL/min ± 700,57
mL/min, tendo como valor mínimo 317,25 e máximo de 3.181,36 mL/min. A mediana
foi de 1.093,52 mL/min, o 25º percentil foi de 672,79 mL/min e o 75º percentil
foi de 1.523,25 mL/min.
Quando correlacionadas as provas de perfil laboratorial hepático e o FP,
somente a GGT apresentou correlação positiva significativa (P= 0,0379; r =
+0,3214), conforme observado na Figura_2. No cotejo dos quartis, também somente
a GGT mostrou resultado significativo, donde se constatou que o quarto quartil
(4Q) foi diferente estatisticamente do primeiro quartil (1Q) e do terceiro
quartil (3Q), conforme ilustrado na Figura_3.
DISCUSSÃO
Atualmente, muito se tem estudado sobre o FP nos pacientes com hipertensão
portal(11, 18, 19, 20, 21, 28). Há referências de que a esquistossomose
hepatoesplênica é a principal causa de hipertensão portal no mundo(24, 30).
Nota-se, contudo, que os estudos na literatura correlacionando o FP com a
função hepática abordam destacadamente o fígado cirrótico(11, 18, 20, 21, 28).
Provavelmente, isso decorre do fato de ser a cirrose mais comum nos países
desenvolvidos e que nitidamente são pacientes com comprometimento hepático mais
acentuado.
Já foi demonstrado que os pacientes esquistossomóticos apresentam FP superior
aos indivíduos normais (controle)(4, 5, 19). Desta forma, teriamda GGT no 4Q
foi significativamente maior em comparação com o 1Q e o 3Q. Tal elevação da
atividade sérica da GGT nos pacientes com esquistossomose hepatoesplênica já
havia sido relatada na literatura. MANSOUR et al.(22) sugeriram que a avaliação
da GGT associada à da monoamina-oxidase (MAO) aperfeiçoaria a capacidade de
diferenciar bioquimicamente entre a infecção precoce pelo Schistosoma mansonie
a forma crônica hepatoesplênica com seu associado envolvimento hepático.
A GGT está presente em quantidades decrescentes no túbulo proximal do néfron,
fígado, pâncreas (dúctulos e células acinares) e intestinos. No entanto, a GGT
sérica ativa é originária primariamente do fígado(35).
Consideram-se causas mais importantes da elevação da GGT a estimulação crônica
do sistema microssomal (ocasionado pela indução e liberação da GGT da fração
microssomal do hepatócito) e a presença de colestase.
A causa microssomal já foi afastada em pacientes portadores da forma
hepatointestinal da esquistossomose, mas não da forma hepatoesplênica(23).
A segunda causa de aumento da GGT é a colestase, melhor avaliada junto com a FA
(27, 34). Nesta pesquisa, ficou evidente que a FA acompanha o aumento da GGT em
relação ao FP (Figura_2A). No entanto, essa alteração mostrou tendência, não
apresentando resultado estatisticamente significativo (P >0,05). Provavelmente,
este fato ocorreu porque a GGT foi mais sensível do que a FA em detectar
colestase. Alguns estudos que corroboram com tal assertiva demonstraram que a
GGT está 12 vezes mais alta na colestase e a FA apenas 3 vezes(3, 32). Diversos
autores propuseram que as alterações na árvore biliar, decorrentes da fibrose
do espaço porta, poderiam ser o substrato anatômico para o aumento de FA e GGT
nos pacientes com esquistossomose hepatoesplênica(6, 13, 16, 23).
A análise da composição do 4Q, que apresentou os maiores valores de GGT, revela
que este é formado em sua maior parte por pacientes não operados, conforme
ilustrado na Figura_1 (81,25% ' 13 pacientes). Pode-se pensar, desta forma, que
a elevação de GGT no 4Q foi devida aos altos valores de GGT dos pacientes com
esquistossomose hepatoesplênica não submetidos a cirurgia e, portanto, com
maior comprometimento hepático (maior congestão).
Poderia ser questionado se a carga parasitária alteraria os níveis de GGT. No
entanto, recentemente, AMARAL et al.(2) demonstraram não haver correlação
significativa entre a carga parasitária e os níveis séricos de GGT. A relação
encontrada por esses autores entre GGT elevada e índice de protrombina elevado
poderia sugerir que a GGT se alteraria em formas mais avançadas da doença e não
como resultado de indução microssomal. Além disso, a elevação da GGT, para
aqueles pesquisadores, poderia estar presente antes do estabelecimento da forma
hepatoesplênica. Os resultados daquele trabalho também evidenciam que a GGT
sérica é mais sensível do que a FA em sugerir colestase.
Se a elevação de GGT, encontrada nos resultados do presente estudo, fosse
ocasionada pelas alterações na árvore biliar decorrente da fibrose do espaço
porta, seria de se esperar que essas também estivessem presentes nos demais
quartis. Isso porque, possivelmente, tratam-se de pacientes com esquistossomose
hepatoesplênica com semelhantes graus de fibrose no espaço porta. Entretanto,
não é o que se nota neste trabalho, no qual os grupos em que há maior
participação de pacientes que foram operados apresentam menores valores de GGT
do que o 4Q.
WIDMAN et al.(39) demonstraram, por análise ultra-sonográfica, que há redução
significativa no calibre da veia porta em pacientes operados por DAPE em
relação a pacientes não-operados acometidos da forma hepatoesplênica da
esquistossomose. Não obstante, relacionaram essa diminuição do calibre no pós-
operatório à diminuição da pressão do FP.
É provável que a fibrose do espaço porta não seja a única responsável pelo grau
de colestase encontrado na casuística deste trabalho, e que o regime de maior
fluxo e pressão nos ramos da veia porta também concorra para a colestase.
Contudo, a hipótese de indução microssomal como causa da elevação da GGT no
paciente com esquistossomose hepatoesplênica não foi devidamente afastada(23).
O que fica evidente, entretanto, é que a elevação da GGT tem correlação
positiva com valores do FP.
A análise das outras variantes do perfil hepático não revelou alterações, o que
sugere que a função hepatocelular está preservada ou minimamente comprometida
na HPE, conforme já cabalmente demonstrado(7). Desta forma, relaciona-se o
comprometimento hepático nesta patologia como de ordem predominantemente
vascular.
Em conclusão, pode-se inferir que, nesta casuística de pacientes com HPE: 1)
quanto maior o FP, maior foi o nível sérico de GGT; 2) a GGT foi a variável da
avaliação do perfil hepático mais representativa da influência do FP na
atividade funcional hepática nos pacientes com esquistossomose hepatoesplênica,
e 3) é possível que as cirurgias, através de suas modificações hemodinâmicas
(diminuição da congestão), sejam também benéficas por diminuírem o grau de
colestase presente ou em regredirem a indução microssomal. Tal possibilidade,
no entanto, requer a realização de novas investigações com diferente
metodologia para devida ratificação.