Proposta de questionário para caracterização da prevalência de sintomas
digestivos nas doenças difusas do tecido conjuntivo
EPIDEMIOLOGIA CLÍNICA CLINICAL EPIDEMIOLOGYINTRODUÇÃO
As doenças difusas do tecido conjuntivo (DDTC) são enfermidades de
comprometimento imunológico e inflamatório que acometem diferentes sistemas
orgânicos. O sistema digestório é comumente atingido e, embora na dependência
do tipo de DDTC, o comprometimento seja mais direcionado para uma víscera ou
outra, todas potencialmente podem ser lesadas(25, 28, 32). Como conseqüência,
os sintomas variam de uma doença para outra em função do órgão mais acometido.
Essas características das DDTC geram imprecisões na descrição das suas
manifestações digestivas, agravadas pelo fato de que o cadastramento de tais
manifestações tem sido esparso e freqüentemente baseado em relatos de
experiências individuais ou revisão de prontuários(8, 17, 22, 24, 36). É bem
conhecido, por outro lado, que informações colhidas desta forma sofrem
numerosas influências, alterando a uniformidade e confiabilidade dos achados
obtidos. Dentre as interferências mais comuns, ressalta-se o papel do indivíduo
que coleta a informação. Dependendo do seu treino, cabedal de conhecimentos,
nível de interesse, inspiração momentânea na formulação das questões, os dados
recolhidos poderão ser mais ou menos representativos e fiéis. Para obtenção de
informações apropriadas é, portanto, relevante alguém especificamente treinado
e motivado para a tarefa, apto a realizar entrevista bem orientada e, se
possível, fazendo uso de questionário preestabelecido, a ser aplicado
uniformemente aos entrevistados. Seguindo-se essas normas, muitas das falhas
acima apontadas poderão ser minimizadas e um rol de sintomas mais completo
assegurado.
O presente estudo teve por objetivo catalogar os sintomas digestivos mais
freqüentes na esclerose sistêmica progressiva (ESP), lúpus eritematoso
sistêmico (LES), artrite reumatóide (AR), polimiosiosite/dermatomiosite (PM/DM)
e doença mista do tecido conjuntivo (DMTC), a partir de entrevista com
pacientes acometidos por essas afecções, realizada por gastroenterologista
previamente treinado em coleta de dados referentes àquelas doenças e usando
como roteiro uma ficha clínica contendo questionário predefinido dos sintomas
gastrointestinais a serem pesquisados. A intenção do trabalho é aperfeiçoar a
confiabilidade e reprodutibilidade dos resultados alcançados e estabelecer um
perfil sintomático mais consistente para as DDTC.
PACIENTES E MÉTODO
O trabalho constou de duas fases: a primeira chamada piloto e a segunda,
definitiva.
Fase piloto
Esta fase teve como objetivo testar preliminarmente a idéia da existência de
discordância entre dados colhidos por intermédio do levantamento de prontuários
médicos e aqueles resultantes de coleta por meio de questionário e entrevista.
A partir de uma lista de portadores de DDTC do Hospital das Clínicas de
Botucatu, SP, 14 pacientes foram selecionados aleatoriamente e a seguir
convocados para entrevista e preenchimento do questionário de sintomas com um
gastroenterologista. A pesquisa da ocorrência de sintomas foi restringida ao
período de 1 ano e meio anterior à aplicação do questionário, salvo quando
havia sintomas extremamente marcantes fora dele. O mesmo questionário foi a
seguir completado, a partir dos sintomas registrados no prontuário, ao longo
das várias consultas pelas quais o paciente passara anteriormente.
Fase definitiva
Nesta fase, foram incluídos indivíduos com diagnóstico firmado de DDTC e sem
outra afecção com repercussão no sistema digestório capaz de confundir os
resultados. Esta última condição implicou na eliminação de 20 dos 119 pacientes
inicialmente selecionados para o estudo. Concluída a etapa de diagnóstico e
seleção, os pacientes foram encaminhados ao gastroenterologista para entrevista
com relação aos sintomas digestivos. Nesta entrevista, foi usada como roteiro
de perguntas uma ficha clínica igual à utilizada na fase piloto, constando dos
dados demográficos e diagnósticos dos pacientes e um questionário composto de
17 questões, em que as opções de respostas eram: sim (S), não (N) ou não
conclusiva ou duvidosa (NC). As questões englobavam um conjunto abrangente de
sintomas associados a diferentes alterações do sistema digestório. Constava
ainda de um item sobre a concomitância de outras doenças crônicas (Figura_1).
Considerando a freqüente confusão no entendimento da terminologia utilizada
pelos médicos, particularmente obscura para o paciente com limitado nível de
instrução que constitui a maioria da clientela desta série, algumas medidas
cautelares foram tomadas. Isto incluiu a criação de ambiente descontraído na
entrevista, uso de palavras simples e populares sobre os motivos da consulta e
do significado de cada sintoma pesquisado e a elucidação das dúvidas
apresentadas pelo entrevistado. Só após o cumprimento desses itens é que se
passava à entrevista propriamente dita. A todos os envolvidos era informado que
o interesse da pesquisa era circunscrito a queixas/sintomas de caráter crônico,
presentes no último ano e meio. Portanto, episódios fortuitos ou passageiros
não foram incluídos, salvo fatos particularmente marcantes relatados pelo
entrevistado e aceitos como tal pelo entrevistador. Quanto à fixação do prazo
limite de 1 ano e meio, a intenção foi atenuar as distorções de memória que se
ampliam quanto mais retroativo é o período investigado. Finalmente, foram
omitidas perguntas específicas sobre o acometimento do fígado e pâncreas por
serem manifestações menos freqüentes.
Dos 99 pacientes entrevistados, 35 tinham diagnóstico de AR, 26 de ESP, 21 de
LES, 12 de PM/DM e 5 de DMTC. Tais diagnósticos foram baseados nos critérios
internacionais recomendados. Nos portadores de AR, a idade média foi de 46,48
(DP ± 18,78), 27 eram mulheres. Na ESP a idade média foi de 48,6 anos (DP ±
14,4), 25 mulheres. Na PM/DM a idade média foi de 42,16 anos (DP ± 15,2), todas
mulheres. No LES a idade média foi de 39,7 anos (DP ± 13,9), 20 mulheres. Na
DMTC a idade média foi de 47,4 anos (DP ± 14,4), 4 mulheres. Quatro casos de
ESP apresentavam a forma Crest. Vinte e três casos de fenômeno de Raynaud foram
registrados, dos quais 20 associados à ESP, 2 à DMTC e 1 ao LES.
Todos os pacientes submetidos ao questionário foram previamente informados a
respeito do protocolo de pesquisa e consentiram em dele participar.
RESULTADOS
Fase piloto
Os resultados da fase piloto acham-se dispostos na Tabela_1, compreendendo
diagnósticos, número de sintomas observados a partir do levantamento de
prontuários e da entrevista/questionário. Do total de 14 casos levantados, em
nenhum coincidiu o número total de sintomas observados pelos dois métodos. Em
13, o questionário identificou número bem mais expressivo de sintomas que os
registrados no prontuário, variando de 1,3 a 8 vezes mais. Tais resultados
reforçaram a idéia da maior precisão do método entrevista/questionário no
estabelecimento da prevalência de sintomas digestivos nas DDTC.
Fase definitiva
Os resultados da prevalência de sintomas digestivos em 99 pacientes com DDTC
investigados por intermédio de questionário predefinido, acham-se expostos na
Tabela_2.
DISCUSSÃO
Nas DDTC, o aparato neuromuscular do sistema digestório pode sofrer importantes
alterações no funcionamento, ocasionando o aparecimento de sintomas de grau
variado de severidade, oscilando entre simples azia na AR(1, 13), até disfagia
com aspiração na PM/DM(6, 23) e refluxo gastroesofágico grave e Barrett na ESP
(5, 14, 15, 18). Surpreendentemente, contudo, a despeito da variedade de tais
achados, não há abundância de estudos que abordem em detalhe a prevalência dos
sintomas, seu grau de severidade e distribuição nas diferentes DDTC. De que se
dispõe, são publicações esparsas, a maioria resultante de revisões de
prontuários(7, 24), livros-textos(21, 32) e experiências pessoais(3, 22), ou
então, trabalhos sobre fisiopatologia das lesões e sua correlação com sintomas
e procedimentos diagnósticos(8, 10, 12, 16). O conhecimento mais apurado da
epidemiologia e quadro clínico de uma doença é, no entanto, essencial para que
ela possa ser melhor diagnosticada e tratada.
Na primeira fase do presente estudo, ficou evidenciado o fato já referido por
outros, da grande variabilidade da informação extraída a partir de prontuários.
As razões dessa variabilidade são inúmeras, duas de maior destaque: o freqüente
rodízio do profissional que atende às sucessivas consultas, e o fato de que, na
medida em que o paciente é atendido em uma especialidade, a anamnese é mais
centrada nos aspectos desta e, portanto, menos atenta às manifestações de
outros aparelhos e sistemas. Nesta fase, foi possível constatar que
independentemente da afecção, 13 de 14 casos investigados exibiram número de
sintomas 2 a 8 vezes superior na entrevista com questionário em relação ao
encontrado no levantamento com prontuários.
Na segunda fase, em que foram investigados 99 indivíduos, os resultados obtidos
foram extraídos exclusivamente do questionário/entrevista, e estão
representados na Tabela_2. As diferenças de prevalência dos sintomas exibidos
variaram em função da afecção, já que cada uma tem seu próprio grau de agressão
e sítios anatômicos preferenciais de envolvimento.
O cadastro sintomático da ESP mostrou predominância de sintomas referentes ao
sistema digestório proximal. Disfagia, pirose, regurgitação, azia, plenitude
gástrica atingiram percentuais acima de 40% dos casos. Impressionou a descrição
de incontinência fecal em 27% dos pacientes. Embora admitido o comprometimento
anorretal na ESP(10, 35), a incontinência fecal é raramente citada por outros
autores. Acredita-se ter sido a maneira como foram conduzidas as entrevistas,
que conseguiu contornar a natural inibição dos indivíduos em revelar a sua
existência, permitindo, por outro lado, melhor conhecimento da sua real
dimensão. Constipação foi manifestação comum, presente em 35% dos pacientes.
Diarréia ocorreu em 11,5% dos casos e tem sido muitas vezes associada a
supercrescimento bacteriano e distúrbios motoras do delgado(8, 29, 33).
Tal como no presente estudo, a literatura registra elevado comprometimento do
sistema digestório na ESP, variando entre 50% e 85%(4, 18, 24, 26, 34). Os
sintomas relatados assemelham-se aos aqui catalogados; a freqüência com que
cada um deles comparece, é contudo pouco referida, exceção dos esofágicos, ao
redor de 75% nas diferentes casuísticas(19, 26, 28, 34). Os demais sintomas são
citados de forma genérica. Essa escassez de detalhes inviabilizou comparações
com os resultados do presente estudo, particularmente em relação às
manifestações colorretais, motivo de persistentes controvérsias entre os que
acreditam na sua presença freqüente(8, 28, 33, 35) e os que dela divergem(26).
A controvérsia é alimentada pela elevada ocorrência e inespecificidade dos
sintomas constipação e estufamento na população geral. Por outro lado, é
impossível ignorar que as lesões do delgado e grosso da ESP poderiam ser a
origem primária de tais sintomas. Ademais, a freqüência com que eles foram
encontrados é indiscutivelmente mais alta na ESP do que na população geral.
Situação paradoxal encontrada em alguns pacientes foi a existência de lesão sem
sintoma correspondente, por exemplo, ausência de disfagia em acometidos de
alterações motoras do esôfago detectadas pelo exame manométrico. Outros autores
têm feito constatações parecidas, sem explicação clara para elas(24, 25, 26). A
dissociação entre alteração anátomo-funcional e sintomas pode ser a explicação
para a subestimativa do acometimento do sistema digestório por essa doença.
Na PM/DM, o número de sintomas gastrointestinais foi bastante expressivo. O
segmento digestivo proximal apresentou o maior número de manifestações.
Ressalta-se o acometimento correspondente à faringe e ao cricofaríngeo, gerando
sensação de engasgo em 75% dos casos. Disfagia, pirose, estufamento e
constipação também compareceram em elevados percentuais. A literatura destaca a
disfagia e faz apenas menção superficial às outras manifestações(6, 32).
Contudo, alguns estudos sublinham o comprometimento difuso do sistema
digestório pela PM/DM(1, 12, 23, 25), caracterizado por esvaziamento esofágico
lento, refluxo gastroesofágico e hérnia hiatal(1, 12), esvaziamento gástrico
retardado(12) e alteração da motilidade intestinal(1, 23, 32). Desta forma,
surpreende a escassez de sintomas descritos na literatura. É possível que a
diferença com os resultados deste estudo decorra da metodologia de pesquisa dos
sintomas.
A casuística de DMTC da presente série foi reduzida, cinco no total, o que
enfraquece o peso de qualquer conclusão. Entretanto, decidiu-se incluí-los nos
resultados como contribuição ao estudo daquela doença, reconhecidamente de
baixa prevalência(2). Por tratar-se de condição em que se imbricam aspectos de
várias DDTC, os sintomas expressam uma mistura das manifestações de todas elas.
Conseqüentemente, foi observada presença superior a 50% de disfagia orofaríngea
e esofágica, assim como de pirose e regurgitação. Plenitude gástrica e
estufamento abdominal também foram queixas majoritárias. Incontinência fecal
apresentou valores próximos aos encontrados na ESP. Para cotejar os resultados
deste estudo com os da literatura, considerou-se como limitação o fato desta
ser bastante rarefeita e concentrar atenção apenas nas manifestações esofágicas
da DMTC(5, 9). Contudo, vários trabalhos reconhecem que o trato
gastrointestinal pode ser extensamente afetado(1, 2, 20). Em um desses(20), os
autores mencionam outros sintomas de menor ocorrência: dispepsia (20%),
diarréia (8%) e constipação (5%). Dor abdominal, presente em 20% dos pacientes
desta série, tem sido atribuída na literatura a distúrbio motor intestinal ou
vasculite. Infelizmente, entretanto, não foram encontrados estudos mais
completos descrevendo o estado funcional dos diferentes segmentos digestivos na
DMTC.
A literatura afirma que manifestações gastrointestinais estão presentes em mais
de 50% dos portadores de LES(7, 21, 27). Nos 21 casos aqui analisados, mais da
metade apresentou náusea, pirose, regurgitação e plenitude. Dor abdominal
também alcançou elevada cifra (33%), assim como diarréia (28%) e constipação
(28%). Foi surpresa a freqüência relatada de incontinência fecal, 19%. Na
literatura, os sintomas mais citados são náusea, vômito, dispepsia e dor
abdominal(32, 36). Outros, menos relacionados, são disfagia, pirose, diarréia e
íleo paralítico(1, 7, 21). A maior parte deles tem sido atribuída à vasculite,
que pode acometer todo o sistema digestório, determinando alterações motoras,
erosões e perfurações(1, 21, 36). Estudos funcionais do trato gastrointestinal
no LES revelam distúrbios motores esofágicos e intestinais(1, 9, 31). Talvez
por ser uma doença com comprometimento severo de múltiplos órgãos vitais, o
estudo dos sintomas digestivos e seus mecanismos subjacentes têm merecido pouca
atenção e permanecem mal conhecidos no LES.
Das DDTC, AR foi a que apresentou menor número de queixas digestivas. Nela, a
maioria dos sintomas afetou menos de 20% dos entrevistados. Chama a atenção,
contudo, a elevada taxa de disfagia encontrada ' 31% ' achado pouco valorizado
na literatura(1, 32), a despeito de alteração da motilidade esofágica ser
relatada em mais de 30% dos portadores de AR(13, 16, 30). Distúrbios motores de
outros segmentos do trato gastrointestinal também têm sido referidos(1, 11, 17)
e poderiam ser responsáveis por manifestações, como plenitude e constipação. Ao
se comparar os resultados do presente estudo com os de outros autores, foi
possível verificar não só a parcimônia de trabalhos sobre repercussões da AR no
tubo digestivo, mas a antigüidade desses trabalhos(30, 31), alguns realizados
três a quatro décadas atrás e, no entanto, continuamente citados na maioria das
revisões. Estudos recentes, usando recursos atualizados, quase inexistem,
prejudicando assim não só a reavaliação dos trabalhos antigos, como limitando a
comparação de resultados com trabalhos atuais como o presente. O que se
sobressai na maioria das revisões ou livros textos consultados é a tendência
repetitiva em se considerar os sintomas da AR como basicamente devidos aos
efeitos dos medicamentos analgésicos e antiinflamatórios. Mas será realmente
esta a única ou causa predominante de tais sintomas?
Finalmente, algumas conclusões podem ser sugeridas pelos achados do presente
trabalho. Primeira, a quantidade de sintomas gastrointestinais encontrados nas
DDTC é expressiva. Segunda, a incontinência fecal ocorre com freqüência
significativa. Terceira, cadastro de sintomas por intermédio de questionários
predefinidos aparentemente garante maior abrangência e reprodutibilidade dos
dados obtidos. Quarta, a escassez de trabalhos anteriores e atuais sobre as
manifestações digestivas das DDTC prejudicou comparação adequada com os
resultados desta série. E quinta, é recomendável a reavaliação dos resultados
dos trabalhos realizados no passado usando recursos clínico-laboratoriais
contemporâneos.