Relação entre o tamanho de hérnia hiatal e tempo de exposição ácida esofágica
nas doenças do refluxo erosiva e não-erosiva
ARTIGO ORIGINALORIGINAL ARTICLEINTRODUÇÃO
A doença do refluxo gastroesofágico (DRGE) se manifesta por uma forma erosiva,
uma não-erosiva ou por suas complicações, como estenose e esôfago de Barrett.
Sua fisiopatologia é multifatorial, apresentando uma combinação variável de
mecanismos nos diferentes grupos de pacientes. Dentre as alterações descritas
destaca-se a disfunção motora do esfíncter inferior, provavelmente associada à
disfunção do estômago proximal, levando aos relaxamentos transitórios do
esfíncter inferior, principal anormalidade encontrada em pacientes com doença
do refluxo não-erosiva(18)
A hérnia hiatal ressurgiu nos últimos anos como importante fator patogênico na
DRGE, estando associada a maior exposição ácida esofagiana e sempre presente
nas formas mais graves e complicadas da doença(7, 26). O mecanismo pelo qual a
hérnia hiatal se associa à DRGE mais grave estaria relacionado a maior
alteração na função esfincteriana (aumento dos relaxamentos transitórios do
esfíncter inferior do esôfago (EIE)(23), à promoção do refluxo ácido(22) e,
principalmente, à redução da depuração esofágica(15, 22) observadas sobretudo
em hérnias volumosas e não redutíveis.
Embora freqüentemente associada à esofagite, a presença da hérnia hiatal não é
condição sine qua non para o desenvolvimento da DRGE. Outros fatores como
alterações motoras esofagianas, reflexo esôfago-salivar reduzido, sensibilidade
esofagiana a ácido, refluxo não-ácido, retardo do esvaziamento gástrico,
predisposição congênita, dentre outros, parecem estar envolvidos em graus
variáveis na formação da doença não-erosiva.
O objetivo deste estudo foi avaliar se o tamanho da hérnia hiatal tem relação
com a intensidade do refluxo em pacientes com a doença do refluxo erosiva (DRE)
e doença do refluxo não-erosiva (DRNE).
PACIENTES E MÉTODOS
Foram revistas as pHmetrias prolongadas anormais consecutivas de pacientes que
realizaram o exame na investigação de queixa típica de DRGE (pirose como queixa
principal). Todos haviam realizado endoscopia digestiva alta (EDA) e
esofagomanometria (EMN) previamente. Considerou-se DRE ou DRNE baseado no
achado ou não de esofagite à EDA.
Endoscopia digestiva alta
Realizada de maneira habitual, após jejum de 6 horas, estudando-se
seqüencialmente o esôfago, o estômago e o duodeno. A classificação de SAVARY-
MILLER(21) foi adotada para caracterização macroscópica de esofagite. Para o
diagnóstico endoscópico da hérnia hiatal, considerou-se elevação da linha Z de
2 cm ou mais acima do pinçamento diafragmático, sendo hérnia hiatal não-
volumosa aquelas entre >2 e <5 cm e hérnia hiatal volumosa quando de tamanho >5
cm.
Esofagomanometria
A esofagomanometria foi realizada para localização do limite superior do EIE,
precedendo a pHmetria prolongada. Empregou-se equipamento computadorizado,
cateter de 8 lumens, 4,5 mm de diâmetro, continuamente perfundido com água
destilada a 0,6 mL/min por uma bomba pneumohidráulica de baixa complacência,
técnica previamente descrita(12). O cateter foi passado por uma das narinas até
o estômago. No estudo do EEI foi empregada a técnica da puxada lenta, com
tração do cateter de 1 em 1 cm. O limite superior do EIE foi o valor em
centímetros, imediatamente antes do padrão de registro do corpo esofagiano,
quando o traçado é observado abaixo da linha de base intragástrica.
A hérnia hiatal foi identificada no estudo manométrico quando se obtinha o
aspecto de "duplo esfíncter", sendo o primeiro atribuído à impressão
diafragmática e o segundo ao esfíncter inferior, separadas por uma zona de
platô correspondente ao saco herniário. Naqueles casos de hérnias hiatais
volumosas e estômago intratorácico em que não se obtinha traçado intragástrico
no início do exame, a linha de base intragástrica era arbitrariamente definida
no traçado imediatamente anterior à zona de maior pressão. Nestes casos, a
saída do esfíncter inferior era definida não só pela queda da pressão abaixo da
linha intragástrica, mas também pela ausência de contrações do EIE pós-
relaxamentos e/ou presença de peristalse de corpo.
pHmetria esofagiana prolongada
Os exames foram realizados em ambulatório, por técnica previamente descrita
(11), empregando-se sistema digital portátil (MKII ou MKIII Synectics) e
cateter com eletrodo de antimônio e referência externa, posicionado 5 cm acima
do limite superior do EIE, previamente definido pela esofagomanometria.
Episódio de refluxo foi definido como queda do pH abaixo de 4 por pelo menos 15
segundos. A dieta era regular, evitando-se frutas cítricas e refrigerantes e o
paciente orientado a manter suas atividades normais. Inibidores da bomba de
prótons, antagonistas H2 e procinéticos/antiácidos eram descontinuados 7-10
dias, 48-72 h e 24 h antes do estudo, respectivamente.
Os pacientes registravam, durante o exame, os horários em que assumissem as
posições ereta ou supina, o horário das refeições e os sintomas que porventura
apresentassem.
Após um período mínimo de 22 horas, o equipamento era retirado e processado em
programa de computador (EsopHogram, versão 5.5), onde eram inseridas as
informações do diário e finalmente analisados o gráfico e valores numéricos.
Foram adotados como valores normais os descritos por DeMEESTER et al.(3).
Considerou-se refluxo anormal quando a percentagem de tempo total (%TT) de pH
<4 estivesse acima de 4,5%, ou a percentagem de tempo de pH <4 em posição ereta
(%TE) fosse maior que 7 ou a percentagem do tempo em posição supina (%TS)
estivesse acima de 2,5%.
Migração do sensor de antimônio para o interior do estômago foi identificada
quando o pH freqüentemente caia abaixo de 2 por longos períodos e se elevava em
resposta à alimentação, sendo os exames repetidos.
Análise estatística
A análise estatística utilizou o teste t de student e ANOVA, através do pacote
estatístico SPSS para Windows (versão 10) e o valor de P <0,05 para
significância.
RESULTADOS
Cento e noventa e dois pacientes preencheram os critérios de inclusão, sendo
115 com DRE (68% do sexo masculino, média de idade 49 anos) e 77 com DRNE (66%
do sexo feminino, média de idade 48 anos).
No grupo DRE, 94 (81%) pacientes apresentavam hérnia hiatal não-volumosa,
enquanto que 21 (19%) pacientes apresentavam hérnia hiatal volumosa. No grupo
DRNE, 66 (85%) pacientes apresentavam hérnia hiatal não-volumosa e 11 (15%)
hérnia hiatal volumosa. Não houve diferença significativa entre a prevalência
dos tamanhos das hérnias nos dois grupos (P = 0,2).
Na DRE, o refluxo foi mais intenso em presença de hérnia hiatal volumosa,
expresso pelas maiores %TT e de %TS, quando comparados aos valores observados
nos pacientes com hérnia hiatal não-volumosa (P <0,05 para %TT e %TS e não
significativo para %TE).
Na DRNE, a %TT de pH <4 e a fração supina foram significativamente maiores no
grupo de volumosa hérnia hiatal quando comparados à hérnia hiatal não-volumosa
(P <0,05). Para a percentagem de tempo total na posição ereta, não houve
diferença estatisticamente significativa (P = 0,861).
Nas Tabelas abaixo estão os resultados observados em pacientes com DRE e DRNE.
DISCUSSÃO
Os fatores que determinam o desenvolvimento e a gravidade da esofagite na
doença do refluxo permanecem pouco esclarecidos. Pacientes com doença erosiva
apresentam, mais freqüentemente, incompetência do EIE(4, 5), esvaziamento
gástrico lentificado(14), alterações motoras do esôfago com conseqüente redução
da depuração(6), presença de hérnia hiatal(17) e redução dos mecanismos de
defesa esofágicos(20).
Estudos recentes têm reafirmado a importância do refluxo ácido na
fisiopatologia da DRGE. Na presente série, o percentual de tempo total de pH <4
foi maior no grupo com esofagite erosiva do que na doença não-erosiva. Tem sido
demonstrado que a presença e a gravidade da esofagite se correlacionam
diretamente ao tempo total de exposição esofagiana ao ácido, o que depende da
relação entre o número de episódios de refluxo e o tempo de depuração ácida. O
tempo de exposição ácida é crescente, à medida que se progride da doença não-
erosiva para a doença erosiva e finalmente para o esôfago de Barrett(2, 13,
24). Resultados contraditórios foram encontrados por AVIDAN et al.(1) que,
estudando 644 pacientes com DRGE, encontraram parâmetros de exposição ácida
semelhantes entre os grupos sem esofagite, esofagite leve, esofagite
confluente, esofagite ulcerada e estenose de esôfago. O único fator associado à
severidade da doença mucosa nesse estudo foi a presença de hérnia hiatal, tendo
os autores concluído que esta provavelmente influencia o desenvolvimento de
esofagite, não através da promoção de refluxo ácido, mas por outros mecanismos
diversos.
A hérnia hiatal tem sido identificada como fator importante na promoção de
episódios de refluxo e potencialização da exposição ácida no esôfago, estando
relacionada com maior freqüência à doença erosiva e complicada. O mecanismo
pelo qual a hérnia hiatal se correlaciona à DRGE mais grave, se explicaria em
parte pelo deslocamento cranial do EIE, que resulta na perda do componente
diafragmático e conseqüente redução na pressão basal(9). Estudo recente também
demonstrou que pacientes com hérnia hiatal apresentam maior distensibilidade da
junção esôfago-gástrica com pressão de abertura menor e comprimento em média
23% menor que indivíduos normais, o que explica a maior intensidade de refluxo
observada nestes pacientes(16).
Outro mecanismo descrito em pacientes com hérnia hiatal seria o maior número de
relaxamentos transitórios do EIE em resposta à distensão do fundo gástrico,
quando comparados a pacientes com DRGE sem hérnia e controles(10). Pacientes
com hérnia hiatal também apresentam maior número de episódios de refluxo
durante relaxamentos deglutitivos do EIE, principalmente em situações em que há
redução da pressão basal ou durante o esforço, o que confirma a incompetência
mecânica da junção esôfago-gástrica provocada pela presença da hérnia hiatal
(25).
A lentificação da depuração esofágica também constitui anormalidade
freqüentemente encontrada em pacientes com hérnia hiatal. JONES et al.(8)
compararam o tempo de depuração esofágica em pacientes com DRGE com (n = 19) e
sem (n = 19) hérnia hiatal e controles (n = 9), tendo encontrado maior tempo de
exposição ácida e de depuração esofágica em pacientes com hérnia hiatal (8,5% ±
1,4% e 105 ± 16 segundos) do que naqueles sem hérnia hiatal (4,2% ± 0,9% e 48 ±
8 segundos). Nesse estudo, os autores não encontraram diferença no número de
episódios de refluxo entre os dois grupos, o que reforça a importância da
lentificação da depuração esofágica como fator determinante do maior tempo de
exposição ácida e gravidade da esofagite nos pacientes com hérnia hiatal. Tal
fato seria explicado pelo mecanismo de re-refluxo, ou seja, o material retido
no saco herniário retornaria para o esôfago durante o relaxamento deglutitivo
antes do bolo alimentar atingir o esôfago distal e a quantidade de bicarbonato
deglutida não seria suficiente para tamponar o volume de ácido final,
resultante deste processo(8).
Esta lentificação na depuração esofágica seria mais acentuada em hérnias
volumosas e não redutíveis(23), o que está de acordo com os resultados
encontrados no presente estudo. Na doença erosiva em que é freqüente o refluxo
biposicional, ou seja, ocorrendo tanto em posição ereta, como em posição
supina, a redução dos mecanismos de depuração, principalmente durante a noite
(redução de peristalse, saliva, deglutição), poderiam se associar ao fenômeno
do re-refluxo, havendo sinergismo tanto maior, quanto maior o tamanho da hérnia
hiatal, resultando em aumento na intensidade do refluxo. Na doença não erosiva,
os resultados do presente estudo mostram que a hérnia volumosa aumentou a
intensidade do refluxo apenas na posição supina, o que se refletiu no aumento
do tempo total em que o esôfago esteve com pH abaixo de 4. A doença não-erosiva
cursa com refluxo predominantemente em posição ortostática, uma vez que nesses
pacientes o refluxo ocorre, principalmente, por aumento dos relaxamentos
transitórios do EEI e não são infreqüentes os sintomas dispépticos, sugerindo
defeito de acomodação gástrica(19). O aumento da fração supina na presença de
hérnia hiatal volumosa, sugere que o mecanismo de retardo da depuração
esofágica em presença de hérnia hiatal e que se acentua com o seu tamanho, pode
ter papel preponderante.
Finalmente, é preciso considerar que a DRGE é multifatorial e que, embora a
presença de hérnia hiatal se correlacione à maior exposição ácida, seja mais
prevalente em pacientes com esofagite e nestas, esteja presente na quase
totalidade das esofagites graves ou complicadas, porém não é suficiente para
explicar tais achados como fator isolado. Outros fatores parecem estar
envolvidos tais como redução do reflexo esôfago-salivar, sensibilidade
esofágica ao ácido, alteração motora esofágica, resistência mucosa dentre
outros, que podem contribuir para o desenvolvimento de esofagite(18).
Concluindo, a associação entre maior tempo de exposição ácida e a presença de
hérnias hiatais volumosas, tanto na DRE como na DRNE, deve alertar para a
importância de se promover seu tratamento adequado, evitando assim,
complicações futuras.