Correlação das características do ecodoppler do sistema porta com presença de
alterações endoscópicas secundárias à hipertensão porta em pacientes com
cirrose hepática
ARTIGO ORIGINALORIGINAL ARTICLEINTRODUÇÃO
Em condições normais a circulação porto-hepática é capaz de acomodar grandes
variações do fluxo sangüíneo com pequenas variações da pressão portal.
O sistema venoso portal é um sistema de alto fluxo (1 a 1,5 L/min) e baixas
pressões sangüíneas (5 mm Hg). A hipertensão portal caracteriza-se pelo aumento
crônico da pressão venosa no território porta, secundário à interferência no
fluxo sangüíneo venoso esplâncnico e traduzido, clinicamente, por circulação
colateral visível na parede abdominal, ascite e alterações esôfago-gástricas,
ou seja, varizes esofágicas (VE), varizes gástricas (VG) e gastropatia
congestiva (GC)(3, 12).
Em pacientes cirróticos ocorrem alterações arquiteturais no parênquima do
fígado e funcionais que acarretam aumento da resistência vascular ao fluxo
sangüíneo na veia porta e, conseqüentemente, aumento das pressões do sistema
venoso portal(2).
Estudos sobre a história natural da cirrose hepática estimam uma taxa de
desenvolvimento de varizes de esôfago de 5% ao ano e evolução das varizes de
fino para médio e grosso calibre numa taxa de 10% a 25% ao ano(4). Em 2 anos,
após a detecção de varizes esofágicas, o risco de sangramento varia entre 20% e
30%, com mortalidade de 25% a 50% na primeira semana após o episódio
hemorrágico(9).
A endoscopia digestiva alta (EDA) é o procedimento recomendado para diagnóstico
de varizes esôfago-gástricas e de GC com o objetivo de identificar os pacientes
com maior risco de hemorragia digestiva. Apresenta aplicabilidade, também, na
estratificação prognóstica dos pacientes com cirrose hepática(5) e na
estimativa do risco em procedimentos cirúrgicos, já que a presença de VE é
fator que aumenta a morbidade e a mortalidade(8).
Estudos recentes têm demonstrado correlação entre risco de sangramento das VE e
aumento da resistência ao fluxo sangüíneo diagnosticado pela ultra-sonografia
com Doppler (ecodoppler) do sistema porta(7, 22). Porém, o valor desse método
para predizer a existência de varizes esôfago-gástricas ainda não está
definido. Com a demonstração da exatidão do ecodoppler no diagnóstico de
alterações do fluxo portal e sua correlação com a presença ou não de varizes
esôfago-gástricas, poder-se-iam diminuir as indicações de EDA e assim dispor de
uma alternativa não-invasiva no rastreamento dessas alterações.
O presente estudo teve por objetivo avaliar e correlacionar os parâmetros mais
comuns do ultra-som com Doppler do sistema porta (velocidade de fluxo venoso
portal, diâmetros da veia porta e esplênica, medida longitudinal do baço,
recanalização da veia umbilical, fluxo hepatofugal) com a presença de
alterações endoscópicas secundárias à hipertensão porta em pacientes com
cirrose hepática.
CASUÍSTICA E MÉTODOS
Pacientes
Entre os meses de maio de 2004 e julho de 2005 foram avaliados 304 pacientes em
acompanhamento nos ambulatórios de hepatologia e gastroenterologia do Hospital
de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, com
diagnóstico prévio de cirrose hepática. Desses, 186 foram selecionados, 118
foram excluídos de acordo com os critérios discriminados a seguir e 155
concordaram em participar do estudo. O diagnóstico da doença foi confirmado por
avaliações clínica, laboratorial e ecográfica antes do início do estudo.
Foram excluídos todos os pacientes já submetidos a tratamento endoscópico de
varizes, os com contra-indicação à realização do procedimento endoscópico, os
que não aceitaram participar do estudo e aqueles em que não foi possível a
visualização adequada do espaço porta pelo ultra-som.
Dos 155 que concordaram em participar 150 realizaram a EDA e apenas 133 foram
incluídos na análise final dos dados, visto que 5 não realizaram o ecodoppler
abdominal, em 6 foi diagnosticada trombose de veia porta durante o exame, em 4
visualizou-se lesões expansivas no parênquima hepático sugestivas de
hepatocarcinoma e 2 nos quais não foi possível a adequada visualização do
espaço porta devido à ascite muito volumosa, em 1 caso, e ao excesso de
panículo adiposo no outro.
Todos os que realizaram a EDA foram submetidos a avaliação clínica para
determinar a causa da hepatopatia, a gravidade da doença pela classificação de
Child-Turcotte-Pugh(13) e a história prévia de hemorragia digestiva alta.
Consentimento informado foi assinado pelos pacientes antes da entrada no estudo
cuja aprovação foi realizada pelo Comitê de Ética e Pesquisa em Seres Humanos
do Hospital de Clínicas da UFPR.
Endoscopia digestiva alta
Todos os pacientes foram submetidos a EDA no Serviço de Endoscopia Digestiva do
Hospital de Clínicas da UFPR, realizada pelo mesmo observador, que desconhecia
o resultado do ecodoppler abdominal, com controle dos achados endoscópicos - no
mesmo momento - por um segundo observador do mesmo Serviço. Utilizou-se
endoscópio Olympus EXERA CVL 160, Tokyo, Japão.
O exame foi realizado de acordo com a técnica convencional, avaliando-se a
presença de VE, VG e GC. Foram consideradas VE (Figura_1) os cordões venosos
dilatados, tortuosos, normalmente de coloração azulada, correndo
longitudinalmente na submucosa do esôfago; VG (Figura_2) os cordões venosos
submucosos, em novelos, geralmente com a mucosa de coloração semelhante à
adjacente, comumente observados no fundo gástrico. A GC (Figura_3) foi
caracterizada por congestão da mucosa gástrica, que aparecia difusamente
vermelha, com aspecto em mosaico, algumas vezes com petéquias e sangramento de
pequena monta(19).
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Ultra-sonografia com Doppler
O ecodoppler do sistema venoso portal foi realizado no Serviço de Radiologia do
Hospital de Clínicas da UFPR, com aparelho de ultra-som Medison Sonoace 8000
EX, Seul, Coréia do Sul.
Todos os pacientes foram avaliados pelo mesmo aparelho e pelo mesmo observador,
que desconhecia o resultado da EDA.
Ao ecodoppler foram avaliados a velocidade de fluxo venoso portal, o diâmetro
da veia porta e esplênica, a medida longitudinal do baço, a presença de
recanalização da veia umbilical (diagnosticada quando seu diâmetro é maior que
2 mm e seu fluxo é hepatofugal e de alta velocidade) e a presença de fluxo
hepatofugal (reversão do fluxo da veia porta, em direção contrária ao fígado).
Adotaram-se como parâmetros normais e anormais (compatíveis com hipertensão
portal) aqueles descritos no Quadro_1(15).
Análise estatística
Para a comparação entre a endoscopia digestiva e o ecodoppler calcularam-se,
para cada uma das variáveis, os índices de sensibilidade, especificidade, valor
preditivo positivo, valor preditivo negativo e exatidão. Adicionalmente, foi
calculada a estatística de Kappa. Para todas estas características foram
calculados intervalos de 95% de confiança. Também foi construída a curva ROC
("receiver operating characteristic") para os dois métodos diagnósticos. A área
sob a curva foi usada como índice para avaliar a capacidade do ecodoppler em
discriminar entre os casos "positivos" e "negativos", sendo que áreas maiores
que 0,8 são necessárias para a validação dos testes(14). Na comparação dos
grupos de pacientes com e sem varizes esofágicas, para variáveis dicotômicas,
adotou-se o teste exato de Fisher e, para variáveis quantitativas, adotou-se o
teste t de Student, considerando-se a homogeneidade ou não das variâncias e a
condição de normalidade. Em todos os testes, o nível de significância adotado
foi de 5%.
Foram utilizados os softwares SPSS for Windows Release 10.0.1 Standart Version,
EPI-Info version 3.3.2 e Microsoft Excel 2003, como ferramentas auxiliares na
análise dos dados.
RESULTADOS
Os 150 pacientes estudados foram divididos de acordo com as características
endoscópicas encontradas nos exames. Nesta consideração, avaliaram-se 37
mulheres (média de idade 48,6 ± 16,6 anos) e 113 homens (média de idade 48 ±
11,7 anos). As características descritas na Tabela_1 determinam a homogeneidade
das populações.
Na avaliação da gravidade da doença pela classificação de Child-Pugh-Turcotte,
21 (8 com varizes) dos 150 pacientes, foram classificados como Child C - que
caracteriza doença grave. Sessenta e sete pacientes tinham doença de baixa
gravidade, classificada como Child A (Gráfico_1). Não houve diferença
estatística nos achados endoscópicos, de acordo com a gravidade da cirrose dos
pacientes.
No ultra-som Doppler do sistema porta realizado em 133 pacientes, observou-se
recanalização da veia umbilical em 29,3% e presença de fluxo hepatofugal em
6,4%. O pico de velocidade sistólica da veia porta foi de 20,0 ± 7,64 cm/seg
(variando de 7-70 cm/seg), dos quais 26,5% foram considerados valores anormais.
O diâmetro da veia porta estava alterado em 68,4% dos casos, com média de 12,9
± 2,41 mm (7-18 mm) e o diâmetro da veia esplênica encontrava-se dentro da
normalidade em 45,8% (média 9,1 ± 2,73 mm; 3-16 mm). A verificação do diâmetro
longitudinal do baço demonstrou alteração em 75% dos pacientes (média 14,9 ±
3,14 cm; 8-23,7 cm).
Na seqüência são demonstrados os dados comparativos dos três principais achados
à EDA, ou seja, VE, VG e GC em relação aos parâmetros do ecodoppler.
Na análise da correlação da presença de VE em comparação com os achados do
ecodoppler, observou-se tendência à significância em relação à medida
longitudinal do baço, uma vez que a diferença entre os grupos sem e com varizes
alcançou poder estatístico da ordem P = 0,0653. Todos os demais parâmetros não
apresentaram distribuição significantemente diferente entre pacientes com e sem
esta alteração endoscópica. Para avaliar as propriedades dos parâmetros do
ecodoppler como método diagnóstico, construiu-se uma curva ROC para os dois
métodos diagnósticos. A capacidade de discriminação de VE através da medida
longitudinal do baço apresentou área sob a curva de 0,611, logo inferior a 0,8,
confirmando a baixa qualidade desse parâmetro.
Na verificação das alterações ecográficas nos pacientes com VG, obtiveram-se
dados semelhantes aos encontrados para VE, sendo que se observou diferença
estatística entre os diferentes parâmetros avaliados somente em relação à
medida longitudinal do baço (P = 0,0061). À construção da curva ROC, conforme
demonstrado no Figura_4, obteve-se área sob a curva de 0,742.
Como pode ser observado no Gráfico_2, três parâmetros (diâmetro da veia porta,
diâmetro da veia esplênica e medida longitudinal do baço) se mostraram
estatisticamente significantes na avaliação dos pacientes com GC. Entretanto,
após a construção das curvas ROC, todos se mostraram com baixa capacidade de
discriminação, com áreas sob a curva de 0,612, 0,646 e 0,641, respectivamente.
Quando foram desconsiderados os pacientes com fluxo hepatofugal e com
recanalização da veia umbilical, possíveis fatores de viés na análise, não
houve modificação na precisão dos diferentes parâmetros do ecodoppler na
capacidade de discriminar os pacientes com alterações endoscópicas.
DISCUSSÃO
A hipertensão portal, decorrente do aumento da resistência ao fluxo sangüíneo
hepático nos pacientes com cirrose, é a principal responsável pelas
complicações dessa doença. O aumento da pressão portal resulta na formação de
varizes esôfago-gástricas e retorno de sangue para as veias ázigos e cava
superior(10).
A complicação mais temida das varizes esôfago-gástricas é a hemorragia que
acontece em 20% a 40 % dos pacientes com VE após 2 anos de seguimento(4),
condizente com a encontrada na presente casuística (34%). Assim, a EDA é
realizada em todos os pacientes com diagnóstico de cirrose hepática, com o
objetivo de se identificar a presença de VE e, então, instituir tratamento
profilático da hemorragia.
A relevância do ecodoppler do sistema porta é ser um método não-invasivo de
diagnóstico cada vez mais difundido na prática clínica. Assim, ao se estimar
com precisão a presença de VE, não só diminuiria as indicações dos exames
endoscópicos, como seria uma alternativa não-invasiva de rastreamento de
varizes.
No entanto, esse método de diagnóstico tem certas limitações que precisam ser
consideradas quando da sua solicitação. A técnica não pode ser usada quando há
ascite volumosa, abdome muito globoso ou excesso de meteorismo, porque impede a
adequada visualização do espaço porta(17), razão pela qual dois pacientes foram
excluídos da amostra. Do mesmo modo, a presença de alterações estruturais do
parênquima hepático (por exemplo: tumores) e também da veia porta (por exemplo:
trombose) impossibilitam sua aplicabilidade.
Há controvérsias na literatura quanto à capacidade do ecodoppler e de qual de
seus parâmetros é o melhor na predição de VE(11, 15, 18, 23). Neste estudo o
diâmetro da veia porta, o diâmetro da veia esplênica e o tamanho do baço foram
os únicos parâmetros obtidos pelo ecodoppler que apresentaram médias
significantemente diferentes naqueles pacientes com VE, VG ou GC. Em trabalho
de 2001, realizado com 143 pacientes, o diâmetro da veia porta foi a única
variável independente do ecodoppler, preditora de VE(18). Outro grupo também
identificou o tamanho do baço como uma variável que diferenciou os dois grupos,
apresentando tamanho maior, em média absoluta, naqueles pacientes com VE(20).
No estudo de DRAGONI et al.(6), analisando pacientes co-infectados por vírus da
hepatite C e vírus da imunodeficiência adquirida, o diâmetro da veia porta e a
medida longitudinal do baço foram capazes de predizer VE. O diâmetro da veia
esplênica foi o único dos três parâmetros que não teve descrições - em
trabalhos recentes - , de diferença significativa entre os grupos, ao contrário
do encontrado nesta amostra naqueles pacientes com GC.
Quando avaliada pelas curvas ROC, a precisão dos três parâmetros descritos
anteriormente, nenhum demonstrou alta capacidade de discriminação quanto ao
diagnóstico de VE, VG ou GC nesta casuística.
Outra variável estudada foi o pico de velocidade sistólica da veia porta,
reconhecidamente menor nos pacientes com cirrose hepática em comparação à
população sem hepatopatia, e que cada vez mais tem sido demonstrada como tendo
boa correlação com a presença de VE(1, 16). No entanto, nesta amostra, o pico
de velocidade sistólica na veia porta não apresentou boa sensibilidade e
especificidade para a presença de alterações endoscópicas secundárias à
hipertensão porta nos pacientes cirróticos.
A recanalização da veia umbilical também não demonstrou exatidão em estimar VE,
VG ou GC, talvez, porque, ao contrário do descrito em outros estudos nos quais
se identificou a presença da recanalização da veia umbilical em até 42% dos
pacientes com VE(11), apenas 29% dos pacientes desta amostra apresentaram essa
característica.
O fluxo normal na veia porta e em seus ramos intra-hepáticos é relativamente
uniforme e direcionado para o fígado (hepatopetal). Na hipertensão há
alterações nos padrões de fluxo, especialmente na veia porta e veias hepáticas.
Entre estas está a reversão do fluxo, conhecido como fluxo hepatofugal que,
quando presente, é patognomônico da hipertensão portal(21). Nesta amostra a
presença deste padrão de fluxo vascular não acarretou alterações na capacidade
discriminatória dos testes aplicados.
Para finalizar, a baixa capacidade do ecodoppler em estimar a presença de VE,
VG e GC foi confirmada pela curva ROC, cuja maior área foi a da medida
longitudinal do baço (0,742) na discriminação de VG, ainda assim, menor que 0,8
(14).
CONCLUSÃO
Não houve correlação das variáveis mais comuns do ultra-som com Doppler do
sistema porta com a presença de VE, VG ou GC diagnosticadas na EDA, não
podendo, ainda, este método substituí-la para diagnóstico das alterações
endoscópicas secundárias à hipertensão porta.