A ética, a humanização e a saúde da família
TRABALHOS ENCOMENDADOS
A ética, a humanização e a saúde da família
Paulo Antônio de Carvalho FortesI; Cleide de Lavieri MartinsII
IMédico. Professor Livre Docente Associado da Faculdade de Saúde Pública USP
IIEnfermeira. Professor Doutor da Faculdade de Saúde Pública USP
Está se tornando um consenso que é necessário humanizar a assistência à saúde
em nosso país.Humanizar significa reconhecer as pessoas, que buscam nos
serviços de saúde a resolução de suas necessidades de saúde, como sujeitos de
direitos. Humanizar é observar cada pessoa em sua individualidade, em suas
necessidades específicas, ampliando as possibilidades para que possa exercem
sua autonomia. Qualquer pessoa, independente de sua idade, tendo condições
intelectuais e psicológicas para apreciar a natureza e as conseqüências de um
ato ou proposta de assistência à sua saúde, deve ter oportunidade de tomar
decisões sobre questões relacionadas à sua saúde, ou seja, poder agir enquanto
uma pessoa autônoma.
Autonomia se relaciona com tomada de decisão. Por pessoa autônoma compreende-se
aquela que tem condições para deliberar, para decidir entre as alternativas que
lhe são apresentadas, podendo atuar conforme a escolha por ela feita.
Por isso, consideramos que, para a modificação expressiva do modelo
assistencial e a garantia da humanização das relações entre os componentes da
equipe de Saúde da Família, é preciso que esta esteja imbuída quanto ao
respeito à autonomia dos usuários, que devem ser estimulados a compartilhar das
decisões que digam respeito à sua pessoa, à sua família, à sua comunidade. As
decisões devem ser livres e esclarecidas, fundamentadas em adequada e
compreendida informação, para que possam aceitar ou recusar o que lhes é
proposto.
A transformação do modelo assistencial e a humanização do atendimento requerem
que seja garantido odireito à informação do usuário. A informação é o elemento
vital para que o usuário possa tomar decisões. Aqueles que atuam nas equipes de
Saúde da Família, quer sejam os médicos e enfermeiros, assim como outros
profissionais de saúde incorporados, como os auxiliares de enfermagem e os
agentes comunitários, devem estar cônscios da responsabilidade individual de
esclarecer os usuários sobre questões que lhes são mais afeitas, assim como
cabe aos gestores dos Programas criarem condições para o estabelecimento de uma
cultura institucional de informação e comunicação que leve em conta as
condições sócio-culturais de cada comunidade atendida.
As informações fornecidas não necessitam ser exaustivas ou apresentadas em
linguajar técnico-científico. Basta que elas sejamsimples, aproximativas,
inteligíveis, leais e respeitosas, ou seja, fornecidas dentro de padrões
acessíveis à compreensão intelectual e cultural do usuário.
É preciso ainda se evitarposturas paternalistas, que em nome de levar
benefícios às pessoas, impedem que elas tomem decisões autônomas. Entendemos o
paternalismo como sendo a interferência com a liberdade de um indivíduo
eticamente capacitado para tomada de decisões, mediante uma ação beneficente
justificada por razões referidas exclusivamente ao bem estar, às necessidades
da pessoa que está sendo coagida, e não por interesses de terceiros, do próprio
profissional de saúde ou mesmo interesses da sociedade.
Aceita-se eticamente que se possa exercer uma ação persuasiva ou propositiva,
mas não é válido que ocorram atitudes coercitivas ou manipuladoras de fatos ou
de dados. Persuasão, entendida como a tentativa de induzir alguém através de
apelos à razão para que livremente aceite crenças, atitudes, valores, intenções
ou ações advogadas pela pessoa que persuade. Já a manipulação é a tentativa de
fazer com que a pessoa realize o que o manipulador pretende, desconhecendo o
que ele intenta, fazendo com que a pessoa perca o controle de seus atos.
Cabe ressaltar ainda alguns princípios éticos a serem observados com atenção
nas atividades do Programa: aprivacidade e a confidencialidade das informações.
A privacidade é um princípio derivado da autonomia, e engloba a intimidade, a
vida privada, a honra das pessoas, significando que são os próprios indivíduos
que têm direito de decidir que suas informações pessoais sejam mantidas sob seu
exclusivo controle, como têm direito de comunicar a quem, quando, onde e em que
condições as informações pessoais devam ser reveladas. Do direito á privacidade
do usuário deriva o dever da manutenção do segredo por todos elementos da
equipe, lembrando que é sigiloso não somente as informações reveladas
confidencialmente, mas são todas aquelas que a equipe de saúde descobre no
exercício de sua atividade, mesmo havendo desconhecimento do usuário.
Assim, o dever de manter o segredo das informações constitui-se em obrigação
ética dos profissionais, dos técnicos, dos auxiliares, do corpo técnico-
administrativo e dos agentes comunitários.
Estão no âmbito do segredo, tudo aquilo que se tem acesso e se compreende
através das informações advindas dos contatos profissionais com os usuários, na
anamnese clínica, na entrevista de enfermagem, no exame físico, na realização
de exames laboratoriais ou radiológicos, assimcomo as informações procedentes
das visitas domiciliares.
Os serviços de estatística, de guarda de arquivos ou os demais sistemas de
informações devem ser cuidados para a observação da confidencialidade das
informações. Os administradores das unidades devem estar atentos aos
encaminhamentos de informações ou cópias de prontuários para outros
estabelecimentos ou outros profissionais, devendo se orientar pelo
consentimento prévio do paciente ou de seu responsável, à exceção de fatos
cobertos pelo dever legal.
O trabalho emequipe multiprofissional é necessário e a troca de informações é
fundamental para o desenvolvimento de um trabalho de qualidade na assistência
ao indivíduo na sua totalidade. Porém, as informações devem ser limitadas
àquelas que cada elemento da equipe necessite para realizar suas atividades em
benefício do paciente.
OAgente Comunitário de Saúde possui uma situação singular na equipe de saúde da
família, uma vez que obrigatoriamente deve residir na área de atuação da
equipe, o que faz com que viva o cotidiano da comunidade com maior intensidade
que os outros membros da equipe. Ao exercer a função de elo de ligação entre a
equipe e a comunidade, um maior cuidado é necessário para discernir quais as
informações ele deve compartilhar com o restante da equipe, que são relevantes
para gerar benefícios para a comunidade e para acionar ou orientar o trabalho
da equipe.
Ainda, ao operacionalizar o trabalho da equipe de saúde da família, cabe
considerar a própria privacidade do agente, ou seja, como preservar sua
privacidade enquanto morador de uma determinada comunidade.
Enfim, cremos que o norte da Saúde da Família deva ser dado pelos referenciais
éticosda justiça, da solidariedade e da busca daequidade, compreendendo-se esta
como o tratamento de cada pessoa humana segundo suas necessidades de saúde e
procurando diminuir as desigualdades existentes em nosso país.
Ações descentralizadoras, que redistribuam o poder decisório, aproximando-o dos
indivíduos diretamente interessados nas conseqüências das ações empreendidas
pelos serviços de saúde, facilitam aparticipação da comunidade nas decisões a
serem aí tomadas, pois a análise das condições de saúde é feita a partir da
situação local.
Partilhar das decisões é um caminho para implementar o princípio ético da
autonomia dos indivíduos e da coletividade. A participação deve ser o eixo
político das políticas sociais, e não pode ser vista como dádiva dos
administradores ou governantes temporários, mas sim também observada pela noção
da ética da responsabilidade. Se, nos últimos tempos, em vários países, a
conquista legal afirma o direito do cidadão à saúde e o dever do Estado em
garantir esse direito, o princípio da responsabilidade também cria para o
cidadão uma obrigação de natureza ética de participar na tomada de decisões de
natureza pública.
A presença dos usuários nas decisões do aparelho de Estado, exercendo o
controle social, constitui um dos modos mais eficazes para garantir a
implementação de medidas que possamefetivar a humanização dos serviços de
saúde, evitando que os agentes do poder público, mesmo que motivados pelo
princípio da beneficência, de fazer o bem às pessoas com quem eles
profissionalmente se relacionam, terminem na prática assumindocondutas
paternalistas e autoritárias, contrárias à vontade autônoma das pessoas ou das
comunidades.
Finalizando, cabe salientar que, em nosso modo de ver, a Saúde da Família pode
ser um dos instrumentos eficazes para se buscar a equidade, compreendida, como
propõe a UNICEF (1998): "prover bens e serviços, de modo diferenciado, para
atender às distintas necessidades dos vários grupos populacionais, tendo em
vista a redução das desigualdades de acesso".