Explorando a "fotovoz" em um estudo etnográfico: uma estratégia de coleta de
dados
PESQUISA
Explorando a "fotovoz" em um estudo etnográfico: uma estratégia de coleta de
dados
Exploring the photovoice in an ethnographic research: a strategy for data
collection
Explorando la "fotovoz" en un estudio etnográfico: una estrategia de colecta de
datos
Marta Maria MelleiroI; Dulce Maria Rosa GualdaII
IProfessora Doutora do Departamento de Orientação Profissional da Escola de
Enfermagem da USP. melleiro@usp.br
IIProfessora Associada do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e
Psiquiátrica da Escola de Enfermagem da USP
1. INTRODUÇÃO
Não existem fotografias que não sejam portadoras de um conteúdo
humano e conseqüentemente, que não sejam antropológicas à sua
maneira.
Toda fotografia é um olhar sobre o mundo, levado pela
intencionalidade de uma pessoa, que destina sua mensagem visível a um
outro olhar, procurando dar significação a este mundo.
[Ethienne Samain]
O emprego de recursos visuais nas pesquisas científicas, sobretudo nos espaços
socioculturais, tornou-se mais sistemática, nas últimas décadas, devido a
possibilidade de uma maior participação dos sujeitos no processo investigativo.
Os pioneiros na aplicação desses recursos em pesquisas foram Margaret Mead e
Gregory Batenson, os quais na década de 30, elaboraram um trabalho sem
precedentes na história das ciências sociais, cujo objetivo foi entender, por
meio do recurso fotográfico, o comportamento dos balineses(1). Para tanto,
utilizaram mais de seis mil metros de filme e vinte e cinco mil fotografias,
culminando no livro intitulado Balinese Character: a photographic analysis.
Essa obra, publicada em 1942, revolucionou as técnicas de coleta de dados,
tendo consolidado a fotografia como importante instrumento para as pesquisas
sociais.
Na década de 70, a utilização do recurso fotográfico foi preconizado como um
método de coleta de dados, devido ao seu poder para o registro de material
cultural de interação social e, nas entrevistas etnográficas, como uma
ferramenta para inspirar e estimular a discussão(2).
Nos últimos anos, tem aumentado o número de trabalhos voltados para a análise
social da imagem e de seus aspectos cognitivos e que buscam avaliar a
importância das imagens na vida dos indivíduos e dos grupos sociais(3). No
entanto, existem enfoques diferenciados da utilização do recurso fotográfico
nesses estudos; os trabalhos históricos lançam mão de fotografias já tiradas,
os de ciências políticas têm trabalhado com montagens e supressões de
personagens e posições nas fotografias, enquanto que os estudos antropológicos
e sociológicos lidam com a fotografia desde a produção(4).
O estudo da imagem é fundamental para o entendimento dos múltiplos pontos de
vista que os homens constroem a respeito de si mesmos e dos outros, de seus
comportamentos, seus pensamentos, seus sentimentos e suas emoções em diferentes
experiências de tempo e espaço. Trata-se de tomar a imagem com objeto,
procurando compreender o lugar dos ícones como parte constitutiva dos sistemas
simbólicos, estendendo a eles as mesmas preocupações teóricas e metodológicas
presentes no estudo das representações sociais(5).
Todavia, o uso abrangente dos métodos visuais não é uma panacéia para todos os
problemas etnográficos e nem o ponto de partida para o início das descobertas
etnográficas. Esses métodos podem mostrar as tendências etnográficas,
permitindo que os olhos façam os trabalhos que muitas vezes era realizado pela
linguagem escrita nos estudos etnográficos. É necessário lembrar que quando se
faz um trabalho de campo, os etnógrafos devem empenhar todos os seus sentidos,
sendo a visão um deles(6).
A pesquisa etnográfica tem mostrado como a compreensão da realidade é também
composta por sensações e sentimentos. Assim como na antropologia, a fotografia
tem um observador participante que escava detalhes e fareja com seu olhar o
alvo e o objeto de suas lentes e de sua interpretação. Nessa linha, o valor da
câmara como um instrumento etnográfico é similar ao gravador de áudio: a câmara
fornece um traço preciso dos eventos que deixam uma grande liberdade para a
interpretação analítica(1).
No entanto, para a etnografia, a fotografia, por si só, não transmite
informações; é por meio das análises, que os etnógrafos são capazes de realizar
os registros acerca dos indivíduos, dos lugares e das atividades.
As descrições etnográficas que incluem fotografias, necessariamente, devem
empregar descrições por escrito. A proposta de interpretação de fotografias é
um ato de descrever um olhar persuasivo. Enquanto as imagens não podem falar
por elas mesmas, estas demandam que alguém fale por elas(7,8).
As dimensões comunicativas e interpretativas das representações visuais são
polissêmicas, ou seja, as fotografias aparentemente produzem um testemunho de
um momento fugaz. e parecem constituir uma mensagem sem regras(9). Entretanto,
algumas vezes, as fotos podem conter informações que não foram mencionadas
pelos etnógrafos, assim, elas podem ter um excesso de significado sobre o qual
o etnógrafo não tem controle.
Nessa perspectiva, é que acreditamos que o pesquisador deva conhecer,
minuciosamente, o contexto cultural estudado, uma vez que poderá detectar fatos
ou situações não apreendidas pelo recurso fotográfico ou não referidas ou
descritas parcialmente pelos participantes do estudo.
A concepção de interpretação da imagem não fornece uma autoridade para aquele
que está vendo. Por outro lado, marca um grande repertório pela produção
fotográfica, mas nada menos essencial que a noção do contexto. A partir do
momento em que a imagem foi gravada e colocada em público, ela está aberta a
todo tipo de interpretação, adquirindo significado do seu contexto como
qualquer outro objeto cultural(10).
Há dois grandes tipos de concepção para o recurso fotográfico: a foto como
espelho do mundo e a foto como operação de codificação das aparências e que têm
como denominador comum a consideração da imagem fotográfica como portadora de
um valor absoluto, ou pelo menos geral, seja por semelhança, seja por convenção
(11).
A fotografia contém a vantagem de uma comunicação inicial direta, que
ultrapassa códigos dos diferentes tipos de discurso, nas várias culturas(4).
As imagens dialogam com a realidade e com a representação dessa realidade as
imagens também são observações estéticas e documentais da realidade, carregando
significados transparentes de emoção, afetividade e religiosidade. O processo
de percepção ao fotografar assemelha-se ao observador na antropologia perceber
o outro, suas diferenças e registrá-las é a principal tarefa da fotografia(1).
Acreditando nessas premissas e desenvolvendo atividades de ensino e pesquisa na
área de gerenciamento de serviços de enfermagem materno-infantil, é que
descreveremos a seguir a experiência em empregar o recurso fotográfico em um
estudo etnográfico. Assim, foram convidadas a participar desse estudo,
gestantes-usuárias de um serviço de saúde, onde as mesmas tiveram a
oportunidade de registrar, por meio do recurso fotográfico, as suas
expectativas e os seus sentimentos com relação a uma instituição hospitalar.
Dessa forma, pudemos aliar a linguagem visual com a verbal e perceber a relação
de complementariedade existente entre ambas.
2. RELATANDO A EXPERIÊNCIA DAS GESTANTES-FOTÓGRAFAS EM UM HOSPITAL DE ENSINO
O Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (HU-USP) desenvolve
atividades assistenciais e educativas, durante o ciclo gravídico-puerperal, às
gestantes de sua área de abrangência. Dentre as ações e programas
desenvolvidos, destaca-se uma visita oferecida às gestantes e seus
acompanhantes, por volta da 28ª. semana de gestação, visando apresentar a
instituição à essas mulheres e familiares, bem como iniciar o seu acolhimento.
Durante essas visitas pudemos perceber os interesses e as inquietações dessas
mulheres com relação ao contexto hospitalar e, dessa forma, resolvemos
desenvolver um trabalho de cunho etnográfico, lançando mão da "fotovoz", com a
finalidade de compreender a percepção dessas usuárias com relação ao local onde
dariam à luz à seus filhos. Para tanto, um projeto de pesquisa foi encaminhado
e aprovado pela Câmara de Pesquisa e pelo Comitê de Ética em Pesquisa do HU-
USP.
As gestantes que participaram da referida visita, no período de julho a agosto
de 2002, foram esclarecidas do objetivo do trabalho e, posteriormente,
convidadas a fotografar o contexto hospitalar, sendo fornecidas as câmeras
fotográficas, munidas de filmes de 36 poses.
A idéia central era que essas gestantes captassem, na sua própria perspectiva,
os aspectos que expressassem as suas idiossincrasias, não havendo a preocupação
com a qualidade técnica das fotografias e nem com o seu caráter ilustrativo,
outrossim com a identificação do foco para o qual elas direcionariam suas
lentes, sobretudo com o intuito de responder as seguintes indagações: Por quê
as gestantes fotografariam determinados cenários, pessoas e objetos? Qual o
significado atribuído a esses temas? Qual o papel do simbolismo visual na
construção da realidade?
Assim, as participantes do estudo seis gestantes - produziram as fotografias,
não havendo interesse em apresentar-lhes o cenário cultural da pesquisa, sob o
prisma de outras pessoas. Após a revelação das fotografias foram agendadas
entrevistas, de acordo com a disponibilidade de cada uma delas, tendo o
conteúdo fotográfico subsidiado e direcionado as suas narrativas. Durante o
processo de elaboração das narrativas, as pesquisadoras, também, recorriam ao
material fotográfico, o qual esclarecia condições relatadas pelas gestantes.
Das narrativas foram extraídas oito categorias, das quais emergiram três temas
culturais, onde as gestantes, a princípio, resgataram e classificaram, por meio
de sua memória autobiográfica, as suas experiências e as suas histórias de
vida, na condição de ratificar os resultados dos eventos significativos
considerados positivos ou de fazer uma releitura dos eventos tidos como
negativos. A partir dessa concepção, prosseguiam vislumbrando o processo de
nascimento em todas as suas dimensões, utilizando, para o alcance dessa
finalidade, o olhar fotográfico, que ora permitiu que fatos fossem registrados
e absorvidos e ora evitou que suas lentes captassem aquilo que seria difícil
elaborar naquele momento(12).
A fotografia possui três grandes funções: documental - reflexo, testemunho e
representação da realidade, artística - busca criar emoções e textual - meio de
transmitir ideologias e valores(13).
A inserção do recurso fotográfico, neste estudo, foi considerada tanto
documental quanto textual, uma vez que, concomitantemente, teve o caráter de
testemunhar uma dada realidade e de transmitir as crenças e os valores das
gestantes.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conteúdo extraído do material fotográfico produzido pelas gestantes revelou,
durante as entrevistas, as suas idiossincrasias e permitiu a compreensão da sua
experiência com relação à interação com o ambiente hospitalar, especificamente,
com a área materno-infantil. No decorrer das narrativas fica explícito a
necessidade que essas mulheres têm de encontrar, no cenário deste estudo, um
ambiente receptivo, que as acolha e as torne, verdadeiramente, protagonistas do
processo de nascimento.
Ler imagens significa classificar seus significados, é necessário detalhar
esses sinais por meio de outras fontes: o trajeto do olhar, as impressões
visuais globais, as rupturas ou contradições entre o que é percebido e o que é
compreendido(14).
Considerando que as imagens não devem ser vistas como um mero registro da
realidade e entendendo que as participantes deste estudo carregam crenças,
valores que absorvem de sua cultura e de sua sociedade, acredito que a
linguagem visual possui a autonomia de registrar e, ainda, de transmitir as
emoções deste grupo cultural. Nesse sentido, as fotos realizadas por elas
expressaram os seus interesses, as suas idiossincrasias e os seus sentimentos
pelo objeto fotografado.
A leitura do conteúdo extraído desse material fotográfico, a partir da ótica
das gestantes, contribuiu, portanto, para a compreensão do comportamento desse
grupo cultural e para a reflexão sobre o que é possível inferir da experiência
com as situações, objetos e relações pessoais, revelando, assim aspectos
relevantes a serem analisados e discutidos pelos profissionais de saúde
envolvidos na assistência à mulher.
Assim, a "fotovoz" vem abrindo espaço para novas metodologias e discutindo o
quanto a narrativa da visualidade fornece muito mais que dados: ela é parte
integrante do nosso entendimento. Entretanto, em revisão de literatura,
observa-se que em nosso meio a utilização de métodos visuais em pesquisas é,
ainda, incipiente(15).
Nesse contexto, acreditamos que é possível ampliar ainda mais o alcance da
antropologia visual, salientando-se que ela pode contribuir para a
identificação e o reconhecimento de sentimentos e expressões e, como afirma o
antropólogo Geertz, dentro de um contexto próprio para que esses gestos sejam
melhor interpretados(16).
Torna-se imperativo, face ao exposto, a necessidade de despertarmos para a
relevância de não só tornarmo-nos consumidores, mas também produtores de
pesquisas que envolvam a inserção de novas metodologias, ampliando, assim, o
fornecimento de subsídios para a adequação de intervenções que melhorem a
qualidade de vida daqueles que assistimos.