A representação social da autonomia profissional do enfermeiro na Saúde Pública
PESQUISA
A representação social da autonomia profissional do enfermeiro na Saúde Pública
The social representation of nurse's professional autonomy in Public Health
La representación social de la autonomia profesional del enfermero en la Salud
Publica
Antônio Marcos Tosoli GomesI; Denize Cristina de OliveiraII
IEnfermeiro. Mestre em Enfermagem pela Faculdade de Enfermagem da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Doutorando pela Escola de Enfermagem Anna Nery.
Professor Assistente do Departamento de Enfermagem da Universidade Gama Filho,
mtosolil@ugf.br
IIProfessora Titular de pesquisa do Departamento de Fundamentos de Enfermagem
da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Orientadora do Trabalho
1. INTRODUÇÃO/OBJETIVOS
A enfermagem vive, nesses últimos tempos, conflitos históricos e momentos
desafiadores. Os conflitos históricos possuem suas raízes ainda no cuidar
realizado primordialmente pela família e mais especificamente pela mãe, como
forma direta de manutenção da vida individual e coletiva e perpassa pelos
momentos históricos definidores dos paradigmas de nossa civilização. O início
da era cristã, por exemplo, instala uma nova concepção de cuidados na profissão
que nega a inter-relação corpo-espírito, dando supremacia ao espírito e
conferindo ao corpo um statusinferior. A enfermagem é, então, exercida por
mulheres consagradas que adotavam a submissão às ordens como atitude de valor e
objetivavam mais a salvação da alma que a cura do corpo(1).
A partir do século passado, surgem na enfermagem diversas teorias que conferem
uma personalização e um rosto intelectual à profissão. Contudo, apesar dessas
teorias conferirem um arcabouço interno de sustentação à enfermagem, não a
insere numa relação de mercado, nem mostra sua praticidade como sendo
imprescindível à sociedade. Essas teorias conceituam o homem num nível de
generalização muito grande, tornando-o abstrato e a-histórico, ao mesmo tempo
em que não consideram as contradições do processo de trabalho na enfermagem,
tornando-se, portanto, acríticas(2).
Outros aspectos a serem abordados são o processo de formação do enfermeiro e o
modo como estes se relacionam com o poder. O estudante de enfermagem é
submetido a um processo de docilização e de dominação através da normalização,
do controle minucioso do tempo, da padronização das ações e técnicas, do
perfeccionismo e do olhar hierárquico(3). Como conseqüência, os profissionais
estão sempre controlando a assiduidade, a pontualidade, a lentidão na execução
das tarefas de sua equipe e estabelecem um modo de relacionamento com a equipe
de saúde que gera mais sujeição que modos criativos de resolução de conflitos
e/ou justiça.
Um último item a ser destacado como conflito histórico, o eixo científico no
qual a enfermagem se insere merece ser mencionado. A prática de enfermagem é
exercida, em sua maioria, no âmbito hospitalar e possui suas bases racionais na
biologia, na medicina e na estatística. Por isso, a profissão se apropria de
conhecimentos científicos, objetivos e quantitativos a fim de produzir uma
atividade específica numa determinada instituição e contexto e o uso efetivo
dessas áreas de conhecimento possibilitou a execução de procedimentos cada vez
mais complexos em seu dia-a-dia. A enfermagem se encontra, portanto, integrada
às ciências biomédicas e a problemática se estabelece entre essa ciência e as
bases teóricas da enfermagem, que se alimentam também das ciências sociais e
humanas. Por conseguinte, o cotidiano do profissional sobrevive à tensão entre
o biológico e o social, entre o biomédico e as ciências sociais e humanas(4).
Por outro lado, a enfermagem enfrenta os desafios que a atualidade impõe. Tanto
a Classificação Internacional da Prática de Enfermagem (CIPE) proposta pelo
Conselho Internacional dos Enfermeiros (ICN), quanto o desenvolvimento da
consulta de enfermagem dentro dos Programas Básicos de Assistência à Saúde na
rede básica propõem modelos diferenciados de ações/estratégias para os
profissionais enfermeiros.
Em seu trabalho dentro da Saúde Pública, o enfermeiro tem encontrado um amplo
espaço de desenvolvimento para sua atuação diária, quer seja dentro da consulta
de enfermagem através do atendimento direto à clientela, com o suporte dos
exames laboratoriais de rotina e da prescrição medicamentosa padronizada, ou
através da educação em saúde, tanto desenvolvida em nível individual, também na
consulta de enfermagem, ou em nível coletivo, na comunidade onde o profissional
está inserido.
Em função disso, considerando as dificuldades/dilemas históricos e os desafios
atuais enfrentadas pela profissão para sua afirmação dentre a área da saúde,
consideramos importante ser definido como objeto deste estudo a autonomia
profissional do enfermeiro que atua no contexto da saúde pública. Essa
autonomia profissional é analisada levando-se em consideração a realidade
sócio-cultural na qual esta prática se insere, as características próprias da
enfermagem enquanto campo de conhecimento e prática cotidiana e o contexto da
Saúde Pública.
O objetivo geral definido foi caracterizar as representações sociais
construídas por enfermeiros acerca da autonomia profissional no contexto da
Saúde Pública em um município do interior do estado do Rio de Janeiro.
Como objetivos específicos foram definidos:
1) Descrever e analisar as representações sociais do papel profissional dos
enfermeiros de saúde pública;
2) Analisar o binômio autonomia-dependência profissional dos enfermeiros nas
atividades de atenção direta à clientela na rede básica de saúde.
2. METODOLOGIA
Definiu-se como referencial teórico-metodológico deste trabalho a Teoria das
Representações Sociais(5), no contexto da Psicologia Social. Essas
representações estão presentes na cultura, nos processos de comunicação e nas
práticas sociais, sendo, portanto, difusos, multifacetados e em constante
movimento e interação social(6). Assim, as representações sociais possuem como
materiais fundamentais de estudo as opiniões verbalizadas, as atitudes e os
julgamentos individuais e coletivos, fazendo parte de um olhar consensual sobre
a realidade(7).
As representações sociais podem ser consideradas como "ciências coletivas sui
generis, destinadas à interpretação e elaboração do real"(5) ou ainda como "uma
forma de conhecimento socialmente elaborada e partilhada, tendo uma orientação
prática e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto
social"(8).
Torna-se importante não apenas as considerações teóricas acerca das
representações sociais, mas sua importância na concepção do real e na forma
como influencia o se relacionar com situações e experiências reais. Em função
disto, alguns autores(9) elaboram o conceito de representação social como sendo
o produto e o processo de uma atividade mental, através da qual um indivíduo ou
um grupo reconstitui a realidade com a qual ele se confronta e para a qual ele
atribui um significado específico.
Como sujeitos, foram destacados 30 enfermeiros inseridos na rede básica de
atendimento à saúde de um município do interior do Estado do Rio de Janeiro,
que desenvolviam a consulta de enfermagem dentro da programação em saúde,
implantada no sistema local de saúde. Os critérios de inclusão estabelecidos
foram: lotação profissional nos quadros de saúde pública do município e
desempenho de atenção direta à população através da consulta de enfermagem no
contexto da programação em saúde.
Os dados foram coletados através de entrevista em profundidade, que duraram, em
média, 60 minutos. Os métodos interrogativos objetivam recolher uma expressão
(icônica ou verbal) dos indivíduos sobre o objeto de representação(9). A
entrevista foi realizada com o auxílio de um roteiro estruturado a partir de
entrevistas exploratórias anteriormente realizadas.
A análise dos dados baseou-se na análise de conteúdo que pode ser definida como
"um conjunto de técnicas de análise de comunicação"(10). Logo, é um método
empírico, dependente do tipo de fala alcançado e da própria interpretação do
pesquisador. Mais especificamente foi utilizada a análise lexical mecanizada
pelo software Alceste.
O software Alceste foi criado na França por Reinert em 1990 para utilização no
sistema operacional Windowse permite realizar análise de conteúdo por meio de
técnicas quali-quantitativas de tratamento de dados textuais e se propõe a
identificar a informação essencial presente em um texto. Desta maneira, o
Alceste recorre à análise das co-ocorrências das palavras nos enunciados que
constituem o texto, para organizar e sumariar informações consideradas mais
relevantes e possui como referência, em sua base metodológica, a abordagem
conceitual e dos "mundos lexicais"(11-13).
Foram obedecidas, nesta pesquisa, as orientações constantes da Resolução 196/96
do Ministério da Saúde, tanto no que concerne aos aspectos éticos com a
instituição que autorizou a realização da pesquisa, quanto com os sujeitos que
cederam as entrevistas após leitura e assinatura do Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido. Foram respeitados também os imperativos relativos ao
conforto, beneficência e não-maleficência da pesquisa com relação aos sujeitos.
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os resultados observados na análise Alceste das 30 entrevistas referidas,
revelaram a distribuição dos conteúdos em 5 classes (categorias discursivas).
Essas classes (anexo_1) apontam para os seguintes termos: classe 1: conflitos
no perfil profissional universidade e mercado de trabalho; classe 2: limites da
prática profissional nos programas de saúde; classe 3: contornos e
especificação do papel próprio do enfermeiro; classe 4: construção e
organização do espaço profissional; e classe 5: auto e hetero imagem
profissional.
Visualizando o dendograma (anexo_1), percebe-se que a partir do conteúdo total
analisado, o software dividiu o material em dois grandes blocos, ocorrendo
posteriormente três grandes novas divisões e, finalmente, duas últimas. Assim,
as classes 1 e 4 possuem significados comuns que as diferenciam das classes 2,
5 e 3, uma vez que são originadas dos dois grandes grupos resultantes da
primeira segmentação das Unidades de Contexto Elementar (UCE), que é a
denominação dada, pelo software, às falas dos entrevistados consideradas mais
importantes para a análise. Ao mesmo tempo, possuem sentidos e idéias que as
separam em classes distintas, uma vez que se dividiram em etapas subseqüentes
da classificação hierárquica. Processo similar ocorreu com as classes 2, 5 e 3,
sendo que, neste caso, a classe 3 apresenta um sentido de oposição forte em
relação ao bloco de significado que gerou tanto a classe 2 quanto a 5.
O Alceste, no processo de análise, identificou 30 entrevistas a serem
trabalhadas, o que correspondeu ao número de entrevistas incluídas no corpus de
análise. O software dividiu o corpus em 3.141 UCE, constituindo 100% do
material disponibilizado. Contudo, o programa classificou para análise 2.243
UCE, representando 71.41% de aproveitamento do material exposto à análise.
Deste quantitativo total, as UCE ficaram divididas entre as classes da seguinte
maneira: classe 1: 337 UCE, representando 15,03%; classe 2: 409 UCE,
significando 18,24%; classe 3: 483 UCE, expressando 21,53%; classe 4: 507 UCE,
contabilizando 22,60%; e classe 5: 507 UCE, representando 22,60%.
As classes 1 e 4 relacionam-se à formação e a absorção profissional do
enfermeiro, sendo que a classe 1 apresenta a dialética entre universidade-
mercado do trabalho, pois aquela forma os profissionais com um perfil (teórico-
crítico) e o mercado requer a absorção dos mesmos com características
diferentes (tecnológico), sendo a residência em enfermagem um ritual de
passagem amenizante entre uma realidade e outra. A classe apresenta ainda
aspectos da relação teoria-prática no cotidiano profissional. A classe 4
apresenta a construção e manutenção do espaço profissional da enfermagem no
local de estudo em sua perspectiva histórica, considerando a importância de
determinados profissionais, ao mesmo tempo em que, os sujeitos referem
corporificar esse espaço profissional na consulta de enfermagem. A classe
ressalta também a importância dos órgãos e associações de classe no dia-a-dia
profissional e no processo de conquista do espaço profissional.
O software Alceste, ao construir suas classes, cruza diversas variáveis que são
importantes levar em consideração ao apresentar os dados ou mesmo ao analisá-
los. Na formação, por exemplo, da classe 1 apareceram, em sua constituição, as
falas dos sujeitos com as seguintes características: tempo de formado entre 9 a
15 anos, idade compreendida entre 25-30 anos, sexo feminino, um grupo com menos
de um ano e outro com mais de 10 anos de experiência na Saúde Pública e as UCE
foram retiradas das entrevistas 01, 03, 05, 06, 09, 18 e 20.
Na constituição da classe 4 foram importantes as seguintes características dos
sujeitos: mais de 9 anos de formado, tendo destaque especial alguns sujeitos
que possuem mais de 15 anos; todos os sujeitos possuem mais de 30 anos de
idade, dividido em dois grupos, uma parte de sujeitos entre 35-40 anos de idade
e outro com mais de 40 anos, mais de 10 anos de experiência de trabalho na
Saúde Pública; constituída pelos indivíduos: 06, 10, 11, 14, 17, 20 e 29.
As classes 2, 3 e 5 apresentam aspectos da prática profissional e sua
correlação com o espaço de atuação. Na classe 3, os sujeitos procuram delimitar
uma especificidade de sua ação, de sua prática profissional, usando para isso,
em alguns momentos, a comparação com outros grupos profissionais e os
parâmetros da programação em saúde. Contudo, ressaltam como próprios da
enfermagem a educação em saúde e uma relação pedagogicamente problematizadora
com a clientela. As classes 2 e 5 apresentam dificuldades à execução do
trabalho do enfermeiro dentro dos programas, bem como a auto e hetero imagem
deste profissional, segundo as concepções dos entrevistados. As dificuldades
citadas ao trabalho do enfermeiro, baseiam-se na confusão de papéis, ancorados
na prática concreta, às ações prescritivas e delegas, transformando-as am ações
características da profissão, que possuem suas conseqüências na auto e hétero
imagem profissional.
As seguintes variáveis foram importantes na constituição da classe 3: tempo de
formado compreendido entre 3 a 6 anos, idade entre 25-30 anos, tempo de
trabalho na Saúde Pública compreendido entre 1-5 anos e pelos indivíduos: 07,
13, 19, 25, 26 e 27.
As classes 2 e 5 tratam da vivência profissional e suas relações sociais, só
que a 2 se refere especificamente à ação profissional (com suas especificidades
e dificuldades) e às tecnologias subsidiadoras de um fazer autônomo e próprio
(conhecimento científico e teorias de enfermagem) ao passo que a classe 5 trata
especificamente da imagem profissional do enfermeiro (tanto em relação à equipe
de saúde, à sociedade em geral e à auto-imagem).
Na formação da classe 2 foram importantes as seguintes variáveis: tempo de
formado compreendido entre 6 e 9 anos, idade compreendida entre 35-40 anos, os
sujeitos não possuem pós-graduação, sexo masculino, experiência entre 5-10 anos
de trabalho na Saúde Pública e as UCE foram retiradas das entrevistas 02, 04,
08, 15, 22 e 28.
As variáveis importantes na constituição da classe 5 foram: sujeitos com
experiência de trabalho na Saúde Pública compreendida entre 5 e 10 anos, idade
compreendida entre 30-35 anos, sexo masculino e pelos seguintes sujeitos 03,
12, 15, 16, 28 e 30.
Uma leitura transversal dos dados empíricos possibilitou a sua compreensão a
partir de três dimensões das representações sociais a partir das quais foram
discutidas as categorias de análise, quais sejam: o conhecimento, traduzido em
diversos conceitos de autonomia profissional presentes nos discursos dos
indivíduos; as atitudes e os posicionamentos que se expressam em julgamentos
destes entrevistados com relação à autonomia; e as práticas autônomas relatadas
pelos entrevistados.
3.1 Os conceitos e Conhecimentos Veiculados de Autonomia profissional
Descreve-se aqui as categorias conceituais construídas a partir das entrevistas
para autonomia profissional que se concretizam nos conteúdos de: a) autonomia
como saber próprio da enfermagem; b) autonomia expressa na abordagem ao ser
humano; c) autonomia como bom desempenho técnico e manual; d) a identidade
profissional e a constituição do papel próprio.
O saber próprio da enfermagem é caracterizado imageticamente pelos sujeitos
como mosaico, na medida em que vários saberes são considerados como
constituintes da enfermagem. Ao mesmo tempo, a compreensão de autonomia
profissional a partir da constituição de um saber específico da profissão
possui dois significados: a delimitação da essencialidade da profissão e a
constituição de um espaço próprio de poder(14-15). Por outro lado, o exercício
do poder se desloca do próprio para o hetero, à medida que os profissionais
consideram como autonomia ou espaço autônomo, saberes e fazeres de outras
categorias profissionais, como a prescrição medicamentosa e a solicitação de
exames de apoio diagnóstico. Por fim, com relação ao saber, ressalta-se a
formulação atual de um corpo de conhecimentos próprio à enfermagem,
consubstanciado nas Teorias de Enfermagem.
Com relação à autonomia expressa na abordagem ao ser humano, os sujeitos
consideram como próprio da profissão e gênese de autonomia profissional, a
abordagem holística e integral(16-19) que os profissionais efetivam na
interioridade das relações profissional-clientela. Contudo, os profissionais se
referem à visão holística muito mais como a compreensão da influência dos
fatores sociais, econômicos, culturais, espirituais e políticos no processo
saúde-doença do que segundo os princípios das tradições da cultura oriental(16-
17).
No que tange à autonomia como bom desempenho manual ou técnico, a valorização
pelo fazer demonstra a tentativa de explicitação da superação da prática
empírica por um fazer cientificamente embasado, socialmente valorizado e
mercadologicamente necessário(20). Contudo, cabe destacar a discordância
existente entre a essência e a forma como o trabalho do enfermeiro é realizado
e os aspectos atuais de valorização mercadológica(21).
A autonomia relacionada à identidade profissional encontra respaldo no que se
considera como sendo genealogia dos saberes, ou seja, o "empreendimento para
libertar da sujeição os saberes históricos, isto é, torna-los capazes de
oposição e luta contra a coerção de um discurso teórico, unitário, formal e
científico"(15). Para o senso comum, a identidade profissional do enfermeiro
não está clara e alguns autores(22,23) chegam até mesmo a explicitar a não-
especificação da identidade do enfermeiro.
A identidade é uma construção que se dá através da seleção de um sistema
axiológico que tem a propriedade de definir determinado grupo perante a
realidade subjetiva(24). Assim, a enfermagem tem dificuldades próprias à
explicitação desse axioma, o que se constitui também em dificuldades ao
estabelecimento de um espaço próprio de exercício de poder que seja instância
geradora da forma como a profissão se relaciona com a sociedade, com a equipe
de saúde e com as instituições públicas ou privadas.
Desta forma, a autonomia profissional é construída, dentre outros aspectos, a
partir da definição e construção de uma identidade que explicite as
características próprias e inerentes à profissão e, ao mesmo tempo, possibilite
uma troca com a equipe e com a sociedade de forma única e singular. Neste
sentido, a construção da identidade abarca a abrangência da filosofia que
orienta e direciona o trabalho do profissional e cresce na interrelação de
classe como construção coletiva(24).
Contudo, a construção do papel próprio e da identidade do enfermeiro não é um
processo simples, mas apresenta-se como algo complexo, multifacetado e
multicausal, necessitando de uma análise aprofundada acerca da constituição da
enfermagem, seus desafios sociais e atuais, a tendência de mercado, a formação
profissional e todas as demais variáveis que incidem no processo dessa
construção.
3.2 As atitudes frente à autonomia
As representações sociais estão imersas nas comunicações cotidianas, circulam
nos discursos, nas idéias e nas imagens, materializando-se nas condutas(25).
Desta maneira, os sujeitos demonstraram existir três atitudes frente à
autonomia, quais sejam, as que são favoráveis, as que são desfavoráveis e as
que são mistas, ou seja, possuindo aspectos favoráveis e desfavoráveis
conjuntamente.
Desta forma, pode-se apontar como atitudes favoráveis por parte dos sujeitos
frente à autonomia, a constituição de um saber próprio à profissão que a
caracterize como diferente, singular e pertinente no contexto social, e que, ao
mesmo tempo, seja compatível com a sua essência; a visão holística como
característica da abordagem da enfermagem ao ser humano; a consulta de
enfermagem e, dentro desta, a prática de educação em saúde; e a construção da
identidade profissional que explicite, dentre outras coisas, o papel próprio da
profissão.
Por outro lado, as atitudes apontadas como desfavoráveis são: a legislação como
limitadora da prática profissional e, conseqüentemente, da autonomia; a
formação adquirida na universidade vista como não formadora do profissional
para uma prática autônoma; e a ausência da especificidade do papel próprio como
geradora de limitações ao exercício de uma prática autônoma.
Como atitudes que se constituem, simultaneamente, tanto positiva quanto
negativamente com relação à autonomia, os sujeitos referem-se à autonomia
profissional como sinônimo de rotina programática e a medicalização da
assistência de enfermagem e sua interpretação como autonomia.
3.3 Práticas autônomas objetivadas
As representações sociais possuem estreitas ligações com as práticas, ou seja,
elas são uma condição das práticas e, por sua vez, as práticas são agentes de
transformação das representações(26). Ou seja, os sujeitos agem a partir de
como representam o mundo e essa ação no mundo tem influência na continuidade da
representação.
Dos dados empíricos, destacam-se duas manifestações de práticas autônomas: o
espaço de trabalho da programação em saúde e a consulta de enfermagem.
3.3.1 O espaço de trabalho da programação em saúde
A programação em saúde é um modelo tecnológico de trabalho que faz parte das
estratégias que a saúde coletiva utiliza para atingir seus objetivos. Alguns
autores(27), trabalhando teoricamente a idéia de programação, referem que a
ação programática deve ser, portanto, um dispositivo de organização tecnológica
do trabalho dotado de caráter crítico e de grande flexibilidade técnica e
política. Isso se deve também ao fato da ação programática em saúde não ser uma
'coisa', mas um modelo.
Torna-se interessante e pertinente explicitar que o enfermeiro, por seu perfil
e formação, tem uma contribuição singular a oferecer dentro do trabalho
organizado de forma programática. Pela sua compreensão do ser humano além dos
aspectos biológicos, pelo seu entendimento da influência dos fatores sociais e
ambientais na determinação da saúde e da doença, pela sua capacidade de prática
amalgamadora, coordenando e gerenciando o processo de trabalho da equipe de
saúde dentro da unidade, por seu comportamento generoso com a clientela,
demonstrando preocupação com o acesso da mesma aos serviços de saúde e pela
disponibilidade de uma relação didático-pedagógica-dialogal com a comunidade,
pode se constituir em elemento fundamental à uma prática multiprofissional e
transdisciplinar, no contexto das ações da programação em saúde.
3.3.2 A consulta de enfermagem
A consulta de enfermagem e, dentro desta, a educação em saúde foi uma das
práticas autônomas relatadas, ou seja, esta tecnologia profissional concretiza
a idéia de espaço autônomo o consultório e tecnologia independente a consulta.
O momento da consulta permite a explicitação de um espaço físico próprio em que
a relação profissional-cliente acontece sob a orientação única do enfermeiro, o
que o torna detentor do atendimento às necessidades da clientela em questão. E
ainda, a consulta de enfermagem se apresenta como uma tecnologia de resultados
mensuráveis em dois aspectos, quais sejam, primeiro a sua quantificação em
nível central e sua posterior cobrança financeira ao Sistema Único de Saúde ou
à instituição empregadora e, segundo, pela avaliação seriada da clientela, onde
é mensurada a melhora ou não de seu estado de saúde.
A consulta de enfermagem se apresenta como um momento e um espaço privilegiado
à reflexão acerca da constituição de um saber/fazer específico, como
anteriormente discutidos. Neste sentido, os entrevistados demonstram uma
ambigüidade em suas representações da consulta de enfermagem. Por um lado,
similar à consulta médica, pelo enfoque dado à fisiopatologia do cliente e a
medicalização da assistência de enfermagem e, por outro, caracterizando-a a
partir de uma relação pedagógica e dialogal enfermeiro-cliente, centrando-se na
educação em saúde(28), na compreensão do indivíduo para além conceitos
biomédicos(16) e na família e comunidade como bases para a ação profissional
(29).
Os profissionais ainda destacam a consulta de enfermagem como nova forma de
relacionamento entre os enfermeiros e a equipe de saúde e os enfermeiros e a
população, pois ela se apresenta como uma instância decisória e de poder. Este
fato se torna ainda mais relevante ao considerar a forma sutil em que o poder é
exercido nos diversos grupos, todos portadores de poderes próprios,
especialmente quando este é concretizado em um território e em tecnologias mais
palpáveis de exercício do mesmo(15).
4. CONCLUSÃO
Autonomia profissional em enfermagem não é um fenômeno simples e fácil de ser
analisado. A prática profissional ainda se apresenta com inúmeras ambigüidades
e tensões, configurando um fazer constituído de dificuldades próprias, o que
torna o cotidiano dos profissionais estressante e perpassado por desestímulos e
indefinições. Ao mesmo tempo, autonomia profissional ganha concretude nos
entrevistados quando consideram-na existente em suas práticas, ou seja, sendo
já uma realidade em seus cotidianos, ou ainda, quando a estabelecem como um
processo, o que indica a sua não vivência como real, mas como construção a
partir dos posicionamentos, estratégias e objetivos estabelecidos pelo grupo.
A consideração dialética da autonomia, existência/não-existência, possibilita a
apresentação da profissão de várias formas. Desta maneira, a consideração da
autonomia como realidade na vivência da profissão, mesmo esta sendo entendida
como em processo de construção, tende a conformar um saber/fazer com
características mais próximas à essencialidade da profissão. Isto se torna
especialmente possível se a consideração da autonomia for ligada ao que é
específico da profissão, àquilo que a torna diferente, apesar de complementar,
das outras profissões no desenvolvimento do trabalho dentro da equipe de saúde.
Contudo, se autonomia for considerada como um saber/fazer ampliado devido à
apropriação de conteúdos e conhecimentos (saber), bem como de práticas (fazer)
de outras áreas profissionais, por mais importantes e eficazes que sejam esses
saberes/fazeres, torna-se um foco frágil de autonomia devido à sua não
construção pela essencialidade da profissão.
Portanto, autonomia profissional tende a ser configurada a partir da construção
da identidade profissional do enfermeiro, apresentando tensões com os aspectos
sociais, políticos, mercadológicos, culturais e intelectuais nos quais o
profissional se insere.