Cuidado centrado na família e sua aplicação na enfermagem pediátrica
CUIDADO CENTRADO NA FAMÍLIA
Historicamente, a enfermagem é uma das profissões da área da saúde que mais
convive com a família. Esta condição tem gerado, além de pesquisas, a
disseminação, na literatura científica, de temas relacionados à atuação da
equipe de enfermagem junto à família, sem, contudo ter provocado mudanças
significativas na prática assistencial do enfermeiro.
Assim, esse artigo tem por objetivo descrever a origem do termo cuidado
centrado na família, refletir sobre a sua relação com a enfermagem e sobre a
sua aplicação na Enfermagem Pediátrica a fim de contribuir com contínuos
debates acerca dessa temática.
A construção do termo cuidado centrado na familia teve início em meados de 1969
com o propósito de definir a qualidade do cuidado prestado no hospital, segundo
a visão dos pacientes e suas famílias, e de discutir a autonomia do paciente
frente às suas necessidades de saúde(1).
Inicialmente, o termo empregado era medicina centrada no paciente que evolui
para cuidado centrado no paciente. Com a constatação de que este não descrevia
a abordagem pretendida foi incluído o termo familia, em 1990, direcionando a
elaboração dos pressupostos atuais do Instituto de Cuidado Centrado na Familia
(ICCF)(1). Desde então, surgiu o termo cuidado centrado no paciente e familia,
empregado como sinônimo de cuidado centrado na familia, sendo o segundo, mais
divulgado na literatura de enfermagem e, por esta razão, adotado neste texto.
A princípio, o ICCF praticava a abordagem centrada na familia no contexto
pediátrico. Com o amadurecimento das crianças e o incentivo para que estas se
tornassem participantes do cuidado à sua saúde, e a ampliação da atenção a
adultos e idosos, o ICCF começou a praticar o cuidado centrado no paciente e
sua família em outros contextos(1).
O termo cuidado centrado no paciente e família surgiu devido à compreensão de
que a família é considerada um elemento fundamental no cuidado de seus membros
e o isolamento social é um fator de risco, em especial para os indivíduos mais
dependentes como os muito jovens, os mais velhos e aqueles com doença crônica.
Assim, é recomendado que os profissionais incentivem a continuidade da ligação
natural que existe entre a maioria dos pacientes e suas famílias e sua rede de
apoio. Por acreditar que a família exerce influência sobre a saúde do paciente,
essa filosofia assistencial a inclui como parceira na melhoria das práticas e
do sistema de cuidado(1). O ICCF define esta abordagem de cuidado à saúde como
um processo de planejamento, prestação e avaliação baseados em parceria, com
benefícios mútuos entre os pacientes, famílias e provedores. É um cuidado
destinado a pacientes de todas as idades e pode ser praticado em qualquer
serviço de saúde, por todos os profissionais de saúde(1).
Os pressupostos centrais do cuidado centrado na família são assim apresentados
pelo Instituto(1): dignidade e respeito: os profissionais de saúde ouvem e
respeitam as escolhas e perspectivas do paciente e da família; o conhecimento,
os valores, as crenças e a cultura do paciente e da família são incorporados ao
planejamento e prestação do cuidado; informação compartilhada: os profissionais
de saúde comunicam e dividem as informações úteis de maneira completa e
imparcial com os pacientes e a família; estes recebem informações acuradas, no
momento oportuno, a fim de efetivar sua participação no cuidado e na tomada de
decisão; participação: pacientes e famílias são encorajados e apoiados a
participarem do cuidado e da tomada de decisão, escolhendo seu nível de
atuação; colaboração: pacientes e famílias são incluídos como base de apoio da
instituição; os líderes de cuidado a saúde colaboram com os pacientes e família
no desenvolvimento, implantação e avaliação das políticas e programas, na
facilitação dos cuidados à saúde, na educação profissional e na prestação de
cuidado.
O cuidado centrado na família tem o objetivo de promover a saúde e o bem-estar
dos indivíduos e família e restaurar seu controle e dignidade. De acordo com
ele, a definição de família é dada pelos seus próprios membros e as ações não
se restringem ao corpo biológico, tendo em vista que o apoio emocional, social
e de desenvolvimento são considerados componentes do cuidado à saúde. Embora
seja centrado na família, o cuidado não elimina a competência individual de
cada membro em relação à tomada de decisão de sua própria saúde(1).
Na enfermagem, a família esteve presente desde o início da profissão quando os
pacientes eram atendidos dentro de suas casas(2-4). Florence Nightingale já
enfatizava a importância da família e do meio ambiente doméstico no cuidado ao
doente. Antes de 1990, algumas especialidades, como a enfermagem pediátrica, a
enfermagem materno-infantil, a enfermagem em saúde publica e a enfermagem em
saúde mental e psiquiátrica já valorizavam o cuidado à família, com diferenças
no enfoque. Família como contexto, como somatório de suas partes e como cliente
tem sido os mais comumente observados(4). Esse cuidado tem compreendido a
família como sistema ou unidade familiar, acrescentando, aos pressupostos do
ICCF, o termo unidade. No entanto, é possível afirmar que os pressupostos,
descritos pelo ICCF, contemplam a visão de unidade, mesmo que esta não apareça
no texto.
Para fundamentar essa visão têm sido utilizados alguns referenciais teóricos.
Na literatura o mais difundido é a Teoria Geral dos Sistemas (TGS), adaptada
aos sistemas viventes e aplicada na enfermagem da família(3-6). A família, sob
esta visão, é considerada um sistema compreendido como um complexo de elementos
em mútua interação, sendo o cuidado de enfermagem focado na unidade familiar e
não na soma de suas partes(3,4,6).
Embora as intervenções de enfermagem à família pautadas nesta visão já venham
sendo difundidas no meio acadêmico e nas pesquisas(2), a prática não tem
reproduzido os avanços teóricos e de pesquisa(3). Nesse sentido, dois
questionamentos ainda parecem pertinentes: ao atendermos um membro da família
estamos cuidando da unidade familiar? Cuidar de um grupo é o mesmo que cuidar
de uma família(7)?
Buscando responder ao primeiro questionamento resgatamos um dos conceitos da
TGS aplicado à família - "a mudança em um dos membros afeta a todos na família"
(2). Com base nisso, podemos afirmar que quando atendemos a um de seus membros,
a fim de que atinja o melhor estado de saúde possível, estamos cuidando da
família. Porém, se nos fixarmos apenas nesse aspecto não daremos atenção ao
todo e ao que a doença deste membro provoca na organização e funcionamento
familiar; tampouco estaremos cuidando dos demais membros da unidade. Estaremos
mantendo uma abordagem centrada no paciente ou apenas no aspecto biológico da
doença, contrariando os princípios da enfermagem que propõe uma visão integral
do ser humano.
Apesar disso, a enfermeira generalista tende a atuar sob este foco de atenção
enquanto as especialistas, na unidade familiar(2). Quando o foco está no
individuo como contexto da família ou na família como contexto de um indivíduo,
os membros da família são levados em conta apenas em relação ao familiar doente
e não frente às suas necessidades e interação(8).
Tendo em vista que as necessidades da família variam de acordo com a situação,
a enfermeira deve estar atenta para avaliar se naquele momento sua intervenção
deve ser voltada ao individuo ou à unidade familiar, ou se é necessário
intervir em ambos, pois as abordagens não são excludentes e nem uma é melhor do
que a outra(8).
Respondendo ao segundo questionamento - cuidar de um grupo é o mesmo que cuidar
de uma família - e considerando grupo na perspectiva interacionista,
respondemos afirmativamente a essa questão. Nesta perspectiva, um grupo, assim
como uma família pode ser considerado uma coletividade cujos membros agem com
vistas a uma ação comum fazendo deles uma unidade de ação. A ação comum ocorre
mediante a interpretação dada a uma situação na qual estão inseridos, gerando
uma ação para enfrentá-la(9).
Nesse sentido, a definição de família de Angelo(10) muito contribui para nossa
compreensão de família como pessoas em interação.
"... família é um grupo de indivíduos em interação simbólica, chegando às
situações com os outros significantes ou grupos de referência, com símbolos,
perspectivas, self, mente e habilidade para assumir papéis. Cada indivíduo tem
um passado a resgatar para ajudar a definir a situação e cada um possui uma
visão de futuro. Os indivíduos dão significado às situações, usando estes
instrumentos, às vezes, prestando especial atenção àqueles com quem interagem,
outras vezes, usando algo localizado fora da situação como guia".
Tendo isso em mente, a enfermeira deve conhecer como a família se define e qual
o significado atribuído por ela às situações. A enfermagem da família adota
alguns princípios da Biologia da Cognição para afirmar que "os seres humanos
produzem diferentes visões para entender os eventos e experiências de suas
vidas"(3).
As noções do pós-modernismo, marco teórico aplicado à avaliação da família,
propõe o fim de uma única visão de mundo. Utilizando-se disso, a enfermagem da
familia reconhece que há "tantos caminhos para entender e experimentar a doença
quanto existem famílias tendo experiências de doença"(3).
A enfermagem, enquanto ciência compartilha dos pressupostos adotados pelo ICCF,
porém na literatura de enfermagem é enfatizada a visão do todo e a visão
interacionista como possibilidade de influenciar as mudanças de comportamento
(3,7). No ICCF é destacada a parceria entre pacientes e famílias em todo o
sistema de cuidado à saúde, inclusive na formulação de programas e políticas
voltadas às necessidades da família.
O pressuposto que contempla a parceria também aparece na literatura de
enfermagem. Neste caso, os parceiros são capazes de se tornar mais competentes
por meio do compartilhamento do conhecimento, das habilidades e recursos. Essa
visão promove a capacitação e o empoderamento da família, princípios básicos do
cuidado centrado na família, que possibilitam o desenvolvimento do sentido de
controle em suas vidas e geram mudanças positivas que estimulam seus pontos
fortes e aptidões(6,11).
No Brasil, há que se destacar o Programa de Saúde da Família (PSF), como uma
tentativa de aproximação com os princípios do ICCF. Uma das metas deste
programa, que reorganiza a atenção básica de saúde, é desenvolver a autonomia
das famílias na busca de melhoria de suas condições de vida. Desta forma,
evidencia a família como objeto de atenção dos profissionais de saúde na área
da saúde coletiva, mas também traz à tona discussões sobre as diversas
concepções de família e o cuidado de enfermagem a este grupo(2). Porém, se
analisarmos os manuais de atenção à saúde, destinados à aplicação desta
estratégia observamos que os mesmos abordam a saúde da criança, do adulto, da
mulher e do idoso individualmente, inclusive destinando prontuários individuais
dentro de uma pasta da família sem, no entanto, abordar a unidade familiar e a
interação entre seus membros. Esta prática traduz a compreensão dos
profissionais acerca do que é cuidar da família em alguns seguimentos da área
da saúde.
O sentido do processo de trabalho do PSF é a família como unidade do cuidado.
Para o alcance das metas, é necessário que seja explicitada a definição de
família, que a assistência se volte à experiência da família ao longo do tempo,
que seja dirigida aos membros sadios e doentes, que considere que o sistema
familiar é influenciado por quaisquer mudanças de seus membros, que considere
os relacionamentos familiares, que busque focalizar a atenção nas forças da
família para promoção de apoio mútuo e crescimento, que considere os contextos
culturais de cada família, o ambiente em que vive e a comunidade na qual está
inserida e que haja interação dos profissionais de saúde com a família(12).
CUIDADO CENTRADO NA FAMÍLIA E A ENFERMAGEM PEDIÁTRICA
Na enfermagem pediátrica, o Cuidado Centrado na Família é uma filosofia que
além de cuidar da criança também reconhece a sua família como unidade de
cuidado. Tal definição considera a família como constante na vida da criança e
a unidade básica de saúde na qual a criança receberá os cuidados de promoção à
saúde e prevenção de doenças, além dos primeiros atendimentos(13-15). Essas
definições englobam pressupostos que já haviam sido descritos por Shelton et al
(14), em 1987, e Johnson(15), em 1990 propondo os seguintes elementos para o
cuidado centrado na família: reconhecer a força da família como uma constante
na vida da criança; facilitar a colaboração entre pais e profissionais em todos
os níveis de cuidado à saúde; respeitar e valorizar a diversidade cultural,
racial, étnica e socioeconômica da família; reconhecer as forças e
individualidade da família, respeitando os diferentes métodos de enfrentamento;
compartilhar informação imparcial e continuamente com a família; responder às
necessidades de desenvolvimento da criança e da família; adotar políticas de
praticas que fornecem apoio emocional e financeiro para família; planejar um
cuidado flexível, culturalmente competente e que responda às necessidades da
família; encorajar e facilitar o suporte familiar e da rede apoio.
Houve um avanço na Enfermagem Pediátrica ao incluírem a família como unidade do
cuidado. O cuidado centrado na família foi então, definido como a maneira de
cuidar da criança e sua família assegurando que haja um planejamento em torno
da família como unidade, na qual todos os membros sejam reconhecidos como foco
do cuidado e não somente a criança(14).
Apesar de elaborados há vinte anos, os pressupostos da abordagem centrada na
família, igualmente ainda não são traduzidos na prática da enfermagem
pediátrica embora a literatura descreva suas vantagens. São elas: o
envolvimento da criança e da família nas questões de saúde, aprendizagem
continuada a partir das expectativas da família, relacionamento mais
democrático e divisão das responsabilidades entre profissionais e família,
maior compromisso da família, ampliação da assistência intra-hospitalar para a
comunidade e maior probabilidade de diminuir a necessidade de cuidados
institucionais(15).
Desenvolver habilidades que nos possibilite atuar com competência junto à
família continua sendo um desafio. Angelo já enfatizava, em 1999, que "são
muitas as dificuldades existentes no caminho daqueles enfermeiros que se
dispõem a abrir-se para a família"(16).
No Brasil, a enfermagem pediátrica vem contribuindo, expressivamente, com
pesquisas que buscam aprimorar a visão do cuidado centrado na família. No
entanto há necessidade de ampliar a inclusão e atualização dos conteúdos
referentes à família nos cursos de graduação e pós-graduação, nos serviços de
educação continuada, assim como, formar enfermeiras especialistas em família
atuando em conjunto com as generalistas.
Acreditamos que cuidar da família seja uma responsabilidade e compromisso moral
do enfermeiro e para tanto é necessário que haja um ambiente de cuidado que
favoreça o relacionamento entre enfermeiro-família, a fim de construir uma
prática que a ajude no enfrentamento de dificuldades, em especial em situação
de doença.