Atuação da enfermagem no autocuidado e reabilitação de pacientes que sofreram
Acidente Vascular Encefálico
INTRODUÇÃO
O cérebro é um órgão extremamente complexo que desempenha o controle e
modulação das funções corpóreas, além de ser o locus da atividade cognitiva e
intelectual do ser humano. Composto por inúmeras ligações entre neurônios, que
se comunicam por meio de impulsos elétricos e químicos, o cérebro pode
reconhecer diversos estímulos, sendo capaz de analisá-los e decodificá-los,
elaborando respostas às variadas situações(1), sendo fundamental à vida e à
capacidade de sobrevivência do ser humano(2).
Entretanto, pode ser acometido por sérias alterações, como um Acidente Vascular
Encefálico (AVE), que caracteriza-se pela diminuição total ou parcial de fluxo
sanguíneo em determinada área do cérebro(1, 3). O AVE constitui a terceira
causa de morte no mundo(4-5), ocorrendo com maior incidência no sexo masculino,
em indivíduos com descendência afroamericana e idade superior a 65 anos(1).
Os déficits neurológicos decorrentes do AVE variam conforme a localização da
lesão vascular, do tempo de perfusão inadequada e da existência de circulação
colateral (1). Assim, estes eventos podem acarretar em perda de força,
sensibilidade, capacidade de movimentação e controle de diversas áreas
corporais, além de acarretar em distúrbios de linguagem, perda do equilíbrio ou
coordenação, distúrbios visuais, bem como a perda do controle dos esfíncteres
anal e vesical (1). Tais sequelas frequentemente comprometem a autoestima e
autoimagem do indivíduo, bem como sua interação com a família e a sociedade
(2).
As sequelas motoras do AVE apresentam três fases: a fase flácida, a espástica e
a de recuperação. Na fase flácida ocorre a perda ou diminuição de força e
movimento muscular por paralisia e/ ou fraqueza, sendo que a musculatura tem
sua capacidade de contração afetada, resultando na produção de força
insuficiente para a realização de movimentos voluntários(6).
A fase espástica é marcada pela transição da flacidez para um estado
hiperreflexão muscular e de tendões(7), sendo que as características de
músculos espásticos incluem a resistência ao alongamento e o tônus mais alto do
que o normal. Nesta fase é necessário tratamento multiprofissional visando à
reeducação muscular, a fim de evitar problemas secundários como disfunções
articulares e dolorosas(6).
A fase de recuperação, ocorrida por meio da reconstituição de neuro-mecanismos
que executam as funções cerebrais afetadas pelo AVC, é alcançada apenas por
meio de intervenções terapêuticas que auxiliam o indivíduo a restabelecer
funções corporais afetadas(6).
Na maioria dos casos, os indivíduos com AVE são hospitalizados para a
realização de investigações acerca da origem, gravidade e grau de
comprometimento das funções corporais, para realizarem o tratamento e prevenção
de sequelas. Há estudos que afirmam que o adequado atendimento de saúde, bem
como o início precoce de assistência em saúde e reabilitação, podem melhorar
consideravelmente o prognóstico da doença(1, 3, 8).
A reabilitação é uma das inúmeras funções da enfermagem, que busca a
independência para a realização do autocuidado, sendo o segundo entendido como
um conjunto de ações desenvolvidas pelo indivíduo e pela família para atender
as necessidades da vida diária, que é aprendido e aperfeiçoado ao longo da vida
(9). A reabilitação neurológica em enfermagem é um processo dinâmico,
envolvendo orientações para a saúde que auxiliam os indivíduos doentes e/ou com
incapacidades a obterem uma melhor recuperação em todos os sentidos: físico,
mental, espiritual e social. Isto possibilita uma melhor qualidade de vida, que
inclui a recuperação da dignidade, do auto-respeito e independência(1).
O presente tema constitui relevância à enfermagem contemporânea por abordar a
reabilitação de uma doença que tem grande impacto na saúde do indivíduo, bem
como em seu relacionamento familiar e social. Diante do exposto, este texto tem
como objetivo relatar/compartilhar a experiência de cuidado de enfermagem
desenvolvido junto ao indivíduo acometido pelo AVC, com ênfase na reabilitação
e autocuidado tendo por base a Teoria Geral de Enfermagem de Orem.
MARCO TEÓRICO
A Teoria Geral de Enfermagem de Orem é formada por três construtos teóricos
inter-relacionados: a teoria do autocuidado, a teoria do déficit de autocuidado
e a teoria dos sistemas de enfermagem(9).
Na Teoria do Autocuidado é abordada a prática de cuidados realizados pelo
indivíduo com a finalidade de manutenção da condição vital e de saúde(9). O
autocuidado é reconhecido como uma habilidade humana, sendo que sua execução
está diretamente ligada às condições que cada indivíduo possui para autocuidar-
se. São apontadas três categorias de exigências terapêuticas/ requisitos para o
autocuidado: universais, desenvolvimentais e de desvio de saúde(9).
A Teoria de Déficit de Autocuidado, determina que a enfermagem é necessária
quando um indivíduo é incapaz ou tem limitações na provisão de autocuidado
efetivo(10). Nestas situações, o indivíduo necessita adquirir conhecimentos e
habilidades a fim de incorporá-los em seu sistema de cuidado.
O último construto da Teoria Geral de Enfermagem de Orem é a Teoria de Sistemas
de Enfermagem, que estabelece a estrutura e orienta as práticas de enfermagem
(9). Nela são identificados: o sistema totalmente compensatório; o sistema
parcialmente compensatório e o sistema de apoio-educação(9). Esses sistemas são
compostos por elementos fundamentais como: a dimensão da responsabilidade da
Enfermagem nas situações de atendimento à saúde; o papel geral e específico de
cada participante visando suprir as exigências terapêuticas(9).
MÉTODO
Tratou-se de um relato de experiência acerca de prática assistencial
desenvolvida por três acadêmicas, durante a VIII Unidade Curricular do Curso de
Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina, que resultou
no trabalho de conclusão de curso intitulado "O cuidado de enfermagem e o
processo de reabilitação do indivíduo acometido pelo Acidente Vascular
Encefálico, sob a ótica da Teoria Geral de Enfermagem de Orem"(11).
Desenvolvida de maio a julho de 2006, em um centro de reabilitação vinculado ao
Sistema Único de Saúde (SUS), sendo referência para o estado de Santa Catarina.
A assistência ocorreu no período matutino, com no mínimo dois e no máximo
quatro momentos de assistência de enfermagem integral, enfocando a
reabilitação, bem como a elaboração do Processo de Enfermagem segundo a Teoria
de Orem.
Os sujeitos do estudo foram 15 indivíduos acometidos pelo AVE e seus
familiares, sendo oito homens e sete mulheres, com idades entre 47 e 75 anos,
com tempo transcorrido de 45 dias a 5 anos do último AVE. É importante
ressaltar que todos tinham diagnóstico médico de hipertensão arterial sistêmica
e 60% destes possuíam Diabetes Mellitus. A maioria apresentava comprometimento
motor por estar na fase espástica, bem como dificuldade para a realização das
atividades da vida diária, dependência de outras pessoas para o cuidado e
alteração nos órgão do sentido, principalmente o tato. Um destes também possuía
perda de capacidade de expressão verbal e dificuldade de controle dos
esfíncteres anal e vesical.
A atuação das acadêmicas de enfermagem cumpriu integralmente os critérios
estabelecidos pela Resolução nº 196/96, do Conselho Nacional de Saúde(12),
mantendo respeito aos aspectos éticos, sendo que os envolvidos ou seus
responsáveis foram convidados a participar e assinaram o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido.
APRESENTAÇÃO DAS ATIVIDADES REALIZADAS E DISCUSSÃO
Quando pensamos em reabilitação como forma de aquisição de habilidades antigas,
significa muito mais do que reaprender a andar e vestir-se, ou transferir-se da
cama para a cadeira de rodas. As atividades que precisam ser reaprendidas
abrangem principalmente redescobrir qual o novo papel do indivíduo dentro da
família, para poder enfrentar a realidade e os novos problemas do cotidiano.
Esses fatores tornam a reabilitação um processo único e específico para cada
ser humano e a enfermagem procura atender estas demandas nos aspectos físicos,
psicológicos e psicossociais.
O enfoque do cuidado também está voltado para a família, sendo necessário que
estes aprendam novos métodos conforme suas demandas, sendo que os ensinamentos
necessitam ser contínuos e objetivos, promovendo o reconhecimento da
importância das ações, a compreensão do processo e do despertar da participação
e colaboração de todos em prol do mesmo objetivo.
As atividades de reabilitação efetuadas pela enfermagem aos indivíduos
acometidos pelo AVE são amparadas pela Lei do Exercício Profissional nº7.498,
de 25 de junho de 1986, por meio do artigo oitavo, inciso I. Sendo que o Código
de ética dos profissionais de Enfermagem, aprovado pela Resolução do Conselho
Federal de Enfermagem nº240/00 ampara, no capítulo III artigo 18, a busca e
exercício de conhecimentos que beneficiem a clientela atendida. Fatos que
reforçam a importância da compreensão das atividades de reabilitação
desempenhadas por Enfermeiros.
A seguir, apresentamos os principais cuidados realizados, considerando o
fortalecimento das aptidões para o autocuidado e as ações de enfermagem na
reabilitação em indivíduos com comprometimento neurológico decorrente de AVE.
O cuidado de enfermagem e o controle postural.
As alterações do controle muscular, da sensibilidade corpórea ou da
própriocepção, decorrentes do AVE, podem gerar a perda ou redução da força e
movimento muscular, caracterizando a fase flácida(6). Frente a esta etapa, foi
realizado posicionamento no leito, mudança de decúbito e alongamento de membros
efetuados de forma passiva ou ativa por meio de educação em saúde(5). Para isto
primava-se pelo posicionamento anatômico utilizando instrumentos como coxins,
almofadas, travesseiros e órteses.
Estes cuidados fazem-se necessários, pois a manutenção de postura inadequada
gera alterações que podem causar dor, além de disfunções musculares e
articulares(6) que podem levar o indivíduo a vivenciar a fase mais severa das
sequelas motoras do AVC, definida como fase espástica.
O cuidado de enfermagem e os exercícios de amplitude do movimento
Indivíduos com sequelas decorrentes de AVE, geralmente apresentam debilidades
de movimentação causadas pela redução da amplitude articular e da musculatura
(6). Assim foi possível proporcionar a manutenção da amplitude de movimentos
aplicando e ensinando atividades de alongamento, de forma passiva, quando as
autoras realizaram estes exercícios nos indivíduos acometidos pelo AVE, ou de
forma ativa quando os próprios indivíduos efetuaram os exercícios(5).
Foi realizada orientação a todos os indivíduos, bem como seus familiares,
acerca da realização de alongamentos com a finalidade de manutenção da
amplitude de movimentação, principalmente em membros inferiores e superiores.
O cuidado de enfermagem no treino de marcha
Alterações nos padrões de marcha são frequentes em indivíduos com algum tipo de
sequela motora nos membros inferiores. Podem ocorrer alterações no perfil e
ritmo do ciclo de passadas oriundas da perda ou diminuição do controle da
musculatura(6).
A enfermagem pode utilizar-se do sistema de apoio-educação de Orem(9) para
realizar ações de educação em saúde acerca da forma com que os indivíduos
deveriam conduzir a marcha. Assim, inicialmente os indivíduos que efetuaram o
treino de equilíbrio seguravam-se em barras, ou em outro suporte estável.
Quando a capacidade de equilíbrio aumentava, estes aprenderam a alternar o peso
corporal entre os membros inferiores(7). Assim que conseguiram efetuar esta
transferência de peso iniciou-se o processo de caminhada em barras paralelas.
Faz-se necessário que os profissionais de enfermagem, juntamente com a equipe
multidisciplinar, efetuem orientações acerca da prevenção de quedas em caso de
treino de marcha realizado no domicílio.
No momento em que os indivíduos encontravam-se aptos para caminhar foi
recomendado o uso de andador e posteriormente da bengala de quatro pontos(7).
Nestes casos recomendou-se que a marcha fosse treinada em ambientes que
possuíssem símbolos estampados no chão como, por exemplo, passadas, quadrados e
linhas retas para que este indivíduo realizasse o exercício cerebral
concomitante ao treino da marcha, sendo possível o uso de esteiras
ergométricas, utilizadas com a velocidade diminuída para a realização destes
exercícios.
As autoras acompanharam as atividades de treino de marcha utilizando todos
estes instrumentos, realizaram orientações e ações de educação em saúde(15)
acerca do seu uso seguro no domicílio e da necessidade de treino frequente para
o fortalecimento da musculatura dos membros inferiores.
O treino de marcha torna-se completo quando há a capacidade de subir e descer
escadas e rampas. Nestas situações, a equipe multiprofissional atuava
incentivando que na subida, a marcha fosse iniciada com o membro mais
fortalecido e na descida, com o membro menos fortalecido(7). Estas condutas
favorecem a transferência de peso entre os membros, melhorando o equilíbrio,
evitando acidentes e quedas. As autoras acompanharam os treinos de marcha
utilizando escadas e rampas junto aos indivíduos acometidos pelo AVC que eram
capazes de realizá-lo.
O cuidado de enfermagem e os exercícios de manutenção de equilíbrio
Em alguns indivíduos acometidos pelo AVE podem ocorrer distúrbios no
equilíbrio, associados à flacidez e/ou espasticidade, bem como ao
comprometimento cerebral(7). As autoras efetuaram exercícios de manutenção de
equilíbrio utilizando um "tablado móvel", instrumento com apoio arredondado e
que não se fixa completamente ao chão, movendo-se suavemente. Os indivíduos com
maior controle dos membros inferiores foram convidados a posicionar-se sobre
esta prancha e, com auxílio mantiveram-se em posição ortostática. Este
exercício foi realizado em frente ao espelho para que os indivíduos
visualizassem seu corpo.
O cuidado de enfermagem e a terapia ocupacional
A terapia ocupacional visa promover a recuperação de lesões neurológicas, pois
estimula o cérebro a restabelecer sua capacidade de realização das atividades
da vida diária. Para isto os terapeutas ocupacionais ensinam técnicas para
execução de tarefas antigas e usam equipamentos para estimular uso do membro
afetado, como as órteses e pesos utilizados nos punhos e tornozelos para
reduzir a ataxia de braços e pernas(16).
A enfermagem pode inserir-se neste cuidado reforçando os ensinamentos,
adaptando-os a realidade do indivíduo no domicílio e estimulando a realização
correta e contínua dos mesmos. Durante a prática assistencial foram efetuados
diversos atendimentos envolvendo terapia ocupacional, sendo que as autoras
estimularam a sensibilidade superficial e profunda, usando materiais
pontiagudos e de diferentes texturas, estimulação visual e perceptiva, usando
jogos coloridos. Também estimularam os indivíduo e as famílias para a
continuidade destas atividades no domicílio. Estas ações possibilitam a gradual
execução das atividades como vestir-se, arrumar-se, lavar-se, cuidar da
aparência, alimentar-se e também proporcionam a melhoria das relações sociais
(5).
Enfermagem enfocando a reabilitação e o uso da Teoria de Orem
A reabilitação é uma das inúmeras funções da enfermagem, que busca no indivíduo
a independência para a realização do auto-cuidado. A habilidade para realizá-lo
é frequentemente a chave para a independência, para o retorno ao lar e para a
vida comunitária. Assim quanto mais precoce é iniciado o o processo de
reabilitação, melhores são as possibilidades de recuperação do indivíduo(1).
Aliado a estes conhecimentos, a aplicação da Teoria Geral de Enfermagem de Orem
conferiu maior qualidade e cientificidade ao cuidado, visto que os indivíduos
com AVE apresentam em sua maioria, limitações para exercer atividades do
cotidiano e de reabilitação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A realização desta prática assistencial corrobora que a participação da
enfermagem nas atividades de reabilitação, com a promoção da capacidade de
autocuidado e melhoria da qualidade de vida das pessoas com AVE. Também
percebe-se a importância da atuação da enfermagem junto à equipe
multiprofissional, promovendo a interdisciplinaridade e a troca de saberes que
culmina na realização de assistência integral e de qualidade às pessoas(17).
Com esta prática assistencial foi possível compreender a importância das
atividades de reabilitação e da conscientização das famílias para tais
cuidados. Quando o indivíduo reconhece suas potencialidades, sendo estimulado
para as ações de autocuidado, torna-se mais ativo e participativo, refletindo
positivamente na autoimagem e auto-estima.
O referencial teórico de Orem serviu de instrumento para o reconhecimento dos
déficits de autocuidado, viabilizando a elaboração de planejamento das
atividades de enfermagem e para a provisão de tais cuidados, além de ter
fornecido apoio para a implementação de atividades de reabilitação.
A compreensão da patogenicidade e das peculiaridades do AVE, assim como suas
características e fatores determinantes, conferem aos profissionais de saúde,
incluindo os Enfermeiros, habilidades para atuar junto ao indivíduo acometido,
proporcionando maiores oportunidades de redução dos danos e incapacidades,
promovendo uma melhor qualidade de vida bem como um viver melhor e mais feliz.