O saber/fazer das parteiras na Maternidade Carmela Dutra de Florianópolis - SC
(1967/1994)
INTRODUÇÃO
Muito tem sido escrito acerca das práticas de parturição no ocidente. Essa
prática estava indiscutivelmente ligada às mulheres(1-4), que além de cuidar
dos doentes, tratando-os com ervas e plantas consideradas medicinais, também
faziam os partos e abortos, que em geral aprendiam umas com as outras, trocando
segredos entre si(1).
As parteiras detinham um saber empírico e assistiam domiciliarmente as mulheres
durante a gestação, parto, puerpério, como também nos cuidados com os recém
nascidos(2). A arte de partejar, acumulada pelas parteiras durante muitos
séculos, iria se transformar em uma arma poderosa contra elas próprias durante
os quatro séculos da inquisição, levando-as à morte nas fogueiras, mesmo assim,
depois da inquisição, elas continuaram a realizar os partos(1).
No Brasil, no período colonial, os partos eram realizados em sua maioria, pelas
mulatas ou brancas e portuguesas, que em geral pertenciam às camadas mais
populares da população(2). No entanto, gradativamente, o conhecimento dessas
parteiras foi incorporado pelos médicos a partir do século XiX, quando estes
passaram a requerer o atendimento dessa clientela. As escolas de medicina,
criadas no início do século XiX, incorporaram os conhecimentos de obstetrícia e
exigiram que as parteiras procurassem fazer sua formação em escolas anexas às
de medicina(2,5). Muito embora com todas essas exigências, as parteiras
continuaram atendendo de forma autônoma. E, posteriormente, com a instituição
das maternidades, no início do século XX, estas passaram a atender os partos
considerados normais nessas instituições(2).
Em santa Catarina, o primeiro curso oficial de formação de parteiras no Estado
que se tem conhecimento, foi criado em Florianópolis na Maternidade Carlos
Corrêa em 1931 e oficializado através do Decreto Estadual nº 96 de 29/11/1935
(6), sendo denominado Curso de Enfermagem Obstétrica. O curso começou a
funcionar por iniciativa do Doutor Carlos Corrêa, que era médico na instituição
e que tinha o apoio de um grupo de médicos e do auxílio de uma parteira, Army
Candemil Capanema(4,7-9). Depois de dois anos de curso, que incluía tanto aulas
teóricas como práticas, essas parteiras recebiam o diploma de Enfermagem
Obstétrica e passavam a realizar os partos considerados normais, tanto em
domicílios como nas maternidades.
Em 1956, por iniciativa do Governador irineu Bornhausen, foi criada em
Florianópolis, a Maternidade Carmela Dutra (MCD), na qual muitas parteiras
passaram a atuar na sala de parto. Essa Maternidade se constituiu em uma
instituição modelo para a época, equipada com o que havia de mais moderno no
país. A equipe era basicamente constituída por médicos, uma enfermeira,
práticos de enfermagem e parteiras. Estas últimas, desenvolviam um trabalho
mais expressivo junto às mulheres, digno de nota, considerando que, na época,
quase não havia médicos obstetras, nem enfermeiras, e o trabalho junto às
parturientes, em sua maioria, eram realizadas pelas parteiras(9).
Quando se busca conhecer o saber/fazer dessas parteiras na MCD, pouco se sabe a
respeito. Em geral, encontram-se apenas fragmentos esparsos escritos em alguns
poucos livros, relatórios, dissertações e teses e, principalmente, através de
bate papos informais, com pessoas (clientes/pacientes) que foram atendidas por
estas parteiras na instituição, por familiares e por outros profissionais que
atuaram na instituição, ou mesmo fora dela.
Em decorrência do pouco conhecimento acerca das parteiras e de sua importância
no contexto da saúde materno-infantil no estado catarinense, o Grupo de Estudos
de História do Conhecimento de Enfermagem e saúde (GEHCEs), vinculado ao
programa de pós Graduação em Enfermagem da uFsC, que vem realizando pesquisa
sobre a História da Enfermagem nos principais hospitais da Grande
Florianópolis, a partir dos anos 40 do século XX, resolveu aprofundar o
conhecimento acerca dessa temática e desvelar o trabalho realizado por estas
profissionais.
Assim, foi realizada uma pesquisa sobre a trajetória profissional das parteiras
na MCD, no período de 1967 a 1994. Esse artigo tem como objetivo historicizar o
saber/fazer das parteiras na MCD, no período estudado. A escolha desse período
deve-se ao fato de que, em 1967, ingressou na referida maternidade a primeira
parteira entrevistada e, em 1994, foi quando a última entrevistada aposentou-se
na instituição.
Considera-se fundamental conhecer e compreender os aspectos relativos à
formação dessas parteiras, o passado profissional e os saberes e fazeres
realizados na prática cotidiana da MCD. Cabe destacar que elas tiveram uma
participação ativa na instituição que precisava ser desvelada, para dar
visibilidade, não apenas ao que já era notório, mas desvelando o invisível(9).
Também é relevante destacar que não havia registros que certificassem a
existência dessas parteiras. Assim, essa pesquisa atende não somente o
interesse historiográfico por si só, mas principalmente porque a partir dele, a
sociedade catarinense pode conhecer um recorte da historia das parteiras de uma
Maternidade, na qual inúmeras gerações de mulheres foram assistidas durante um
momento importante de suas vidas: o nascimento de seus filhos.
METODOLOGIA
Trata-se de uma pesquisa qualitativa com abordagem sócio-histórica. A História
Oral foi utilizada como método de coleta de dados, através de realização de
entrevistas semi-estruturadas, gravadas, com quatro parteiras que trabalharam
na MCD no período de 1967 a 1994. Estas foram selecionadas por preencherem os
critérios de inclusão, ou seja, ter trabalhado na MCD e possuir boa memória,
além de terem referido disponibilidade de tempo e interesse em participar do
estudo. É importante ressaltar, que essas quatro parteiras também foram
selecionadas por terem tido uma posição de destaque entre as demais (seis), por
sua atuação ativa e engajamento com a instituição.
Para localizar e identificar as participantes do estudo, foi realizada uma
busca ativa no setor de recursos humanos da instituição, sendo posteriormente
contatadas por telefone para agendar as entrevistas, que ocorreram nas
residências das participantes. Os dados foram coletados no período de maio a
julho de 2005. O instrumento de coleta de dados foi constituído por questões
relacionadas à formação e ao conhecimento que as parteiras possuíam; às
atividades realizadas no pré parto, parto, pós parto e, finalmente, aos
cuidados com os recém nascidos. Após a transcrição das fitas, os dados foram
analisados com base na análise de conteúdo(10).
O estudo atendeu aos critérios preconizados na Resolução nº 196/96 do Conselho
Nacional de saúde do Ministério da saúde(11) que dispõe sobre as diretrizes e
normas que regulamentam a pesquisa envolvendo seres humanos. As entrevistadas
foram orientadas quanto ao tipo de pesquisa, ao direito de participar ou não,
de poder desistir em qualquer momento e à garantia do anonimato. Apesar de
todas terem autorizado a publicação de seus nomes e sobrenomes, nesse estudo,
optou-se por identificá-las apenas pela letra inicial de seus sobrenomes para
identificar suas falas. Todas as participantes assinaram o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo
Comitê de Ética em pesquisa da universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
protocolo nº 295/05.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
As parteiras entrevistadas
Para uma melhor compreensão acerca das falas das parteiras entrevistadas, faz-
se necessário fazer uma breve descrição acerca de cada uma delas.
Parteira C, 85 anos, viúva, catarinense, realizou o Curso de parteiras na
Maternidade Carlos Corrêa em 1952. Trabalhou durante 14 anos como parteira no
posto de saúde no município de Biguaçu-SC; paralelamente, atuava no Funrural e
realizando partos domiciliares. ingressou na MCD em 1976 e aposentou-se nesta
mesma instituição, em 1992.
Parteira M1, 71 anos, solteira, catarinense, foi da primeira turma (1959-1961)
de alunos do Curso de Auxiliar de Enfermagem realizado na Escola de Auxiliares
Madre Benvenutta, em Florianópolis-SC e, posteriormente, em 1963, fez o Curso
de parteiras na santa Casa de Misericórdia em Porto Alegre-RS. Ingressou na MCD
em 1977, trabalhando até 1990, quando se aposentou.
Parteira M2, 61 anos, casada, catarinense, realizou um Curso de Formação para
parteiras na própria MCD com duração de seis meses, porém sem o reconhecimento
da secretaria Estadual de Educação de Santa Catarina. Ingressou na MCD em 1967,
permanecendo nesta mesma instituição até 1994, quando finalmente aposentou-se.
Parteira V, 68 anos, casada, catarinense, ingressou no Curso de Enfermagem
Obstétrica na Maternidade Carlos Correa, em 1960, quando tinha dezoito anos,
estimulada pela cunhada, que já era parteira. Ingressou na MCD em 1969,
permanecendo até 1985, quando resolveu desligar-se desta instituição, e
trabalhar no posto de saúde de Biguaçu-SC, pois já não era mais permitido às
parteiras da MCD realizarem partos. Aposentou-se em 1989.
Os saberes e fazeres
Entendemos o saber versus fazer, como uma analogia entre a teoria versus a
prática do trabalho desenvolvido pelas antigas parteiras tradicionais até
aquelas que foram formadas no modelo médico. O trabalho da parteira deve ser
compreendido como um conjunto de práticas e saberes, devendo ser
contextualizado em suas múltiplas relações sociais, no contexto em que está
inserido(3). É oportuno salientar que, na época em que a parteira tradicional
estava inserida na comunidade, tinha um aprendizado empírico, muitas vezes
transmitido por um familiar, uma amiga, vizinha ou outra parteira. Em
contrapartida, a parteira que atuava geralmente nas maternidades, era formada
no modelo biomédico, compartilhando das normas e rotinas impostas por este.
Desta forma, os saberes e fazeres relatados a seguir são exatamente dessas
parteiras que sofreram essa forte influência biomédica tanto em sua formação
como em sua atuação.
Este saber se caracteriza pelo instrumental básico de que a Enfermagem se
utiliza para realizar o seu trabalho, instrumental este legitimado e
reproduzido pelo ensino desta prática. O saber que se caracteriza não por uma
instância abstrata, neutra, ou desvinculada da prática, mas como um saber
histórico e que, como tal, se situa no contexto de saúde de cada época(12).
Os saberes e fazeres das parteiras na Maternidade Carmela Dutra se faziam nos
diferentes momentos em que acompanhavam as mulheres nos períodos clínicos do
parto e no cuidado de seus filhos. Assim, foram identificadas as seguintes
categorias de análise: cuidados na admissão das parturientes; cuidados no
parto; cuidados no pós-parto e cuidados com os recém-nascidos.
Cuidados na admissão das parturientes
As gestantes, ao buscarem atendimento na MCD, eram examinadas pelas parteiras,
que faziam a avaliação obstétrica, para identificar se elas estavam ou não em
trabalho de parto. Elas possuíam autonomia para avaliar e decidir sobre a
internação, caso fosse diagnosticado o trabalho de parto e, até mesmo, já
assistir ao parto, quando este era iminente. Os procedimentos como tricotomia e
enema faziam parte da rotina hospitalar, portanto era cumprida de acordo com o
protocolo pré-estabelecido.
Quando a paciente chegava na admissão, a gente examinava, fazia o
toque e, se estivesse em trabalho de parto, ficava internada. Então,
a gente orientava a paciente e começava a preparar: fazia tricotomia
do períneo, o enema com sabão de côco diluído, através de uma sonda.
Depois levava a paciente no banheiro, onde ela fazia as necessidades,
tomava banho e vestia a camisola. Depois a gente levava pra sala de
pré-parto, se ela ia para a cesariana, então a gente fazia a
tricotomia do períneo e do abdômen, e levava pro Centro Cirúrgico.
Se, por acaso, o nenê já estivesse coroando, aí nós fazíamos o parto
dela ali mesmo na admissão. Isto era rotineiro acontecer (Parteira
V).
Percebe-se no relato da parteira, a experiência prática adquirida no fazer
cotidiano, que possibilitava discernir com facilidade, até onde poderiam agir
sem solicitar auxilio do médico plantonista ou residente, ou seja, havia uma
clareza sobre os limites de atuação. Assim, eram orientadas a "passar a o
caso", nas situações em que extrapolavam a identificação do início do
verdadeiro trabalho de parto, o diagnóstico de rotura das membranas e a
internação por uma indicação obstétrica já explícita. As parteiras possuíam o
entendimento de que a sua responsabilidade era compartilhada com o médico, ou
até mesmo "transferida" para ele a partir do momento em que solicitavam a
avaliação do mesmo.
Eu examinava, via como estava, e se tinha dúvida, então chamava o
médico para avaliar, pois a partir dali a responsabilidade era toda
dele. Isso de chamar o médico era costume das antigas [...] o médico
de plantão sempre recomendava (Parteira M1).
Essa possibilidade de atuação conjunta era característica específica das
parteiras inseridas na instituição. Em estudo realizado com parteiras
tradicionais, que atuavam na comunidade, as autoras referem que "as parteiras
pensam que o atendimento à mulher no processo de gestação e parto exige a união
de esforços e saberes. A esperança manifestada, visa o partejar numa equipe
junto a profissionais da equipe de saúde"(13).
[...] Nós só internávamos a paciente em trabalho de parto com a
dilatação do colo igual ou superior a três centímetros, com
descolamento prematuro de placenta, placenta prévia, com infecção
urinária, diabetes descompensada, pré-eclâmpsia e se estava com bolsa
rota. No caso de bolsa rota era para prevenir uma infecção no feto. E
se o colo tivesse fechado ou não, ela aguardava na unidade para ver
se ocorria uma evolução no parto (Parteira C).
Também chama atenção quanto ao conhecimento e uso da terminologia obstétrica
correta, o que denota que possuíam um embasamento teórico que associado a
experiência prática, conferia respaldo a valorização do seu trabalho e, de
certa forma, uma posição igualitária junto aos médicos. No entanto, em caso de
dúvidas sobre o real início do trabalho de parto, adotavam uma conduta mais
expectante antes de encaminhar para o médico decidir sobre a definição do caso.
Às vezes apareciam aquelas pacientes em pródromos, nós não mandávamos
embora, pedíamos para elas ficarem caminhando por algumas horas e
depois o residente é que resolvia esses casos, mas se estava em
franco trabalho de parto nós internávamos (Parteira M1).
A partir dos relatos das parteiras, pode-se perceber que alguns procedimentos
de preparo da parturiente (tricotomia e enema), realizados de forma rotineira e
inquestionável na época em que atuavam na MCD, atualmente são categorizadas
pela Organização Mundial da Saúde (OMS)(14) como práticas claramente
prejudiciais ou ineficazes e que devem ser eliminadas. Apesar dessa
recomendação, em maternidades de muitos países, elas ainda continuam sendo
realizadas(15-16). No entanto, o saber das parteiras, demonstrado na avaliação
clínica realizada para diagnosticar os sinais prodrômicos, o trabalho de parto
de parto verdadeiro, e as intercorrências maternas, é muito atual e utilizado
na triagem obstétrica das maternidades para se avaliar as condições da gestante
e do feto, e tomar as decisões sobre a assistência a ser prestada(15).
Cuidados no pré-parto
Os cuidados no pré-parto correspondem aos inerentes ao período de dilatação, ou
seja, aquele que transcorre desde o início das contrações uterinas regulares,
que modificam o colo uterino até a sua dilatação completa. A parturiente
geralmente é internada na fase ativa do trabalho de parto, ou seja, após os 3cm
de dilatação(17). Esse período é o mais longo, quando comparado ao parto e pós-
parto, assim como considerado o mais e árduo pelas parturientes. Assim, requer
uma gama de cuidados para que possam ser amenizados os desconfortos,
identificadas as intercorrências obstétricas, e realizadas orientações que
contribuam para uma boa evolução do trabalho de parto, os quais foram relatados
pelas parteiras.
Quando a paciente estava no pré-parto, nós orientávamos que elas
ficassem em pé, o máximo que pudessem, e se fossem deitar, que fosse
do lado esquerdo, tentando manter uma respiração mais tranqüila, para
não faltar oxigênio para o nenê. Nós ficávamos atentas, quando a
paciente era multípara, nós a levávamos para a mesa de parto com oito
para nove centímetros, senão o nenê poderia cair no caminho, mas se
fosse primípara, nós esperávamos até que o nenê começasse à coroar,
para levarmos para a sala de parto.Quando nós fazíamos o toque, já
sabíamos que o nenê tinha uma apresentação pélvica, ou outra que não
fosse normal, então passávamos o caso para o médico, que levava para
cesárea. No caso de bolsa rota, a gente era orientada para não fazer
muito toque, para evitar a contaminação, o que seguíamos
religiosamente (Parteira M2).
Na fala acima, nota-se que no saber/fazer, havia uma preocupação com a
implementação de ações adequadas para o acompanhamento do trabalho de parto,
que eram benéficas para preservar o bem estar materno e fetal, e que ainda são
respaldadas pela literatura obstétrica(15). Como as parteiras atuavam
institucionalmente, compartilhavam de rotinas impostas às parturientes, a
exemplo da restrição hídrica e alimentar. No entanto, já utilizavam da sua
autonomia para decidir quando deveriam flexibilizar essa rotina, que há alguns
anos, com base nas evidências científicas, passou a ser considerada uma prática
frequentemente utilizada de modo inadequado pela OMS(14).
As pacientes em trabalho de parto não se alimentavam, ficavam em
jejum o tempo todo, pois com o passar do tempo as contrações
aumentavam de intensidade e a tendência era delas vomitarem [...]. De
vez em quando nós oferecíamos água para as pacientes, em pequena
quantidade, pois elas gastavam muita energia (Parteira C).
Além do acompanhamento da evolução do trabalho de parto, as parteiras também
realizavam técnicas de enfermagem como administração de medicamentos:
Olha, quando a paciente estava no pré-parto e em trabalho de parto,
eu sempre ensinava a fazer respiração cachorrinho, e quando viesse a
contração, pra ficar de lado direito, que era bom para o coraçãozinho
do nenê, pra circulação. Já a medicação era prescrita pelo médico, e
feita por nós [...]. A gente fazia rompimento da bolsa amniótica com
sete para oito centímetros, eu sentia que o bebê na hora do parto
deslizava mais rápido, quando a bolsa era rompida na mesa ou um
pouquinho antes de ir pra mesa [...]. A gente tinha que verificar BCF
(batimento cardíaco fetal), se acaso fosse cento e quarenta
batimentos por minuto então era normal, mas se fosse acima de 160 era
taquicárdico, e se fosse abaixo de 120 era bradicárdico, aí a gente
comunicava o médico (Parteira M1)
Assim, observa-se que as parteiras além de possuírem conhecimento e experiência
na área obstétrica que possibilitava avaliar as parturientes e atuar em cada
situação apresentada, também assumiam as atividades que atualmente são dos
auxiliares/técnicos de enfermagem. A assistência durante o período de
dilatação, abrange diversos aspectos, dentre eles a realização de técnicas
imprescindíveis para a manutenção do bem estar da mulher e do feto, a detecção
precoce de riscos, medidas de conforto (físico e psicológico) e acompanhamento
e evolução do trabalho de parto(18).
Cuidados no parto
O parto em si é também chamado de período expulsivo, compreendido entre a
dilatação completa do colo e a completa expulsão fetal(17). A parturiente
então, geralmente é levada para sala de parto, dependendo da rotina de cada
instituição. A equipe costuma orientar como a parturiente deve agir e quais os
procedimentos que serão realizados. Neste momento, a parturiente deve ser
considerada a protagonista do processo, e a equipe deve assumir o papel de
expectador, intervindo quando for necessário, para manutenção do bem estar
materno e fetal(18).
No entanto, nem sempre isso acontecia, algumas manobras que eram realizadas com
a intenção de "ajudar", atualmente não são práticas recomendadas. Na fala da
parteira "C", também observa-se que eram realizavam orientações sobre alguns
procedimentos realizados, objetivando a participação da parturientes.
Entretanto, as reações nem sempre eram positivas, o que demonstra que as
mulheres não aceitavam as intervenções e expressavam de forma explicita seus
sentimentos.
Algumas pacientes não conseguiam fazer a força suficiente na hora do
parto, então era feita uma manobra em cima do abdômen da paciente
para ajudar o bebê a nascer. Essa manobra era chamada de Kraft e
depois passou a ser chamada de Kristeler. Quando nós realizávamos
algum procedimento na paciente, nós explicávamos o que estávamos
fazendo, para que ela pudesse participar daquele momento, o máximo
possível. Tinha sempre aquelas pacientes que ficavam com medo e
inseguras, por isso gritavam, gritavam muito, esperneavam, chegavam
até a agredir, mas tentávamos pedir para que ficassem calmas, pois o
bebê só ia nascer se elas ajudassem (Parteira C).
As parteiras assumiam a assistência ao parto de forma integral, que iniciava
quando a tomada de decisão sobre quando levar a parturiente para a sala de
parto, fato que também foi apontado por outro estudo(19), no qual as parteiras
realizavam praticamente todos os partos e o médico só era chamado se houvesse
alguma complicação.
A gente levava a paciente pra sala de parto quando já estava na hora
de nascer, botava na mesa e pedia pra ela deitar e colocar as pernas
nas perneiras. Conforme ela ia se ajeitando, eu ia ensinando: segura
no ferro; quando vier a contração, faz pra baixo. Quando a gente
assumia o parto tinha que fazer tudo, né![...] Quando o bebê nascia
era mostrado pra mãe, ela não tinha contato com o bebê e nem dava de
mamar [...] (Parteira M1).
Como já comentado anteriormente, muitas práticas realizadas pelas parteiras,
inclusive os esforços de puxos prolongados e dirigidos (manobra de Valsalva),
como relatado pela parteira "M1", não são mais recomendadas(14-15), pois podem
comprometer as condições maternas, fetais e neonatais. É esperado que a
parturiente faça espontaneamente a força na hora das contrações, para que o
feto se mova através do canal do parto.
Na hora do parto, eu fazia a anestesia, era quando o períneo estava
todo distendido e a criança estava coroando, nesse momento eu fazia a
episiotomia. Eu acho que era melhor fazer logo, do que deixar a
criança ficar esperando muito tempo no canal do parto. Na hora que a
paciente estava com contração, ela não sente cortar o períneo, nem
mesmo sem anestesia, porque fica anestesiado naturalmente. Quem me
ensinou a fazer o parto foi a Dona Army (parteira e professora do
Curso de Obstetrícia da Maternidade Carlos Corrêa). Ela tinha muita
paciência com a gente. A gente aprendia que o períneo tinha três
camadas, e que a gente devia ter muito cuidado com o reto (Parteira
V).
A parteira "V" relata, com ênfase e detalhamento, o conhecimento técnico
adquirido através do Curso realizado na Maternidade Carlos Corrêa, que lhe
permitia executar o procedimento com habilidade. Também evidencia-se um saber
fazer, para além do cotidiano da prática, humano e sensível. O saber científico
era compatível com as práticas recomendadas nos tratados de obstetrícia(20-21)
na época, que apontavam as vantagens da episiotomia para a proteção do períneo
contra lacerações e profilaxia de prolapsos gênito-pélvicos, entre outras.
Atualmente a episiotomia é um procedimento que não deve ser utilizado de forma
rotineira(14).
Em outro estudo, realizado com parteiras que atuavam na zona rural, a autora
relata que estas profissionais adquiriam a experiência prática, sozinhas, no
cotidiano do trabalho, e também em cursos formais. Esse conhecimento ia muito
além da fisiologia do aparelho reprodutor, mas as práticas realizadas,
aconteciam nas situações mais adversas, relacionadas às condições das mulheres
em trabalho de parto e parto(4).
Cuidados logo após o parto
Os cuidados nesse período compreendem o período de dequitação e de Greenberg. O
período de dequitação, também chamado de secundamento, se processa após o
desprendimento do feto. Esse momento se caracteriza pelo descolamento, descida
e expulsão da placenta e das membranas para fora das vias genitais(17).
Nos relatos das parteiras sobre os cuidados no pós-parto, observa-se
que elas adotavam uma conduta expectante, que era e ainda é indicada
para esse período, quando não há risco de complicações(15), denotando
o conhecimento e preocupação em respeitar a fisiologia, ao não
realizarem práticas intempestivas para reduzir o tempo de dequitação.
[...] Eu esperava a dequitação da placenta, que também não tinha que
ficar puxando, senão arrebentava e ficava tudo lá dentro com as
membranas (Parteira M1).
Com a exclusão das parteiras no acompanhamento do trabalho de parto, esse papel
de "guardiãs" da fisiologia não foi totalmente ocupado por outro profissional
(22). Observa-se que elas também tinham habilidade em identificar precocemente
casos de retenção placentária ou atonia uterina. Nesses casos, ao reconhecerem
os limites de competência, solicitavam avaliação e conduta médica:
Quanto à placenta, às vezes pegávamos umas que demoravam para sair,
outra acabavam não saindo, tendo que serem submetidas a uma curetagem
com o auxílio de anestesia dentro do centro cirúrgico. Outro caso que
tínhamos que prestar muita atenção eram as atonias uterinas, que
ocorriam principalmente com multíparas, e isto ocorria depois da
saída da placenta, então aplicávamos a Pituitina que era um
medicamento para contrair o útero. Lembro que o Dr H, ele era quem
sempre mandava eu fazer [...] (Parteira C).
O fazer das parteiras era pautado por uma autonomia de atuação que lhes
possibilitava tomar condutas preventivas (examinar cuidadosamente a placenta) e
curativas (sutura das roturas perineais) no período de Greenberg (primeira hora
após a dequitação), preconizadas pela literatura obstétrica(17-18,20), ancorada
no saber adquirido no curso de formação e no próprio cotidiano do trabalho.
Quando a placenta era expulsa, eu examinava detalhadamente, para ver
se tinha ficado alguma membrana, ou se tinha algum vasinho sangrando.
Ás vezes dava tempo de fazer a episio; outras vezes já rompia, ai
rasgava tudo, ocorrendo até uma laceração até o reto, isto era muito
ruim, pois para dar pontos era bem trabalhoso (Parteira V).
Nessa descrição detalhada, a entrevistada demonstra ser primorosa e cuidadosa
em sua avaliação clínica, no entanto, arraigada nas condutas obstétricas
vigentes na época que preconizavam a realização de episiotomia para a "proteção
do períneo".
A assistência das parteiras extrapolava os limites do centro obstétrico e se
estendia à unidade de internação (atual alojamento conjunto), sendo que também
se sentiam responsáveis por assegurar o bem estar das puérperas que tinham sido
atendidas por elas no parto.
[...] Ocorria muito caso de atonia uterina na sala de parto e, às
vezes, nas unidades, então a gente botava um saquinho de areia em
cima do útero para fazer uma pressão para ele contrair. E quando as
pacientes iam para as unidades, a gente falava para as funcionárias
terem cuidado com aquelas pacientes que sangravam muito, para evitar
o choque ( Parteira V).
Pode-se inferir que elas tinham a noção de que a hemorragia pós-parto era (e
ainda é) uma das causas de morbidade e mortalidade materna(15). Assim, o
período de Greenberg, era considerado delicado e até mesmo perigoso, requerendo
um maior controle da puérpera, que não ficava constantemente acompanhada pelo
pessoal de enfermagem. Também se observa o uso de medidas criativas, como o uso
de saco de areia, que faziam parte do cotidiano da assistência ao parto nas
instituições hospitalares, e continuam em vigor até os dias atuais.
Cuidados com o recém-nascido
Simultaneamente aos cuidados realizados com a mulher ainda na mesa de parto,
realizavam-se os primeiros cuidados com o recém-nascido. Atualmente, apenas
alguns desses cuidados ainda são realizados na sala de parto, quando o recém-
nascido não apresenta intercorrências clínicas.
Quando o bebê nascia, era bom ordenhar o cordão antes de cortar,
[...] assim ele recebia bastante sangue, depois pinçava e cortava o
cordão umbilical uns três dedos e amarrava um cordãozinho de algodão.
Com o tempo, trocamos o cordãozinho pelo anel de borrachinha [...]. A
gente colocava dois aneizinhos [...] e depois entregava o bebê pra
atendente.[...] a atendente limpava o rostinho, o narizinho, a
boquinha bem limpinha com uma pêra de borracha pra tirar toda a
secreção; às vezes o bebê nascia agoniadinho, a gente atendia ali
mesmo, usava até oxigênio. Depois dos cuidados, aí vinha a
identificação, punha uma pulserinha no braço e na perninha do bebê
com o nome da mãe, carimbava o pezinho e o dedo do polegar da mãe
numa ficha de dados do bebê. Tudo isso era feito na sala de parto num
bercinho aquecido. Depois o bebê era levado para o berçário que
ficava ao lado, ligado por uma janela. Nessa época, não tinha
pediatra para examinar na sala de parto (Parteira M1).
[...] se por ventura o bebê necessitasse de um cuidado maior, então
levávamos enroladinho para o berçário de alto risco que ficava no
piso superior, através de uma escada externa (Parteira C).
Através da prática clínica e da literatura, destacamos que houve mudanças
substanciais quanto ao atendimento ao recém-nascido do período estudado (1967-
1994) até os dias atuais. Muitas condutas referidas pelas parteiras já não são
mais recomendadas, entre elas a ordenha do cordão, o uso da pêra de borracha
para a aspiração de secreções, o afastamento dos recém-nascidos logo após o
parto e a ausência do neonatologista na sala de parto(14-15).
Atualmente preconiza-se que os recém-nascidos sejam colocados juntos às mães,
para promover o contato precoce e a amamentação. A própria sucção feita pelo
bebê, estimula a liberação da ocitocina, tão necessária à contração uterina e à
descida precoce do leite materno, inclusive abreviando o tempo de dequitação
(18).
Gradativamente, com o passar dos anos, a MCD passou a incorporar novas rotinas
à sua estrutura. Com o estímulo da OMS/UNICEF, que lançou, a partir de 1989,
uma campanha mundial que visava promover, proteger e apoiar o aleitamento
materno mediante a adoção de dez passos, a instituição, aderiu e recebeu em
1996, o título "Hospital amigo da Criança".
CONCLUSÃO
No Brasil e no contexto mundial, durante um longo período de tempo, as
parteiras comunitárias foram as principais responsáveis por milhões de pessoas
que vieram ao mundo, através de suas mãos, dos seus saberes e fazeres. Com a
institucionalização do parto, em nome da redução da mortalidade materna e
neonatal, esse passa a ser medicalizado, baseado na premissa de que a medicina
poderia dominar ou neutralizar seu risco. Nesse contexto, inicialmente, as
parteiras foram inseridas na assistência hospitalar, entretanto, com a mudança
da Lei do Exercício Profissional da Enfermagem e a entrada dos médicos no campo
obstétrico de forma mais contundente, elas foram gradativamente perdendo seu
espaço e o seu reconhecimento.
A realização desse estudo possibilitou dar "voz e vez" às parteiras da MCD, que
tanto contribuíram e comprometeram-se com assistência obstétrica. Os relatos
dessas mulheres demonstram uma grande nostalgia, "de um tempo que passou e que
não volta mais" e que teve um grande significado em suas vidas. Um tempo em que
eram reconhecidas como profissionais, tinham um papel bem definido e de
destaque na sociedade local. Afinal, "ajudavam a trazer seres humanos ao
mundo".
A partir dos resultados obtidos, acreditamos ter desvelado, por meio da
memória, uma parcela importante da história das parteiras na MCD, no período
compreendido entre 1967 a 1994, desvelando seus saberes/fazeres na atenção ao
parto e ao nascimento e, inclusive, nos cuidados ao recém-nascido. As práticas
eram baseadas tanto no saber formal apreendido no curso de Enfermagem
Obstétrica na Maternidade Carlos Corrêa que serviu de escola, quanto no próprio
campo da prática, a partir de suas experiências, e no apreendido com outras
parteiras e com os médicos que atuavam na instituição. Assim, todas as práticas
de cuidado das parteiras eram realizadas de acordo com o modelo biomédico
vigente na época, em consonância com as condutas e rotinas hospitalares
instituídas na maternidade estudada.
O saber/fazer das parteiras que atuavam em maternidades, construído nesse
modelo assistencial, influenciou fortemente a formação das enfermeiras
obstétricas. Desta forma, a inserção das enfermeiras no cenário do cuidado
obstétrico foi permeada pela incorporação de muitas práticas intervencionistas
já desenvolvidas pelas parteiras no ambiente hospitalar. Atualmente, somente
algumas práticas são recomendadas, especialmente as que respeitam a fisiologia
do parto, sendo que as desnecessárias e não benéficas estão sendo abolidas
gradativamente em algumas maternidades brasileiras.