Literatura brasileira sobre o trabalho de enfermagem fundamentada em categorias
marxianas
INTRODUÇÃO
Analisa-se a literatura brasileira sobre o trabalho de enfermagem que se baseia
nas categorias teóricas trabalho, processo de trabalho e correlatos ancorados
em Marx e em outras vertentes teóricas articuladas.
Essa produção origina-se no Brasil no início dos anos 1980, a partir da obra de
Maria Cecília Puntel de Almeida e colaboradores(1,2), constituindo uma
importante contribuição de pesquisadores brasileiros à crítica social e
política da enfermagem no país, enfocando-a como prática inter-relacionada às
demais práticas sociais. O uso das categorias em questão permite compreender
que esta área, mais do que uma profissão técnica e/ou científica, situa-se na
sociedade como trabalho e, portanto, como parte do conjunto de suas influências
e movimentos, de forma articulada às transformações históricas do setor saúde.
Mais recentemente, esses estudos abordam questões da prática de enfermagem no
Sistema Único de Saúde, com certo aprofundamento da interlocução com as
ciências sociais e humanas(1).
No Brasil, a visão marxiana do trabalho é tomada como base para a construção do
pensamento social em saúde, nos anos 1970/80, influindo largamente nas
produções acadêmicas da área, nas práticas assistenciais, e lutas políticas por
mudanças no sistema nacional de saúde, em um contexto de democratização e
crescimento da participação do Estado brasileiro nas questões de saúde(3). Esse
pensamento difunde ideias sobre o caráter sociopolítico das práticas em saúde e
do processo saúde-doença, propiciando a compreensão da saúde e de suas várias
profissões/trabalhos em suas conexões sociais e transformações históricas(1).
Essa absorção se fortalece através da produção de pesquisadores como Ricardo
Bruno Mendes-Gonçalves, que, com base em Marx, teoriza sobre o processo de
trabalho em saúde, dedicando-se à compreensão do sentido social e político das
relações entre ciência, técnica e organização da atenção à saúde, o que vai
permitir o entendimento de que todo trabalho é ato processual orientado por
finalidades sociais, não se restringindo à objetividade técnico-científica(4).
Sua produção é particularmente incorporada à pesquisa em enfermagem e
fundamenta a compreensão de suas peculiaridades, contradições e interfaces com
as demais práticas de saúde, e sua característica de trabalho processual
composto por vários elementos interligados que se articulam entre si e a
contextos concretos ' objetos, tecnologias, sujeitos, produtos e finalidades
sociais.
Na concepção de Marx, é através do trabalho que o homem, em relação, constrói-
reconstrói criativamente a vida, gerando o social, a própria condição humana e
o processo histórico. A vinculação do trabalho ao processo de geração de
riquezas e ao mercado acarreta desumanização e alienação, bem como o torna
desfavorável à ação autônoma dos sujeitos(5).
Processo de trabalho é interpretado como ação humana transformadora,
intencional, dirigida a um fim social, que envolve tempo, energia, objetos e
aplicação de meios à produção de bens úteis à vida; como ato produtivo se
inter-relaciona a movimentos de produção, consumo e circulação/distribuição de
produtos em contextos concretos, produzindo resultados segundo necessidades que
incluem a reprodução das relações sociais que predominam(4,5).
Essa categoria permite compreender que o fazer da enfermagem responde a
finalidades e necessidades sociais, envolvendo sujeitos, subjetividades e
reiteração e criação humana, num processo voltado à apreensão e transformação
de objetos de intervenção, através da criação e aplicação de tecnologias
materiais e imateriais ' instrumentos, saberes, relações, comportamentos ', com
a efetiva participação coletiva de seus agentes, constituindo-se em ação social
limitada no tempo e espaço, mobilizada pela ação humana.
O debate sobre o trabalho em saúde e enfermagem incorpora vários conceitos
correlatos ao de trabalho e processo de trabalho, como divisão social e técnica
do trabalho, força de trabalho, trabalho produtivo e não produtivo, práxis,
alienação do trabalho, trabalho vivo e trabalho morto, dentre outros.
Mas o uso dessas categorias não é exclusivo, na medida em que a essas se somam
ideias e conceitos que integram outras vertentes teóricas. Na literatura
científica, duas publicações tratam da incorporação pela enfermagem das
categorias em questão nos estudos da prática. A primeira, de 1999, analisa as
contribuições da pós-graduação brasileira em enfermagem, de 1983-1997, à
interpretação da prática em saúde e enfermagem a partir de Marx. Aponta uma
leitura inicial mais estrutural e, em especial a partir da segunda metade dos
anos 1990, a incorporação de uma interpretação dialética referente à
objetividade-subjetividade do trabalho com base em outras vertentes teóricas
(1). A segunda, de 2005, discute como a enfermagem brasileira aborda em
artigos, do período 1993-2003, a categoria específica processo de trabalho,
assinalando uma concentração dos debates no ano 2000 e nos instrumentos do
trabalho do enfermeiro(6).
A despeito de o primeiro estudo evidenciar a incorporação de novas temáticas e
o uso de novas referências das ciências sociais e humanas no debate acerca da
enfermagem como prática social, ao incorporar o sujeito e a dimensão da
subjetividade como essenciais a sua compreensão crítica, ainda se carece de
estudos que resgatem e analisem peculiaridades dessa produção. Sobretudo,
parece significativo recuperar o modo como a literatura em questão aproxima-se
da dimensão relacional, ético-política, micropolítica e cultural presente na
prática de enfermagem, envolvendo leituras micro-sociais desta.
Assim, considerando a importância teórica do debate social da prática de
enfermagem e os movimentos em curso em torno da sua teorização, se dá
continuidade à análise da literatura científica sobre o trabalho de enfermagem
fundamentado em Marx, em artigos publicados no Brasil entre 1981 e 2008,
enfocando características gerais, especificidades de seus temas de estudo,
abordagens metodológicas, verificando tendências teóricas. Pretende-se, assim,
atualizar a trajetória histórica dessa produção e mobilizar futuras pesquisas
que considerem características e possíveis desafios encontrados.
METODOLOGIA
Realizou-se uma revisão da literatura(7), com análise crítica, através de
abordagem quanti-qualitativa, utilizando como fonte de informações a base
LILACS (Literatura Latino-Americana de Ciências da Saúde), dado o fato de que
esta congrega a maior produção e os principais periódicos nacionais da área de
enfermagem latino-americana, previamente avalizada pelos pares através das
revistas científicas. Partiu-se da questão: Sobre que objetos da prática os
estudos brasileiros do trabalho da enfermagem baseados nas categorias marxianas
trabalho e processo de trabalho recaem e como se configura a sua apropriação
teórico-metodológica?
Os critérios de inclusão da literatura adotados foram: 1) artigos que discutem
o trabalho de enfermagem com base nas categorias trabalho, processo de trabalho
e conceitos correlatos baseados em Marx e/ou em autores que o utilizam,
independentemente da centralidade, aprofundamento, e articulação com o
empírico; 2) artigos publicados entre 1981-agosto de 2008 (mês de consulta às
fontes de dados), considerando o ano de 1981 um marco na abordagem social e do
processo de trabalho da enfermagem no Brasil, com base em Marx, a partir de
estudo de Maria Cecília Puntel de Almeida e colaboradores(1, 2).
Para busca da literatura utilizou-se o comando "trabalho", como descritor e
palavra do título, acrescido das palavras"enfermagemor enfermeiro orenfermeiros
orenfermeira orenfermeiras" e do filtro "Brasil" para país de publicação. Essa
busca gerou 361 publicações, abrangendo perspectivas teóricas diversas. Destas,
foram triadas 73, utilizando-se como critérios de exclusão: 1) estudos sem
especificidade temática e/ou teórica para a pesquisa; 2) textos repetidos; 3)
outras publicações que não artigos. A definição desses filtros baseou-se na
consulta prévia aos Descritores em Ciências da Saúde, relacionados ao tema
trabalho; e em sua testagem e definição, considerando a melhor captação da
literatura em termos de volume e especificidade.
Para ampliação da revisão, mantidos os critérios de inclusão e exclusão
estabelecidos, realizou-se nova busca na LILACS, por autor, a partir de lista
prévia (com 43 autores). Considerou-se autores conhecidos, referenciados em
estudo de revisão(1), e identificados via consulta a grupos de pesquisa do
Censo CNPq 2006(8). Efetuou-se, ainda, busca direta nas 15 revistas nacionais
de enfermagem disponíveis no Portal de Revistas Científicas em Ciências da
Saúde(9). Por fim, verificou-se as referências bibliográficas dos estudos
levantados, com o propósito de encontrar outros de interesse. Através dessas
estratégias foram identificados mais 24 artigos, que somados aos anteriormente
referidos totalizaram 97 publicações.
Os artigos foram lidos na integra e analisados segundo três eixos: 1) número e
distribuição periódica das publicações, considerando: os anos 1980 ' de
emergência e desenvolvimento inicial dessa produção; os anos 1990 ' de
consolidação dessa produção, em um cenário de mudanças no setor saúde e na pós-
graduação brasileira; e os anos 2000 ' de reflexo das mudanças da década
anterior; 2) os temas em debate e aspectos neles enfatizados (considerando
elementos do processo de trabalho ' tecnologias, força de trabalho/sujeitos e
subjetividades/interações, produtos e resultados sociais, relação com o
contexto ', e a sua totalidade); 3) tipo de estudo (pesquisa bibliográfica/de
campo ou reflexão ou ensaio teórico), abordagem metodológica (quantitativa,
qualitativa, quanti-qualitativa), e uso exclusivo de conceitos marxianos ou
associados a outras correntes teóricas.
O processo analítico foi desenvolvido em duas etapas: 1) construção de banco de
dados no Programa Excell, com as informações disponíveis na base consultada,
acrescidas daquelas derivadas de análise qualitativa dos artigos segundo os
eixos estabelecidos; 2) e análise interpretativa, mediante reconhecimento do
sentido geral de cada artigo analisado e da apreensão dos sentidos específicos
presentes em cada um conforme os elementos de análise estabelecidos, e processo
final classificatório que resultou nas categorias empíricas apresentadas e
quantificadas. Essas categorias foram consensuadas por dois dos participantes
da pesquisa, tendo em vista a redução de possível viés de análise.
RESULTADOS
Entre os 97 artigos que tratam do tema trabalho de enfermagem em uma
perspectiva marxiana, 2 (2,06%) foram publicados no período 1981-1989, 21
(21,65%) nos anos 1990-1999, e 74 (76,29%) entre 2000-2008. Identificou-se um
crescimento na publicação nacional de artigos sobre o tema a partir da década
de 1980, concentrado sobretudo no último período e nos anos 2005, 2006 e 2007.
Os temas versam sobre: reprodução e inovações da prática de enfermagem,
presente em 31 (31,96%) artigos; espaço social de trabalho da enfermagem/do
enfermeiro no setor saúde, em 22 (22,68%); bases conceituais do trabalho de
enfermagem, em 17 (17,53%); processos sociais e/ou institucionais e a
organização do trabalho de enfermagem, em 14 (14,43%); recursos humanos em
enfermagem, em 11 (11,34%); e relação trabalhador de enfermagem-trabalho, em 2
(2,06%) artigos.
Esses grandes temas ou temáticas, relativos aos elementos ou totalidade do
trabalho, agregam debates com ênfases peculiares na prática de enfermagem/
enfermeiro (Quadro 1), conforme apresentado a seguir.
Através do tema reprodução e inovações da prática de enfermagem, olhando para a
totalidade desta, dá-se ênfase aos diferentes modos de efetivar e/ou pensar o
trabalho de enfermagem/do enfermeiro, de forma articulada ao contexto de
organização das práticas de saúde, de modo a evidenciar o que se reproduz e/ou
vem mudando socialmente. Abordam-se contribuições, desafios e impasses da
enfermagem frente a mudanças propostas e em construção no setor, considerando
implicações para o saber-fazer cotidiano. Entre os estudos, alguns destacam a
participação dos sujeitos na prática ' trabalhadores e usuários, seus modos de
pensar e interagir.
O segundo tema mais frequente ' espaço social do trabalho de enfermagem/do
enfermeiro ' enfatiza: os seus elementos constitutivos; o lugar que o trabalho
de enfermagem e/ou do enfermeiro ocupa no trabalho coletivo; a articulação ou
dicotomia entre cuidar e gerenciar na enfermagem; a compreensão da enfermagem
como vocação ou trabalho; modos de a enfermagem colocar-se frente à
normatividade institucional; e a autonomia do enfermeiro no trabalho. Essas
publicações abordam componentes, dimensões, articulações, dicotomias,
contradições e tensões presentes no processo de trabalho da enfermagem, em sua
relação com o trabalho coletivo em saúde e o espaço social ocupado por seus
trabalhadores. Tal como no tema anterior, algumas dessas publicações também
destacam a dimensão dos sujeitos e/ou de suas interações.
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O terceiro tema mais tratado, focando tecnologias do trabalho de enfermagem,
ocupa-se de suas bases conceituais, teorizando sobre: os conceitos trabalho e
processo de trabalho, relacionados à enfermagem; as dimensões do trabalho de
enfermagem (assistir, gerenciar, educar e pesquisar); o cuidar/cuidado e/ou o
gerenciamento do cuidado de enfermagem; trabalho interdisciplinar na
enfermagem; a identidade profissional do enfermeiro; bases orientadoras da
assistência e gerenciamento em enfermagem; humanização, comunicação e ética/
bioética no trabalho de enfermagem; e a produção social de conhecimentos na
enfermagem.
O quarto tema articula processos sociais e/ou institucionais à organização e
sujeitos do trabalho de enfermagem, versando sobre: mudanças contemporâneas no
mundo do trabalho e suas implicações para a enfermagem e especificamente o
cuidar/cuidado em enfermagem; raízes sócio-históricas da prática de enfermagem;
conhecimento do trabalhador de enfermagem sobre determinantes e condicionantes
de seu trabalho; divisão técnico-social do trabalho na enfermagem; e condições
institucionais relacionadas à prática de enfermagem.
O tema recursos humanos em enfermagem, destacando os trabalhadores como força
de trabalho, aborda: a formação/desenvolvimento do trabalhador de enfermagem de
forma relacionada a demandas e desafios do trabalho ou ao núcleo cuidar/cuidado
em enfermagem; força e mercado de trabalho em enfermagem; e regulação do
trabalho de enfermagem. Com maior ênfase nos sujeitos do trabalho de
enfermagem, realiza-se o debate da relação trabalhador de enfermagem-trabalho,
menos frequente, que trata da produção de subjetividade do trabalhador em
questão na prática e da sua educação para o envelhecimento saudável.
O desdobramento do que é enfatizado em períodos (Tabela_1) permite identificar,
entre outras, duas características relevantes: 1) ampliação quantitativa de
artigos que discutem os sujeitos, suas percepções e/ou interações no trabalho,
com concentração nos anos 2000; 2) e inclusão, nesses anos, do debate sobre o
cuidado/gerenciamento do cuidado de enfermagem (5 artigos) e a formação/
desenvolvimento do trabalhador (5 artigos). Em 1990, 2 publicações focam os
sujeitos na prática de enfermagem (ao tratar dos seus elementos constitutivos e
da educação para o envelhecimento saudável de seus trabalhadores) e, em 2000,
15 (ao discutir humanização, ética/bioética, comunicação, autonomia
profissional, produção da subjetividade dos trabalhadores e modos de efetivar/
pensar o trabalho de enfermagem).
Em relação a aspectos metodológicos, encontrou-se que 63 (64,95%) artigos são
resultados de pesquisas; e 34 (35,05%) constituem reflexões teóricas. Do total,
91 (93,82%) publicações adotam uma abordagem qualitativa, 5 (5,15%) quanti-
qualitativa, e 1 (1,03%) quantitativa. Nos anos 1980, os 2 (100%) artigos
encontrados são reflexões teóricas. Nos anos 1990, 11 (52,38%) são pesquisas e
10 (48,62%) reflexões teóricas. Nos anos 2000, cresce a proporcionalidade
relativa das pesquisas, correspondendo a 52 (70,27%), enquanto as reflexões
teóricas correspondem a 22 (29,73%) artigos do período.
A discussão do trabalho de enfermagem nos anos 1980 é encaminhada através de
uma abordagem baseada nas categorias marxianas trabalho, processo de trabalho e
correlatos, presente nas 2 (100%) publicações encontradas, referidas à dimensão
mais estrutural do trabalho. Nos anos 1990, para além dessas categorias, são
incorporados conceitos de outras vertentes teóricas, encontrados em 3 (14,28%)
dos estudos do período. Nos anos 2000, essa característica é mais evidente,
encontrada em 25 (33,78%) artigos.
Destaca-se de forma mais marcante o uso de ideias e conceitos: da análise
institucional, com base em Gregorio Franklin Baremblitt, Pierre-Félix Guatarri
e Suely Rolnik e/ou Emerson Elias Merhy que neles se pauta; da abordagem
filosófica de Michel Foucaultsobre saber, poder e controle do corpo; da
vertente da psicodinâmica do trabalho ancorada em Christophe Dejours e outros
estudiosos; e da teoria da ação comunicativa habermasiana,de Jürgen Habermas.
Também são incorporados ao debate em questão ideias e conceitos de intelectuais
como Agnes Heller, Pierre Bourdieu, Georges Canguilhem, Hannah Arendt, Antônio
Gramscie Peter BergereThomas Luckmann,dentre outros. Encontra-se, ainda, a
interface das categorias em questão com a abordagem de gênero na enfermagem.
DISCUSSÃO
A literatura nacional sobre o trabalho de enfermagem com base em conceitos
marxianos e de outras correntes teóricas articuladas caracteriza-se, de forma
geral, por sua emergência nos anos 1980 e crescimento subsequente substancial,
em especial em anos recentes (2005, 2006 e 2007).
A incorporação de conceitos marxianos nos estudos da prática de enfermagem e o
seu crescimento são devedores das relevantes contribuições de pesquisadoras da
enfermagem da década de 1980: Maria Cecília Puntel de Almeida, Raimunda
Medeiros Germano, Graciette Borges da Silva, Delvair de Brito Alves, Cristina
Maria Meira Melo, Brigitta Elza Pfeiffer Castellanos, Semiramis Melani Melo
Rocha, Nair Fábio da Silva e Denise Pires.
A produção dessas estudiosas e a que a ela se segue, nos anos 1990 e 2000,
situa-se no processo mais abrangente de amadurecimento científico da enfermagem
brasileira, impulsionado pela formação de um quadro crescente de mestres e
doutores e pela consolidação da pós-graduação na área no país(10), sobretudo a
partir da criação do doutorado, em 1981, em meio à criação de condições como:
ampliação de revistas científicas da área; crescimento e consolidação de
grupos/linhas de pesquisa voltados a estudos do trabalho de enfermagem;
políticas de apoio à pesquisa em enfermagem; e participação da Associação
Brasileira de Enfermagem no debate da prática e produção de conhecimentos em
enfermagem. Isso tudo mediado pelo saber-fazer cotidiano de enfermeiras
brasileiras, em diferentes espaços de atuação, comprometidas com o avanço da
enfermagem.
Outras características da literatura analisada compreendem: 1) o destaque à
busca de compreensão das contradições, dilemas, permanências, transformações e
potencialidades da prática de enfermagem; 2) crescente ênfase na abordagem dos
sujeitos, sobretudo nos anos 2000; 3) e, nessa mesma década, a teorização
específica sobre o cuidado de enfermagem e o seu gerenciamento.
Essas características encontram explicação em pelo menos três processos inter-
relacionados: 1) na incorporação das ciências sociais no debate científico da
saúde e enfermagem e em seus movimentos; 2) no conjunto de mudanças e novas
proposições no setor saúde e na participação de sujeitos em torno da
reconstrução cotidiana do modelo assistencial predominante; 3) e em
características sócio-históricas da prática de enfermagem.
A inclusão das ciências sociais na saúde, no Brasil, ocorre na década de 1970/
80, vinculada à constituição do campo da saúde coletiva, abrindo espaço ao
recorte de objetos originais de estudo e à interpretação social e política do
trabalho em saúde/enfermagem.
Primeiramente, os estudos da saúde coletiva avançam na compreensão da
determinação sócio-histórica das práticas em saúde articulando um movimento
temático mais geral na produção científica, que resulta em estudos sobre
políticas de saúde, organização do setor, processos de trabalho e recursos
humanos. É nesse movimento que se insere a produção sobre o trabalho em saúde e
enfermagem fundado nas categorias marxianas em questão(1,11,12). Em um segundo
momento, nos anos 1990, as ciências sociais na saúde travam um debate em torno
da crise paradigmática dos modelos teóricos globalizantes, valorizando o estudo
de temas microssociais do trabalho e explicações que buscam a mediação
dialética entre estrutura e ação social(11,13).
Na enfermagem, a ênfase nos aspectos microssociais da prática é observada em
especial a partir dos anos 1990(1) e relaciona-se, como apontado acima, às
mudanças em curso à época e ao núcleo histórico-social de seu trabalho ' o
cuidado de enfermagem.
No Brasil, sobretudo a partir da segunda metade dos anos 1980, avançam
proposições para mudanças no setor saúde, valorizando-se os microespaços de
atuação e temas como humanização, comunicação, ética, autonomia/participação,
dentre outros, relacionados ao modo de inserção dos trabalhadores na prática.
Sobretudo a partir dos anos 1990, o debate científico, preocupado com
permanências e mudanças nas práticas em saúde, repensa os processos de trabalho
e a participação cotidiana dos trabalhadores e usuários, tendo em perspectiva a
construção de uma atenção mais inclusiva e integral. Assim, a produção
encontrada sobre reprodução e inovações do trabalho de enfermagem, além de
congregar aspectos históricos da enfermagem, incorpora essa perspectiva em
curso, ocupando-se do debate dos modos de efetivar/pensar a prática de
enfermagem por referência a proposições, questões em debate e/ou
experimentações no cenário do SUS (como acolhimento, humanização, vigilância à
saúde, assistência psicossocial, Programa Saúde da Família, incorporação de
tecnologias leves, e outras).
É parte desse movimento, nos anos 2000, a produção sobre a formação e
desenvolvimento do trabalhador de enfermagem e o cuidado/gerenciamento do
cuidado de enfermagem. No contexto de valorização da atenção integral, o tema
cuidado ganha espaço e, também, a necessidade de desenvolver novas competências
profissionais através da educação. A específica teorização sobre o cuidado e
seu gerenciamento se associa ao seu significado para a enfermagem, na medida em
que se relaciona ao núcleo central e específico de seu saber-fazer e ao
reconhecimento social e profissional da dupla dimensão de seu trabalho '
cuidado e gerenciamento ', problematizada desde os anos 1980.
Em relação aos aspectos metodológicos da produção sobre o trabalho de
enfermagem identificou-se: 1) predominância de publicações resultantes de
pesquisas qualitativas, a partir dos anos 1990; 2) e introdução de categorias
teóricas não marxianas.
A ampliação da literatura derivada de pesquisas é um fenômeno que se associa ao
crescimento e consolidação da pós-graduação em enfermagem e ao amadurecimento
científico da área a partir dos anos 1980. A predominância dos estudos
qualitativos reflete uma tendência mais geral da prática científica brasileira
no campo da saúde, em particular da saúde coletiva, do final da década de 1980
e anos 1990, reflexo da crítica aos paradigmas positivistas e da incorporação
de novos paradigmas voltados à compreensão social dos fenômenos saúde-doença e
do sistema de produção dos serviços de saúde. A tendência à incorporação
crescente de estudos qualitativos na enfermagem também é evidenciada na
literatura internacional em enfermagem(14).
A introdução de outras categorias na literatura sobre o trabalho de enfermagem
se associa ao mencionado movimento disciplinar das ciências sociais em saúde
que evidencia limites, possibilidades e mudanças dos paradigmas que norteiam a
ciência contemporânea(13). Como parte da abertura interdisciplinar em saúde, na
segunda metade dos anos 1990, já se identifica na produção da pós-graduação da
enfermagem a inclusão de conceitos de outras abordagens teóricas no debate da
objetividade-subjetividade do trabalho(1).
Nos anos 1990, Mendes-Gonçalves e outros estudiosos da saúde coletiva que
adotam conceitos marxianos do trabalho dialogam com intelectuais de outras
filiações, como, Agnes Heller, José Arthur Gianotti, Theodor Adorno, Jürgen
Habermas, Gaston Bachelard e Georges Canguilhem, destacando aspectos dinâmicos
e relacionais do trabalho em saúde necessários para pensá-lo além de sua
dimensão estrutural(3). Emerson Merhy, em especial, influi de forma marcante os
estudos da enfermagem ao articular conceitos marxianos e de analistas
institucionais, revalorizando a dimensão da subjetividade na compreensão das
práticas. Na enfermagem, nesses anos, autores como Silvana Mishima, Marina
Peduzzi, Flávia Regina Ramos, entre outros, vão demarcar a incorporação dessa
nova perspectiva epistemológica nos estudos da prática e influir na trajetória
acadêmica das produções sobre o trabalho de enfermagem nos anos 2000.
A articulação de categorias marxianas com outras correntes teóricas reflete,
além de movimentos em prol da ampliação dos horizontes da ciência em
enfermagem, o reconhecimento dos limites do quadro teórico do trabalho em saúde
e enfermagem para a análise das mudanças na concepção do processo saúde-doença
e no processo de trabalho, em especial para a discussão do cuidado que é
processo demarcado pela participação de sujeitos em interação social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A literatura crescente sobre o trabalho de enfermagem à luz de categorias
marxianas e, mais recentemente, também de outras correntes teóricas, vem
contribuindo à compreensão de como a enfermagem está inserida no campo da
saúde, como executa seu trabalho cotidiano e seus significados para a própria
profissão e para os sujeitos envolvidos, propiciando a produção de um
conhecimento próprio da profissão e certo destaque a ação dos sujeitos em sua
configuração.
Na literatura produzida destaca-se o debate sobre o modo como a Enfermagem/
enfermeiro participa da reprodução-transformação das práticas hegemônicas, bem
como o espaço social e de poder que ocupa no trabalho coletivo em saúde,
reconhecidamente minoritário no sentido do valor social que lhe é atribuído.
Dada a frágil visibilidade do trabalho de enfermagem e sua heterogeneidade, a
produção teórica coloca no centro do debate aspectos relacionados ao que somos,
ao que fazemos, e para onde vamos enquanto prática social. Observa-se, nas
publicações, a busca pela compreensão das contradições e potenciais cujo
esclarecimento fundamentado permita configurar uma prática de enfermagem com
mais amplo reconhecimento social de seus agentes e maior impacto na qualidade
dos cuidados de enfermagem de usuários e população.