Diagnósticos de enfermagem para o paciente com necrólise epidérmica tóxica:
estudo de caso
INTRODUÇÃO
O termo Necrólise Epidérmica Tóxica (NET), introduzido por Lyell no ano de
1956, também descrita como Síndrome de Lyell, caracteriza-se por um extenso
descolamento da epiderme, secundário à necrose, e constitui uma reação adversa
e rara a drogas(1).
A NET possui como características iniciais sintomas inespecíficos como dor de
garganta, febre e queimação ocular. Essas manifestações geralmente aparecem um
a três dias antes do acometimento cutâneo(1). As lesões cutâneas surgem na face
e parte superior do tronco, associadas a queixas de queimação ou dor. Tais
lesões, geralmente, são caracterizadas como máculas eritematosas, de contornos
mal definidos, com um centro purpúreo, e evoluem para região anterior e dorso
do tórax. O referido quadro pode evoluir em horas ou, muito raramente, no prazo
de uma semana, para a extensão completa do corpo.
Na Europa e Estados Unidos da América (EUA), a NET ocorre em aproximadamente
duas a três pessoas por milhão de habitantes ao ano. Acometem todas as idades,
raças e sexo. A tendência de aparição, nos EUA, é na primavera e inverno. Dados
brasileiros, em relação à sua prevalência são escassos(2). Essa síndrome é
fatal em 30% dos casos acometidos.
O aspecto clínico da NET tem semelhança à Síndrome de Stevens-Johnson, porém,
nesta, o descolamento epidérmico é limitado a 10% da superfície corpórea. O
diagnóstico deverá ser confirmado através de biópsia cutânea. Com a evolução da
doença, o paciente apresenta um aspecto de grande queimado, com desequilíbrio
hidroeletrolítico e perda acentuada de proteínas, podendo apresentar infecção
concomitante e sepse.
As drogas que mais comumente podem causar a NET são as sulfas, o fenobarbital,
a carbamazepina, a dipirona, o piroxicam, a fenilbutazona, as aminopenicilinas
e o alopurinol(1). O tratamento é semelhante ao dispensado ao paciente grande
queimado. Este deverá receber cuidados em unidade de terapia intensiva ou
unidade de queimados tais como: precauções para isolamento protetor, ambiente
aquecido, prevenção de trauma cutâneo, suspensão de medicamentos não essenciais
à vida, reposição de fluidos via parenteral na impossibilidade de reposição por
via oral, aplicação de antissépticos líquidos como Nitrato de prata a 0,5% ou
Clorhexidina a 0,05, além de proteção de mucosa gástrica. A introdução de
antibióticos está indicada em sinais de infecção ou aumento de bactérias
cultivadas. Há relato de casos com o uso de imunoglobulina endovenosa com
excelentes respostas(1).
Face à gravidade da NET, à dificuldade das autoras na implementação da
Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE) a um paciente com essa
enfermidade e à lacuna na literatura de enfermagem sobre este assunto, tornou-
se relevante a realização deste estudo, cujo enfoque é uma etapa do processo de
enfermagem (PE) - o diagnóstico de enfermagem (DE).
O PE é um caminho metodológico, sistematizado e dinâmico para a assistência de
enfermagem ao indivíduo, família ou comunidade. O mesmo possibilita o cuidado
individualizado, garante a autonomia da (o) enfermeira (o) na tomada de decisão
no processo de cuidar, assim como conduz as avaliações e suas consequências, o
que pode promover maior cientificidade à Enfermagem. Partindo-se dessa
compreensão, o PE deve ser operacionalizado em etapas inter-relacionadas, a
partir da identificação de necessidades afetadas do paciente, da elaboração de
diagnóstico, do planejamento das intervenções, sua implementação e avaliação.
No Brasil, na segunda metade dos anos 60, Wanda de Aguiar Horta, com base em
sua teoria, denominada Teoria das Necessidades Humanas Básicas, apresentou às
(os) enfermeiras (os) uma assistência de enfermagem sistematizada(4). Horta
apresentou um modelo de PE composto de seis fases: histórico de enfermagem,
diagnóstico de enfermagem, plano assistencial, plano de cuidados ou prescrição
de enfermagem, evolução e prognóstico de enfermagem(5). Este modelo continua
sendo largamente utilizado atualmente, porém com outras denominações para
algumas fases.
Ao longo do tempo, vários estudiosos têm apontado tanto as vantagens dos DE,
quanto as dificuldades para a sua implementação(6). Neste estudo, optou-se por
essa fase do PE por verificar algumas dificuldades das (os) enfermeiras (os) da
unidade quanto à realização e aceitação dessa ferramenta de trabalho em
enfermagem.
Frente à singularidade da patologia e ausência de trabalhos na literatura de
enfermagem brasileira sobre a NET, consideramos importante a elaboração deste
estudo de caso clínico. Assim, esta pesquisa objetivou apreender os
diagnósticos de enfermagem identificados em paciente acometido por necrólise
epidérmica tóxica, internado em uma unidade de terapia intensiva (UTI) de uma
organização pública de saúde.
MÉTODO
Trata-se de um estudo descritivo, retrospectivo, com abordagem qualitativa, do
tipo estudo de caso clínico, o qual é bastante utilizado em enfermagem,
principalmente com os alunos de graduação, por ser considerado um modelo de
estudo que permite uma investigação minuciosa de um determinado caso, de um
paciente como esse, preservando todas as características da vida real.
No estudo descritivo o pesquisador pretende descrever os fatos e os fenômenos
de uma determinada realidade com exatidão e sem manipulação dos dados(7). O
estudo de caso clínico fundamenta as ações de enfermagem; proporciona uma
assistência individualizada, através da qual o paciente é visto como um ser
único e não apenas como um conjunto de sinais e sintomas(8).
A coleta de dados foi realizada no período de 01 a 02 de abril de 2009, após
aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal da Bahia,
Parecer n. 040/2008, e da UTI Geral Adulto de um Complexo Hospitalar
Universitário público da cidade de Salvador-Ba. O estudo foi autorizado pelo
familiar responsável pelo paciente, mediante assinatura do Termo de
Consentimento pré-estabelecido, respeitando os princípios da Resolução 196/96
do Conselho Nacional de Saúde(9). Os dados foram coletados a partir de
registros de enfermagem contidos no prontuário do paciente estudado.
RELATO DE CASO
Homem, 32 anos, solteiro, negro, natural do Estado da Bahia, trabalhador do
campo, com diagnóstico colaborativo de NET. Sem relato de internações prévias.
Admitido na UTI-G em 03/04/2008, proveniente do ambulatório de dermatologia,
onde foi avaliado e evidenciado lesões bolhosas difusas por todo o corpo,
associadas a descolamento de epiderme em face, membros superiores, inferiores e
tórax. Nesse serviço, informou ter apresentado febre, associada a cefaléia e
hiperemia ocular sete dias antes, quando fez uso de quatro comprimidos de
diclofenaco, um comprimido a cada seis horas; e paracetamol, este sem registro
de dosagem e frequência. Houve dificuldade para coleta de outros dados, como
história familiar de doenças, uso de vacinas, hábitos de vida, entre outros,
devido ao quadro clínico do paciente e ausência de familiar e/ou acompanhante
durante a maior parte da hospitalização do mesmo.
No momento da admissão na UTI-G, apresentava estado geral comprometido,
descorado, desidratado, acianótico, subfebril. Consciente, orientado, agitado,
verbalizando com dificuldade, pupilas isocóricas e fotorreagentes, fácies de
dor, lesões bolhosas e descolamento de epiderme em face e pavilhão auditivo,
com couro cabeludo íntegro. Taquipneico, em respiração espontânea em ar
ambiente, expansibilidade e simetria pulmonar preservadas, saturação venosa de
O2 de 90%, ausculta pulmonar com murmúrio vesicular presente, sem ruídos
adventícios. Sem condições de mensurar pressão arterial não invasiva, por
impossibilidade de colocação de manguito em membros, taquicárdico em ritmo
sinusal, ausculta cardíaca: BRNF em 2T sem sopro, tórax apresentando lesões
bolhosas com descolamento de epiderme. Apresentava abdome simétrico, com ruídos
hidroaéreos presentes e lesões bolhosas com descolamento de epiderme. Com
secreção purulenta em meato uretral e diurese concentrada. Possuía lesões
bolhosas com descolamento de epiderme em membros superiores e inferiores.
Leucograma 7100, Ht 43,7%, Hb 14,9mg/dl, Plaquetas 270.000, Glicemia sérica
199mg/dl, K+ 3,9, Uréia 47mg/dl, Creatinina 0,9mg/dl. Gasometria arterial: pH
7,34, pCO2 45,6, pO2 222, BE -1,8, HCO3 24,1, Saturação arterialO2 99,7%.
Análise dos dados e diagnósticos de enfermagem identificados
Na referida UTI-G, a SAE foi implementada em todas as suas etapas, desde o ano
2006, como um projeto piloto para a reestruturação em todo o Complexo
Hospitalar. Na rotina de trabalho da unidade está preconizado que os dados
clínicos do paciente devem ser coletados durante a admissão, por meio da
aplicação do histórico de enfermagem (HE). Este subsidia o julgamento clínico
da (o) enfermeira (o) para a elaboração dos DE e, posteriormente, a prescrição
de cuidados.
Tendo em vista os DE como um processo dinâmico e contínuo, considera-se
importante atentar para a evolução diária e anotações da equipe de enfermagem
sobre o paciente, para subsidiar atualizações que se fizerem necessárias destes
DE e, posteriormente, realizar a prescrição diária de cuidados de enfermagem.
Como integrante do PE , o DE é a segunda etapa e, para sua realização, a (o)
enfermeira (o) deverá coletar os dados sobre a saúde do paciente, sua família
ou comunidade, analisá-los e interpretá-los criteriosamente. Para tal, essa (e)
profissional precisa ter a capacidade de análise, julgamento, síntese e
percepção(4).
Neste estudo foram identificados treze diagnósticos de enfermagem elaborados
pelas (os) enfermeiras (os) plantonistas, durante os dez dias de internação do
paciente na UTI-G, os quais serão discutidos a seguir.
* Nutrição desequilibrada: menos do que as necessidades corporais, foi
identificado em 09/04/08, relacionado à incapacidade de ingerir alimentos
e perda protéica. A administração de alimentação, de forma precoce, via
sonda nasoenteral ou parenteral, deverá ser instituída devido ao elevado
gasto protéico-calórico(8). Observamos que esse diagnóstico poderia ter
sido identificado mais precocemente pelas (os) enfermeiras (os), já que o
paciente não apresentava condições para alimentação oral, possuía perda
líquida em grande área corporal e protéica, além do fato que a discussão
em equipe para a introdução de dieta poderia interferir no quadro clínico
do paciente, por reduzir também o risco de translocação bacteriana.
* Risco de infecção, identificado em 04/04/08, relacionado à pele rompida
por lesões bolhosas e descolamento da epiderme, procedimento invasivo,
por passagem de cateter venoso central para administração de líquidos e
medicamentos e instalação de prótese para uso de ventilação mecânica
invasiva. Esse diagnóstico perdurou durante toda a fase de internação do
paciente.
* Risco de volume de líquidos deficiente, identificado em 04/04/08, estava
relacionado à grande e continua eliminação de serosidade, devido a lesões
de derme e epiderme que atingia grande área corporal e permaneceu durante
toda sua internação na UTI-G.
* Integridade da pele prejudicada, identificado em 04/04/08, relacionado ao
descolamento de epiderme e lesões bolhosas no corpo. Esse diagnóstico não
foi resolvido, devido à permanência das lesões mesmo após as várias
intervenções das equipes que assistiam o paciente.
* Comunicação verbal prejudicada, identificado em 09/04/08, estava
relacionado à impossibilidade de verbalizar, em decorrência do uso de
prótese orotraqueal para ventilação mecânica invasiva e sedação contínua.
Esse diagnóstico não foi resolvido, pois o paciente permaneceu em uso
dessa prótese durante o período que ficou internado na unidade; também
poderia ter sido identificado desde sua entrada na unidade, já que há
registros que, nesse dia, o paciente não conseguia verbalizar, por
desconforto respiratório e dor, nesse mesmo dia foi instalada ventilação
mecânica invasiva.
* Dor aguda, identificado em 04/04/08, relacionado a lesões por todo o
corpo. Esse diagnóstico foi mantido pelas (os) enfermeiras (os) durante
todo o internamento, apesar do uso contínuo de analgesia sob bomba
infusora. Salientamos que a unidade não trabalhava com nenhuma escala de
dor e, como o paciente também permaneceu sob sedação por um período
prolongado, esse diagnóstico poderia ter sido acompanhado de forma mais
evidente.
* Padrão respiratório ineficaz, identificado em 04/04/08, estava
relacionado à dor intensa, fadiga da musculatura respiratória e
hiperventilação. Foi parcialmente resolvido em 05/04/08, após instituição
de ventilação mecânica invasiva.
* Troca de gases prejudicada, identificado em 04/04/08, relacionada ao
desequilíbrio ventilação-perfusão evidenciado, após análise de
hemogasometria arterial. Não foi encontrado registro de resolução nos
impressos.
* Processos familiares interrompidos, identificado em 04/04/08, relacionado
à internação em UTI, onde não há possibilidade de permanência de
acompanhante; as visitas são em horários pré-estabelecidos, o domicilio
do paciente era em cidade bastante distante desse nosocômio, além de
dificuldades particulares de familiares para a visitação. Esse
diagnóstico permaneceu durante toda a hospitalização. Não encontramos
registro de visita de familiares para esse paciente.
* Termorregulação ineficaz, identificado em 09/04/08, relacionado à perda
da epiderme em grande área corporal. Além disso, o desequilíbrio
termorregulatório pode ocorrer por febre alta ou hipotermia, até a
ausência de infecção ou cicatrização completa das lesões(1). Permaneceu
durante toda a hospitalização.
* Mobilidade física prejudicada, identificado em04/04/08, relacionado à dor
aguda, perda da integridade da pele em grande parte do corpo. Esse
diagnóstico permaneceu durante toda a internação do paciente nessa
unidade, já que não houve melhora das lesões na pele.
* Eliminação urinária prejudicada, identificado em 04/04/08, relacionado à
infecção no trato urinário. Não havia registro de resolução.
* Perfusão tissular ineficaz, identificado em 04/04/08, relacionado a
transporte prejudicado de oxigênio, evidenciado em resultado de
hemogasometria arterial, hipovolemia, devido à grande perda de líquidos
por perda de grande área da epiderme.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O PE, caracterizado como uma aplicação sistemática do conhecimento a situações
específicas da assistência de enfermagem aos pacientes, foi empregado neste
estudo e possibilitou a identificação de treze DE, a partir de julgamentos
clínicos realizados por enfermeiras (os) de uma UTI-G de adultos.
Ficou evidenciada a necessidade de conhecimento teórico desses profissionais
sobre a SAE e o sentido de valor que esta prática pode dar aos profissionais na
condução da assistência individualizada aos pacientes sobre seus cuidados,
neste estudo, especificamente, os portadores de NET.
É importante considerar que a admissão de pacientes nesta UTI sem a devida
coleta de dados e histórico de enfermagem por suas unidades de origem são
fatores que podem desestimular as (os) profissionais enfermeiras (os) na
elaboração dos DE, haja vista a dificuldade de acessá-los diante de sua
criticidade, assim como a seus familiares.
Entretanto, além do incentivo indispensável dos gestores de enfermagem do setor
e da unidade hospitalar, considera-se mais importante ainda, a atitude dessas
(es) profissionais em valorizar o PE, compreender a visibilidade e autonomia
que esse pode conferir à profissão e consequentemente o engajamento pessoal no
sentido de romper o paradigma da impossibilidade de execução do processo de
forma plena.
Sem a pretensão de esgotar o tema, acredita-se que a identificação dos DE
proposta neste estudo poderá direcionar a assistência de enfermagem a pacientes
com NET e estimular novas pesquisas para aprofundamentos dessa temática.