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BrBRCVHe0034-71672012000300015

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National varietyBr
Year2012
SourceScielo

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Enfermeiros e clientela com bulimia e anorexia: estudo de caso

INTRODUÇÃO anos temos constatado em nossa prática que muitas adolescentes são acometidas por alterações alimentares que as levam a modificações tanto física quanto mentalmente, modificações que são significativas para a prática de cuidar na Enfermagem. Essas adolescentes apresentavam desnutrição e desequilíbrios hidroeletrolíticos, o que as levavam a ficar ensimesmadas, deprimidas e isso as faziam não aceitar os alimentos oferecidos pelos enfermeiros e suas equipes. Por se considerarem sempre acima do peso, quando aceitavam o alimento utilizavam meios purgativos, como vômitos e uso de laxantes, para eliminar o que haviam ingerido. Os enfermeiros que cuidavam dessas clientes, talvez por não saberem como prestar cuidados de enfermagem mais específicos, seguiam mais as prescrições médicas, sem atentarem para os riscos potenciais aos quais aquela clientela estaria sujeita. Talvez isso acontecesse porque os enfermeiros tinham dificuldades em se aproximar das clientes por diversos motivos e, dentre eles, a aparência caquética delas, a introversão característica do comportamento de pessoas com alterações alimentares, além da hostilidade delas com as enfermeiras e suas equipes.

Perante a dificuldade de lidar com a clientela, algumas das enfermeiras praticavam cuidados como que para "cumprir uma tarefa", ao passo que outras solicitavam mudança de setor por não saberem lidar com aquelas situações.

Em vista da problemática que é assistir a essa clientela, diga-se que, de acordo com Nightingale(1), Enfermagem significa, dentre outras coisas, colocar a pessoa nas melhores condições para que a natureza aja e permita que a pessoa recupere a sua saúde. Para tanto, é preciso destacar que os cuidados de enfermagem, em si, são a natureza mesma da profissão, a pedra de toque da Enfermagem, porque é durante os cuidados (prestados e recebidos) que se compartilham experiências entre pessoas, o que torna a existência da profissão possível. Por isso o cuidado de enfermagem é entendido como objeto de trabalho da profissão(2-3).

Acerca dos significados de cuidado (ou o que esta em jogo quando se pratica a profissão), diga-se que a palavra cuidado deriva de um verbo de ação - cuidar - que, por sua vez, vem do latim cogitare, que significa imaginar, pensar, meditar, ter cuidado, tratar. Enfermagem, por sua vez, significa "arte ou função de cuidar de enfermos", definição que nos leva à compreensão de que a profissão requer ações de cuidar, e que elas representam um encontro entre pessoas com uma intenção - a de cuidar e receber cuidados. Entendemos que compreender os significados dos cuidados de enfermagem é tarefa que requer esforço, principalmente quando tratamos de assuntos relativos ao cuidado de pessoas com bulimia e/ou anorexia nervosas. Acerca disso, diga-se que os termos nurse e nursing (enfermagem em inglês) derivam da palavra nourish, que origem a outras como nurturing, que significa cuidar, alimentar, amamentar.

Dessa maneira, encontramos na palavra nursing uma quantidade maior de significados do que no termo enfermagem. Dentre outros, ela significa: amparar, cuidar, proteger, nutrir, tentar curar, manter a força de alguém ou de pessoas ou de grupos humanos. Harmer & Henderson(4) agrupam os significados de nursing em três partes distintas: a) alimentar, dar carinho, proteger, dar suporte, sustentar, conservar a energia, manter a boa saúde, evitar danos; b) treinar, cultivar, educar, prover com algo que promova o crescimento, desenvolvimento ou progresso; c) cuidar e tratar de doentes e enfermos.

Caso consideremos essas distinções, de que maneira abordar a temática alteração alimentar - bulimia, anorexia -, sem fazermos referências a esses princípios/ fundamentos dos significados da profissão? Como tentar alimentar, amparar, proteger, educar pessoas cujo comportamento vai de encontro aos fins da Enfermagem? Como os enfermeiros interagem com as clientes durante o período de internação?; De que forma os enfermeiros discursam sobre a clientela portadora de transtorno alimentar? Em vista disso, explorar a temática da alteração alimentar no campo da enfermagem se justifica por haver na literatura da profissão uma lacuna acerca dos cuidados que devem ser dispensados pelos enfermeiros à clientela com esses distúrbios.

Pensamos que este estudo poderá trazer benefícios à construção do conhecimento na profissão e novas informações que contribuam para a assistência, para a pesquisa e para o ensino. Nossa pretensão é a de colaborar para que se explicite melhor a prática assistencial dos enfermeiros que tratam de clientes com transtornos alimentares; ampliar o campo das discussões para estimular nos enfermeiros o interesse pelo tema; fornecer subsídios aos enfermeiros docentes e assistenciais para que possam refletir sobre as formas de ensinar a cuidar e cuidar dessa clientela.

Nossos objetivos nesta pesquisa são: a) Identificar a maneira pela qual enfermeiros e clientes portadores de transtornos alimentares interagem durante o compartilhamento dos cuidados de enfermagem; b) Descrever o discurso dos enfermeiros acerca do cuidado de enfermagem prestado às clientes com transtorno alimentar. Com isto, consideramos que a descrição dos fatos e de suas operações na relação enfermeiro/cliente, e que se traduzem em experiências, pode contribuir sobremaneira, para que o objeto deste estudo passe de pensado a construído.

METODOLOGIA Estudo descritivo, com abordagem qualitativa, do tipo estudo de caso(5), realizado no período de marco a julho de 2005, no Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia Luiz Capriglione, localizado na cidade do Rio de Janeiro, após protocolo e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa - Registro CEP- IEDE 142. A coleta de dados foi realizada no setor de internação clínica do Instituto em dois momentos: no primeiro, coletamos dados de prontuários de clientes internados, estabelecendo um recorte temporal de cinco anos e aplicando uma ficha elaborada por nós. Dos prontuários estudados, constatamos que somente quatorze clientes com bulimia e anorexia haviam sido internados no setor naquele período. Num segundo momento, foram feitos contatos diretos com nossos sujeitos-objeto de estudo(6), que foram consultados a respeito de sua participação voluntária no estudo e registraram suas intenções ao assinarem um termo de consentimento livre e esclarecido. Dos quatorze enfermeiros que poderiam ter participado do estudo, somente oito foram os sujeitos-objeto de estudo, três não quiseram dar depoimentos, dois estavam em férias e um de licença médica. As entrevistas ocorreram nos períodos diurno e noturno, no próprio ambiente de trabalho dos enfermeiros, e obedeceram a um roteiro semi-estruturado, que versou sobre a percepção que os enfermeiros tinham da clientela com transtornos alimentares e a problemática que envolvia cuidar da mesma. As entrevistas foram gravadas, transcritas e apresentadas aos enfermeiros para validação e correções. Vale dizer que o anonimato foi garantido aos enfermeiros participantes, de vez que usamos a identificação deles por meio de nomes fictícios escolhidos por eles antes de iniciarmos a entrevista.

RESULTADOS E DISCUSSÃO Pelo fato do cuidado de enfermagem ser a pedra de toque da profissão ele se consolida no encontro entre profissional e cliente, ele faz parte da cultura da arte da enfermagem pois, tal como afirma Caccavo e Carvalho(7), a arte da enfermagem é efêmera, graciosa e perene e está associada à constância de uma prática profissional que assegura a saúde aos seres humanos. Pensamos que, no caso dos enfermeiros que cuidam dos clientes portadores de anorexia e bulimia nervosas, essa constância traduz-se em experiência e ampliação da mundividência. Quando perguntamos aos enfermeiros qual foi a reação que tiveram ao entrar em contato com essa clientela pela primeira vez, alguns deles responderam: A primeira paciente que vi me chocou pelo seu emagrecimento e todo o preparo que fazia na hora de comer. Sua expressão facial demonstrava toda rejeição por aquele ato, como se comer fosse algo de outro mundo. Elas não aceitam o alimento, e levam de 2 a 3 horas para ingerir duas colheres do alimento e não comem mais do que isso.

(Enfermeira Paola) A primeira vez que vi uma paciente com TA me assustei! Achei que fosse um caso de desnutrição como havia visto nas crianças em uma outra instituição, mas era muito mais sério, era muito diferente do que estava pensando. (Enfermeira Beatriz).

Nos discursos desses enfermeiros pode-se ler a maneira de ser e de estar com essa clientela, que se traduz em perplexidade, pois prestar cuidados de enfermagem a pessoas com TA requer um tempo diferente do tempo cronológico para que se consolidem. Primeiro, os enfermeiros precisam se acostumar à visão de corpos muito emagrecidos, corpos para os quais o alimento possui mais o significado de mortificação do eu(8), e não o de sustentação da vida. Perante suas perplexidades, os enfermeiros tecem os seguintes comentários acerca da percepção que têm dos clientes com TA: São pessoas tristes, que apresentam realmente algum problema, o que faz com que venham a ter essa doença. (Enfermeira Gabriela) Percebo essas clientes como pessoas sofredoras, que não sabem o que querem. Elas ficam perdidas. (Enfermeira Maria) Elas trazem consigo uma grande tristeza, cercada de profunda solidão.

É como se elas perdessem o brilho e o "cheiro da vida", penso que, por tudo isso, apresentam aquela aparência fosca, embaçada, inodora.

(Enfermeira Letícia) Eu as percebo como pessoas extremamente manipuladoras, capazes de manipular o próprio organismo, para favorecer a manutenção de condições que estabelecem como verdades para si, e isso causa a elas um grande sofrimento, porque não estão de acordo com o mundo.

(Enfermeiro Bruno) Nos discursos desses enfermeiros, a percepção deles em relação à clientela com TA é a de que num primeiro momento houve uma desordem no campo afetivo/ psicológico que a levou a ter mudanças significativas no plano bio/fisiológico.

Pelos discursos, as expressões de sentimentos como a tristeza e as emoções demonstradas pelas clientes com TA influenciam diretamente os cuidados prestados pelos enfermeiros, pois a mortificação delas é um desafio a ser vencido pelos enfermeiros que prestam cuidados. Tanto assim, que a Enfermeira Paola faz o seguinte relato: São pessoas de difícil acesso, que se fecham em si mesmas, com medo de você tocar no assunto da doença. Acho que é por causa de seu aspecto físico, que chocam as pessoas quando as . Isso afasta o enfermeiro da cliente. Com o tempo é preciso ir trabalhando este acesso para conseguir melhorar esse relacionamento.

Por esse discurso é possível detectar que o tempo da degustação do alimento pela clientela com TA, talvez possa ser interpretado como espelho do tempo de organização afetiva dos enfermeiros em relação à clientela, pois, como diz Nightingale(1), o comportamento esperado dos enfermeiros é o de ler cada mudança que se opera na fisionomia do paciente sem causar-lhe o esforço de dizer o que é que está sentindo ... o verdadeiro abecê de uma enfermeira. Esta percepção da mudança na fisionomia da clientela com TA revela, de forma sutil, a sensibilidade que esta por detrás do cuidado prestado pelos enfermeiros.

Momento em que pode ser revelada a sutileza do relacionamento enfermeiro- cliente, o que marca e demarca o cuidado como objeto da profissão.

Esta interação pode deixar marcas significativas tanto para um quanto para outro, até porque estes contatos são freqüentes e demorados. Assim, quando perguntamos aos enfermeiros sobre a existência de algum ou alguns momentos que marcou/marcaram o seu contato com as clientes na internação, obtivemos as seguintes falas: Um dos momentos marcantes para mim foi quando uma adolescente que pesava cerca de 25kg, e estava com risco de morte, não conseguia ganhar peso com os recursos usados até então e necessitou ser sondada com uma SNE. estávamos com ela algum tempo e eu, como diarista, tinha um contato maior com ela. Ninguém na equipe tinha experiência na passagem de tal sonda, e pediram que eu o fizesse. Preparei o material e fomos todos (equipe multidisciplinar e residentes), até o leito da doente. Ela sabia do procedimento e estava muito triste.

Refiz a orientação de como seria a passagem da sonda e iniciei a técnica. No momento em que comecei a introduzir a sonda, percebi que ela me olhava fixamente. Trocamos um olhar profundo naquele momento, que me lembrou aquele em que as mães e bebês trocam durante a amamentação. Nossos olhos se encheram de lágrimas. Acho que toda a equipe percebeu, porque saímos dali muito mal. Fiquei mal por dias seguidos, porque aquele momento não saía da minha cabeça. (Enfermeira Letícia) O momento que me marcou foi o de estar conversando com uma doente e ela verbalizar a situação difícil em que se encontrava, ela expressava o desejo de parar com aquela doença (anorexia e bulimia) e não conseguia. Ela disse: "Olha como eu estou, olha a minha pele, meu cabelo, minha vida". Foi num dos momentos em que eu a orientava que devia comer, e ela se expôs por completo. Fiquei por um tempo em silêncio, enquanto ela chorava. (Enfermeiro Bruno) Teve outro caso de uma jovem de 18 anos portadora de anorexia e bulimia, que me ligou dizendo que faria uma longa viagem e queria despedir-se, achei estranho e fiz algumas perguntas como: como estava o tratamento; quanto tempo não vomitava e o número de vezes que o fez num dia; como estava a família e os remédios. Percebi, naquela conversa, que havia algo errado e pedi que viesse ao hospital. Pedi ao Psiquiatra um atendimento, ela chegou por volta das 14:00h.

parecia um trapo humano, me abraçou e disse que estava disposta se matar naquele dia. Foi avaliada pela psiquiatria e continua em tratamento" (Enf. Letícia).

Cuidar de alguém com TA, significa muitas vezes estar diante de situações- limite, que envolvem vida e morte. Vida porque as pessoas com bulimia e anorexia nervosas, apesar de toda destruição que causam a si mesmas, continuam tendo uma suposta vida normal, porém a visão que se tem delas sugere a transmissão de mensagem de morte iminente. Pelo menos é essa a impressão causada nos enfermeiros. Isto implica dizer que esses sentimentos trazem insegurança, medo, com conseqüente sensação de impotência profissional, pois como alimentar, sustentar, cultivar a energia, manter a boa saúde, evitar danos (4), se as situações contingenciais dos enfermeiros os remetem ao descontrole, à desordem, à morte? Nessas falas dos enfermeiros, pode-se detectar também o quanto cuidar dessa clientela marca profundamente a emoção deles, o que se traduz num desafio. Desafio que tem nexo com a sensibilidade de cuidar típica/ peculiar dos enfermeiros.

Para Caccavo e Carvalho(7), esse é um movimento que torna o cuidado dinâmico e permite o compartilhamento de experiências entre as pessoas de forma particularmente distinta, onde é dado aos sujeitos - os que cuidam e os que são cuidados - a ocasião de projetarem suas características individuais no momento em que o cuidado é prestado e recebido. É nesse ponto que os enfermeiros que lidam com TA devem investir esforços e realinhar o pensamento na direção da sensibilidade, de amparo, de atenção, de apoio ao crescimento ao desenvolvimento do cliente, dentre outras coisas(10), pois são esses significados que dão sentido às ações dos enfermeiros junto a sua clientela.

Isto porque, no que diz respeito ao quadro da clientela com anorexia e bulimia, é preciso persistência pois, a cada dia, os enfermeiros podem se ver perante as seguintes situações: A cliente estava praticando exercícios compulsivamente. Assim, eu não me controlei e sentei no colo da paciente. Mesmo com o meu peso ela continuou, aos prantos, contraindo os músculos da perna na tentativa frenética de exercitar-se. (Enfermeira Letícia) Disse a uma delas: você tem duas opções ou continua do jeito que está e vai falecendo a cada dia, ou tenta se reerguer e segue adiante, porque na vida todos temos problemas. É preciso estabelecer objetivos e regras para nossa vida e isso é o normal. Procurei ter com ela uma conversa muito franca. (Enfermeiro Bruno) Essas situações parecem colocar à prova a determinação e persistência dos enfermeiros. Em suas falas emergem alguns fatos que talvez sejam obstáculos para a consolidação do cuidado enfermagem. Acerca disso, observe-se o que diz Nightingale(1): [para ser uma boa enfermeira] é necessário acima de tudo ser concisa e ter firmeza no trato com o enfermo, condição que consideramos essencial nos relacionamentos entre enfermeiros e clientes com bulimia e anorexia porque, em muitos casos, a clientela apresenta desvios comportamentais, tal como observa a Enfermeira Maria quando diz: "elas são desconfiadas, manipuladoras e mentirosas". Apesar desta afirmação parecer forçar o pensamento, carrega em si algumas das características que a enfermidade imprime em quem as porta. Tanto assim, que nos discursos de alguns enfermeiros detectamos as seguintes situações: Um momento que me marcou muito, e está até hoje na minha memória foi o de uma paciente, que antes de ser pesada (mensurada), na tentativa de obter peso na balança, bebeu água do vaso sanitário. (Enfermeira Beatriz) Para mim lidar com essa pacientes é muito cansativo. Isso exige muito da sua psique, porque temos de articular muito bem o que vai ser dito. É preciso deixar tudo "muito bem amarrado", sem dar margem a outras interpretações. Para mim isso era mentalmente muito cansativo.

(Enfermeiro Bruno).

Pelo fato da clientela ser em sua maioria composta por adolescentes, para a construção e a operacionalidade do cuidado com as clientes portadoras de TA é preciso freqüentemente incluir a família. Haja vista o fato de portadoras de anorexia e bulimia serem, em sua maioria, menores de 18 anos. Isso inclui a necessidade de acompanhamento durante a internação, conforme prevê em nosso país o Estatuto da Criança e do Adolescente(11). Além disso, outro fato importante para a presença do familiar é a necessidade de vigilância constante dessas adolescentes. Numa enfermaria, por exemplo, essas clientes podem praticar exercícios, expurgar alimentos e desprezá-los sem que a enfermagem o perceba. Para que esses fatos deixem de ocorrer, é preciso ensinar e orientar aos familiares, pois os cuidados de enfermagem são extensíveis à família e amigos dos clientes. Entretanto, nem todas as clientes eram acompanhadas pelos familiares, mas sim por "acompanhantes". Isto era devido ao fato de alguns familiares ficarem "estressados" com a situação daqueles jovens (sic), e por isso preferiam ser substituídos por pessoas que não tinham muitos laços afetivos com a clientela. Todavia, nos discursos dos enfermeiros pode-se detectar o que ocorria durante os cuidados quando a família esteve presente. Se não, vejamos: Havia uma ex-atleta que tinha um pai muito presente, sempre preocupado com a filha, e nos momentos de contato com ele, percebi que ele se engajava muito no tratamento. Sempre preocupado com a melhora da filha, ele a interpelava, no sentido de apoiar e reforçar o tratamento dado a ela. Não me lembro se sua mãe era viva, mas o pai estava sempre presente. (Enfermeiro Bruno) Quanto aos familiares, normalmente não tenho dificuldades. Eles chegam nervosos, ansiosos, cansados do longo período de doença.

Quando tenho de orientá-los sobre como vão se comportar na unidade, o que deverão observar, registrar, comunicar, percebo que se sentem mais seguros, mais amparados porque estamos ali mostrando o caminho.

(Enfermeira Letícia) Tinha uma paciente que após as refeições principais, ficava deambulando na enfermaria. Percebi que a situação iria prejudicar o ganho de peso e fui conversar com a mãe. A princípio ela não entendeu que a filha deveria repousar após a alimentação. Relutou um pouquinho na tomada de atitude para com a filha, mas após ser bem explicado o porque da proibição, ela compreendeu a importância da prescrição e colaborou com a enfermagem. (Enfermeira Paola) Com elas realço a vigilância, observando o seu comportamento. Vejo se os acompanhantes as estão deixando sozinhas durante as refeições, durante as idas ao banheiro. Observo quanto tempo levam para comer.

(Enfermeira Rebecca) Se nessas falas fica claro para nós a presença significativa do familiar, é preciso dizer que o cuidado de enfermagem que a ser construído junto a essa clientela vai para além do visível. Cuidar de pessoas com TA implica em ter empatia e simpatia para e com elas; ter conhecimento suficiente da cliente e dos cuidados que serão dispensados e recebidos a cada dia. Talvez isso possa ser entendido nos dizeres de Nightingale(1) quando ela afirma que é preciso desenvolver a observação para que a enfermeira antecipe-se às necessidades dos cliente. No caso da clientela com anorexia e bulimia, esse "antecipar-se" pode significar criar laços de confiança entre enfermeiros e clientes. m ambas as partes, pois pensamos que dessa maneira a arte de cuidar na enfermagem emergirá espontaneamente na rotina diária do cuidado, onde o enfermeiro, conhecendo a sua clientela, elaborará seus cuidados, sem exigir esforço de seus clientes(1).

CONCLUSÃO Pode-se dizer que o enfrentamento inicial de como lidar com os clientes com bulimia e anorexia representa um desafio para os enfermeiros, pois, de acordo com nossa interpretação das falas deles, os clientes pareciam estar: a) vivenciando uma espécie de isolamento transitório do mundo e das pessoas; b) envolvidos por uma névoa (como num sonho), num mundo sem fome; e c) no mundo dos espelhos - que refletiam um corpo que os clientes não percebiam como sendo o seu, pois para eles o corpo estava "deformado" e sempre acima de um suposto "peso ideal". Tanto assim que os enfermeiros relataram que seus clientes levavam, metaforicamente, "horas para comer um grão de feijão"; ou que quando os clientes pensavam ter comido em demasia, iam para o banheiro e regurgitavam o alimento. De acordo com a fala de uma enfermeira, uma das clientes ingeriu água do vaso sanitário para que, quando os médicos fizessem a visita diária, eles tivessem a impressão de que ela havia ganhado peso. Tal fato nos levou a depreender que, com esse suposto peso extra, talvez a cliente estivesse esperando receber a aprovação deles. Além desses achados, outros emergiram das falas dos enfermeiros quando eles teceram considerações acerca da clientela com transtorno alimentar, pois perceberam os clientes como: a) pessoas solitárias; b) pessoas que perderam o brilho pessoal e transformaram-se em pessoas opacas, inodoras; c) eram pessoas tão inteligentes que chegavam a manipular os enfermeiros e os outros a sua volta; d) emitiam sinais indicadores de que podiam extinguir a sua vida a qualquer momento.

Para além disso, pela alteridade que significa cuidar de pessoas, os enfermeiros perceberam-se a si próprios como passíveis de passar pelas mesmas situações da clientela, o que os colocava perante suas próprias fragilidades, fazendo com que tivessem de confrontar a situação da clientela e enfrentar situações-limite de vida-morte deles, pensar numa suposta desfiguração e sofrimento físico e psíquico, pois seria essa a contingência que se colocava no plano de dispensar cuidados à clientela portadora de anorexia e bulimia nervosas. Assim, no setor da instituição, prestar/compartilhar cuidados de enfermagem à/com pessoas com anorexia e bulimia nervosas seria uma forma bastante peculiar de cuidar na enfermagem, pois os enfermeiros adquiriam experiência de cuidar, cuidando. Isto é: eles construíam a assistência de enfermagem a partir da aplicação dos fundamentos da profissão, de acordo com as manifestações, nos clientes, dos distúrbios causados pelos transtornos alimentares, pois não haviam sido "treinados" para lidar com aquelas situações.

Isto, porque lidavam com situações inusitadas em seu cotidiano, diferentemente de outras situações de enfermagem que ocorrem na mesma instituição, ou em qualquer outro lugar onde se compartilham experiências de cuidar na enfermagem.

Assim, pelo fato de serem comprometidos com a clientela, trocavam experiências e vivências, buscando adquirir o conhecimento necessário acerca dessas doenças e o compartilhavam entre si.

Com essas e outras constatações, nosso pensamento acerca da problemática inicial foi o que nos permitiu o alcance dos objetivos, de vez que identificamos a maneira pela qual os enfermeiros interagiam com clientes e, com isso, pudemos descrever a percepção deles acerca da clientela e dos cuidados de enfermagem que dispensavam aos clientes com transtorno alimentar. Nossa pretensão com a realização deste estudo foi a de colaborar para que se explicitasse melhor uma prática assistencial dos enfermeiros que tratam de clientes com transtornos alimentares, ampliar o campo das discussões para estimular nos profissionais de enfermagem o interesse pelo tema, fornecer subsídios aos enfermeiros assistenciais e docentes para que possam refletir sobre as formas de ensinar a cuidar e de cuidar dessa clientela, contribuir para o saber/ciência da enfermagem, seja no campo da pesquisa, seja no das discussões teóricas, bem como no das reflexões individuais ou em grupo.


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