Formação acadêmica e atuação profissional no contexto de um Colegiado de Gestão
Regional
INTRODUÇÃO
O Pacto pela Saúde foi instituído em 2006 após ampla discussão e negociação
entre os representantes dos gestores municipais, estaduais e federal, e traz
como dispositivo estratégico para consolidação do processo de regionalização, o
Colegiado de Gestão Regional, COGERE*, o qual é composto pelo conjunto dos
gestores de saúde municipais e estadual de determinada região sanitária. Tem na
sua concepção a pretensão de ser um espaço de pactuação entre os sujeitos que o
compõe, de tal sorte que se constitua como o lócus privilegiado de construção e
gestão solidária das políticas de saúde, que contemplem a realidade e as
especificidades locorregionais(1).
Embora não tenha como objeto específico o cuidado direto aos usuários do
sistema de saúde, o Colegiado atua na formulação, na pactuação, no
monitoramento e na avaliação de políticas que incidem sobre o sistema de
serviços de saúde e, portanto, sobre as práticas de cuidado. Além disso, suas
ações têm efeitos também sobre os demais aspectos do sistema de saúde como um
todo, como a atuação profissional, a organização do trabalho, entre outros.
Efetuando-se um recorte das profissões da saúde, e tratando especificamente da
participação dos enfermeiros, observa-se que esses profissionais estão
presentes nas reuniões do COGERE acompanhando os gestores dos municípios e/ou
na condição de representantes da gestão municipal e regional, o que pode
significar a possibilidade de exercerem um papel privilegiado no âmbito de
discussão e implementação das políticas públicas de saúde(2).
Salienta-se que o fato de haver um núcleo de conhecimento e práticas de gestão
no processo de formação dos enfermeiros deveria representar na prática um
trânsito mais ágil por espaços de gestão de saúde, como é o caso do COGERE.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Enfermagem
recomendam que o profissional desenvolva, ao longo da sua formação,
competências apoiadas em uma base sólida de conhecimentos dos saberes da
administração, tais como: as teorias administrativas, as ferramentas
específicas da gerência, o processo de trabalho, o gerenciamento de pessoas, o
conhecimento sobre cultura e poder organizacional, o gerenciamento de recursos
materiais, o sistema de informação e o processo decisório(3). Entretanto, a
prática gerencial dos enfermeiros concentra-se ainda na dimensão técnica e
assistencialista, com ênfase nas atividades normativas e pontuais do coordenar,
supervisionar e controlar o cuidado em saúde(4).
Sendo assim, a responsabilidade técnica, social e política e o compromisso
ético dos autores com o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), somados
à relevância do papel das instituições acadêmicas em pesquisar temas ligados a
questões que afetam segmentos importantes da sociedade, foram aspectos
considerados relevantes ao trazer à reflexão a relação da formação desses
profissionais frente aos desafios atuais da gestão em saúde.
Outro fator determinante para realização do estudo tem relação com a
contemporaneidade do assunto. Buscas realizadas nos bancos de dados
bibliográficos da enfermagem sinalizam uma lacuna na construção de conhecimento
científico da enfermagem que contemple o protagonismo dos enfermeiros em
espaços com potência para consolidar o SUS e implantar políticas regionais de
saúde, como é o caso desse fórum que integra o pacto pela saúde.
A partir do exposto, surgiu o interesse em estudar e refletir sobre o papel que
os enfermeiros efetivamente têm desempenhado no âmbito da gestão em saúde.
Assim, este estudo teve como objetivos analisar o protagonismo exercido pelos
enfermeiros no COGERE a partir de sua formação acadêmica para o exercício da
gestão, considerando o olhar dos gestores da 4ª região sanitária e compreender
as tecnologias utilizadas por eles no seu processo de trabalho.
Para análise das tecnologias utilizadas no trabalho em saúde, utilizamos como
base a tipologia que as classifica em diferentes naturezas, ou seja,
tecnologias duras, leve-duras e leves. As normas e equipamentos (tecnologias
duras), os conhecimentos estruturados (tecnologias leve-duras) e as relações
entre os sujeitos (tecnologias leves). A expressão "tecnologias" refere-se aos
nexos entre o conhecimento sistematizado e o mundo do trabalho(5).
As contribuições deste estudo para Enfermagem relacionam-se ao compromisso com
pesquisas que aproximem a profissão com o sistema público de saúde e da
natureza do trabalho que o mesmo requer, possibilitando o desencadeamento de
processos de mudanças capazes de qualificar o SUS. Também contribui para
discussão da formação dos enfermeiros não como protótipos serializados, mas
como sujeitos criativos com capacidade de aprender com o mundo do trabalho em
saúde e enfermagem.
METODOLOGIA
A investigação caracterizou-se como um estudo de caso qualitativo, que
"investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto da vida real,
especificamente, quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão
claramente definidos"(6). O fenômeno em estudo se desenvolveu em uma instância
decisória do Sistema Único de Saúde, o Colegiado de Gestão Regional ' COGERE,
da 4ª Região Sanitária do Rio Grande do Sul, fórum composto por 39 integrantes,
sendo que destes 31 são secretários de saúde dos municípios da região centro do
Estado do RS (população em torno de 520.000 pessoas) e oito representam a
gestão estadual. A periodicidade das reuniões é mensal. O COGERE representa uma
instância estratégica de gestão do SUS, criada recentemente (2006) e com
escassa produção de conhecimentos.
A técnica utilizada para coleta dos dados foi entrevista semiestruturada. As
questões disparadoras da entrevista continham perguntas que versaram sobre o
funcionamento do COGERE, os processos de tomada de decisão e os recursos
tecnológicos utilizados no processo, temas da agenda e problemas e necessidades
da região.
Os sujeitos da pesquisa foram selecionados intencionalmente dentre os
integrantes do COGERE, ou seja, os Secretários Municipais de Saúde e os
representantes da Secretaria Estadual de Saúde, por meio da técnica chamada de
"bola de neve", onde o primeiro entrevistado indicava o seguinte e assim
sucessivamente. O número de participantes da pesquisa foi definido com base no
critério de saturação, ou seja, a coleta de dados foi interrompida quando os
participantes passaram a não acrescentar novos fatos para compreensão do objeto
de estudo(7), o que ocorreu após a 12ª entrevista realizada.
Dos doze sujeitos entrevistados, oito possuíam titulação de nível superior e
destes, seis alguma especialização, os demais a formação era de ensino médio.
As profissões dos entrevistados estavam assim distribuídas: dois farmacêuticos,
dois enfermeiros, um fonoaudiólogo, um veterinário, um administrador, dois
técnicos de contabilidade, um técnico agropecuário, um pastor e um acadêmico de
psicologia. Em relação ao tempo no cargo de gestor, cinco ocupavam a função há
menos de um ano, sete deles estava há mais dois anos, sendo que cinco eram
secretários de saúde por mais de quatro anos. Uma das características dos
entrevistados está relacionada à atividade que exerciam anteriormente, onde
mais de 50% atuavam em outra área que não a da saúde.
O período de coleta de dados ocorreu entre fevereiro a setembro de 2009. Para
análise dos dados das entrevistas foi utilizada a modalidade de análise
temática, em que os dados são analisados tendo o tema como núcleo de sentido.
Após o cumprimento dessa fase, foi construído o seguinte eixo temático: "A
relação do COGERE com a Enfermagem: formação acadêmica e gestão".
Ressalta-se que seguindo os preceitos éticos e a Resolução 196/96 do CNS, a
pesquisa foi aprovada no Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa Maria
(CAAE 0270.0.243.000-08) e os participantes da pesquisa foram esclarecidos
sobre os objetivos do estudo e assinaram um Termo de Consentimento em que
firmaram sua concordância em integrar a investigação.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O COGERE foi institucionalizado como fórum de participação dos sujeitos em
situação de governo, porém os enfermeiros que participam das reuniões, sem
estarem exercendo o cargo de gestor, estão na condição de assessores desses. É
importante destacar que a enfermagem está entre as profissões que, com grande
frequência, exerce a função de gestor de redes e sistemas de saúde, assim como
tem reivindicada a capacidade de operar com habilidades de gestão quando
coordena equipes e serviços e também quando gerencia o cuidado de indivíduos e
coletivos.
Entretanto, as lacunas na formação do enfermeiro, no que tange ao aspecto
sociopolítico do campo da gestão pública, que o habilite a exercer o papel de
articulador e negociador, habilidades consideradas fundamentais para o
exercício da gestão em saúde são reconhecidas pelos entrevistados.
Eu noto que tem dois grupos de profissionais. Tem aqueles muito
técnicos, muito rigorosos e em decorrência disto têm dificuldade de
jogo de cintura, porque, para os principais cargos de gerência, tem
que ter maleabilidade, por isso precisamos ter a nosso lado bons
assessores técnicos, para que o gestor possa exercer o papel
político. [...] porque o gestor tem que negociar e o executor tem que
executar [...] (E5).
Parece evidente que o modelo de atuação dos enfermeiros reproduz nas suas
relações cotidianas, a herança do estilo tradicional de gerência, ou seja,
relações autoritárias, hierárquicas e assimétricas. O depoente classifica os
enfermeiros no grupo dos profissionais que exercem suas atividades com excesso
de formalismo, exagerado apego aos instrumentos normativos, com rigidez
comportamental e hierárquica valorizando sobremaneira as estruturas, regras e
normas institucionais, com pouca perspectiva de mudança frente ao instituído.
Tal realidade traduz uma contradição entre as premissas do SUS e as práticas
dos serviços. É necessário que a atividade gerencial adquira um caráter
articulador e integrativo, sendo determinada e determinante no processo de
organização de serviços e efetivação de políticas e práticas inovadoras em
saúde com vistas a (re)significar os projetos de cuidado da enfermagem à luz
das necessidades em saúde da população(8).
Talvez isso explique o posicionamento pouco expressivo e convincente deste
entrevistado, quando questionado sobre a atuação política do enfermeiro no
exercício do cargo de gestor da saúde, que estes passam quase despercebidos,
tendo pouca visibilidade e destaque no cenário regional:
Eles são os melhores assessores que tem no mundo. Eu conheci alguns
gestores de enfermagem, aqui mesmo no CRS e no COGERE, mas não posso
dizer se isto influencia ou não. Alguns sim, a gente sabe que eram
bem sucedidos, mas outros a gente não sabe se eram, mas na política
tu sabes como é [...] (E5).
Esse depoimento registra, em relação à enfermagem, uma dicotomia que é
significativa para a análise: as dimensões técnica e política do trabalho na
gestão. A dimensão técnica é referente às normas e à organização formal do
processo de trabalho. Uma dimensão predominantemente instrumental, que estaria
associada ao trabalho do enfermeiro, porque relacionada à aplicação, no
cotidiano, de disposições anteriores ao mesmo.
Em oposição, porque pertencendo a outro pólo, mas também em complementação,
estaria a dimensão política, referida como o âmbito das negociações e do "jogo
de cintura". Essa dicotomia, que parece fazer apenas sentido analítico,
aprisiona as competências do profissional de enfermagem em um núcleo externo à
gestão. E, no que refere ao plano micropolítico, coloca esse profissional como
operador de saberes estruturados, de caráter técnico-normativos, cuja presença
expressiva no COGERE corrobora os achados de que predomina nesse espaço o uso
das tecnologias duras e leve-duras.
É considerado importante o conhecimento técnico sobre o SUS, evidenciando a
relevância que os gestores têm dado às tecnologias bem estruturadas, inclusive
na análise sobre a enfermagem e sua relação na gestão:
Eu acho que ser Secretário de Saúde fortalece alguém ser da área da
saúde. Entretanto, a visão desse profissional sobre o sistema de
saúde é que faz a diferença, porque podes ser a melhor enfermeira,
mas, se tu não tens conhecimento técnico e político do SUS, de
gestão, da hierarquia do sistema, de toda essa complexidade, tu não
consegue ser secretária [...] (E3).
O depoimento acima corrobora parcialmente achados de um estudo realizado com
enfermeiras gestoras de saúde, no qual os conhecimentos técnicos e as
atividades específicas do núcleo da enfermagem são reconhecidos e ressaltados
como fundamentais(9).
De aparência paradoxal, essa mesma gestora considera importante, para o gestor
desempenhar bem sua função, que, além do conhecimento administrativo, também
tenha inserção política, explicitando que, no campo administrativo, o
enfermeiro consegue circular com certa facilidade, fato que o leva a exercer
função técnica de assessoria:
[...] para mim um Secretário Municipal de Saúde é um agente político.
Ele tem que entender de política porque é um agente político e isso
não vamos mudar. Quem assessora esse agente político? é o enfermeiro.
[...] (E3).
Por meio dessa manifestação, o papel reservado aos enfermeiros parece ser
aquele em que não é necessária maior aproximação com os aspectos políticos,
aprisionando-os à aplicação da técnica e reforçando o papel coadjuvante que
historicamente os enfermeiros vêm exercendo. Esse fato parece ter relação com a
formação acadêmica, a qual se depara com um limite que desafia a inovação, numa
tensão com o paradigma biomédico ainda hegemônico e na transição para além
dele. Ou seja, técnica e política, no trabalho em geral. Mas também,
especificamente, no trabalho de gestão em saúde, não podem dissociar-se,
principalmente se a dimensão política for compreendida num sentido ampliado,
que é de natureza eminentemente relacional. Assim, vale pontuar que a gerência
de serviços que a academia tem reservado para formação dos enfermeiros parece
contribuir com o desempenho tecnoburocrático do enfermeiro, pois prioriza,
muitas vezes, dimensão técnica da gerência, com ênfase nas atividades de
coordenação, supervisão e controle e à luz dos preceitos das teorias clássicas
da administração(10).
Ainda relacionado à formação acadêmica, a gestora afirma que a enfermagem tem
em seu currículo a disciplina de administração, o que é relevante, porém
insuficiente diante da complexidade e diversidade das demandas da sociedade. A
abordagem predominante da academia tem se restringido ao núcleo de
conhecimentos da enfermagem, necessitando ampliar a sua abrangência para o
campo da saúde coletiva:
[...] A disciplina de administração do Curso de Enfermagem trata só
do núcleo da enfermagem, não do campo político. O conhecimento
técnico do enfermeiro dá suporte para gerenciar a enfermagem, não
numa complexidade que o SUS exige. Isso a academia não dá. Por mais
que ela fale de SUS [...] (E3).
Esse depoimento ilustra claramente as deficiências da formação acadêmica diante
do desafio de construção do SUS. As teorias da administração não têm subsidiado
os enfermeiros para construir novas relações de trabalho na saúde, que permitam
refletir acerca de sua prática, ampliando e politizando a sua compreensão sobre
saúde, associando a formação e a gestão do ensino ao sistema de saúde e a
realidade local, num esforço político de integração entre educação e Saúde.
Nessa perspectiva, aponta-se a importância da formação do enfermeiro transitar
entre as dimensões cuidadora, gerencial, educadora e de investigação científica
do processo de trabalho da enfermagem. Dessa forma, ele poderá assumir seu
papel de articulador no sistema, nos serviços e na assistência à saúde para,
sob a perspectiva da integralidade e integração ensino e serviço, atender às
demandas da população e contribuir com a operacionalização do SUS(11).
Outro aspecto identificado pelos gestores é o de que os enfermeiros desempenham
um papel fundamental nos serviços de saúde dos municípios. Referem-se a eles
como sendo profissionais de muita responsabilidade e compromisso com os
serviços de saúde. Essa valorização parece estar vinculada à sua
disponibilidade em assumir inúmeras atividades, como se o fato de "ser
enfermeiro" fosse uma missão. A vinculação à origem do trabalho da enfermagem,
como assistência caritativa e religiosa refletida em sua trajetória histórica
de submissão, ainda está presente no imaginário da população:
[...] enfermeira é uma profissional fundamental, acredito que 90% da
secretaria de saúde se resume nas ações das enfermeiras, porque não
sei se é sacerdócio, mas vocês não medem tempo, nem horário, nem
chateação. A grande maioria, ou seja, 99% fazem isso. Dá para contar
com as enfermeiras, pois existe um comprometimento sério desse
profissional que tu não encontras em nenhuma das outras profissões
[...] (E5).
Esse depoimento vem corroborar em parte que os aspectos sociais e religiosos do
ideal profissional da Enfermagem estão incorporados ainda pelos enfermeiros e
materializam-se na figura abnegada e docilizada do anjo de branco(12),
centrando sua valorização profissional na ideia de vocação ou de missão, sendo
protagonistas de uma concepção e orientação ideológica humanitária da profissão
(13). Além disso, a atuação do enfermeiro no contexto da organização do
trabalho dos serviços de saúde visa à previsão e provisão dos insumos
necessários para a realização do cuidado e funcionamento do serviço como um
todo e zelar pela continuidade e cumprimento das orientações/prescrições
médicas para atender às necessidades dos pacientes(14).
Dessa feita, observa-se ainda que o ensino reforça o modelo biomédico que
prioriza a assistência hospitalar, vinculada aos procedimentos técnicos, à
fragmentação das ações e à dimensão técnica da gerência, bem como na
organização dos serviços, causando baixo impacto na mobilização ética e
política que teriam potência para transformar as práticas concretas do
cotidiano dos serviços. Segundo um narrador, esse modelo continua despertando
maior atenção dos alunos. Essa lógica constitui uma lacuna na formação dos
enfermeiros, colocando-os como coadjuvantes nos processos políticos de gestão:
[...] tenho dificuldade com os alunos do 8° semestre da enfermagem
para que desenvolvam atividades acadêmicas na área da gestão, pois
querem fazer sua formação na assistência, nas políticas de saúde da
mulher, saúde da criança, ou no hospital. Tendo alertado para
necessidade de realizarem estágio em setores que tratem de gestão,
para poderem assessorar os secretários, pois entendo que o papel
fundamental dos enfermeiros seja o de ser adjunto de secretário.
Porque o secretário é um agente político, cargo de confiança do
prefeito. Eventualmente nós vamos ter enfermeiros como secretários de
saúde, mas acho que temos que fortalecer o cargo assesssoria com
função gratificada (E3).
Esse depoimento evidencia o reconhecimento do núcleo da enfermagem como potente
no uso de tecnologias dura e leve-dura, e insuficiente para as tecnologias
leves da negociação, articulação, relação e vínculo, características essas
consideradas fundamentais para os gestores, e, portanto, como limite para a
enfermagem exercer essa função.
O grande desafio na formação dos estudantes para atuarem no SUS passa pela
tomada de consciência por parte dos docentes, sobre a necessidade de
instrumentalizar técnica, científica e politicamente os futuros profissionais
diante das questões sociais e políticas do país(15). Entretanto, o que se
observa na formação profissional é uma apropriação tênue do Sistema Único de
Saúde, vigorando um imaginário de saúde construído e embasado em interesses
corporativos e particulares, onde prevalece a saúde como prestação de serviços
de alta tecnologia, o processo saúde doença constituído por história natural,
tendo o hospital no topo da hierarquia de qualidade de trabalho e cuidado(16),
o que não tem colaborado para o desenvolvimento de processos inventivos
potentes para qualificação do SUS. Assim, destaca-se a importância da
aprendizagem de novos conhecimentos gerenciais e a mudança na forma de pensar e
agir dos sujeitos. A gestão participativa, por exemplo, como recurso
estratégico, é capaz de permitir a adaptação ao novo panorama do trabalho em
saúde e enfermagem no contexto do SUS(17).
A limitação política dos enfermeiros decorre da falta de conhecimento mais
abrangente sobre política, principalmente política de saúde e de gestão do SUS
(9). Fato este corroborado pelos achados deste estudo, em que os profissionais
de enfermagem se fazem presentes no espaço do COGERE, que é aprisionado pela
norma, hierarquia, conhecimento estruturado e técnico, ao mesmo tempo em que a
sua presença reproduz e reforça essa característica do fórum.
Esta fragilidade política dos enfermeiros é experenciada pela gestora
entrevistada, que manifesta as dificuldades que tem enfrentado no desempenho da
função de gestora municipal de saúde. Atribui a dificuldade à sua formação
acadêmica ter se dado fundamentalmente no campo das tecnologias duras(5) dos
equipamentos, das normas e dos conhecimentos estruturados (tecnologia leve-
dura) e da capacidade de operar com base neles.
A graduação, na verdade não tem abordado muito as políticas públicas.
Tu vês mais a atenção hospitalar de alta complexidade, mas a parte de
saúde pública é restrita, acho que teria que melhorar na graduação.
Para eu assumir o cargo de Secretária de Saúde foi difícil, pois tudo
era novidade [...] a formação é restrita à área hospitalar ou unidade
básica, mas, gestão, isso a academia não tratou significativamente
(E12)
Na fala apresentada identifica-se a referência à necessidade das universidades
contribuírem para formação de enfermeiros com potencialidade para assumirem
funções técnicas, administrativas e políticas. De forma semelhante, estudo
sobre as competências e seu uso na Enfermagem pontua a importância das
instituições formadoras oportunizarem aos estudantes de enfermagem o
desenvolvimento de habilidades para além da dimensão técnica do trabalho de
enfermagem, incorporando mais fortemente habilidades de relacionamento
interpessoal que são fundamentais para a gestão e articulação de pessoas e
processos(18).
Para tanto, a teoria conectada à prática e aos serviços de saúde, contemplando
as diversidades e especificidades do SUS é uma demanda apresentada:
Em minha opinião, a academia deveria trabalhar mais as políticas
públicas, gestão e gerência, e ter um campo de estágio nas
secretarias municipais de saúde. [...], porque na academia não tem
como saber o funcionamento da secretaria de saúde e a maioria dos
enfermeiros quando saem da faculdade, querem atuar no serviço
público, que é bem diferente do privado, [...] além do que a
intenção, da maioria dos municípios, é priorizar a atenção básica não
média e alta complexidade (E12).
Essa gestora tem vivenciado na prática as fragilidades da formação e parece nos
dizer que o aprendizado dos profissionais tem representado uma probabilidade
menor de protagonizar processos propositivos de políticas públicas, em especial
de produção de saúde. Nesse sentido, ressalta-se que a mudança de paradigma na
atenção à saúde e, consequentemente, na formação dos enfermeiros envolve a
formulação de novos modelos conceituais, criação de novas instituições e
implementação de novas políticas. Embora existam tentativas de adequação a
esses parâmetros no processo de formação do enfermeiro, a atuação do enfermeiro
ainda está distante de alinhamento com as exigências dos cenários de atuação
profissional. A formação de indivíduos críticos, questionadores e reflexivos é
necessária para a mudança da atual situação da enfermagem(19) e um maior
engajamento social e político dos enfermeiros.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo possibilitou a reflexão sobre a percepção dos gestores em relação
ao papel que vem sendo desempenhado por enfermeiros na gestão do SUS. Os
resultados demonstram uma formação insuficiente para enfrentar os desafios, a
complexidade e a diversidade das demandas da sociedade. Evidenciou-se uma
dicotomia entre a dimensão técnica e política do trabalho do enfermeiro, com
potencialidade maior para ele operar por meio dos saberes estruturados, de
caráter técnico-normativo, portanto no âmbito das tecnologias leve-duras e
duras, dissociado da dimensão política, que é de natureza eminentemente
relacional, e da utilização das tecnologias leves.
Conclui-se que, majoritariamente, a formação do enfermeiro ainda se vincula ao
modelo biomédico, hierárquico, fragmentado, cujo núcleo de conhecimento é
potencialmente capaz de utilizar as tecnologias duras e leve-duras, porém
insuficiente para as tecnologias leves, que necessitam de negociação,
articulação, características apontadas ao longo do estudo como fundamentais
para o exercício das funções de gestão.
Diante disso, inferiu-se que o processo de formação e o papel social dos
profissionais de saúde, entre eles os enfermeiros, contribuem para que os
espaços de gestão sejam predominantemente do exercício da tecnologia dura, onde
os profissionais sentem-se competentes, porque preparados pela academia para
atuar em fóruns que sejam caracterizados pela técnica e pelo conhecimento
estruturado, sendo o COGERE um exemplo disso.
O caráter tecnicista e extremamente rigoroso são características presentes no
cotidiano do trabalho dos enfermeiros, com predomínio dos saberes das
tecnologias leve-duras e duras. Os saberes da tecnologia leve-dura destinam-se
a organizar a atuação em saúde, utilizando-se dos conhecimentos estruturados,
no qual se inclui o saber específico da enfermagem, para fins de elaboração de
protocolos, estabelecendo normas e rotinas de atuação profissional. Ao mesmo
tempo em que a tecnologia dura, que abrange a parcela de trabalho morto em
saúde, é utilizada na enfermagem como saber tecnológico, tendo nos manuais,
organogramas e regulamentos, e nos equipamentos e materiais as principais
contribuições para que os espaços de gestão em que atuem usem predominantemente
esse tipo de tecnologia.
Entretanto, a sociedade espera como resultado da formação, um sujeito com
capacidade criativa e de protagonismo para atuar em diversos cenários do
sistema de saúde, produzindo conhecimento útil e capaz de produzir mudanças no
cotidiano da vida das pessoas. Portanto, trata-se do desafio de constituir nas
práticas acadêmicas a noção de corresponsabilidade, com implicação recíproca
entre ensino, gestão, atenção e participação social ao longo da formação
profissional.
Os limites deste estudo estão relacionados ao pequeno número de enfermeiros na
condição de gestores municipais e ou estaduais entrevistados, e da metodologia
não ter previsto entrevista com os demais enfermeiros participantes das
reuniões do COGERE. Dessa forma, sugere-se a continuidade e aprofundamento dos
estudos, incluindo além dos gestores os demais profissionais que participam das
reuniões do colegiado.