Produção do conhecimento sobre promoção da saúde e prática da enfermeira na
Atenção Primária
INTRODUÇÃO
A promoção da saúde, considerada atualmente um campo conceitual e de práxis,
tem influenciado a organização do sistema de saúde de diversos países e regiões
do mundo(1)Em sua conformação teórica moderna, a promoção da saúde é a
intervenção sobre as condições de vida da população; extrapola a prestação de
serviços clínico-assistenciais e preconiza ações intersetoriais que envolvem a
educação, o saneamento básico, a habitação, a renda, o trabalho, a alimentação,
o meio ambiente, o acesso a bens e serviços essenciais, o lazer, dentre outros
determinantes sócio-ambientais que incidem na produção da saúde e da doença(2).
Promover a saúde constitui um desafio, pois sua abrangência de ação é maior que
o campo específico da saúde(3)e envolve uma combinação de estratégias, a saber:
ações do Estado (políticas públicas saudáveis), da comunidade (reforço da ação
comunitária), de indivíduos (desenvolvimento de habilidades pessoais), do
sistema de saúde (reorientação do sistema de saúde) e de parcerias
intersetoriais(4). Para isso, é essencial a responsabilidade conjunta dos
sujeitos implicados no processo saúde-doença-cuidado, seja na identificação dos
problemas, seja nas soluções propostas para os mesmos, o que demanda uma ação
coordenada entre todas as partes envolvidas(4)
Assim, ao partir de uma perspectiva contra-hegemônica do modelo assistencial e
de organização dos sistemas de saúde, considera-se que a promoção da saúde
configura-se como um movimento ideológico.
A ideologia pode ser compreendida como o sistema de idéias e representações que
dominam o espírito de uma pessoa ou de um grupo social e a prática ideológica
compreende as atividades realizadas no sentido de transformar uma dada
ideologia em outra(5). Nesse sentido, "(...) um movimento ideológico representa
um conjunto de atividades visando transformar a 'visão de mundo' dos homens em
uma nova "visão de mundo"(5).
O movimento da promoção da saúde vislumbra mais que a produção de novos
conhecimentos e mudanças na estrutura da atenção à saúde. Enquanto movimento
ideológico, a promoção da saúde construiu diversas críticas às práticas
hegemônicas de saúde e propõe uma mudança baseada na transformação da atenção à
saúde, com projeções para a organização social em que se vive"(5).
Historicamente, a promoção da saúde desponta internacionalmente como uma nova
concepção de saúde em meados da década de 1970, resultado do debate, na década
anterior, sobre a determinação social e econômica da saúde(1)Embora o termo
tenha sido utilizado nessa mesma década pelos sanitaristas Hugh Rodney Leavell
e Edwin Gurney Clark para caracterizar um nível de atenção da medicina
preventiva, seu significado foi mudando, passando a representar, mais
recentemente, um enfoque político e técnico em torno do processo saúde-doença-
cuidado(4).
No campo das definições, verifica-se que o conceito contemporâneo de promoção
da saúde é multifacetado e ainda está em construção. Comumente, o campo de ação
e a ideologia da promoção da saúde ainda são vinculados hegemonicamente às
intervenções de educação em saúde tradicionais, que visam mudanças de
comportamento dos sujeitos e a atividades clínico-preventivas. Isso se dá
especialmente por conta da marcante influência do modelo da "História Natural
das Doenças", proposto por Leavell e Clark, no cotidiano dos profissionais que
atuam na atenção primária. Nesse modelo,
(...) o homem é colocado com seus atributos em um ponto; não é o
homem como ser histórico em sua relação com a natureza através do
trabalho, em que esta passa também a ser histórica, não é o homem
constituído pelo conjunto de suas relações sociais, enfim, não é o
homem que fala, produz e vive, mas o conjunto de seus atributos que
se transformam em fatores de morbidade(5).
Nos últimos trinta anos, a promoção da saúde caracteriza-se como uma estratégia
promissora para enfrentar os diversos problemas de saúde que afetam as
populações humanas. Esse movimento, ao partir de uma concepção ampliada do
processo saúde-doença-cuidado e de seus determinantes, propõe ainda a
articulação dos saberes técnicos e dos saberes populares, além da mobilização
de recursos institucionais e comunitários para o enfrentamento e resolução dos
problemas de saúde(4).
Na Carta de Ottawa, a promoção da saúde é concebida como um processo de
capacitação da comunidade para atuar na melhoria de sua qualidade de vida e
saúde, incluindo maior participação no controle deste processo. Partindo dessa
concepção, pode-se dizer que a promoção da saúde, ao conferir possibilidades e
liberdade aos indivíduos e grupos, parte de uma concepção ampliada da saúde, a
qual deve ser vista como um recurso para a vida, e não como objetivo de viver;
como um conceito positivo que enfatiza os recursos sociais e pessoais, bem como
as capacidades físicas dos sujeitos. Sendo assim, operar a promoção da saúde
não é responsabilidade exclusiva do setor saúde. Alcançar a promoção da saúde
significa, também, extrapolar um estilo de vida saudável e caminhar em direção
a um bem-estar de toda a sociedade.
Contudo, para compreender a promoção da saúde como mudança de paradigma, é
preciso distingui-la da prevenção de doenças, dado que no imaginário social
ainda persiste uma confusão conceitual e paradigmática entre promoção e
prevenção.
Em linhas gerais, o discurso preventivista focaliza os aspectos biológicos,
identifica riscos e atua sobre eles. O seu campo de ação fundamenta-se no
modelo da História Natural das Doenças, no conceito ecológico de saúde/doença e
tem como base o conhecimento epidemiológico moderno, objetivando o controle da
transmissão de doenças infecciosas e a redução do risco de doenças
degenerativas ou outros agravos específicos(3).
Com essas considerações depreende-se que as ações preventivas não consideram a
dimensão histórico-social do processo saúde-doença-cuidado, além de não
estimular, nas coletividades, processos de ampliação do poder e de tomada de
decisão em relação às políticas de saúde, de modo que as pessoas estejam
implicadas na luta pela melhoria das suas condições de vida e trabalho, com
vistas ao enfrentamento de seus problemas e a valorização de suas
potencialidades(6).
Em contrapartida, a promoção da saúde é uma estratégia que remete à dimensão
social, existencial e ética dos sujeitos; ao seu engajamento e comprometimento,
envolvendo o fortalecimento da capacidade individual e coletiva para lidar com
a multiplicidade dos determinantes da saúde para além de uma aplicação técnica
e normativa.
Nessa concepção, compreende-se que não basta conhecer o funcionamento das
doenças e encontrar mecanismos para seu controle. A promoção da saúde diz
respeito ao fortalecimento da saúde por meio da construção da capacidade de
escolha(3); da mediação entre as pessoas e seu ambiente, combinando escolhas
individuais com responsabilidade social pela saúde(4).
Por conta da sua peculiaridade, a Atenção Primária à Saúde (APS), compreendida
em sua dimensão abrangente, representa um espaço privilegiado para as ações de
promoção da saúde no âmbito do sistema de serviços. Isso se dá principalmente
porque a APS é essencial para a estruturação de sistemas de saúde, quando
compreendida como uma estratégia que possibilita a intervenção sobre os
determinantes sociais do processo saúde-doença-cuidado, que são inerentes a
atenção à saúde da população(7).
A atenção primária à saúde pode ser definida como o nível de um sistema de
serviços de saúde que possibilita a obtenção de respostas para todas as
necessidades e problemas. Este nível do sistema de saúde produz serviços e
ações de atenção à pessoa no decorrer do tempo e em todas as suas condições de
saúde ou doença, excetuando-se as muito incomuns e raras, e engloba um conjunto
de funções que, combinadas, são exclusivas deste nível. A abordagem inerente à
atenção primária forma a base e determina o trabalho de todos os outros níveis
do sistema de saúde, de modo a coordenar, racionalizar e direcionar o uso dos
recursos, básicos ou especializados, para a promoção, proteção e melhoria da
saúde(8).
A atenção primária revela-se como uma tendência relativamente recente de
inverter a priorização das ações de saúde de uma abordagem desintegrada,
curativa e centrada no papel hegemônico do médico, para uma abordagem
preventiva e promocional, integrada com outros níveis de atenção, e construída
coletivamente com outros profissionais de saúde(9), em prol do desenvolvimento
humano, social e econômico das populações. Frente ao exposto, atuar na atenção
primária na perspectiva da promoção da saúde.
(...) configura-se como uma possibilidade de responder a demandas
sociais e exige reflexões que perpassam quatro eixos fundamentais: a
concepção de saúde, a gestão do processo de trabalho e educação, a
formação dos profissionais de saúde, a participação e o controle
social. A conjugação dos elementos destes eixos deve direcionar as
práticas em saúde, imprimindo a lógica do modelo tecnoassistencial em
constante construção e reconstrução(10).
As enfermeiras, ao atuarem no campo da atenção primária e em consonância com os
pressupostos da promoção da saúde, devem pautar a sua prática em uma concepção
ampliada de saúde, considerando os determinantes sócio-ambientais do processo
saúde-doença-cuidado. Devem também estimular e promover a participação política
da comunidade; devem atuar de modo a extrapolar os limites dos serviços de
saúde, com vistas a adotar ações intersetoriais e criar ambientes favoráveis à
saúde; e devem se engajar na luta pela consolidação de políticas públicas
saudáveis(7).
Apesar da importante incorporação dos pressupostos da promoção da saúde na
prática das enfermeiras no campo da atenção primária, é fundamental sinalizar
que as mudanças nas ações de saúde direcionadas à construção da promoção da
saúde ainda são incipientes e têm pouca visibilidade no cenário das práticas em
saúde, justificando a não percepção desta prática como estratégia para as
mudanças no estado de saúde da população(10). Além disso, é importante
reconhecer que a maior parte dos profissionais desconhece o significado da
promoção da saúde, o que acentua a confusão conceitual entre promoção e
prevenção(1).
A Enfermagem, compreendida como um campo de prática social que se relaciona com
a estrutura econômica, política e ideológica da sociedade brasileira, e cuja
essência tem uma forte conotação de promoção global da saúde, é um espaço
fundamental para a consolidação da promoção da saúde no contexto da atenção
primária. Sendo assim, a enfermeira, ao atuar na atenção primária, incorporando
a promoção da saúde como uma estratégia de transformação social e política da
saúde da comunidade, potencializa as ações desenvolvidas na APS, projetando a
sua prática com mais autonomia em relação à prática médica, consoante com o
conceito ampliado de saúde e com o cuidado integral, e articulando-se com os
grupos da população onde atua para responder às necessidades de saúde da
população e aos princípios do SUS(7).
Na perspectiva da promoção da saúde, os cuidados em enfermagem têm por objetivo
desenvolver a capacidade de indivíduos, famílias e comunidade para identificar
as suas necessidades de saúde e participar, conjuntamente, na busca por
soluções para elas, tendo em vista as possibilidades ao seu alcance(11). Esses
cuidados, sob a ótica da promoção da saúde, [...] exigem conhecimento das
necessidades de saúde, a partir da descoberta das pessoas e do seu meio de
vida, estabelecendo um laço entre a manifestação da necessidade e do problema
de saúde e as condições de vida como a habitação, o trabalho, o transporte(12).
Observa-se, assim, que os cuidados em enfermagem, desenvolvidos na perspectiva
da promoção da saúde, são parte da atenção primária e constituem elemento
fundamental para subsidiar a prática da promoção global da saúde nesse
contexto. Esse fato deve-se principalmente à proximidade do cuidado em
enfermagem com a promoção da vida.
As enfermeiras devem compreender que esse potencial é inerente à sua prática e
à prática do cuidado. Isso nos leva a afirmar que o tratamento das doenças não
deve ser a prática hegemônica da enfermeira, já que historicamente este é um
constructo inerente à prática médica, e todas as ações desenvolvidas a partir
dela são subsidiárias desta prática.
É preciso também enfatizar que a promoção da saúde é uma estratégia fundamental
para impulsionar mudanças não somente no setor saúde, mas também na sociedade,
resgatando o cuidado nas relações humanas e nas práticas de saúde e que, em
conjunto com as premissas da atenção primária, possibilita o resgate de valores
essenciais para a construção de novas relações sociais pautadas no respeito, na
ética, na solidariedade, e no cuidado.
Diante do exposto, e no intuito de suscitar reflexões e contribuir para o
debate sobre a promoção da saúde na APS, objetiva-se analisar a produção
científica nacional sobre promoção da saúde e prática da enfermeira no campo da
atenção primária.
MÉTODO
Trata-se de uma revisão integrativa da literatura. Este método de pesquisa
possibilita a síntese das informações disponíveis sobre determinado assunto, em
um dado momento, podendo também apontar lacunas e inferir conclusões gerais a
respeito de uma área particular de estudo(13). Esse tipo de investigação
disponibiliza um resumo das evidências mediante a aplicação de métodos
explícitos e sistematizados de busca, apreciação crítica e síntese da
informação selecionada(14). Para operacionalizá-la, seguiram-se as seguintes
etapas(13):
Formulação da questão de
pesquisa;
[/img/revistas/reben/v65n6/checkmark.jpg] Estabelecimento de critérios
para inclusão de estudos na investigação;
[/img/revistas/reben/v65n6/checkmark.jpg] Definição das informações a
serem extraídas dos estudos selecionados/ categorização dos estudos;
[/img/revistas/reben/v65n6/checkmark.jpg] Avaliação e análise crítica dos
estudos incluídos na revisão;
[/img/revistas/reben/v65n6/checkmark.jpg] Interpretação dos resultados;
[/img/revistas/reben/v65n6/checkmark.jpg] Apresentação da conclusão/
síntese do conhecimento.
Definiu-se a seguinte questão de pesquisa: qual a produção científica nacional
sobre promoção da saúde e prática da enfermeira na atenção primária?
Os dados foram coletados no período de abril a junho de 2010, no site da
Biblioteca Virtual em Saúde, utilizando-se as bases de dados Medical Literature
Analysis and Retrieval System Online (MEDLINE) e Literatura Latino-Americana e
do Caribe em Ciências da Saúde(LILACS), além da coleção Scientific Electronic
Library Online (SciELO ). Para a pesquisa nas bases de dados, utilizaram-se os
seguintes descritores: atenção primária; enfermagem; enfermagem em saúde
pública; prática profissional; programa saúde da família; promoção da saúde;
trabalho.
Os critérios para inclusão dos artigos no estudo foram: que estivessem em
português; que o texto completo estivesse disponível em suporte eletrônico; com
dados coletados no Brasil; com o lócus de estudo na atenção primária e como
sujeitos as enfermeiras.
A análise dos dados ocorreu por meio da leitura exploratória, seletiva e
analítica, considerando as concepções ideológicas da promoção da saúde e da
prática da enfermeira na atenção primária. Este processo ocorreu em três etapas
(15): pré-análise, em que o material selecionado foi organizado, lido e as
percepções registradas; exploração do material, que consistiu na transformação
dos dados brutos, objetivando alcançar o núcleo de compreensão do texto, e
análise final, que desvendou o conteúdo trabalhado, considerando as ideologias,
tendências e outras denominações características do fenômeno em análise.
PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO SOBRE PROMOÇÃO DA SAÚDE E PRÁTICA DA ENFERMEIRA NA
ATENÇÃO PRIMÁRIA
Inicialmente, a busca realizada nas três bases de dados evidenciou um número
considerável de material produzido, conforme explicitado na tabela_1.
[/img/revistas/reben/v65n6/a16tab01.jpg]
Dentre a produção disponível em texto completo, foram identificados cento e
quarenta e nove (149) artigos em português, cem (100) em inglês, oito (8) em
espanhol e dois (2) em francês. Deste total, e excluindo as repetições, foram
selecionados dez artigos que atenderam aos critérios de inclusão, perfazendo um
porcentual de 4% (Tabela_02).
O baixo porcentual de artigos demonstra que, apesar da promoção da saúde ser
bastante enunciada por enfermeiras que atuam na atenção primária, a produção
científica sobre a temática ainda é pouco explorada no campo da Enfermagem no
Brasil.
Apesar da promoção da saúde ser discutida há mais de 30 anos, salienta-se que
no Brasil as discussões desse campo ainda se encontram em difusão(16), o que
pode justificar a pouca produção encontrada. Nesse contexto, com vistas à
socialização do conhecimento e ao fortalecimento das ações no campo da promoção
da saúde, a Política Nacional de Promoção da Saúde enfatiza a necessidade de
articular ações intersetoriais e entre as esferas de governo para a difusão de
experiências exitosas e de processos avaliativos nesse campo. Isso demonstra a
importância para as enfermeiras produzirem conhecimento sobre a prática da
promoção da saúde na atenção primária. Mas a ausência de produção de
conhecimento neste campo pode significar que a promoção da saúde ainda não está
incorporada à prática das enfermeiras brasileiras.
Quanto aos periódicos onde os artigos foram publicados, 80% da produção é
concentrada naqueles diretamente relacionados à área de Enfermagem. Com relação
às abordagens dos estudos, prevaleceram os relatos de experiência (50%),
seguidos pelos estudos empíricos (30%), por uma revisão bibliográfica (10%) e
por um artigo de atualização (10%). A análise dos objetivos dos artigos
evidenciou um fato que merece ser discutido: 80% da produção (oito artigos)
abordou a prática da enfermeira na educação em saúde.
A educação em saúde, assim como a promoção da saúde, é um campo multifacetado,
para o qual convergem diversas concepções, as quais expressam diferentes
ideologias e compreensões de saúde e de educação. Entre as várias tendências,
duas destacam-se e persistem atualmente. Uma primeira, conhecida como
tradicional, envolve a aprendizagem sobre doenças, como evitá-las, seus efeitos
sobre a saúde e como restabelecê-la. A outra tendência inclui os fatores
sociais que afetam a saúde, abordando os caminhos pelos quais diferentes
estados de saúde e bem-estar são constituídos socialmente. Nesta segunda
tendência, a aproximação entre os conceitos de educação em saúde e de promoção
de saúde é muito evidente, havendo uma sobreposição entre eles. Entretanto,
como já foi discutido nesse artigo, existem construções teóricas que apontam
para diferenças significativas entre esses dois campos, sobretudo na amplitude
e na especificidade das ações.
Compreende-se que a educação em saúde pode favorecer o aumento da autonomia das
pessoas no seu cuidado e pode potencializar o exercício da cidadania, através
do controle social sobre as políticas e serviços de saúde, contribuindo assim
para a gestão social da saúde(17) e para a construção e fortalecimento de ações
no campo da promoção da saúde.
As duas vertentes da educação em saúde apontadas podem ser agrupadas em dois
modelos: o modelo tradicional e o modelo dialógico(18). A educação em saúde
tradicional, também chamada de preventiva, é historicamente hegemônica, tendo
como foco a doença e a intervenção curativa, e como embasamento teórico-prático
o referencial biologicista do processo saúde-doença-cuidado.(19) Baseado nos
pressupostos da antiga saúde pública, o modelo tradicional da educação em saúde
objetiva prevenir enfermidades e mudar comportamentos desfavoráveis à saúde.
Seu enfoque é normativo e individual, baseando-se na ideologia
comportamentalista, em que o indivíduo é o único responsável pelas suas
condições de saúde(18).
Nesse modelo, privilegiam-se as informações verticalizadas, que ditam
comportamentos a serem adotados para a manutenção da saúde; os usuários são
vistos como pessoas carentes de informação; a relação estabelecida entre
profissionais e usuários é assimétrica, dado que os profissionais detêm um
saber técnico-científico, com status de verdade, enquanto o outro precisa ser
informado; e a relação profissional-usuário é marcada pelo caráter estritamente
informativo, no qual o primeiro assume uma postura paternalista, explicitando
hábitos e comportamentos saudáveis(19).
O modelo dialógico da educação em saúde considera as raízes dos problemas de
saúde e assume como objetivo central promover a saúde. Para o alcance desse
objetivo na atenção primária, pressupõe-se a promoção de reflexões e a análise
crítica sobre os aspectos da realidade pessoal e coletiva, visando desenvolver
planos de transformação da realidade. Os pressupostos desse modelo são baseados
nos constructos do educador Paulo Freire. Essa perspectiva auxilia tanto na
análise coletiva dos problemas vivenciados pelos indivíduos como na busca de
soluções conjuntas para a mudança da realidade(18).
O objetivo da educação dialógica não é o de informar, mas de transformar os
saberes existentes. A prática educativa, nesta perspectiva, visa desenvolver a
responsabilidade dos indivíduos e da coletividade no cuidado com a saúde, não
mais pela imposição de um saber técnico-científico restrito ao profissional de
saúde, mas pelo desenvolvimento da compreensão da situação de saúde e das
possibilidades de intervir sobre tal situação. Assim, a prática da educação em
saúde mostra-se emancipatória e sensível às necessidades de saúde dos usuários
(19), constituindo uma estratégia fundamental para as enfermeiras promoverem a
saúde na atenção primária.
Contudo, os quatro artigos que abordaram a educação em saúde enfatizaram-na
como uma ferramenta para aconselhar, informar e mudar comportamentos e hábitos
de vida, visando prevenir riscos à saúde. Dentre esses, dois artigos
descreveram a educação em saúde com grupos de adolescentes, com vistas a mudar
comportamentos e aconselhar o grupo sobre temas de interesse dos profissionais
de saúde e do grupo. Um destes considerou a educação em saúde como estratégia
para prevenir riscos à saúde de um grupo de tabagistas e outro a restringiu às
orientações sobre a prática do aleitamento materno. Estes achados apontam para
a presença, ainda marcante, da racionalidade preventivista no cotidiano de
trabalho das enfermeiras que atuam na atenção primária, o que reduz a sua
concepção de saúde à ausência de doenças.
O trabalho de grupo na atenção primária, voltado para a difusão de informações
e aconselhamentos, objetivando mudanças de comportamentos, é importante para a
prevenção de riscos e agravos à saúde. Porém, os profissionais de saúde que
fornecem informações aos indivíduos ou a grupos tendem a acreditar que os
sujeitos seguirão as orientações recebidas, ignorando suas crenças, valores e
representações sobre o processo saúde-doença-cuidado e a possibilidade real
destes seguirem as prescrições(18).
Sendo assim, a educação em saúde não pode ser concebida como um modo de impor à
comunidade as compreensões e soluções consideradas corretas pelos
profissionais, de maneira que as pessoas modifiquem os seus comportamentos
considerados prejudiciais à saúde. É preciso compreender que a falta de higiene
e de seguimento de muitas recomendações profissionais, por exemplo, ocorre por
causas muito mais complexas do que a falta de informação e/ou a falta de
motivação pessoal(20), como o contexto socioeconômico e cultural onde o
indivíduo está imerso.
Desenvolver trabalho de grupo na atenção primária é uma estratégia importante
para o desenvolvimento da consciência crítica dos indivíduos a respeito do seu
meio social e de suas condições de vida e saúde, o que possibilita o
compartilhamento de conhecimentos que advém das experiências, além de
potencializar processos coletivos para organizar e concretizar ações de mudança
(18). A educação em saúde deve ser realizada de modo que as pessoas possam
identificar as causas primordiais de seus problemas, para poder encontrar as
soluções a partir do diálogo/troca de saberes entre os profissionais de saúde e
a própria comunidade(20).
Contrapondo-se à perspectiva tradicional da educação em saúde abordada pelos
quatro artigos mencionados, observou-se que os demais artigos sobre educação em
saúde pautaram-se no modelo dialógico, evidenciando a preocupação em ampliar a
abordagem do trabalho de grupo e a atuação da enfermeira na atenção primária.
Foi consenso nesses artigos que as práticas educativas devem ir além de uma
perspectiva preventiva, ampliando-se para uma práxis construtiva, pautada no
desenvolvimento da cidadania e do diálogo. Estes aspectos, quando presentes na
prática da enfermeira no contexto da APS, aproximam-se dos pressupostos da
atenção primária e da promoção da saúde.
Um elemento comum a esses artigos foi a concepção de educação em saúde como uma
estratégia que pode promover o vínculo e a horizontalização das relações entre
profissionais e usuários na atenção primária à saúde, além de constituir uma
ferramenta essencial para a troca de saberes entre os sujeitos, com vistas a
romper a hegemonia do conhecimento técnico-científico nessa relação; estimular
a participação popular e aumentar a autonomia dos sujeitos para que estes
possam responsabilizar-se conjuntamente pela busca de soluções para os
problemas individuais e coletivos e de novos meios para caminhar a vida.
Outros achados oriundos da análise desses artigos referem-se à preocupação com
a construção de novas práticas na atenção primária, contrárias à abordagem
puramente preventivista e biológica, convergindo para um modo ampliado de
intervir no processo saúde-doença-cuidado e para a construção de práticas
coletivas transformadoras. Além disso, dois estudos reconheceram a enfermeira
como um agente capaz de atuar na melhoria das condições de vida e saúde da
população, cuja profissão oferece subsídios para a construção de práticas em
saúde pautadas no modelo dialógico da educação em saúde e na promoção da saúde.
Em um dos artigos chamou atenção a preocupação dos autores em conhecer as
condições de vida e saúde das pessoas pertencentes ao grupo que eles estavam
trabalhando. Isso pode ser percebido no momento em que eles relataram a
preocupação em conhecer as relações sociais e os recursos disponíveis dos
sujeitos, durante as visitas domiciliares, para a proposição de intervenções
contextualizadas com a realidade das pessoas. Além disso, no transcorrer do
relato, os autores reforçaram a necessidade de problematizar a realidade e
explorar melhor os espaços tradicionais de atuação da enfermeira na atenção
primária, como as visitas domiciliares e as consultas ambulatoriais, que na
perspectiva deles, reveste-se de um caráter assistencial, educativo e
dialógico.
Dentre os oito artigos que versaram sobre a educação em saúde, apenas um a
reconheceu como uma estratégia a ser utilizada para o alcance da promoção da
saúde. Os demais apenas citam a promoção da saúde, como se a educação em saúde
e a promoção da saúde fossem sinônimos. Com isso, para procurar elementos que
contribuíssem na compreensão da concepção de promoção da saúde que estava
norteando os estudos, foi necessário analisar o referencial teórico que embasou
os artigos. Nesse processo, observou-se que apenas um artigo utilizou os
conceitos da promoção da saúde, limitando-se a defini-la sem estabelecer um
limite entre ambas, o que demonstra que a promoção da saúde é muitas vezes
tomada como educação em saúde e prevenção de doenças.
É preciso destacar que a educação em saúde deve ser compreendida como uma
atividade-meio, ou seja, como uma estratégia que contribui para o alcance da
promoção da saúde. As ações de promoção da saúde incluem a educação em saúde em
seu campo de ação, mas vão além desta, pois visam provocar mudanças no âmbito
organizacional, capazes de beneficiar as condições de vida e saúde da população
de um modo geral(21).
Essa discussão reporta aos dois outros artigos incluídos nesse estudo. Um deles
reitera a importância de se articular ações intersetoriais às práticas
desenvolvidas por enfermeiras nas Unidades de Saúde da Família, como forma de
responder adequadamente às complexas necessidades de saúde da população e como
uma ferramenta para a promoção da saúde. Nesse estudo, ao analisar as
concepções de enfermeiras sobre a intersetorialidade, concluiu-se que não há
uma compreensão do que seria esta intersetorialidade, a qual é confundida com
interdisciplinaridade. Esse fato faz com que seja necessário disseminar e
aprofundar as discussões sobre este tema.
Um outro artigo, ao analisar as práticas da enfermeira no campo da saúde
pública, concluiu que as intervenções da enfermeira nesse espaço continuam
centradas nas consultas ambulatoriais, com pequena ênfase às atividades
coletivas e de promoção da saúde. Estes achados demonstram que a prática da
enfermeira na APS, muitas vezes, é orientada para a intervenção sobre o corpo
individual, reiterando a lógica de uma prática individual, prescritiva e focada
na doença(22).
CONCLUSÕES
Este estudo, ao analisar a produção científica nacional sobre a promoção da
saúde na prática da enfermeira no campo da atenção primária, identificou que a
promoção da saúde é pouco revelada na prática de enfermeiras que atuam nesse
âmbito da atenção à saúde. O baixo porcentual (4%) de artigos incluídos no
estudo sinaliza que a produção de conhecimento pelas enfermeiras sobre a
promoção da saúde na atenção primária é incipiente e pouco explorada. Além
disso, depreende-se que a promoção da saúde ainda é tida como sinônimo da
educação em saúde, particularmente no modelo tradicional, fundamentado em ações
prescritivas de prevenção de doenças.
A situação acima reforça a necessidade de ampliar a compreensão da educação em
saúde, entendendo-a como um campo de práticas e de conhecimento que tem se
ocupado mais com a criação de vínculos entre os serviços de saúde e o modo de
pensar e agir cotidiano da população. Como prática transversal, a educação em
saúde proporciona a articulação entre todos os níveis de gestão do sistema,
representando um dispositivo essencial tanto para formulação de políticas de
saúde de forma compartilhada, como para a integração entre saberes e práticas
que se coloquem a favor da vida, da dignidade, do respeito ao outro, da
humanização e da integralidade das ações de saúde. É nesse sentido que se pode
pensar na educação em saúde, como uma estratégia fundamental para o alcance da
promoção da saúde no processo saúde-doença-cuidado.
Não se pode deixar de destacar que os profissionais de saúde, e dentre eles as
enfermeiras, são desafiados a todo o momento em sua prática cotidiana nos
serviços de atenção primária. Isso acontece principalmente devido aos inúmeros
problemas da gestão do sistema, da medicalização da saúde, da incipiência da
educação permanente, da hegemonia do paradigma biomédico na sociedade e falta
de compreensão por parte dos profissionais de saúde quanto à amplitude da sua
prática.
A permanência desta situação contribui para a falta de reconhecimento da
promoção da saúde como uma estratégia que pode impulsionar transformações na
prática das enfermeiras e dos demais profissionais que atuam na atenção
primária, e produzir repercussões importantes sobre o estado de saúde da
população.
Considerando que a promoção da saúde é capaz de responder aos complexos
problemas inerentes a atenção à saúde da população, é crucial nesse momento que
as enfermeiras que atuam na atenção primária comecem a compreender a promoção
da saúde como um campo de práxis capaz de transformar a realidade social e a
sua própria prática.
Não se pretende com este estudo atingir objetivos conclusivos. A discussão aqui
realizada e os achados oriundos da aproximação entre a promoção da saúde e a
prática da enfermeira na atenção primária fornecem subsídios para estudos
posteriores sobre as diversas nuances dessa temática. Dentre elas vale
aprofundar o que explica a incompreensão das enfermeiras sobre o conceito de
promoção da saúde, confundida com educação em saúde; sobre a incipiência das
ações de promoção da saúde na prática da enfermeira na APS; sobre o próprio
conteúdo das ações da enfermeira na APS e sobre o desinteresse que este campo
de investigação tem para as produtoras do conhecimento no campo da enfermagem.