Comunicação entre usuários e trabalhadores de saúde em colegiados de Saúde da
Família
INTRODUÇÃO
Vivemos em uma sociedade marcada por iniquidades, na qual grande parte das
pessoas é excluída do acesso a bens e serviços de qualidade ou essenciais a sua
sobrevivência. O Brasil se destaca, nesse sentido, como um dos países com as
piores distribuições de renda do mundo. Associado a este fato, temos
presenciado mudanças de cunho sociocultural, tecnológico e econômico, sendo
que, de um lado, observa-se que o avanço da tecnologia possibilita melhorias
nas condições de vida das pessoas, por outro lado, presencia-se a precarização
das relações e condições de trabalho, aumento da violência, dentre outros. Esse
quadro tem fomentado o debate sobre direito, democracia e saúde, com
revalorização de processos de construção da participação das pessoas na gestão
das políticas públicas.
Nesse sentido, a participação social em saúde guarda possibilidades de orientar
as políticas públicas, em especial da saúde, no atendimento às necessidades
sociais da maioria da população. Conquistas significativas dos movimentos
sociais pela saúde, em especial do Movimento da Reforma Sanitária brasileira,
tem sido a institucionalização de um sistema nacional de órgãos colegiados, com
poderes legais, nos quais usuários têm representação paritária em relação aos
prestadores e governo, potencializando o controle sobre as ações da sociedade
política.
A constituição dos espaços colegiados na saúde está assegurada por meio de
legislação infraconstitucional, Leis Orgânicas da Saúde números 8.080 e 8.142
de 1990. A Lei nº 8.142/90 restabeleceu a participação na gestão do Sistema
Único de Saúde (SUS), por meio de Conferências e Conselhos de Saúde, sendo o
último responsável pela formulação de estratégias e do controle de execução de
políticas de saúde(1).
No entanto, apenas o avanço no plano legal e a existência formal dos colegiados
não garantem a participação dos sujeitos, pois o processo político nos fóruns
da saúde só tem possibilidade de ser efetivo se houver a participação livre e
igual de todos os envolvidos. Habermas(2) defende que:
[...] a participação simétrica de todos os membros exige que os
discursos conduzidos representativamente sejam porosos e sensíveis
aos estímulos, temas e contribuições, informações e argumentos
fornecidos por uma esfera pública pluralista, próxima à base,
estruturada discursivamente, portanto diluída pelo poder(2).
Estudos envolvendo a comunicação em fóruns da saúde(3-5)apontam para a
existência de uma relação assimétrica entre os conselheiros representantes dos
usuários e os representantes de outros segmentos, devido à presença de recursos
simbólicos e discursivos que afastam, silenciam e excluem os usuários do âmbito
das decisões. Longhi6 constata a existência de desencontros em colegiados da
Saúde da Família, em que, muitas vezes, trabalhadores de saúde desrespeitam,
desconsideram e inibem a expressão dos usuários, o que impede sua participação
efetiva na construção das políticas relacionadas à sua saúde.
Estudo de caso de duas localidades inglesas(7), com semelhante perfil,
estrutura de política nacional e regional na conformação de gerenciamento,
mostram divergências entre elas, visto que a localidade em que prevalecia a
prática dialógica dos profissionais de saúde com os usuários, constatou-se
maior e mais efetivo envolvimento do público nas questões relativas à sua
saúde.
O desafio hoje é o de conhecer as dinâmicas interacionais/comunicacionais dos
colegiados, a fim de apontar a existência ou não da comunicação dialógica e, em
caso de sua não ocorrência, quais os prejuízos que traz para o processo de
participação social(4). Além do mais, tem sido observada escassez de estudos
destinados a avaliar as atitudes dos sujeitos no que diz respeito à gestão dos
serviços de saúde em nível local(8).
Como a Estratégia Saúde da Família (ESF) se pauta nos princípios do SUS, em
especial no de participação social e vem sendo adotada pelo Ministério da Saúde
como política prioritária para a reorganização da Atenção Básica, tal fato nos
remete à importância de compreender o processo de comunicação em seus
colegiados. A Saúde da Família pode ser considerada como um local favorável
para o exercício da democracia e da participação social, sendo vislumbrada
diante da possibilidade de os sujeitos exercerem o papel de protagonistas na
construção e organização do sistema local de saúde.
Assim, este estudo tem como objetivo analisar a comunicação em colegiados da
ESF, buscando compreender a participação de seus membros e identificando seus
limites e potencialidades.
A Teoria da Ação Comunicativa nos fóruns da saúde
Como pretendemos estudar a comunicação entre trabalhadores e usuários em
colegiados de Saúde da Família, nos aproximamos da Teoria da Ação Comunicativa
de Jürgen Habermas, que nos oferece elementos para compreender as falas e as
relações subjetivas, entre os sujeitos sociais em interação.
Habermascritica a predominância da razão instrumental na modernidade, marcada
pelo domínio da ciência e da técnica que agem como "dificultadoras" da
emancipação humana, e constrói a Teoria da Ação Comunicativa, a fim de imprimir
uma nova relação entre os sujeitos. Em sua teoria, Habermas(9)diferencia a Ação
Comunicativa das ações orientadas ao êxito (ação estratégica e instrumental). O
êxito é entendido pelo autor como a execução de um estado de coisas desejadas,
causado mediante ação ou omissão calculadas, sendo uma ação orientada a um fim,
em que se busca alcançar uma meta, sem considerar a perspectiva do outro.
A Ação Comunicativa se pauta no entendimento linguístico entre os sujeitos,
amparando-se no paradigma comunicativo que supera o paradigma da consciência,
ao avançar da relação do sujeito solitário com o objeto a sua volta, para a
relação intersubjetiva de pessoas que buscam o entendimento entre si(9). Nesse
sentido, o agir comunicativo é concebido por Habermas como uma forma de abrir
possibilidades para um entendimento em sentido abrangente, não restritivo(10).
Na Teoria da Ação Comunicativa, Habermas(9) procura reconstruir as condições
universais dos atos de fala ou proferimentos linguísticos, vistos como uma ação
linguística por meio da qual um falante gostaria de chegar a um entendimento
com outro interlocutor sobre algo no mundo e considera que os atos de fala
possuem pretensões de validade, o que significa que podem ser questionados, com
base em argumentos, ou seja, podem ser fundamentados. Na busca de entendimento
consensual, estas pretensões devem-se sobrepor às de poder(11).
Dessa forma, em cada ato de fala, devem estar presentes quatro pretensões ou
expectativas de validade: a pretensão de verdade proposicional ou verdade da
afirmação; a pretensão de retitude ou correção normativa; a pretensão de
veracidade ou autenticidade expressiva; e a pretensão de inteligibilidade. A
pretensão de verdade proposicional ou verdade da afirmação pode ser
representada pelos "atos de fala constatativos ou afirmativos" em que a
expectativa é que os conteúdos proposicionais sejam verdadeiros. A pretensão de
retitude ou correção normativa pode ser expressa pelos "atos de fala
regulativos" que, para serem aceitos, devem estar de acordo com as normas
sociais vigentes, respeitando o ponto de vista ético, moral e político. A
pretensão de veracidade ou autenticidade expressiva engloba os "atos de fala
representativos ou expressivos" e refere-se à subjetividade dos interlocutores,
à sua transparência e sinceridade; assim, espera-se que o falante seja sincero
consigo mesmo e com os outros(12). A pretensão de inteligibilidade trata da
expectativa de que os conteúdos transmitidos sejam compreensíveis.
As três primeiras pretensões de validade dos atos de fala se entrelaçam com as
relações sujeitos-mundo(9), desse modo, a pretensão de verdade proposicional se
relaciona a um mundo objetivo, ou seja, à totalidade dos fatos cuja existência
pode ser verificada. A pretensão de retitude está ligada ao mundo social dos
atores, entendido como a totalidade das relações interpessoais e legitimamente
reguladas. Já a pretensão de veracidade está relacionada a um mundo subjetivo,
compreendido com a totalidade das experiências, a que cada sujeito tem acesso
privilegiado, e o falante pode manifestar-se em público.
No entanto, as pretensões de validade podem não ser cumpridas, já que são
pretensões ideais e não factuais; e porque muitas formas de comunicação não se
regem de fato pelas pretensões anunciadas. Especialmente, nas formas
estratégicas de comunicação há uma suspensão das mesmas. A mentira e a
manipulação destroem a confiança na veracidade do que é dito, dessa forma, quem
age estrategicamente se nega a comunicar-se validamente.
No contexto da Teoria da Ação Comunicativa, a fim de compreender o processo
histórico da sociedade, Habermas(9)utiliza os conceitos de mundo da vida e de
mundo sistêmico. O mundo da vida é concebido como a composição das convicções
culturais, da ordem institucional e da estrutura da personalidade, dessa forma,
cultura, sociedade e personalidade representam os processos de reprodução
cultural, de integração social e de socialização. No mundo da vida, prevalecem
as vivências e experiências partilhadas pelos sujeitos, no cotidiano vivido,
sendo que os homens buscam o entendimento e consenso por meio da comunicação
(12).
O mundo sistêmico ou sistema compreende a esfera social desconectada do mundo
da vida, no qual as ações não são orientadas para o entendimento linguístico,
mas regidas por mecanismos de regulação alinguísticos, representados pelo
dinheiro e o poder. Este mundo é caracterizado pela predominância da razão
instrumental e técnica, sendo que a interação entre os sujeitos fica
prejudicada.
E o processo social caracterizado pela crescente racionalização do mundo da
vida é denominado de colonização do mundo da vida, no qual os meios
deslinguistizados (dinheiro, mercado e poder) se sobrepõem cada vez mais ao
mundo da vida, aos processos comunicativos mediados linguisticamente. Dessa
forma, os imperativos sistêmicos, as pretensões de poder impõem-se sobre as
pretensões de validade, causando uma série de patologias, de perturbações da
interação social que atingem as sociedades capitalistas contemporâneas.
Para Habermas, deve existir certo equilíbrio entre os dois mundos, o mundo da
vida e o mundo sistêmico, assim, torna-se necessário que a razão instrumental
seja recolocada em seu espaço(2). Esse processo é denominado de descolonização
do mundo da vida.
Consideramos que, na perspectiva da Teoria da Ação Comunicativa, nos fóruns da
ESF, a concretude da participação seria permeada por um acordo intersubjetivo,
pautado nos princípios de sinceridade (veracidade), de verdade, de concordância
com as normas sociais (retitude) e de compreensão do que está sendo dito. Desse
modo, todos os sujeitos participantes teriam o direito de falar e serem
ouvidos, discutir sobre o que está sendo falado e participar das decisões
consensuais. Entendemos a privação da fala de sujeitos, ou grupo deles, por
outros, nos colegiados da ESF, como modelos distorcidos de comunicação que se
distanciam da proposta da Ação Comunicativa.
A proposta da ESF corrobora a perspectiva da Ação Comunicativa, já que a Saúde
da Família deve se basear nos princípios do SUS e buscar transformar o modelo
assistencial de saúde, centrado no profissional médico, na instituição
hospitalar e na cura de doenças, em um modelo que atenda às reais necessidades
de saúde da sociedade, considerando o sujeito em sua integralidade. No entanto,
no cotidiano dos serviços de saúde, muitas vezes, tem prevalecido um cuidado
prescritivo e autoritário que se distancia dos seus pressupostos. Contudo,
somente a mudança da estrutura, dos recursos em jogos e seus formatos não
transformam por consequência os modelos assistenciais e suas políticas
instituintes(13). Esses autores defendem a ideia de que a construção um novo
modelo assistencial exige a formação de uma nova subjetividade entre os
trabalhadores, que ultrapasse os saberes técnicos empregados na produção de
saúde, e que se oriente pelas diretrizes do acolhimento, vínculo/
responsabilização e autonomização.
METODOLOGIA
Para analisarmos a comunicação entre os sujeitos, realizamos uma pesquisa de
abordagem qualitativa, em colegiados designados como reuniões de comunidade com
trabalhadores da Saúde da Família, em uma unidade de saúde (USF), num município
do interior paulista. Esse município possui uma população de 200 mil
habitantes, tendo uma cobertura de, aproximadamente, 35% da ESF, sendo superior
à média estadual que é de 23%. Para escolha da USF cenário do estudo,
selecionamos aquela que, dentre as 28 existentes, apresentou nos anos
anteriores ao estudo, 2006 e 2007, uma participação mais expressiva em seu
colegiado, considerando como critérios de inclusão, o maior número de reuniões
realizadas e de participantes por encontro. As reuniões de comunidade com
trabalhadores da Saúde da Família, adotadas como espaço de participação social
na ESF por esse município, diferem das reuniões dos Conselhos de Saúde, pela
não existência de cargos e funções e por serem constituídos exclusivamente por
usuários e trabalhadores de saúde.
Para a coleta de dados, utilizamos a observação participante das reuniões
mensais, durante os meses de março a agosto de 2008, totalizando cinco
observações; a entrevista semiestruturada com os participantes que apresentaram
frequência significativa no ano anterior, sendo 6 trabalhadores e 8 usuários,
14 entrevistas no total; e a análise documental de atas de tais reuniões e dos
relatórios de gestão da Secretaria Municipal de Saúde. A entrevista
semiestruturada englobava questões referentes aos horizontes vida, família,
trabalho, participação e comunicação.
Empregou-se a análise de conteúdo, modalidade temática, para a interpretação do
material empírico, sendo que, nas entrevistas semiestruturadas, foram
privilegiadas as falas referentes aos horizontes participação e comunicação.
Durante a análise dos dados, ênfase foi dada as pretensões/ horizontes
normativos (que pertencem ao mundo social) presentes nos proferimentos
linguísticos dos sujeitos.
Os princípios éticos que norteiam a pesquisa pautam-se na Resolução 196 do
Conselho Nacional de Saúde (CNS), tendo sido aprovada pelo Comitê de Ética em
Pesquisa da Faculdade de Medicina de Marília, sob processo nº 1.348/07 e pela
Secretaria de Saúde do município de realização da pesquisa. A coleta de dados
foi realizada com a anuência dos sujeitos, mediante apresentação de Termo de
Consentimento.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Em nossa análise, os atos de fala acerca das reuniões nos levaram a trilhar
dois caminhos que se mesclavam: um pautado no princípio de participação do SUS
e da Ação Comunicativa e outro orientado pela dominação e desrespeito aos
usuários. Portanto, construímos duas categorias para analisar a participação em
fóruns de discussão na Saúde da Família: distanciamentos e aproximações, entre
usuários e trabalhadores de saúde. No contexto dos distanciamentos, construímos
as seguintes dimensões: o usuário calado e o "fardo" da participação; e no
contexto das aproximações: interação entre os sujeitos e espaços de discussão
dos problemas locais.
Destacamos que, neste artigo, as categorias estão delimitadas separadamente
apenas para fins didáticos e operacionais, guiando a condução da interpretação
dos dados.
A. Distanciamento entre usuários e trabalhadores de saúde
O usuário calado
A análise dos dados evidenciou entraves, distorções e desencontros em espaços
de participação da Saúde da Família. Um aspecto que ressaltou em nosso estudo
foi o silenciamento dos usuários diante dos trabalhadores de saúde nos
colegiados. Durante a observação foi constatado que os usuários permaneciam, a
maior parte do tempo, calados, o que também foi apontado pelo pessoal da saúde.
Denominamos este momento de "usuário calado" em referência oposta à proposição
do "usuário centrado", em que o processo de cuidado se centra nas necessidades
deste, de modo integral e ampliado. Assim, o usuário calado reflete o processo
de distanciamento entre os sujeitos nesses espaços de discussão. Em conversa
com os usuários e mesmo nas observações de reuniões, visualizamos muitos
aspectos que contribuem para esta postura do usuário, com destaque para as
relações assimétricas de saber e poder entre trabalhadores e usuários.
As relações assimétricas de saber e poder entre trabalhadores de saúde e
usuários, caracterizadas pelo uso do poder e/ou saber pelos primeiros como
forma de dominação e opressão, são práticas que historicamente têm predominado
nas relações entre esses sujeitos, especialmente, nos serviços de saúde, e se
refletem nos colegiados.
No fórum estudado, muitas das assimetrias presentes estão intimamente
relacionadas à diferenciação de "saberes", sendo que, muitas vezes, os
trabalhadores de saúde se mostram como detentores do conhecimento
cientificamente "válido", geralmente expresso pelo domínio da linguagem técnica
e codificada (com códigos). Os usuários que, por sua vez, não são
familiarizados com esse tipo de conhecimento e uso da língua, referem que
possuem uma linguagem simples:
[...] é tudo, como eu vou dizer, meio quieto, meio simplão, ninguém
quer falar nada, pode ver que quando pergunta, fica tudo simples...
ninguém quer responder nada [...] a turma do posto eles já explicam
tudo certinho pra pessoa, mas se for só o povo mesmo! (U1- Usuário 1)
O conhecimento científico passou a ser divulgado como verdade, dogma,
desvalorizando-se o senso comum e o saber popular. A linguagem técnica/
codificada se mostra como um desencontro comunicacional na Saúde da Família,
sendo que, nos serviços de saúde, as interações são mediadas por uma linguagem
técnica e nas experiências cotidianas dos usuários está presente uma linguagem
prática, relacionada ao mundo da vida, o que faz emergir barreiras na
comunicação e interação dos sujeitos(12).
Atualmente, de acordo com Habermas, as decisões práticas de ordem coletiva são
transformadas em problemas técnicos, devendo ser resolvidos por uma minoria de
experts que tem o Know-how necessário, o que leva a uma despolitização das
massas. Essa, por sua vez, passa a ser consequência e requisito da dominação da
racionalidade técnica. Assim a redução das decisões políticas de uma minoria
(tecnocrata) leva ao esvaziamento da atividade prática nas instâncias política,
social e econômica(14).
Aliadas aos imperativos de saberes, as comunicações no fórum estudado são
permeadas por relações de poder, construídas socialmente, marcadas pela
coerção, que, geralmente, colocam os usuários em uma posição inferiorizada, o
que contribui para que permaneçam calados. Essas relações assimétricas se
intensificam entre os profissionais graduados (médico, dentista e enfermeiro) e
usuários, já que os primeiros têm a possibilidade de vetar os atendimentos
individuais, como revela a seguinte fala:
[...] quando não veio ninguém do nível superior, parece que a
comunidade ficou mais à vontade, que não veio o nível superior e eles
parecem que falaram mais, não sei se às vezes eles ficam com receio
"ah se eu falar tal coisa ela não vai me atender mais", né? (T1-
Trabalhadora 1)
A relação apontada acima revela um desvio, uma distorção na comunicação, na
qual o poder simbólico dos trabalhadores de saúde é empregado para controlar a
ação dos usuários, para que atenda aos seus fins, as suas vontades e
pretensões. Como pano de fundo, aqui se mostra uma concepção restrita de saúde
que não é vista como um direito social dos sujeitos.
O "fardo" da participação
Em nosso estudo, predominaram sentimentos negativos em relação à participação
nos colegiados, tanto por parte dos trabalhadores de saúde como pelos usuários.
A participação em tais espaços foi relatada como um "fardo", por um sujeito
entrevistado, revelando o "peso", dificuldades e insatisfações no ato de
participar.
Percebemos que essas impressões se relacionam aos elementos anteriormente
expostos e, especialmente, à manipulação dos sujeitos por meio da linguagem. A
manipulação, nos fóruns da ESF, esteve relacionada ao estabelecimento de
condicionalidades na frequência tanto dos usuários quanto dos trabalhadores de
saúde.
A manipulação dos sujeitos por meio da linguagem ocorre quando as pessoas são
tratadas como objetos, já que apenas os objetos são suscetíveis a manejo/
manipulação. Aqueles que manipulam pretendem que suas propostas sejam aceitas
sem oferecer razões para as mesmas, não respeitam a liberdade alheia, e
conduzem as pessoas a agir de acordo com seus propósitos.
Nossa pesquisa evidenciou distanciamentos comunicacionais, permeados pela
manipulação dos sujeitos por meio da linguagem, especialmente, quando
trabalhadores de saúde condicionam a presença/frequência dos usuários na
reunião do colegiado ao acesso ao Programa Bolsa Família (PBF). No entanto, não
há regulamentação legal que condicione o recebimento do auxílio à participação
nas reuniões, apesar de existirem outras condicionalidades aos beneficiários do
PBF. Os profissionais de saúde revelaram que essa foi uma estratégia encontrada
para aumentar a frequência dos usuários ao colegiado:
Foi pensado, como eu posso dizer, foi de propósito, ó como não vem
ninguém na reunião de comunidade, quem sabe se a gente falar para
elas que é obrigatório, pra elas irem. (T2-Trabalhadora 2)
Essa situação nos remete a um modelo conturbado de comunicação que não se pauta
no entendimento intersubjetivo, mas que se orienta para atingir um propósito,
sem considerar as vontades dos sujeitos. Assim, não são considerados os
desejos, as perspectivas e as possibilidades das pessoas, em relação ao acesso,
disponibilidade de horário, mesmo que os encontros ocorram durante a noite.
A manipulação dos usuários fica explícita, quando olhamos para os sujeitos que
mais frequentam esses espaços: todos são beneficiários do PBF e, inclusive,
como a assiduidade da frequência foi um parâmetro para nossas entrevistas, não
por coincidência, todos os entrevistados pertenciam ao referido programa.
Poderia até se pensar que a maioria das famílias adstritas dessa unidade de
saúde estaria vinculada ao PBF, no entanto, por volta de 5% delas são
cadastradas nesse programa de transferência de renda.
Assim, por vezes, para que esses usuários continuem frequentando esse espaço,
os trabalhadores lançam mão de um discurso ameaçador que desperta medo, o medo
da interrupção ou bloqueio do auxílio, o que pode ser explicitado pela fala:
A população também vai por causa do (Programa) Bolsa Família, vai por
medo de perder a bolsa. (T3-Trabalhadora 3)
O medo se torna uma ferramenta eficaz, em vários casos, pois muitas pessoas que
participam desses espaços dependem dos recursos do PBF para sua sobrevivência,
devido às suas precárias condições financeiras.
Os desencontros de horizontes geram conflitos de práticas em tais espaços,
sendo que, muitas vezes, os trabalhadores não se mostram abertos a discutir os
pontos de vista dos usuários e acabam impondo suas expectativas. No entanto, os
trabalhadores revelam que não receberam nenhum tipo de capacitação para
conduzir os colegiados e que enfrentam muitas dificuldades na relação com a
população. O que nos faz pensar na formação restrita dos profissionais da área
da saúde, centrada especialmente nos procedimentos técnicos, e assim, no
processo dialético da participação, esses sujeitos se mostram vulneráveis.
Além dos usuários, os próprios trabalhadores também são condicionados a
participar do fórum, como uma exigência de sua função. E assim, se repete a
situação anterior, no entanto, diferentemente do caso dos usuários, essa regra
possui validade legal. Mas não deixa de ser impositiva, sendo que muitos
trabalhadores referem insatisfação ao frequentar o colegiado:
Eu não vou porque eu gosto, se eu falar isso eu tô mentindo. Eu vou
porque a gente tem que ir. Eu vou porque sou obrigada, porque eu
trabalho aqui no posto. (T3-Trabalhadora 3)
Isso revela a manipulação também dos trabalhadores, já que sua frequência
nesses espaços, muitas vezes, não tem sido espontânea, o que está relacionado a
uma forma vertical de comunicação. A verticalização da comunicação se inicia
com a imposição da participação dos trabalhadores, pelos gestores municipais e,
sequencialmente, com a imposição da participação dos usuários pelos
trabalhadores. Na comunicação hierarquizada, não se respeitam as vontades dos
sujeitos, as decisões são tomadas pelos dirigentes e repassadas aos
"subordinados", que muitas vezes, não as acatam, apenas desempenham as ordens
formalmente.
Os achados de nosso material empírico, até o momento, nos mostram problemas,
falhas, desencontros/distanciamentos no processo comunicacional entre
trabalhadores e usuários, revelando uma situação de colonização dos espaços de
participação, sendo que nesses espaços deve prevalecer a racionalidade presente
no mundo da vida.
A colonização dos espaços relativos ao mundo da vida nos remete a pensar no
agir comunicativo como força integradora entre os sujeitos, que precisa ser
construída e reconstruída, nas esferas de interação intersubjetiva que foram
invadidas por outras racionalidades, como a burocrática e econômica, que não
são adequadas e por isso levam à perda de liberdade e sentido(10).
B. Aproximações entre usuários e trabalhadores de saúde
Os espaços de discussão na saúde se configuram como dinâmicos e contraditórios,
sendo que a comunicação estabelecida, ora propicia a participação dos sujeitos
nas decisões, ora inibe esse processo, se configurando como excludente.
Já discutimos acerca dos momentos em que a interação entre os sujeitos estava
prejudicada e influenciava negativamente sua participação. Aqui procuraremos
evidenciar elementos que têm contribuído/potencializado a participação dos
usuários, por meio do processo comunicativo, como a interação entre os sujeitos
e os espaços de discussões de problemas locais.
A interação entre os sujeitos
A pesquisa também apontou momentos de aproximações nos fóruns da ESF, marcados
pela interação dialógica entre trabalhadores e usuários que foram revelados por
meio da importância designada à participação de trabalhadores da saúde.
A importância designada à participação de trabalhadores da saúde, nas reuniões,
foi relatada por usuários, que demonstraram afetos, por exemplo, pela dentista
e enfermeira.
Eu acho importante, eu acho legal a participação do pessoal do posto.
E fazia tempo que eu não via a enfermeira [...] Aí eu fiquei contente
de ver ela ali, eu gosto, eu acho legal. Ah eu gosto muito dela desde
o começinho que ela tá aqui, eu gosto muito dela então [...](U2-
Usuário2)
Às vezes tem a dentista, eu adoro a dentista ela me fez perder o medo
de dentista, eu gosto quando ela tá lá. Eu gosto desse postinho de
saúde [...](U3-Usuário 3)
Como se pode notar, nas reuniões, os usuários revelam-se satisfeitos com a
presença das trabalhadoras de saúde pelas quais sentem afetividade, o que
indica que o vínculo/fusão de horizontes, construído nas atividades cotidianas
do serviço de saúde, acaba por aproximar o usuário dos espaços de participação.
E denotam a importância da construção de vínculos que favorecem tanto o cuidado
como a participação dos sujeitos, o que vai de encontro aos princípios da ESF.
Em nosso estudo também foi ressaltada a relevância da participação do Agente
Comunitário de Saúde (ACS) nas reuniões, como potencializadora da participação
do usuário e também dos demais trabalhadores. Vários trabalhadores alegam que
os usuários sentem-se mais à vontade e participam ativamente quando os ACS
estão presentes, devido à relação de proximidade entre eles. Os usuários
geralmente expõem seus problemas/necessidades para seu próprio ACS, que já
conhece sua realidade e tem mais condição de ajudá-lo, auxiliá-lo, guiá-lo em
seu enfrentamento. E, além de permitir maior interação e participação dos
usuários, gera segurança para os demais trabalhadores, que em alguns casos, não
teriam elementos suficientes para responder às demandas dos usuários como faria
seu agente comunitário.
Dessa forma, nos colegiados há "encontros" de usuários com trabalhadores, sejam
eles os Agentes Comunitários de Saúde (ACSs) que potencializam sua participação
ou com aqueles que possuem afinidades. Esses encontros seguem o caminho da ação
comunicativa, afinal, estão permeados pelo entendimento entre os sujeitos em
interação que se respeitam mutuamente e constroem laços de amizade e confiança.
As relações a serem estabelecidas nos fóruns da saúde devem se aproximar do
mundo da vida, visto que a comunicação deve ser orientada ao entendimento entre
os sujeitos, por meio dos planos de validação dos processos comunicacionais, da
correção normativa, da verdade proposicional e da autenticidade expressiva,
propostos por Habermas, segundo o qual, há possibilidade de os sujeitos
construírem um diálogo positivo(16).
Espaço de discussão dos problemas locais
Em diversos momentos deste estudo, presenciamos ações de planejamento em saúde.
O planejamento desenvolvido nos fóruns estudados se pauta nos princípios do
planejamento estratégico situacional, que é composto pelos momentos
explicativo, operacional, estratégico e tático-operacional. Dentre as várias
modalidades de planejamento estratégico situacional, desenvolveram-se momentos
do Método Altadir de Planejamento Popular (MAPP) que se caracteriza por ser
participativo, pois considera a visão das pessoas acerca de seus problemas,
estimulando o compromisso dos sujeitos com as ações para enfrentamento dos
mesmos, pela promoção de descentralização, democratização e distribuição de
poder.
No entanto, autores apontam contrastes entre a lógica da racionalidade do
planejamento estratégico e do agir comunicativo, sendo que os atores que
conduzem o planejamento se distanciam comunicativamente daqueles que vivenciam
os problemas17. Mas consideram que o planejamento estratégico, por pautar-se no
diálogo, pode se aproximar do planejamento comunicativo, desde que abra
possibilidade para uma problematização coletiva, que articule os sujeitos
sociais e incorpore um raciocínio sobre a governabilidade de situações de
compartilhamento e dispersão do poder que enfatiza a negociação política.
Os autores acima referidos consideram que, mesmo que o planejamento estratégico
não coloque explicitamente sua perspectiva comunicativa, o reconhecimento do
ato de planejar como relação interativa, o estabelecimento da negociação
cooperativa como meio estratégico, a valorização da explicação do outro como
parâmetro de crítica da nossa própria explicação e a relevância concedida à
cultura no delineamento das regras institucionais são elementos que
possibilitam uma compreensão do planejamento como não orientado somente para
atingir certos fins.
Em vários momentos da realização do MAPP, observamos situações que se aproximam
da lógica do planejamento estratégico, em sua perspectiva comunicativa, como
discutida anteriormente. Nesses momentos esteve presentes o desenvolvimento de
práticas democráticas de ações de enfrentamento de problemas comunitários.
O desenvolvimento de práticas democráticas de ações de enfrentamento de
problemas comunitários, como o levantamento, escolhas de problemas e
explicações de suas causas, realizou-se durante duas reuniões observadas.
Nessas reuniões, os trabalhadores de forma inclusiva solicitaram aos usuários
que elencassem os problemas mais relevantes de acordo com sua perspectiva:
[...] porque a gente tá fazendo o levantamento de problemas, pra
gente poder planejar estratégias de alguma coisa que esteja
incomodando vocês, né [...] O maior problema que vocês consideram na
comunidade [...] (T2-Trabalhadora 2)
Apesar da falta de continuidade no desenvolvimento dos momentos do
planejamento, em encontros subsequentes, após novo levantamento dos problemas,
foram esclarecidos aos usuários, em linguagem clara e compreensível, os
momentos que compõem o MAPP. Após a conclusão da seleção do problema, por
votação coletiva, passou-se para a explicação das causas e consequências do
mesmo. E criativamente, os trabalhadores instigaram os usuários, para que
falassem acerca das causas do problema e sua repercussão, revelando mais uma
vez que o usuário permanece calado, quando não encontra espaço para falar, já
que participaram ativamente desse processo. Foi possível observar o
desenvolvimento do planejamento até o momento explicativo e inicio do momento
operacional, devido ao encerramento das observações participantes.
Os elementos discutidos, no segundo momento deste artigo, se aproximam do
processo de Descolonização do Mundo da Vida, que só pode ocorrer quando
recuperarmos a nossa capacidade de comunicação, implementando transparência,
flexibilidade e dirigibilidade nas nossas ações. Habermas acredita na
competência das pessoas e que elas são capazes de produzir a ação comunicativa,
por meio do diálogo, com possibilidade de transformar a realidade existente
(12).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A construção dos dados nos revela caminhos tortuosos do uso da linguagem que
contribuem tanto para oprimir como para emancipar os sujeitos. A análise nos
permite visualizar fóruns de Saúde da Família como espaços dinâmicos e
contraditórios, constituídos tanto por momentos marcados por alteridade,
confiança, amizade, respeito, sinceridade entre os sujeitos, visando a ampliar
os horizontes participativos, bem como por situações caracterizadas pela
dominação, manipulação, coerção e desrespeito que desvirtuam as relações na
ESF.
Assim, consideramos que os momentos de desencontros/distanciamentos, muito
frequentes nos fóruns estudados, precisam ser "estranhados", questionados,
refletidos com vista a sua descolonização do mundo da vida/espaços de
participação. Caminhos possíveis para enfrentar esses problemas incluem a
construção e ampliação de momentos/espaços de diálogos entre trabalhadores e
destes com usuários e educação e, especialmente, a formação de trabalhadores de
saúde, baseada na educação permanente.
Ceccim e Feuerwerker(18) identificam a participação/controle social como uma
das faces essenciais da formação em saúde, ao construir o conceito de
quadrilátero da formação que engloba também o ensino, a gestão e a atenção.
Assim, o quadrilátero da formação, ou seja, ensino, gestão setorial, práticas
de atenção e participação/controle social, propõe a construção de uma educação
amparada por processos interativos e de ação na realidade, para operar
mudanças, mobilizar caminhos, convocar protagonismos e criar novos cenários de
conhecimentos e invenções. Nesse sentido, a participação social, interligada às
outras faces do quadrilátero (ensino, gestão e atenção), deve atravessar todo o
processo de formação e capacitação na área da saúde, com vistas a proporcionar
uma formação crítica, humanizada e problematizadora da realidade.
Por um fim provisório, consideramos que os colegiados da Saúde da Família
carregam potencialidades que precisam ser ampliadas para se reconstruir um
modelo de comunicação que permita a participação dos sujeitos e sua
participação nas políticas sociais, sendo necessário que a lógica comunicativa
ultrapasse esses espaços e permeie todo o processo de trabalho nos serviços de
saúde.