Sexualidade e a interseção com o cuidado na prática profissional de enfermeiras
INTRODUÇÃO
Sexualidade e corpo estão intrinsecamente ligados ao cuidado como prática
social de enfermeiras, tendo em vista serem profissionais a quem é outorgado o
cuidado direto do corpo no qual se manifesta a sexualidade. Todavia, tanto nas
escolas formadoras de profissionais como nas redes de atenção à saúde, falar da
sexualidade se apresenta ainda hoje como um tabu, algo muito velado e, de certa
maneira, ainda proibido.
Cuidar do corpo do outro muitas vezes se encontra envolto em um discurso
biologicista e tecnicista, escamoteando um fazer e uma escuta sensível acerca
da sexualidade e dos corpos, tanto de quem cuida quanto de quem é cuidado.
Estudos desenvolvidos por enfermeiras durante a última década do século XX e
início do século XXI têm confirmado tal situação e apontado lacunas do
conhecimento em enfermagem com relação aos estudos que enfocam a sexualidade na
interface com o cuidado(1-5).
A interdição da sexualidade na formação das enfermeiras vem se reproduzindo, ao
longo do tempo, mantidas as devidas diferenças histórico-culturais. Sobral(1)
diz que "as interdições da sexualidade não são demarcadas pelo tempo
cronológico, embora ao longo das décadas, seja possível perceber uma
necessidade de adequação dos rituais de neutralização de corpos erotizados".
Tal situação apresenta-se como problemática se pensarmos a sexualidade como um
dos eixos articuladores das relações de poder que se materializa por meio de
diferentes formas discursivas e especialmente se indagarmos a partir do
dispositivo da sexualidade. Michel Foucault, em entrevista concedida a Alain
Grosrichard, ao ser interrogado sobre o tipo de objeto histórico denominado
"dispositivo" responde:
Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto
decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições,
organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas,
morais, filantrópicas. Em suma o dito e o não dito são os elementos
do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre
estes elementos(6).
Se existe toda essa heterogeneidade de possibilidades na formação da rede
articuladora do dispositivo, poderíamos indagar de que maneira a sexualidade se
materializa, permitindo tais articulações. Também se faz necessário perguntar
de que modo poderíamos problematizar e analisar o seu impacto no campo da
enfermagem e das suas relações com o cuidado como prática social. Para nos
aproximarmos de respostas a essas indagações, precisamos compreender que,
se a sexualidade se constituiu como domínio a conhecer, foi a partir
de relações de poder que a instituíram como objeto possível; e em
troca, se o poder pode tomá-la como alvo, foi porque se tornou
possível investir sobre ela através de técnicas de saber e de
procedimentos discursivos. Entre técnicas de saber e estratégias de
poder, nenhuma exterioridade; mesmo que cada uma tenha seu papel
específico e que se articulem entre si a partir de suas diferenças.
Partir-se-á, portanto, do que se poderia chamar de 'focos locais' de
poder-saber (...)(7).
Esses focos locais traduzem-se pelas instituições mediante todo um aparato de
produção de poder saber, cria uma rede de vigilância, investigação, controle e
produção discursiva que se materializa nos e/ou através dos corpos. Na
enfermagem, poderíamos dizer que se dá por meio do silenciamento sobre a
sexualidade sustentado pela disciplina "que fabrica assim corpos submissos e
exercitados, corpos dóceis"(8) e disciplinados, ao longo de décadas.
Agente de um poder-saber, a enfermeira suscita, sente e cala desejos.
No lugar histórico da constituição da enfermagem como um discurso
teórico prático só há o silêncio. No momento presente quem lê, faz e
refaz o discurso da enfermagem também brinda esse tema com o
silêncio. Silêncio que denega a sexualidade calando o que é erótico
(1).
Na nossa experiência como enfermeiras e docentes percebemos nos serviços de
saúde, nos quais é oferecida atenção básica ou hospitalar - lócus de atuação
das enfermeiras em suas diferentes modalidades - que o contato com o sujeito
cuidado visto sob as especificidades do corpo e da sexualidade causa grande
impacto. Isto porque tal tema parece não se constituir como fundamental durante
o processo de formação e ensino-aprendizagem do cuidado nas Escolas de
Enfermagem em que nos formamos e temos atuado. Tal perspectiva corrobora com
estudo que identifica a neutralização dos corpos e da sexualidade de
enfermeiras(1) bem como o domínio da informação e do saber técnico- científico
das mesmas que, de maneira autoritária e verticalizada em relação ao manuseio
do corpo nu, exige obediência por parte das pessoas assistidas, causando
constrangimento, impotência, vergonha e silenciamento dos sentimentos(4).
As observações empíricas sobre essa realidade culminaram na tese intitulada
Estendendo o Fio de Ariadne: sexualidade feminina e a interseção com o cuidado
nos discursos de enfermeiras, defendida em maio de 2011 no Programa de Pós-
Graduação em Enfermagem da Universidade Federal da Bahia (UFBA), sendo
divulgado neste artigo uma das categorias empíricas. Nesse sentido, o objetivo
deste estudo é analisar a interseção entre a sexualidade e o cuidado de
enfermagem enquanto prática social. A pesquisa contribui com o aprofundamento
teórico acerca do tema e subsidia ações de implementação de planos de cuidado
que contemplam a sexualidade como componente importante para a integralidade
das ações de saúde.
MÉTODO
A pesquisa foi realizada em Barbacena, estado de Minas Gerais. Nove enfermeiras
participaram do estudo, todas residentes e desenvolvendo suas atividades
profissionais na cidade, graduadas entre 1979 e 2002. Duas entrevistas piloto
foram feitas com duas enfermeiras de Montes Claros-MG.
Para a produção do material empírico optou-se pelas entrevistas em profundidade
através da realização do inquérito por histórias de vida(9). Foi utilizado como
referencial teórico a Epistemologia Feminista do Ponto de Vista(10-11) e gênero
como categoria analítica.
A análise dos resultados foi feita a partir da Análise de Discurso Crítica
(ADC), nome dado a enfoques que se debruçam sobre a análise de textos, cuja
raiz está em diferentes tradições teóricas, que buscam a mudança social e
cultural. "Para atingir isso, é necessário reunir métodos para analisar a
linguagem, desenvolvidos na linguística e nos estudos de linguagem com o
pensamento social e político relevante"(12).
As especificidades temáticas levaram à construção de subcategorias que
culminaram com a categoria empírica central, título deste artigo, que expressa
maior nível de abstração em relação ao objeto.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade
Estadual de Montes Claros (Unimontes) por meio do protocolo de número 1625/
2009. As participantes do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido. Uma vez que o título da tese traz uma analogia simbólica ao fio
condutor no mito de Ariadne, foram sugeridos nomes de deusas para a
identificação das participantes. No início de cada entrevista foi oferecido
como presente o "Livro das Deusas do Grupo Rodas da Lua", que apresenta as
deusas das mais diferentes tradições e culturas e acrescenta "A Grande Mãe na
Era Cristã, Maria", o que mostra a diversidade na escolha das entrevistadas. Na
tese os relatos são acompanhados pelo nome fictício, idade no momento da
realização da entrevista e o ano em que se formaram, sendo mantido o mesmo
procedimento neste artigo.
RESULTADOS
As enfermeiras participantes do estudo tinham idade entre 33 e 59 anos; quatro
delas eram solteiras, duas casadas, uma se declarou em relacionamento estável
há mais de 15 anos e uma divorciada, já em um segundo relacionamento estável. A
renda pessoal variou entre três a dez salários mínimos e meio, com a maior
concentração na faixa dos quatro salários mínimos. Oito delas se declararam
brancas e uma negra. Apenas uma declarou não ter religião e todas as demais
declararam ser católicas. Seis das nove enfermeiras participantes do estudo
concluíram a graduação na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Das
outras três, uma formou-se na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); uma
na antiga Escola de Farmácia e Odontologia de Alfenas, hoje Universidade
Federal de Alfenas (UNIFAL); e a terceira, na Universidade Federal de Rondônia
(UNIR).
Todas já tiveram mais de um vínculo empregatício em algum momento de suas
carreiras, sendo que oito delas estão ou estiveram desenvolvendo atividades na
área de saúde mental, especialmente nas Unidades do Centro Hospitalar
Psiquiátrico de Barbacena/CHPB, da Fundação Hospitalar do Estado de Minas
Gerais/FHEMIG. Essa tendência do cuidado desenvolvido na área de saúde mental
não tem aderência com a especialização lato sensu da maioria delas, que se
concentrava nas áreas de gestão dos serviços de saúde, saúde pública e terapia
intensiva. Uma enfermeira fez mestrado na área de saúde mental, e outra
participa de grupos de estudos de Lacan, o que lhe dá um olhar mais atento
sobre as condições das pessoas com transtornos mentais.
Os discursos das enfermeiras acerca da interface cuidado e sexualidade, em suas
experiências profissionais, vão do cuidado direto - realizado em unidades de
alta complexidade como as Unidades de Terapia Intensiva (UTI), passando por
unidades ambulatoriais de atendimento exclusivo de portadores do Human
Immunodeficiency Virus (HIV)/Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) - às
experiências em cargos de gerência.
Os resultados da pesquisa realizada mostraram que, na prática, quando as
enfermeiras chegam ao mercado de trabalho, esbarram nas fortes dificuldades em
abordar a sexualidade, dimensão essencial da vida humana, a ser valorizada,
tanto no âmbito da saúde coletiva quanto do cuidado hospitalar.
A. Sexualidade, corpo e cuidado nos espaços hospitalares
As enfermeiras, ao falar sobre suas experiências no campo do cuidado direto com
o corpo (o que consequentemente remete à sexualidade), demonstraram muita
dificuldade no uso da palavra sexualidade. Na maior parte das vezes, elas
deslocaram a condução da narrativa para um aspecto mais geral da profissão: a
questão do quantitativo, em que o número de enfermeiros (utilizando aqui a
nomenclatura no masculino, para indicar especificamente os homens na profissão)
continua baixo para dar conta da demanda de cuidado desenvolvido no âmbito
hospitalar.
Assim, a presença dos homens na enfermagem é um tema recorrente em vários
discursos quando se trata do cuidado direto com o corpo de homens e mulheres
nos hospitais. Existe uma preocupação com o constrangimento causado aos
pacientes quando os cuidados de enfermagem, especialmente os ligados a um
contato direto com a intimidade como o banho de leito, por exemplo, são
realizados por mulheres em pacientes do sexo masculino e vice-versa.
Entretanto, essa preocupação é mais evidente quando se trata de homens cuidando
de mulheres porque, como podemos ler a seguir, há uma posição de que homens
aceitam melhor serem cuidados por mulheres que o contrário.
Porque é engraçado que a enfermagem é altamente feminina ainda. O
homem olha para o pessoal da enfermagem, para a enfermeira, o
cliente, o paciente homem, olha com mais tranquilidade. A mulher
quando olha para o enfermeiro não vê ele com tranqüilidade mas aceita
o obstetra, o homem, o médico obstetra, não é? (PERSÉFONE: 56, 1979).
As mulheres só aceitaram os homens na cena do parto mediante o apelo do
discurso do conhecimento científico-médico ser maior que o das parteiras, além
da transformação do parto em patologia passível de intervenção médica, que se
intensificou a partir do século XIX(13). O fato de homens terem mais
tranquilidade ao serem cuidados por mulheres remete às origens da enfermagem
como profissão do cuidado. A profissionalização reiterou no espaço público o
cuidado como prática feminina, do lar, em que as mulheres são responsáveis do
nascimento à morte. Historicamente, tais cuidados foram repassados de mães para
filhas pela tradição oral e reconhecidos como fato social "devido a
antiquíssima divisão sexual do trabalho, base da primeira economia mista"(14).
O papel de mãe acaba sendo resgatado como neutralizador de um possível
constrangimento, em relação ao cuidado, como afirma Maria:
Então eles ficam constrangidos num primeiro momento, mas acabam
acostumando com a idéia. Porque mulher é cuidadora, é mãe, já está
acostumada com aquilo. (MA-RIA, 38,1995).
No espaço público, a profissão foi, desde o início de sua institucionalização
como enfermagem moderna, submetida ao forte esquema de neutralização dos corpos
e interdição da sexualidade. A moral cristã, que abriu espaço inclusive para a
crença na enfermeira como anjo assexuado, também contribuiu enormemente para a
negação do corpo erótico da enfermeira, que precisa ficar invisível aos olhos
dos pacientes homens(1-4,14). A impessoalidade na realização da técnica era
imprescindível na formação das enfermeiras brasileiras, no período em que ainda
havia o internato para as futuras profissionais. A perspectiva era desconstruir
a idéia do corpo sexuado das estudantes que, como jovens solteiras, não
mantinham um contato com os corpos masculinos(1).
Essa perspectiva foi realidade para o ensino de enfermagem desenvolvido até o
final da década de 1970 porque, em função do baixo número de escolas de
graduação, quase todas as enfermeiras ao ingressarem no mercado de trabalho
desenvolviam atividades gerenciais e não a do cuidado direto. Assim, as escolas
tinham um discurso de que as estudantes de enfermagem deveriam saber
desenvolver muito bem as técnicas para ensinar aos outros membros da equipe de
enfermagem, que seriam responsáveis pelo cuidado direto.
No entanto, a Lei nº 7.498/86, que regula o exercício da enfermagem no Brasil,
extinguiu a categoria do(a)s atendentes de enfermagem e as demandas,
especialmente dos centros de alta complexidade, exigindo cada vez mais a
presença das enfermeiras no cuidado direto prestado aos/às usuário(a)s. Os
impasses se apresentam quando as enfermeiras se encontram frente a frente com a
realidade concreta do mundo do trabalho.
Só que hoje como eu trabalho numa UTI eu vejo o quanto isso
constrange, e eu tenho pouquíssimos plantonistas do sexo masculino,
mas quando eu tenho condições de deixar uma mulher dar banho em outra
mulher, e um homem dar banho em outro homem eu vejo o quanto isso é
confortável, é lógico que principalmente para o lúcido. Porque a
pessoa se sente constrangida! A gente percebe esse constrangimento no
olhar, isso quando eles não se manifestam na fala mesmo. O olhar, a
pessoa não consegue te encarar, não é? O paciente que está sedado faz
diferença? Faz, principalmente para quem está assistindo. (AFRODITE:
33, 2002).
Esse discurso aponta na direção da humanização efetiva do cuidado, na medida em
que você enxerga o outrocomo ser humano integral. É a constatação de que existe
sim um constrangimento tanto da parte de quem é cuidado como de quem cuida. A
histórica interdição da sexualidade, marcada pelos discursos que identificam as
enfermeiras como anjos assexuados ou pelo uso dos uniformes ou roupas que façam
desaparecer as marcas do corpo sexuado, é quebrada pela realidade em que se dão
as práticas do cuidado com o corpo e precisam ser questionadas em nome da
dignidade dos seres humanos, homens e mulheres.
Nessa perspectiva, estudos(15-16) têm questionado uma prática comum em Unidades
de Terapia Intensiva (UTI) que, em nome da facilidade de acesso a procedimentos
de urgência, deixam o(a)s pacientes nus. Essa prática aponta para um
profissionalismo assexuado que é desumano, em relação aos pacientes, mas se
enquadra em um modelo assistencial de alta competência técnica e pouca ou
nenhuma preocupação com a intimidade dos seres cuidados. Os procedimentos de
alta complexidade e a necessidade de eficiência técnica para salvar vidas
parecem transformar em objeto as pessoas ali internadas. O depoimento que se
segue aponta para esta direção:
Numa terapia intensiva não tem isso de homem cuidar de homem e mulher
cuidar de mulher. E no CTI tem muito homem! A maioria às vezes até é
homem (MARIA: 38, 1995).
Se grande parte de cuidadore(a)s em UTI é homem, como ficam as pacientes do
sexo feminino em relação a serem cuidadas por homens? Como já abordamos
anteriormente, existe uma resistência histórica das mulheres em relação a serem
cuidadas por profissionais não médicos do sexo masculino. As mulheres preferem
ser cuidadas por mulheres quando
o que está em jogo é a própria sexualidade e a intimidade. O discurso que segue
traz essa perspectiva e o paradoxo da transformação do sujeito do cuidado em
objeto des-singularizado quando está sedado em uma UTI:
E aí a gente se põe na posição seguinte: se eu mulher enquanto lúcida
eu gostaria de que um homem me desse auxílio nas minhas necessidades
básicas como banho, principalmente banho? Eu não gostaria. Então eu
acho que de certa forma isso fica muito, é muito forte na relação. Eu
que tive a experiência de trabalhar no CTI é diferente. Mas passa a
ser diferente no sentido daquele paciente que está ali sedado e não
tem essa noção porque quando ele começa a ter também há uma
preocupação da gente colocar pessoas do mesmo sexo pra estar
auxiliando a eles nessa questão da higienização. Então há essa
preocupação (IANSÃ: 38, 2002).
No entanto, emerge um complicador quando se volta o olhar para a realidade da
profissão que ainda hoje é majoritariamente feminina: como lidar com o
quantitativo para que possa haver um equilíbrio? Quando isso acontece, o
discurso volta-se para a idéia tradicional de que as mulheres têm os melhores
atributos como cuidadoras e de que a profissão não tem sexo:
Porque quando a gente esbarra na questão de quantitativo de
profissional aí a profissão passa a não ter sexo. Mas na medida em
que a gente se coloca do outro lado a gente vê o quanto é importante
estar sendo olhado por uma pessoa que a gente sabe que tem o mesmo
olhar, sabe, desse jeito, porque na verdade é assim, a gente que é
mulher sabe que é mais fácil, só de um olhar já expressa muita coisa.
Homem já não é assim, não é essa compreensão que a mulher tem que é
muito mais abrangente (IANSÃ: 38, 2002).
Podemos dizer que essa idéia da enfermagem não ter sexo se adéqua muito bem às
concepções incorporadas pelas enfermeiras ao longo de todo o processo de
subjetivação pela sexualidade, sendo justificada como uma necessidade da
profissão quando o número de profissionais do sexo masculino é insuficiente. Na
realidade, existe um ir e vir que o tempo todo aponta, ora para as rupturas,
ora para as permanências. Essa dialética da vida e dos sujeitos que é movimento
e transformação. Essa perspectiva fica muito nítida no discurso que se segue:
Eu penso até hoje que o enfermeiro não tem um corpo não, dentro do
cuidado de si. Porque ele é um sujeito muito atarefado, um sujeito
muito fazedor. Eu não sei se tem enfermeiro assim que lida com a
sexualidade de si mesmo, da coisa prazerosa, do gozo: do gozo de ser
mulher, do gozo de gozar, eu não sei se tem enfermeiro que cuida
disso. (HÉCATE: 54, 1982, grifo nosso).
O peso da palavra sexualidade e o que a acompanha é reforçado na demonstração
de dúvida acerca da capacidade do enfermeiro, usando o masculino para em
seguida expressar sentimentos que são femininos e, portanto seria da
enfermeira, em lidar com a sexualidade de si mesmo. A enfermeira revela valores
que permanecem nela até hoje e oscila entre suas interdições e a necessidade de
abrir-se para as demandas possíveis do cuidado. Ela fala no masculino por força
da tradição, mas é a respeito dela, da mulher, da enfermeira no feminino, que
ela anseia por falar.
E ainda Hécate continua colocando questões importantes acerca do cuidado, da
sexualidade e do masculino na profissão:
Porque o cuidado que se preocupa é o cuidado da higiene, não é o
cuidado do corpo é da higiene. Você está limpinho, você está
arrumadinho, está organizado. Não é do corpo em si. Eu falo de corpo
eu falo de corpo de gozo, sabe assim de ter o prazer de ser mulher. E
agora na enfermagem está entrando muito o masculino e eu acho que vai
mudar a posição. A enfermagem vai ser mais organicista, com mais
direitos entendeu, entrando o masculino. Porque eu acho que a mulher
não se preocupa muito com direitos em parte política em si, e de
ganhos, parte de dinheiro, financeiro mesmo. Eles vão se preocupar
com isso apesar de que os homens que estão entrando para a enfermagem
são também muito femininos não é? São assim (HÉCATE: 54, 1982).
Em seu discurso, Hécate abstrai o cuidado visto apenas como higiene do corpo
para o cuidado do corpo, lugar do erótico, do prazeroso, corpo esse esquecido,
no ensino de enfermagem. Ela fala da presença dos homens na enfermagem: faz
afirmações pautadas em atributos de gênero de que a chegada dos homens pode
mudar a profissão, do ponto de vista político e de reconhecimento, mas ao mesmo
tempo desconstrói o modelo tradicional de masculinidade. Ela aponta novas
possibilidades identitárias para os homens que podem sim desenvolver plenamente
os cuidados que até então eram considerados femininos, mas com reservas. Vê
nesse homem uma forma do feminino, esforçando-se para não ser interpretada pelo
prisma do que há subjacente à visão do homem enfermeiro no imaginário social,
conforme se lê a seguir:
Não quero falar gay, porque eu acho que tem homem masculino,
masculino que o homem é macho, macho mesmo e tem homem que tem uma
alma mais feminina: ele é tolerante, mais maleável, ele vê as coisas.
E eu acho que é esse tipo de homem que está entrando na enfermagem,
não está entrando o homem bruto. Porque eu acho que o homem é assim
muito racional, muito concreto e está entrando o homem mais maleável,
mais para o lado feminino mesmo. Não é o lado feminino de ser
homossexual não, é lado feminino mesmo. (HÉCATE: 54, 1982).
Hécate em seu discurso, embora procure desideologizar o cuidado como componente
da essência feminina reforça tais características ao dizer que o homem que
procura a enfermagem na atualidade está mais para o lado feminino.
Historicamente, o cuidado é uma atividade regida pela ideologia de gênero e do
cuidar do outro, considerado apenas como atributo feminino. Ele oportuniza a
permanência da desvalorização do mesmo como prática social porque
em nossa sociedade, as estruturas privadas que envolvem "cuidar de"
localizam-se especialmente na família; profissões que proporcionam
cuidados são muitas vezes interpretadas como apoio ou substituto para
cuidados que não podem mais ser proporcionados dentro da família(17).
Visto sob esta ótica evidencia-se a dificuldade da valorização do cuidado como
prática social, dificultando sua inserção como trabalho, com valor econômico,
do mundo capitalista(17). Assim, se o cuidado está intrinsecamente atrelado às
qualidades femininas, é considerada de menor valor social e, consequentemente,
a remuneração é mais baixa. Na enfermagem, observamos que os homens procuram
sempre atividades mais ligadas às tecnologias mais complexas na área de saúde,
áreas de gestão e as que demandam um envolvimento político mais efetivo. Eles
afirmam inclusive que os cuidados mais diretos, especialmente com as crianças,
são mais apropriados para as enfermeiras.
Em pesquisa com enfermeiros, aqui usando o masculino porque foi feita apenas
com homens, realizada em Montes Claros - MG, os resultados apontaram que,
apesar de afirmarem que o cuidado não é atividade exclusivamente feminina, têm
uma consciência de gênero mantenedora da divisão sexual do trabalho dentro da
profissão. Eles afirmam que determinadas áreas e/ou horários de trabalho são
mais adequados às mulheres em função de suas atividades domésticas e a educação
do(a) s filho(a)s (afazeres desenvolvidos na esfera privada que ainda são de
responsabilidade quase exclusiva das mulheres). Os enfermeiros demonstraram
preferência por setores de emergência e urgência, ambulatórios, Centros e/ou
Unidades de Terapia nos quais as tecnologias de ponta, de certa maneira, os
afastam das relações mais próximas do cuidado do(a) outro(a)(18).
B. A enfermeira face a face com o homoerotismo: silêncios e reticências...
Se, durante as entrevistas, falar da sexualidade foi difícil, mais difícil foi
depreender nos relatos o que colocava em evidência a perspectiva homossexual.
Das nove entrevistadas, três abordaram a questão em vivências diferentes: na
gerência em enfermagem, no hospício (ao lidar com pacientes asilares crônicos)
e em Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) em HIV/AIDS.
As falas muitas vezes foram marcadas por pausas e silêncios, revelando algo
proibido. Isso é expresso a seguir, quando Hécate, ao se deparar com situações
em que a função gerencial exige uma tomada de posição em relação à equipe de
trabalho, destaca aquilo que lhe causa mais constrangimento e dificuldade para
lidar: a orientação sexual que desvia da norma heterossexual.
E da parte dos funcionários a gente nunca preocupou em conversar com
eles a respeito. Só quando surge, (não sei se eu poderia falar isso,
depois se não puder você corta isso). Eu não sei se a gente poderia
falar, mas a gente tem muitos casais homossexuais, tá certo? E de vez
em quando, tem uma confusão entre eles que vem parar aqui na sala do
departamento. E, vindo parar na sala a gente tenta conversar a
respeito da parte comportamental de que a vida deles tem que ser lá
fora (HÉCATE: 54, 1982).
O discurso é heteronormativo e a homossexualidade parece proibida e deve
permanecer no silêncio e na obscuridade: o receio de que esteja se confrontando
com os valores da própria entrevistadora reforçam a crença da anormalidade e da
vergonha em ter que encarar a homossexualidade em meio aos difíceis
enfrentamentos, no plano da sexualidade. Orientada por tais referências, Hécate
reproduz, como mulher e como enfermeira, valores que normatizaram a sexualidade
heterossexual e se traduzem nas práticas de cuidado, reforçando preconceitos
ligados à homossexualidade.
Se ela decodifica a opção sexual que foge à norma da heterossexualidade como
algo proibido, como um tabu, certamente terá dificuldade na escolha e
treinamento de outra(o)s profissionais mais sensibilizada(o)s para identificar
as necessidades e especificidades do(a)s usuário(a)s dos serviços em relação à
sexualidade, aprofundando o problema quando se trata da homossexualidade. Essa
perspectiva fica evidente na fala de Perséfone:
Era tanta gente dentro de um pavilhão para duas atendentes de
enfermagem tomar conta à noite, que não dava conta. Elas escreviam
que o fulano de tal dorme toda noite na cama do outro. É falavam.
Dorme, eles dormem juntos, sabe? Mas era uma coisa interessante
porque eram as observações de enfermagem, mas só falava isso. Fulano
dormiu com beltrano. Beltrano dormiu com fulano(...) Se tem uma
pessoa hetero, mas está encarcerado há cinquenta anos e só vê a
pessoa do seu sexo, onde você vai canalizar a sua sexualidade? É uma
questão do desejo. É a questão do desejo. (PERSÉFONE: 56,1979, grifo
nosso).
Nesse depoimento, há uma retrospectiva ao tempo em que ainda existiam
atendentes de enfermagem e o hospício chegava a ter quase dois mil pacientes
asilares. Duas questões importantes podem ser recortadas nessa fala. A primeira
é a posição das atendentes, que seria de fiscalização, e como o número de
pacientes era muito grande, elas não davam conta e só relatavam o fato de duas
pessoas do mesmo sexo terem dormido juntas. A outra questão diz respeito à
enfermeira deixar claro que a homossexualidade é circunstancial e não uma
orientação do desejo sexual, por pessoas do mesmo sexo, como algo possível. A
partir desse recorte, pode-se perceber que a pausa durante a fala e a
dificuldade de se expressar revela que era muito difícil abordar o assunto.
Hécate e Pesérfone são de uma mesma geração com formação e exercício
profissional iniciado em época anterior à abertura para a discussão acerca dos
direitos sexuais. Entretanto, uma enfermeira mais jovem, Hera, demonstra
dificuldade em lidar com tais questões.
Hera, que se graduou em 1997, aos 22 anos, e estava com 34 anos quando foi
realizada a entrevista, falou sobre sua experiência em aconselhamento em um
CTA, demonstrando a carga de dificuldade encontrada ao se deparar com situações
concretas, em que seus valores como mulher e enfermeira são confrontados com os
valores do(a) usuário(a):
Em relação aos valores eu acho que eu só entrei assim num pouquinho
de choque quando eu vim aqui no CTA, quando eu comecei a atender a
questão de homossexual, bissexual. Não quanto aos valores em si mas
assim a questão de... (pausa, dificuldade para expressar as idéias,
demonstra um certo constrangimento em falar) não julgar mas sim ver,
de ter uma outra visão que eu não tinha (HERA: 34, 1997).
Estudos mostram que a formação de enfermeiras escamoteia a perspectiva da
sexualidade na interface com o cuidado ou a desloca para a instrumentalização
técnica reforçando as estruturas fisiopatológicas(1-5,19-20), corroborando com
os resultados dessa pesquisa que demarca permanências desde o final dos anos
1970 na ausência da abordagem sobre a sexualidade, como podemos ler nos
depoimentos:
Nunca teve, nós nunca tivemos a questão de preparo de que eu vou
lidar com o corpo do outro. E preparar que o corpo do outro é igual
ao meu corpo. Ou então eu lidar com o meu corpo e vou lidar com o
corpo do outro que é igual ao meu, é mulher. Porque parecia que o
outro era um objeto. Não era uma pessoa, era um objeto onde eu estava
ali dando os cuidados. E engraçado, fazendo técnica, desenvolvendo
técnica! Sem muito é, sem você ter um, como é que fala um contato
mais humano. Eu estava ali desenvolvendo técnica! Não queria saber se
era homem ou se era mulher, eu estava fazendo o trabalho que era o
que eu tinha que executar para a melhora da doença do outro
(PERSÉFONE: 56, 1979).
A escola não ensinou porque eu acho que a escola tem medo da gente
despertar para uma outra coisa. Na época que eu fui estudante eu acho
que tinha muito receio da gente despertar para outra coisa (HÉCATE:
54, 1982).
A faculdade não preparou para essas situações da realidade. Os
profissionais não estão preparados para isso. Por mais que as pessoas
vejam, por mais que a gente vê, na televisão, na hora que chega para
você a situação você fala assim: como fazer? A sexualidade na
enfermagem fica sempre parecendo um mito. (KUAN YIN:39,1997, grifo
nosso).
Não, não, isso não. Eu acho que isso cada um procura lidar da forma
de conceitos prévios. A faculdade não imbui, não fala assim a
abordagem como deve ser feita. Então eu acho que isso aí é de tato de
cada um. Não lembro disso ser abordado. Mas na faculdade eu não
lembro deles mandarem a gente ficar prestando muita atenção nisso não
porque tinha essa questão meio que do anjo. Eu fazia muita piada com
essa questão do anjo (AFRODITE: 33, 2002).
Tendo em vista não existir na graduação uma formação para lidar com a
sexualidade, sobretudo com modos diferenciados de exercício da sexualidade que
se colocam durante um atendimento individualizado, haverá constrangimentos:
Quando você faz promoção é fácil. Quando você pega um relato dentro
de um consultório individual em uma avaliação, e os casos assim são
muito pesados, isso te põe assim um pouco em xeque mate não é?
Fizemos um aconselhamento coletivo. A gente pega pessoas ali que
resolveram fazer um teste e falar um pouco da sexualidade. Aí é
diferente. Você tem mais facilidade. (HERA: 34, 1997, grifo nosso).
Hera, em diálogo informal descreve as atividades educativas, chama de promoção
e aconselhamento coletivo o que se assemelha mais com as palestras realizadas
por profissionais de saúde nas comunidades, em escolas ou nas fábricas que, na
maior parte das vezes, é centrada na fala do(a) profissional de saúde como
detentor(a) do saber. Não é um processo dialógico em que a voz, os valores e a
cultura do(a) outro(a) são realçados. O aconselhamento em Infecções Sexualmente
Transmissíveis (IST)/AIDS é uma prática relativamente nova na área da saúde,
com uma perspectiva bastante diferente das palestras.
Desse modo, é possível afirmar que há um despreparo para lidar com a
sexualidade e, que no discurso de Hera, afloram as bases das formações
identitárias como mulher e como enfermeira e os códigos morais que foram
internalizados. Deparar-se, no processo de cuidar, com uma orientação sexual
que contraria ao estabelecido, inibe, causa constrangimento e se coloca um
conflito cognitivo: ela não pode julgar, mas não está preparada.
Ressalta-se que a década de noventa foi fortemente marcada pelos movimentos
Gays, Lésbicas e Travestis (GLT) e Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transexuais e
Transgêneros (GLBTT) que, junto com o movimento feminista, passaram a
reivindicar os direitos sexuais como direitos humanos. Essa perspectiva
desencadeou uma forte discussão sobre novas políticas voltadas para a atenção à
saúde como integral e inclusiva.
Em relação aos(à)s portadores(a)s do HIV, houve uma ampliação na perspectiva do
atendimento de qualidade, com a implementação, em diversas cidades do país, dos
CTAs. Esses centros abriram espaço para o trabalho das enfermeiras
especialmente para fazerem aconselhamento. Os documentos intitulados
Aconselhamento e HIV/SIDA publicados como atualizações técnicas pela
Organização das Nações Unidas (ONU), em novembro de 1997, e Aconselhamento em
DST e HIV/AIDS: diretrizes e procedimentos básicos", lançado pelo Ministério da
Saúde do Brasil, em julho de 1998, trazem as normas gerais sobre o
aconselhamento, descrevem o(a)s profissionais que seriam preparados para tal
atividade (enfermeira(o)s, médico(a)s, assistentes sociais, e psicólogo(a) s) e
apontam a necessidade da discussão sobre a sexualidade. Também chamam a atenção
para o fato de que um atendimento com tais características demanda bastante
tempo, mediante várias sessões de acompanhamento.
Apesar dos indícios de avanços em relação ao lugar da sexualidade no campo da
saúde e da enfermagem, as enfermeiras que participaram desse estudo expressaram
os valores da construção identitária, formação profissional e o que está posto
socialmente como norma, revelando dificuldades na interseção entre cuidado e
sexualidade na prática cotidiana.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados do estudo mostraram que a sexualidade e as relações de gênero são
transversais às maneiras de cuidar nas suas diferentes formas e lugares. Essa
transversalidade e a interseção entre sexualidade e cuidado como prática social
das enfermeiras ficou evidente quando tratamos do cuidado do corpo em sua
materialidade e nas dificuldades apresentadas por algumas enfermeiras em lidar
com situações da sexualidade que não se ajustam às normas da
heterossexualidade.
Nesse sentido, a formação profissional precisa romper barreiras e preconceitos
e sensibilizar e instrumentalizar futuras enfermeiras para o cuidado na
diversidade sexual, superando a heteronormatividade. Novos padrões de
conjugalidade vêm se consolidando na atualidade e nesse aspecto a perspectiva
do cuidado integral precisa acolher tais mudanças e os novos arranjos
familiares.
O discurso de algumas enfermeiras apontam como solução para a questão do toque
do corpo do outro, da invasão da intimidade e da sexualidade inerente à
condição humana mesmo nos encontros cuidativos, para a necessidade de cuidadora
(e)s do mesmo sexo, ou seja, homens cuidam de homens e mulheres cuidam de
mulheres, embora o quantitativo na profissão continue majoritariamente
feminino.
Nesse aspecto, é importante pensar que, em relação aos cuidados mais ligados à
intimidade do corpo, manter profissionais do mesmo sexo significa respeito ao/à
outro(a) que não é mero objeto do cuidado mas, sim, um ser humano que sente,
sofre, se envergonha e que, muitas vezes, se cala diante do poder que
representam profissionais e instituições de saúde. Entretanto, essa postura por
si só não pode escamotear a importância que o corpo e a sexualidade representam
para o cuidado de enfermagem porque o erótico não existe apenas na perspectiva
da heterossexualidade.
Como a enfermagem na atualidade ainda é uma profissão majoritariamente
feminina, compreender os desdobramentos da interdição da sexualidade na
prestação dos cuidados contribui tanto para o aprofundamento teórico quanto
para subsidiar novas abordagens cuidativas na perspectiva da integralidade, que
possam desmistificar o lugar do corpo e da sexualidade na interface com o
cuidado de enfermagem como prática social das enfermeiras.