Aplicação do Processo de Enfermagem a usuário de crack fundamentado no modelo
de Betty Neuman
INTRODUÇÃO
O crack é considerado a forma com maior potencial de dependência da cocaína,
além de ser o método preferível por muitos usuários por proporcionar efeitos
eufóricos segundos após a sua inalação. Sendo a droga absorvida diretamente nos
pulmões, o seu uso possibilita uma rápida ação da droga no cérebro, obtendo
efeitos mais estimulantes prazerosos para o usuário, o que caracteriza a
'fissura' quase incontrolável, descrita por muitos usuários(1).
Desde o surgimento do crack, pesquisas apontam um aumento acelerado do consumo
dessa substância. Em 2005, por exemplo, o II Levantamento Domiciliar Nacional
sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, realizado pelo CEBRID nas 108
maiores cidades brasileiras aponta dados alarmantes, uma vez que 2,9% dos
entrevistados afirmaram ter usado cocaína ao menos uma vez na vida e 0,7%
usaram crack. Na região Sudeste, esse índice chegou a 3,9% em relação à cocaína
e 0,9% ao crack(2).
Diante deste contexto, o que mais preocupa é a repercussão devastadora das
consequências do uso. Fato é que o consumo indevido dessa substância está
associado a inúmeros problemas de ordem biológica, psicológica e social, além
de possibilitar na maioria das vezes a perda de vínculos importantes e
consequências tanto para o indivíduo quanto para a família e a comunidade onde
ele se encontra inserido.
Em uma pesquisa realizada com trinta usuários de crack, são destacados como
riscos de complicações físicas decorrentes do uso da droga, o emagrecimento, a
insônia e a overdose(3). Outro ponto importante diz respeito aos problemas
relacionados às comorbidades psiquiátricas como transtornos de personalidade e
de humor, associado ao uso do crack(4).
Assim, diante dos fatos mencionados, é clara a complexidade da temática, o que
demanda esforços do indivíduo, família, profissionais, entre outros. E em
relação a este último, destaca-se o profissional enfermeiro que atua na
assistência direta aos usuários de crack. Para tanto, este artigo propõe uma
estratégia de atenção para usuário de crack, por meio da Sistematização da
Assistência de Enfermagem, fundamentada no modelo de Betty Neuman.
Fundamentação teórica
Betty Neuman descreve seu modelo como abrangente e dinâmico, de forma que o
modelo enfatiza a reação da pessoa ao estresse e os fatores de reconstituição
ou adaptação(5). O modelo de Neuman é aplicado em diversas áreas, como em
programas educacionais, para orientar a prática com pessoas que apresentam
comprometimento cognitivo e à família de pacientes em terapia intensiva. Entre
as diversas vantagens destaca-se: inclui o conceito de clientes como seres
holísticos; é abragente e facilitador vendo a pessoa como compostos de cinco
variáveis; considera o ambiente. Questões estas de grande importância na
atenção ao usuário de crack(6).
A estrutura proposta do modelo é, basicamente, que cada indivíduo é visto como
um sistema aberto constituído por um centro ('Core'), cercado por uma série de
círculos concêntricos, onde estão incluídos os fatores básicos de sobrevivência
comuns a todos os seres humanos e que se encontra rodeado por contornos
hipotéticos: linha normal de defesa, linha flexível de defesa e linhas de
resistência, representada por diagrama que compreende os estressores, a reação
aos estressores e a reação à unidade total, interagindo com o ambiente(7).
Dessa forma, o indivíduo - sistema aberto - está continuamente interagindo com
forças internas e externas, ou estressores ambientais, e está em constante
mudança no ambiente, movendo-se em direção a um estado dinâmico de harmonia e
equilíbrio(7).
Aqui então é importante conceituar alguns termos usados no Modelo de Neuman(5):
Estressores são forças ou estímulos que atuam sobre o cliente
(sistema), que produzem tensão e que podem estar presentes no
ambiente interno e externo do sistema, impedindo a manutenção do seu
equilíbrio;
Indivíduo/ Homem/ Cliente: se refere ao sistema aberto, que está
permanentemente em contato com seu meio e em mudança e movimento,
interagindo reciprocamente. É multidimensional e composto de
variáveis fisiológicas, psicológicas, socioculturais, de
desenvolvimento e espirituais;
Ambiente/ Entorno: conjunto de forças internas e externas que
circundam o indivíduo a todo instante. É dinâmico e multidimensional,
e inclui os fatores energéticos da estrutura básica, sendo que o
ambiente interno é aquele que se relaciona ao cliente, e já o
ambiente externo, corresponde ao inter e extrapessoal, relacionado
com tudo o que é exterior ao cliente.
É importante explicitar ainda que as linhas de resistência são os fatores
internos do indíviduo, ou seja, são as defesas contra os estressores e tornam-
se ativas quando a linha normal de defesa é invadida pelos estressores
ambientais. Esta, por sua vez, é basicamente aquilo em que a pessoa se torna
durante um período de vida, ou seja, o estado normal de bem-estar, e é composta
por habilidades fisiológicas, psicológicas, socioculturais, de desenvolvimento
e espirituais, que são utilizadas pelo sistema para lidar com os estressores.
Já a linha flexível de defesa é dinâmica e pode ser modificada rapidamente. Ela
age como um amortecedor para a linha normal de defesa quando o ambiente é
estressante, e age como um 'filtro' quando o ambiente oferece apoio, servindo
como uma força positiva que contribui para o crescimento e desenvolvimento
(5,7).
Dessa forma, os estressores podem ser: 1) estressores intrapessoais -forças que
ocorrem dentro do indivíduo (p. ex: raiva); 2) estressores interpessoais -
refere-se às forças que ocorrem entre um ou mais indivíduos (p. ex: relação
entre familiares); 3) estressores extrapessoais - forças que ocorrem fora do
sistema e agem sobre o indivíduo (p. ex: desemprego) (5). Fato é que os
estressores podem conter simultaneamente uma variável sociocultural,
psicológica, biológica, de desenvolvimento e/ou espiritual. Assim, baseada
nessas proposições, uma boa avaliação do impacto e do significado de cada
estressor no sistema, e a compreensão das habilidades anteriores de
enfrentamento, são fundamentais para uma adequada atuação de Enfermagem(5).
MÉTODO
Trata-se de um estudo de caso, descritivo e exploratório, com abordagem
qualitativa, fundamentado no Modelo de Sistemas de Betty Neuman. A pesquisa foi
desenvolvida no Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas (CAPSad) de
Vitória-ES, e está vinculada a um estudo que incorpora conceitos do projeto
'Ações Integradas' - proposto pela Secretaria Nacional de Políticas sobre
Drogas (SENAD) em parceria com Universidade Federal do Rio Grande do Sul(8), em
consonância com o decreto nº. 7179 - institui o Plano Integrado de
Enfrentamento ao Crack e outras Drogas.
Os critérios de inclusão foram: 1) ter idade maior do que 18 anos; 2) relatar
fazer uso preferencial do crack e 3) se dispor a participar da pesquisa de
forma voluntária. O 'caso' selecionado para este estudo foi escolhido de forma
aleatória entre os 50 sujeitos do estudo a que esta pesquisa está vinculada.
A pesquisa foi estruturada observando-se os dispositivos legais da Resolução
196/96 do Conselho Nacional de Saúde, sendo que o estudo foi aprovado pelo
Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital de Clínicas de Porto Alegre - CEP-HCPA
(nº 100176) e foi ainda contemplado com aprovação do Comitê de Ética em
Pesquisa (CEP) do Centro de Ciências de Saúde (CCS) da Universidade Federal do
Espírito Santo (nº 302/10). Os dados foram coletados somente após concordância
e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
A coleta ocorreu em junho de 2011 e foram utilizados quatro instrumentos: 1)
Questionário do padrão de consumo de crack - com 27 perguntas sobre o consumo
da droga; 2) Escala de Gravidade de Dependência (ASI-6) - avalia sete áreas de
funcionamento, como moradia, emprego e família; 3) Mini Internacional
Neuropsychiatric Interview (MINI Plus) - avalia 17 comorbidades psiquiátricas,
e o Parental Bonding Instrument (PBI) - investiga o comportamento parental até
os 16 anos do indivíduo. Estes instrumentos foram escolhidos, pois possibilitam
a identificação de todas as variáveis do Modelo de Neuman e a identificação dos
estressores intra, inter e extrapessoais.
As informações coletadas foram organizadas em planilha Excel a fim de auxiliar
a caracterização do estudo. A partir daí, para se chegar aos diagnósticos e à
sistematização, foi utilizada a taxonomia II da NANDA International (NANDA-I),
a Nursing Interventions Classification (NIC) e a Nursing Outcomes
Classification(NOC). Para isso a pesquisa teve como base uma terminologia comum
NANDA-NIC-NOC (NNN) desenvolvida para relacionar diagnósticos, intervenções e
resultados(9-10).
RESULTADOS
E.L.R., 26 anos, solteiro, em situação de rua, faz 'bicos' como pintor e/ou
auxiliar de jardinagem. Abaixo está descrita parte da história de vida de
E.L.R. (resumida em decorrência da análise), relatada pelo mesmo, configurando
o Histórico de Enfermagem:
Variáveis biológicas: E.L.R. teve o primeiro contato com o álcool nos
primeiros meses de vida, sendo que nos últimos 15 anos afirma que usa
mais de cinco doses por dia, e nos últimos 12 meses precisa de
quantidades cada vez maiores. Além disso, quando bebia menos, as suas
mãos tremiam, transpirava e sentia-se agitado. Estas entre outras
questões caracterizam a Dependência de Álcool.
Sobre o uso de crack, ele afirma que iniciou o consumo aos 19 anos motivado
pela curiosidade. A partir daí, em cerca de trinta dias, o uso de crack se
tornou frequente e intenso. Hoje, consome cerca de cinquenta pedras por semana
e faz uso da droga quase todos os dias - de sete a oito pedras. Relata que faz
uso do crack sempre sozinho, no fim da noite\madrugada, por meio de latas
encontradas na rua, e que já teve sintomas como diminuição de energia,
tremores, perda de peso, tosse, problemas de sono\insônia e convulsões. Além de
irritação, ataques de pânico (medo de morrer), explosões de raiva, paranóia,
ansiedade\nervosismo. Estas entre outras questões caracterizam aspectos da
Dependência de Substância Atual.
Variáveis psicológicas: neste item, serão abordados apenas os
aspectos principais das possíveis comorbidades psiquiátricas
apresentadas por E.L.R. Destaca-se também a necessidade de encaminhar
o paciente à especialidade médica psiquiátrica para as devidas
conclusões diagnósticas. Assim, foram identificados: Episódio
Depressivo Maior; Episódio Maníaco Passado; Transtorno de Pânico;
Agorafobia; Fobia social; Ansiedade; Transtorno de Personalidade
Antissocial e Obsessões, mas não Transtorno obsessivo-compulsivo.
Entre os aspectos que levaram a essas questões estão: E.L.R. relatou durante a
coleta que nas últimas semanas sentiu-se triste, desanimado, deprimido, durante
a maior parte do dia, quase todos os dias e em quase todo tempo teve o
sentimento de não ter mais gosto por nada, de ter perdido o interesse e o
prazer pelas coisas que lhe agradam. Afirma que mesmo sem estar sob o efeito do
crack teve um período em que se sentia tão eufórico e cheio de energia e que
isso lhe causou problemas. Já teve episódios repetidos durante os quais se
sentiu subitamente muito ansioso mesmo em situações em que a maioria das
pessoas não se sentiria assim. Em vários momentos sente-se particularmente
ansioso ou desconfortável em lugares ou em situações das quais é difícil ou
embaraçoso escapar. Durante o último mês, teve medo e sentiu-se incomodado por
achar que era o centro das atenções e de ser humilhado em situações sociais.
Sentiu por várias vezes uma necessidade incontrolável de ordenar coisas.
Durante os últimos 6 meses, sentiu-se excessivamente preocupado, inquieto,
ansioso com relação a vários problemas cotidianos. Antes dos 15 anos,
frequentemente faltou à escola ou passou a noite fora de casa; frequentemente
mentiu, enganou os outros e furtou a mãe.
Variáveis socioculturais: E.L.R. se envolveu com uma mulher com quem
teve uma filha (hoje com sete anos, mas ele nunca a registrou). Está
procurando por trabalho, pretende tentar fazer curso supletivo e está
muito endividado, pois não tem renda suficiente para pagar suas
necessidades básicas como alimentação (ele acrescenta o uso de álcool
e crack). Tem dificuldades em como aproveitar o tempo livre e não tem
nenhum amigo íntimo\verdadeiro.
Variáveis de desenvolvimento: esta variável foi identificada a partir
da aplicação do PIB. Na relação com a mãe até os 16 anos: ele afirma
que nunca teve um bom relacionamento, e que ela sempre abusou muito
do álcool e o faz até hoje. Na categoria 'cuidado' do PIB a soma da
pontuação foi zero, ou seja, para E.L.R. não houve nenhuma expressão
de afeto ou cuidado por parte da sua mãe até seus 16 anos; no item
'superproteção', a pontuação foi de 19,3, ou seja, houve situações e
episódios esporádicos de superproteção. Os dois itens então
caracterizam o 'Controle sem afeto', na relação do paciente e sua
mãe. Na relação com o pai: relata que ele era rígido e raramente
demonstrava afeto ou cuidado. O pai morreu assassinado quando E.L.R.
tinha 14 anos. A pontuação sobre o item 'cuidado' foi de apenas 5, e
de 27 em relação ao item 'superproteção', caracterizando o 'Controle
sem afeto'.
Variáveis espirituais: durante toda a entrevista, menciona sempre o
nome de Deus dizendo que ele de tudo sabe, mas vai esporadicamente a
alguma atividade religiosa.
Logo, a partir da história de vida de E.L.R. e das variáveis relacionadas, foi
possível a identificação dos estressores intra, inter e extrapessoais. Dessa
forma, por meio dos estressores, foram identificados 14 diagnósticos de
enfermagem, sendo que 09 destes são relacionados aos estressores intrapessoais.
Assim, no intuito de explicitar todas as etapas do processo de Enfermagem ao
usuário de crack serão discutidos a seguir três diagnósticos identificados a
partir dos estressores intrapessoais, escolhidos por se relacionarem ao maior
número de estressores: 'conhecimento deficiente sobre o controle do uso de
substâncias', 'enfrentamento ineficaz' e 'isolamento social'.
DISCUSSÃO
Para cada diagnóstico que foi discutido, E.L.R. é considerado enquanto
indivíduo e parte integrante de um sistema aberto, de forma que podem ser
construídas perspectivas diferentes que permitam ou não a adoção de estratégias
para encontrar o equilíbrio do sistema.
Conhecimento deficiente sobre o controle de substância
A Figura_1 explicita os sistemas de classificação usados a partir da
identificação deste primeiro diagnóstico.
Figura 1 Fluxograma do diagnóstico de enfermagem da NANDA-I ‘Conhecimento
deficiente sobre o controle do uso de substancias’ identificado a partir de
estressores intrapessoais.
Diante da coleta de dados, a principal intervenção de Enfermagem em relação a
E.L.R. deve abordar o uso de crack a fim de controlar o agente estressor
principal. No entanto, devido às características da dependência química
(fenômeno crônico e complexo), este fator de estresse subsistirá sempre, a
nível intrapessoal, porque é uma luta diária da vontade de E.L.R. face ao
impulso de uso de crack. De forma que o uso de crack agrava a situação de
diversos estressores já existentes, ao mesmo tempo em que cria novas
dificuldades e problemas a E.L.R. - novos fatores de estresse independentes ou
não do uso de crack.
Nesse contexto, pode-se observar que a falta de conhecimento sobre o controle
das substâncias pelo paciente é também um potencial estressor intrapessoal que
afeta de forma direta a linha normal de defesa do indivíduo e pode desencadear
problemas como a fissura e a consequente manutenção do uso de drogas. A
princípio, então, espera-se que o usuário alcance como resultado, da
intervenção de Enfermagem, o conhecimento do controle do uso de substância uma
vez que o resultado atual na escala Likert é 'de raramente demonstrado (2)'
pelo usuário, e o ideal seria 'consistentemente demonstrado (5)'.
As intervenções, então, devem ser iniciadas pela função primordial do
enfermeiro que é a educação para a saúde. É importante a função educativa do
enfermeiro numa postura ética, que visualize o usuário como capaz de ação
competente e resolutiva para a solução de seus problemas. Assim, nesta
pesquisa, a proposta dessa intervenção deve ser colocada no sentido de
sensibilisar E.L.R. para resultados mais positivos em relação a sua saúde. Os
tópicos a serem abordados nesse momento podem ser divididos em:
Sintomas de abstinência - o paciente muitas vezes refere sentir os
sintomas após algumas horas de interrupação do uso (tremores,
palpitações, e outros), mas ao mesmo tempo afirma não ter sintomas de
abstinência. Cabe ao enfermeiro a explicação dessas questões;
Problemas decorrentes do uso da droga (principalmente álcool e crack)
- explicar os problemas biopsicosócio-culturais, de desenvolvimento e
espirituais, e suas implicações;
Problemas decorrrentes da forma de consumo do crack - que é por meio
de latas de alumínio encontradas na rua. O uso de latas é mais
prejudicial por serem, muitas vezes, coletadas na rua e podendo estar
contaminadas, além de que favorece a aspiração de uma grande
quantidade de fumaça pelo bocal, promovendo intoxicação pulmonar
muito intensa(11).
Autocuidado - o usuário demonstra algumas preocupações em relação ao
autocuidado, como não dirigir ao usar álcool ou crack e ir à casa da
mãe para realizar higiene pessoal, mas é necessária uma abordagem com
foco neste item, pelo enfermeiro.
O enfermeiro deve ainda, diante do diagnóstico, intervir na questão direta do
tratamento do uso de drogas. Aqui cabe um ponto importante: o compromisso do
paciente com a abordagem iniciada pelo enfermeiro e com o tratamento pelo qual
buscou.
E.L.R. aparenta estar motivado para mudanças em seu estilo de vida e para o
tratamento do uso das drogas, porém, este estado de motivação pode oscilar
entre querer mudar e querer ignorar o problema(12). Assim, o enfermeiro pode
reforçar o compromisso de diversas maneiras, como identificar e utilizar as
estratégias de motivação; capacitar o usuário a estabelecer objetivos para a
mudança; incentivar a ressignificação do problema, mostrando que a situação é
passível de mudança; negociar uma estratégia para essa mudança, além de
estabelecer tarefas que possam ser atingidas e que pressuponham compromisso.
Paralelamente à intervenção anterior, o enfermeiro deve realizar o
aconselhamento, buscando fornecer conselhos diretos que promovam reflexões e
mudanças de comportamento de maneiras enfáticas - podendo até supor sugestões
como a abstinência total(13). Durante esse processo, o enfermeiro pode utilizar
outras estratégias que são desenvolvidas concomitantemente no processo de
tratamento e reabilitação do usuário(13), descritas a seguir:
Entrevista motivacional: o enfermeiro(13) pode exercê-la incentivando
a motivação do usuário para mudar seu comportamento, planejando junto
com o paciente ações a fim de criar estratégias de enfrentamento para
as situações de risco.
Intervenção breve: envolve procedimentos para o aprendizado do
autocontrole com objetivo de abstinência ou diminuição da quantidade
e/ou frequência de uso da substância(14).
Prevenção à recaída: consiste num repertório de meios e estratégias
que o indivíduo pode utilizar para evitar o retorno ao uso de drogas
e certos comportamentos que fazem parte do quadro da dependência(14).
Na prevenção à recaída ainda é importante que o enfermeiro aborde o manejo do
craving (ou fissura). Este pode ocorrer por meio de 'gatilhos' - situações,
imagens, sons, odores -, que são sugestões cognitivas internas ou ambientais
pareadas ao uso da droga(14).
Todas essas estratégias, utilizadas no aconselhamento de Enfermagem, requerem
um profissional capacitado, uma vez que o objetivo não é só o ensinamento, mas
uma mudança comportamental por parte de E.L.R. Assim, em paralelo, segue-se à
terceira intervenção: o contrato com o paciente. Para tanto, é importante a
'negociação'(15). Esta depende, principalmente, da humildade do profissional
para reconhecer que não tem todas as respostas e da sua compreensão de que está
interagindo com uma pessoa que tem uma história de vida. É nessa constatação de
espaços de 'impotência' como profissional que o enfermeiro deve perceber que as
'negociações' são mais possivelmente aceitas - principalmente no contexto da
dependência química - do que a simples imposição de tarefas e estilos de vida.
E, ainda, é necessário o desenvolvimento de acordo mútuo por meio do qual sejam
explicitados os objetivos do usuário e os do tratamento, podendo ser utilizados
vários meios para favorecer a adesão: manual de atividades diárias a ser
preenchido pelo paciente, cartão de controle pessoal do uso da substância,
contatos telefônicos, visitas domiciliares, encaminhamento a outros
profissionais e parcerias com grupos de autoajuda(15).
Para tanto, simultaneamente, há de se alcançar o estabelecimento de metas
mútuas, de forma que tanto o usuário quanto o profissional de saúde devem
manter em mente cada objetivo parcial para evitar confusões e o desvio de sua
finalidade (o tratamento). Isto é conseguido de várias formas, como utilizar a
formulação inicial e os objetivos já estabelecidos, enfatizar o que já foi
dito, definir a próxima tarefa em curto prazo e visualizar um pouco em longo
prazo(16).
Assim, considera-se que as intervenções propostas são abordagens de Prevenção
Secundária, segundo o Modelo de Betty Neuman. Isto se deve ao fato de que o
tratamento de sintomas (uso continuado de drogas) ocorreu após a reação aos
fatores de estresse (uso de crack e falta de conhecimento sobre o controle das
substâncias). A abordagem visa, então, a redução dos efeitos nocivos dos
estressores e busca fortalecer as linhas de resistências.
Enfrentamento Ineficaz
A Figura_2 explicita os sistemas de classificação usados a partir da
identificação deste diagnóstico.
[/img/revistas/reben/v67n1//0034-7167-reben-67-01-0062-gf02.jpg]
Figura 2 Fluxograma do diagnóstico de Enfermagem da NANDA-I ‘Enfrentamento
ineficaz’ identificado a partir de estressores intrapessoais.
O diagnóstico de enfermagem enfrentamento ineficaz trata da "incapacidade de
desenvolver uma avaliação válida dos estressores, escolha inadequada das
respostas praticadas e/ ou incapacidade de utilizar os recursos disponíveis"
(10). Estas questões são todas vivenciadas por E.L.R. diante do conjunto de
estressores que afetam seu sistema de equilíbrio. Além disso, o uso do crack
como estressor e possível desencadeante dos demais, atua ainda no aumento da
impulsividade de E.L.R. devido à ação da droga - estimulante do SNC - e da
intensa fissura. Fato é que a impulsividade, enquanto estressor intrapessoal
favorece um enfrentamento ineficaz por parte do usuário.
Outra questão são os sintomas relatados por E.L.R. que indicam o diagnóstico de
comorbidade de Episódio Maníaco Passado. O paciente afirma que mesmo sem estar
sob o efeito do crack se "sentia tão eufórico e cheio de energia que isso lhe
causou problemas"; "tinha a sensação que podia fazer coisas que os outros
seriam incapazes"; "desejava tanto fazer coisas que lhe pareciam agradáveis ou
tentadoras que não pensava nos riscos ou nos problemas", entre outros.
Situações essas que favorecem a impulsividade.
Assim, o enfermeiro deve atuar no sentido de buscar um resultado de
autocontrole da impulsividade, que, na escala de Likert, de 'raramente
demonstrado (2)' passe a ser 'consistentemente demonstrado (5)'. A princípio
como intervenção deve-se pensar no tratamento do uso de drogas (já foi
discutido no diagnóstico anterior), pois a abstinência é fator importante para
o aumento das linhas de resistência de E.L.R. Além disso, muitos pacientes se
beneficiam de estratégias de suporte comunitário, como os grupos de apoio.
Os grupos de apoio, conhecidos como grupos operativos, são importantes por
serem considerados como suporte para que os usuários mantenham-se em
abstinência, pois se apresenta enquanto espaço para diálogo e aprendizado, de
forma que o saber é valorizado em uma construção coletiva(17). Além disso,
ressaltamos que no grupo os participantes podem compartilhar experiência, de
modo que a pessoa que está em abstinência há mais tempo pode servir de modelo
para os demais e é um momento de troca em que podem se sentir livres para falar
de seus problemas e dificuldades, sem discriminação. Para tanto, é necessário
que o enfermeiro encaminhe o paciente ao grupo de apoio.
Outra intervenção é a facilitação da autorresponsabilidade que pode ser
trabalhada por meio da 'resolução de problemas' da terapia cognitiva, pois, em
cada encontro, o profissional encoraja o paciente a mencionar problemas que
surgiram durante a semana, ou que poderão surgir. E, a princípio, o
profissional assume papel ativo em propor soluções, mas depois, deve encorajar
o paciente a adquirir postura ativa na resolução dos problemas(18). Essa é uma
estratégia que pode beneficiar E.L.R. na minimização do estressor em questão,
uma vez que por possuir deficiências nessas habilidades, ao propor soluções
para os problemas que ele mesmo especificou, é possível que sua autoeficácia
seja aumentada, tornando mais viável a recuperação do uso de drogas e a
diminuição da impulsividade.
Uma terceira intervenção, no caso de E.L.R. foi a melhora do enfrentamento, ou
seja, "auxiliar o paciente para se adaptar a estressores, mudanças ou ameaças
percebidas que interfiram na satisfação das necessidades vitais e no desempenho
de papéis"(10). Nesta intervenção, o enfermeiro deve identificar os fatores de
reconstituição que favorecem o estado de adaptação aos elementos estressores em
um entorno interno ou externo(7). São fatores de reconstituição para E.L.R.: a
motivação para o tratamento; o fato de ter buscado informações sobre um curso
supletivo que deseja realizar; de ter um certificado como pintor - que ele
deseja dar continuidade; e ainda algumas percepções sobre o autocuidado como
não dirigir após usar álcool ou crack. Logo, o enfermeiro deve identificar
esses fatores e usá-los como dispositivos para melhora do enfrentamento aos
estressores. Assim, as intervenções apresentadas caracterizam uma abordagem de
Prevenção Secundária, conforme o Modelo de Betty Neuman. E são propostas no
sentido de fortalecer as linhas de resistência de E.L.R. e colaborar para o
tratamento de uso de drogas.
Isolamento social
A Figura_3 explicita os sistemas de classificação usados a partir da
identificação deste diagnóstico.
[/img/revistas/reben/v67n1//0034-7167-reben-67-01-0062-gf03.jpg]
Figura 3 Fluxograma do diagnóstico de Enfermagem da NANDA-I ‘Enfrentamento
ineficaz’ identificado a partir de estressores intrapessoais.
Este diagnóstico de enfermagem foi proposto devido à identificação de possíveis
comorbidades psiquiátricas, bem como o fato de que E.L.R. procura se isolar ao
usar o crack e, dessa forma, se afastou do convívio com outras pessoas.
Situações que foram potenciais para contribuir para o estressor isolamento
social, que, neste caso, pode estar atuando tanto como causa e/ou consequência
dos episódios mencionados. É difícil nas primeiras consultas delinear essas
questões, até porque o uso do crack e do álcool podem dificultar a
diferenciação de tais diagnósticos de comorbidades. Assim, é importante que o
enfermeiro acompanhe as condutas da especialidade médica de psiquiatria - se
ainda não o foi realizado.
É importante mencionar também que o estressor atua de tal forma na vida de
E.L.R. que contribui para a situação de rua, também influenciado pelo estressor
maior - o uso de crack -, pois, em suas falas, é possível perceber que, ao
procurar isolar-se de sua família e do contexto social com a finalidade de uso
do crack (que passou a ser a prioridade em vários campos de sua vida),
encontrou como única solução a moradia na rua.
O contexto de situação de rua é em muitos casos fator predisponente para o uso
de crack, mas no caso de E.L.R. o crack surgiu antes em sua vida. Ele afirma
que tem um lar, mas fez essa opção por não conviver bem com seus parentes,
principalmente sua mãe, situação decorrente do uso do álcool e da droga que
gera discussões familiares constantes.
Assim, sabe-se que algumas pessoas optam por morar na rua em um contexto em que
a liberdade se sobrepõe às regras da união familiar. Fato é que o rompimento
familiar é muito presente, bem como situações de violência doméstica, sexual e
moral(18). Logo, o enfermeiro, na assistência ao dependente químico, não deve
se preocupar apenas com o uso de drogas, mas deve percebê-lo como uma pessoa
que tem uma história, uma trajetória, sonhos, desejos, crenças e descrenças,
valores, saberes e expectativas.
Nesse sentido, o resultado de enfermagem esperado para o diagnóstico de
isolamento social é o envolvimento social, que, na escala de Likert, 'de
raramente demonstrado (2)' deve passar a ser 'consistentemente demonstrado
(5)'. Para tanto, a intervenção proposta é a busca pelo aumento da
socialização, ou seja, "facilitação da capacidade de uma pessoa para interagir
com outros indivíduos"(10).
A princípio se deve destacar que pessoas em situação de rua, com
características consideradas como o contrário dos tipos de indivíduos aceitos
socialmente em relação a determinados valores, como casa, trabalho e família
(modelo tradicional de estrutura familiar), são colocadas, muitas vezes, em uma
condição de extrema exclusão(19).
Essas questões então, também contribuem para o isolamento social de E.L.R. e
devem ser consideradas pelo enfermeiro ao se pensar em aumento da socialização,
pois se trata de uma intervenção complexa que deve envolver vários setores da
sociedade. Aqui, se deve ponderar que há várias instituições de socialização
como a escola, a religião, a família, a mídia que desempenham papel de
'guardiãs' e de difusoras de valores, de forma que é interessante articular a
rede social mais próxima do usuário.
É interessante que o profissional crie um ambiente em que o paciente se sinta
livre para falar e tenha seu sentimento compreendido. Portanto, é necessário
ganhar a confiança do mesmo e procurar 'quebrar' as barreiras que o impedem de
se comunicar(19). E isso pode ser conseguido por meio das intervenções de
Enfermagem: escuta ativae aconselhamento.
Ao escutar ativamente os sentimentos do paciente, o profissional sinaliza que
tem interesse nas questões de E.L.R. e no que ele diz, encorajando-o a falar
mais sobre si mesmo. É por meio da comunicação estabelecida com o paciente que
se pode entender suas angústias, sua ansiedade, seu modo de pensar, sentir e
agir. Já o aconselhamento pode ocorrer a partir das práticas da terapia
cognitivo comportamental que podem ser úteis nesse processo, pois por meio
dessa técnica é possível monitorar o aprendizado de novos padrões de interação
social, principalmente pelo treinamento de habilidades sociais(20).
O treinamento de habilidades sociais pressupõe que os sintomas decorrem da
falta de habilidades sociais, e possibilita ao indivíduo um melhor entrosamento
em situações sociais, contribuindo também para diminuição da ansiedade. Logo, o
treino de habilidades precisa envolver habilidades sociais básicas,
comportamentos assertivos e habilidades de confronto, que incluem a capacidade
de identificar situações de risco, lidar com emoções e fazer reestruturações
cognitivas (20).
Outra estratégia interessante, no caso de E.L.R. é o grupo de apoio, pois além
de vários benefícios - como o apoio mútuo entre os pacientes -, a participação
no grupo promove o desenvolvimento dos relacionamentos interpessoais(16).
Além disso, no caso de E.L.R., devido às questões apresentadas que influenciam
no isolamento social, é prudente que o enfermeiro o encaminhe para auxílio de
serviços de terapia ocupacional e acompanhar o andamento dessas questões em
consultas subsequentes. Neste caso é necessário que enfermeiro busque auxílio
de outros profissionais, de forma a trabalhar em equipe, uma vez que para
implantação da SAE isso é fundamental.
Logo, diante dos fatos expostos, se observa que as intervenções podem ser
caracterizadas como Prevenção Secundária uma vez que o tratamento de sintomas
(uso continuado de drogas) ocorreu após a reação aos fatores de estresse.
Assim, a abordagem visa à redução dos efeitos nocivos dos estressores e
fortalecimento das linhas internas de resistência.
CONCLUSÃO
O estudo possibilitou um olhar amplo, ao contemplar os aspectos primordiais na
temática e todas as variáveis do modelo de Neuman. Assim, a falta de
conhecimento sobre o controle de uso das substâncias- crack e álcool - foi um
dos estressores intrapessoais mais significativos nesse processo ao impedir que
E.L.R. tenha iniciativas mais eficazes para lidar com um problema ainda maior -
o próprio uso de crack. E diante deste, várias intervenções de enfermagem podem
ser aplicadas, inclusive a educação em saúde que é função primordial do
enfermeiro e estratégias como prevenção de recaída, entrevista motivacional,
entre outras. Além disso, frente a este diagnóstico, identificamos o
conhecimento: controle sobre o uso de substâncias, como resultado esperado das
intervenções de enfermagem.
Há ainda questões relacionadas às possíveis comorbidades psiquiátricas que
devem ser focadas pelo enfermeiro no decorrer do atendimento, até porque
influenciaram diretamente a vivência, pelo paciente, da maioria dos estressores
identificados.
Vale ressaltar que o uso de crack, não só no caso de E.L.R., surge diante de
vários estressores anteriormente vivenciados, ou seja, contribui para ativar
linhas de resistência e ainda desencadeia variados complicadores que 'passam a
existir' decorrentes do uso da droga, de forma que o consumo o torna mais
susceptível e vulnerável às situações reconhecidamente estressoras como a
situação de rua.
Foi possível, então, refletir sobre a importância de uma escuta ativa pelo
enfermeiro, da relação terapêutica, da empatia e do processo de vínculo. Essas
questões são preciosas ferramentas para a aplicação do Processo de Enfermagem,
segundo o Modelo de Neuman e a NANDA-NIC-NOC, pois, devido à complexidade do
uso de crack, essas condutas se tornam fundamentais.