Perfil sociodemográfico de tabagistas internados em enfermaria psiquiátrica de
hospital geral
INTRODUÇÃO
O tabagismo tem sua raiz em um passado distante, conhecido e de valor
histórico-cultural, o descobrimento da América do Norte. Quando Colombo chegou
ao continente americano (1492), o tabaco era cultivado pelos nativos e seu
consumo constante nas cerimônias religiosas, quando os pajés ou caciques
aspiravam fumo a fim de conferir aos rituais um caráter mágico-religioso. A
partir do século XV, o tabaco disseminou-se por todo o mundo civilizado e entre
todas as classes sociais, constituindo um dos maiores fenômenos de aculturação
da história da humanidade com implicações no contexto econômico mundial. Nos
países europeus, por exemplo, o tabaco foi transformado na fonte de renda mais
significativa dos governos e, no Brasil colônia, foi utilizado como moeda na
troca de escravos africanos(1-2). Assim, com esse epítome histórico, percebe-se
que o tabagismo surgiu e manteve-se sustentado por alicerces fortes: a
economia, a história e a cultura.
Antes do século XX, o tabagismo era considerado um hábito socialmente aceito,
símbolo de status social; no final do século XX, passou a ser considerado um
hábito potencialmente nocivo à saúde, o que despertou o interesse dos órgãos
que determinam as políticas de saúde mundiais e a necessidade de seu controle
pelos governos locais.
A conscientização da população sobre os malefícios do cigarro à saúde tem
contribuído para prevenir o seu uso e para o desenvolvimento de estratégias
terapêuticas mais eficazes, o que resulta na redução do tabagismo na população
geral. Com isso, tornou-se evidente a limitação dessas estratégias na população
psiquiátrica, visto que a frequência de tabagistas entre essas pessoas se
mostrou superior (2 a 3 vezes) à encontrada na população em geral(3-6).
A frequência elevada de uso de tabaco entre os pacientes psiquiátricos
contraria o interesse mundial a respeito de seu controle. Essa limitação,
integrada à tendência de humanização da assistência em psiquiatria com foco na
saúde e não na doença, revela a necessidade de olhar o tabagismo além da
dependência, ou seja, olhar para quem fuma a partir do conhecimento desses
sujeitos.
Diante do exposto, este estudo teve por objetivo o de identificar o perfil
sociodemográfico de portadores de transtorno mental, tabagistas, internados em
enfermaria psiquiátrica de hospital geral, comparando-o com o de ex-tabagistas
e não tabagistas.
MÉTODO
Realizou-se uma pesquisa exploratório-descritiva, parte de um projeto,
financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq), que estuda diferentes aspectos relacionados ao tabagismo entre
portadores de transtorno mental.
Participaram 270 pessoas, portadoras de transtorno mental, internadas em
enfermaria psiquiátrica de um hospital universitário, público e estadual, de
uma cidade do interior paulista. Foram excluídos os menores de 15 anos, pessoas
com diagnóstico de retardo mental, usuários de álcool e outras drogas sem
comorbidades psiquiátricas e pessoas impossibilitadas de se comunicar. A
amostra foi selecionada de modo probabilístico (precisão de 95%).
A pesquisa foi aprovada por Comitê de Ética em Pesquisa (EERP/USP, nº 1173/
2010), com autorização da diretoria do Hospital das Clínicas de Marília. Os
sujeitos, esclarecidos, assinaram duas vias do Termo de Consentimento (TCLE).
Para a coleta dos dados, realizada no período de agosto de 2010 a fevereiro de
2012, foi utilizado o "Instrumento de Identificação de Tabagistas em Unidade
Psiquiátrica de hospital geral - ITUP".
Realizou-se análise descritiva dos dados, no Stata (versão 10.10), testando a
associação entre as variáveis por meio do teste exato de Fisher, sob a
probabilidade máxima de erro (alfa) de 5%. Os resultados foram discutidos com
base na literatura sobre o tema.
RESULTADOS
No período da coleta dos dados, 433 pessoas internaram-se na enfermaria
psiquiátrica do Hospital das Clínicas de Marília. Ao excluir os sujeitos que
não aceitaram participar do estudo (20,9%), os menores de 15 anos de idade
(23,3%), aqueles com diagnóstico de retardo mental (11%), os com
impossibilidade de comunicação (20,2%) e que receberam alta sem planejamento
prévio (24,5%), a amostra ficou constituída por 270 sujeitos (62,4%).
Dentre os 270 sujeitos, houve predomínio de portadores de transtornos mentais
severos - esquizofrênicos (36,3%), do humor (35,2%) e da personalidade (12,2%),
com média de oito anos de diagnóstico. Os 270 sujeitos tiveram, ao longo da
coleta dos dados, um total de 364 internações na enfermaria psiquiátrica, sendo
94 (25,8%) reinternações. O tempo médio de permanência hospitalar foi de 16,7
dias (0 - 107 dias, DP: 11,5). Do total da amostra, 96 (35,6%) sujeitos
declararam-se tabagistas, 38 (14,1%) ex-tabagistas e 136 (50,4%) não
tabagistas.
Na Tabela_1, observam-se os dados sociodemográficos dos tabagistas, ex-
tabagistas e não tabagistas, assim como do total da amostra. Há maior proporção
de tabagistas entre os sujeitos de 30 a 49 anos (38,3%), maior proporção de ex-
tabagistas entre os mais velhos (50 anos e mais - 20,3%) e maior proporção de
não tabagistas entre os sujeitos com até 29 anos (59%). Apesar das diferenças
proporcionais, o teste exato de Fisher não evidencia associação entre tabagismo
e grupo etário (Fisher = 0,182).
Tabela 1 Distribuição de tabagistas, ex-tabagistas e não tabagistas, entre
portadores de transtorno mental, internados em hospital geral, de acordo com as
informações sociodemográficas
Tabagistas Ex- Não tabagistas (n= Total (n=
Variáveis (n= 96) tabagistas 136) 270)
(n= 38)
n % n % n % n %
Sexo Feminino 59 30,9 25 13,1 107 56,0 191 70,7
Masculino 37 46,8 13 16,5 29 36,7 79 29,3
Grupo etárioAté 29 anos 26 33,3 6 7,7 46 59,0 78 28,8
30 a 49 anos 49 38,3 19 14,8 60 46,9 128 47,4
50 anos e 21 32,8 13 20,3 30 46,9 64 23,7
mais
Escolaridade Fundamental 51 43,2 19 16,1 48 40,7 118 43,7
Médio 33 28,2 10 8,6 74 63,3 117 43,3
Superior 12 34,3 9 25,7 14 40,0 35 13,0
LocalizaçãoUrbana 88 35,2 37 14,8 125 50,0 250 92,6
residência
Rural 8 40,0 1 5,0 11 55,0 20 7,4
Estado civil Solteiro 42 38,9 9 8,3 57 52,8 108 40,0
Casado 32 30,5 18 17,1 55 52,4 105 38,9
Separado/ 17 46,0 7 18,9 13 35,1 37 13,7
divorciado
Viúvo 5 25,0 4 20,0 11 55,0 20 7,4
Arranjo Vivem sós 9 37,5 3 12,5 12 50,0 24 8,9
domiciliar
Sem
companheiro, 48 38,1 17 13,5 61 48,4 126 46,7
com outros
Apenas com 8 32,0 7 28,0 10 40,0 25 9,3
companheiro
Com
companheiro 31 32,6 11 11,6 53 55,8 95 35,2
e outros
Ocupação Sim 59 33,5 28 15,9 89 50,6 176 65,2
Não 37 39,4 10 10,6 47 50,0 94 34,8
Renda R$ 600 28 41,8 9 13,4 30 44,8 67 24,8
R$ 1000 23 35,4 8 12,3 34 52,3 65 24,1
R$ 1800 27 37,5 8 11,1 37 51,4 72 26,7
> R$ 1800 18 27,3 13 19,7 35 53,0 66 24,4
Religião Católica 55 39,6 21 15,1 63 45,3 139 51,5
Evangélica 23 26,4 12 13,8 52 59,8 87 32,2
Espírita 6 50,0 1 8,3 5 41,7 12 4,4
Outra 3 27,3 2 18,2 6 54,6 11 4,1
Sem religião 9 42,9 2 9,5 10 47,6 21 7,8
Total 96 35,6 38 14,1 136 50,4 270 100,0
Entre os homens, prevalecem os tabagistas (46,8%), tendo, entretanto, 16,5% ex-
tabagistas e 36,7% não tabagistas. Entre as mulheres a relação é inversa, pois
há maior predomínio de não tabagistas (56%), seguidos de tabagistas (30,9%) e
ex-tabagistas (13,1%), (Tabela_1 e Gráfico_1). O teste exato de Fisher confirma
esta associação (Fisher = 0,013).
Gráfico 1 Distribuição de tabagistas, ex-tabagistas e não tabagistas, entre
portadores de transtorno mental, internados em hospital geral, segundo sexo
O teste exato de Fisher também evidencia associação estatística entre tabagismo
e escolaridade (0.002), estando associado ao seu menor nível; 43,2% dos
sujeitos com ensino fundamental são tabagistas, enquanto que a maioria dos
sujeitos com ensino médio e superior não são tabagistas (63,3% e 40%,
respectivamente). Verifica-se que a maior proporção de ex-tabagistas encontra-
se entre os sujeitos com ensino superior (25,7%), enquanto que a maior
proporção de não tabagistas encontra-se entre os sujeitos com ensino médio
(63,3%), (Tabela_1 e Gráfico_2).
[/img/revistas/reben/v67n3//0034-7167-reben-67-03-0381-gf02.jpg]
Gráfico 2 Distribuição de tabagistas, ex-tabagistas e não tabagistas, entre
portadores de transtorno mental, internados em hospital geral, de acordo com
sua escolaridade
Embora não haja evidência de associação estatística entre tabagismo e
localização da residência atual (Fisher = 0,560), verifica-se que a proporção
de tabagistas e não tabagistas é maior entre os sujeitos provenientes da área
rural (40% e 55%, respectivamente), ao passo que a maior proporção de ex-
tabagistas encontra-se entre os provenientes da área urbana (14,8%).
Do mesmo modo que a maior proporção de tabagistas ocorre entre os separados/
divorciados (46%), a maior proporção de tabagistas ocorre também entre os que
vivem sem companheiro, mas com outras pessoas (38,1%). A mesma lógica não pode
ser usada para os ex-tabagistas e não tabagistas, pois enquanto a maior
proporção desses sujeitos é encontrada entre os viúvos (20% e 55%,
respectivamente), a maior proporção de ex-tabagistas e não tabagistas em
relação ao arranjo domiciliar é encontrada entre os que vivem apenas com
companheiro (28%) e entre os que vivem com companheiro e outras pessoas (55,8%)
(Tabela_1).
Não há evidência estatística de associação entre tabagismo e ocupação (Fisher=
0,415) e entre tabagismo e renda familiar mensal (Fisher = 0,590), porém
observa-se que a proporção de tabagistas é maior (41,8%) nos sujeitos com renda
em torno de um salário mínimo (R$ 600) e a de ex-tabagistas nos sujeitos cuja
renda familiar está em torno de três salários mínimos ou mais (>R$1800).
A proporção de tabagistas é maior entre os espíritas (50%) e entre os sujeitos
sem religião (42,9%), enquanto que a menor proporção é encontrada entre os
evangélicos (26,4%). Há maior proporção de tabagistas entre os sujeitos que não
praticam sua religião (47,5%) e maior proporção de ex-tabagistas e não
tabagistas entre os sujeitos que a praticam (16,6% e 54,4%, respectivamente).
Considerando o conhecimento de que a prática religiosa comumente está associada
a hábitos de vida saudáveis e que o p-value é um valor subjetivo, apesar de o
teste exato de Fisher não demonstrar evidência de associação entre prática
religiosa e tabagismo (Fisher = 0,061), há indícios de tendência de associação
entre essas duas variáveis.
DISCUSSÃO
A frequência de tabagistas entre os pacientes psiquiátricos deste estudo é
superior à da população brasileira (17,5%)(5). Esse resultado é semelhante ao
encontrado em pesquisas nacionais e internacionais(3,7-9).
Diferente da amostra, como um todo, que tem como característica o sexo
feminino, alto nível de instrução, ocupação e renda bem distribuída, os
tabagistas deste estudo possuem baixo nível de instrução (ensino fundamental) e
não trabalham, apesar da baixa renda familiar. Constatou-se que há maior
proporção de tabagistas entre os sujeitos provenientes de área rural, entre os
sujeitos do sexo masculino, entre os separados/divorciados e entre aqueles com
idade entre 30 e 49 anos. Esse perfil está de acordo com as características
sociodemográficas associadas ao tabagismo descritas em estudos nacionais e
internacionais, tanto da população geral como da população psiquiátrica(3,5,10-
13).
A maior proporção de tabagistas entre os sujeitos com vulnerabilidade
socioeconômica (ausência de vínculo empregatício, baixo nível de instrução e
renda) pode estar relacionada à dificuldade desses sujeitos em ter acesso à
informação sobre os malefícios do tabaco. Entretanto, a maior frequência de
tabagistas entre o sexo masculino reflete uma tendência histórica e cultural
desse hábito(1,13).
A redução da frequência de tabagistas entre os sujeitos mais idosos reproduz
uma tendência da população tabagista brasileira(5,14). Para estudiosos, esse
fato se deve à mortalidade precoce associada ao uso de tabaco, à cessação do
tabagismo a partir do surgimento de complicações à saúde e ao envelhecimento da
população, diminuindo a proporção de tabagistas nesse grupo etário, porém sem
redução do número absoluto(15-16). Pode-se considerar ainda o efeito das
campanhas de conscientização do governo brasileiro.
Coerente com a redução do número de tabagistas com o avançar da idade, a maior
frequência de ex-tabagistas neste estudo é encontrada entre os sujeitos mais
idosos. Além dessa característica, vale salientar que a proporção de ex-
tabagistas também é maior entre os sujeitos com melhor nível de instrução
(ensino superior), provenientes de área urbana, com algum tipo de ocupação e
com melhores condições financeiras, sugerindo que o abandono do tabagismo está
intimamente ligado à possibilidade de acesso à informação e a recursos de
apoio. Ressalta-se que a prevalência de ex-tabagistas neste estudo é semelhante
à encontrada na população brasileira (18,2%)(5).
Outra variável sociodemográfica que parece ser importante na definição da
condição do tabagismo é a religião. Constatou-se que a maior proporção de não
tabagistas ocorre entre os evangélicos e entre aqueles que praticam sua
religião, assim como relatado em outros estudos(11,13-14,17). Autores acreditam
que isso ocorra devido à maior adesão dos evangélicos à religião, ao suporte
social oferecido e ao conhecimento de que o uso de substâncias, incluindo o
tabaco, fere os princípios do protestantismo(11,13,18).
A despeito desse posicionamento, alguns estudiosos questionam a religião
evangélica como fator de proteção ao tabagismo por acreditarem que o
conhecimento, amplamente difundido, da não aceitação de determinados hábitos
por essa religião possa funcionar como uma barreira para que os tabagistas e
usuários de outras substâncias tornem-se adeptos ao protestantismo. Nesse
sentido, o papel da religião não seria o de aumentar a motivação para abandono
do uso de tabaco e de outras substâncias, mas o de não agregar fiéis que não
sigam suas crenças e costumes(13).
Reconhecendo-se a elevada frequência de tabagistas entre os pacientes
psiquiátricos, internados em hospital geral, e o fato de que há diferença no
perfil sociodemográfico desses sujeitos conforme o uso de tabaco (tabagistas,
ex-tabagistas e não tabagistas), questiona-se como o enfermeiro, que atua
diretamente no cuidado dessas pessoas, pode intervir a favor de sua saúde.
Diante disso, destacam-se duas possibilidades de intervenção que podem integrar
o cuidado de enfermagem: ações preventivas para o início do tabagismo e ações
terapêuticas para auxiliar os tabagistas e ex-tabagistas no abandono da
dependência e na manutenção da abstinência. Nesse sentido, o conhecimento do
perfil dos sujeitos ajuda o enfermeiro a identificar as necessidades para
melhor intervir nessa população, tanto pela identificação das atividades a
serem realizadas e adaptações necessárias de acordo com as possibilidades dos
sujeitos como pelo reconhecimento dos recursos humanos essenciais para sua
implantação.
Além da associação entre tabagismo e algumas características sociodemográficas
entre os pacientes psiquiátricos, confirmada neste estudo, pesquisas revelam
maior frequência de tabagistas entre aqueles com doenças severas e com mais
tempo de diagnóstico(19-20), o que sugere a possibilidade de investigar as
associações do tabagismo com o perfil clínico da população psiquiátrica.
CONCLUSÃO
Este estudo mostra que há diferença no perfil sociodemográfico dos pacientes
psiquiátricos tabagistas, ex-tabagistas e não tabagistas.
O conhecimento dessas diferenças ajuda o enfermeiro a planejar intervenções
preventivas, educativas e terapêuticas no cuidado prestado de acordo com as
necessidades e possibilidades dos sujeitos.