Identidade do homem resiliente no contexto de adoecer por câncer de próstata:
uma perspectiva cultural
INTRODUÇÃO
A construção da identidade do homem adquire sentido por meio da linguagem e dos
sistemas simbólicos. Essa construção que é tanto simbólica como social, é
marcada pela diferença. O corpo é uma das partes que define quem somos,
servindo de fundamento para a construção, por exemplo, da sexualidade e da
identidade de gênero. Assim sendo, a presença do outro, ou seja, da diferença,
é condição primordial para a formação da identidade(1).
Nessa perspectiva, entendemos que na construção da identidade de ser homem com
enfoque nos cuidados à saúde, muitos reprimem suas necessidades e recusam-se a
admitir a dor e o sofrimento, negando vulnerabilidades e fraquezas
constituintes de todo ser humano.
No contexto do câncer, o de próstata é o segundo tipo mais comum na população
masculina, sendo considerado o câncer da terceira idade. Aproximadamente 62%
dos casos no mundo acometem homens com 65 anos ou mais. Devido ao seu bom
prognóstico, a mortalidade por este tipo de câncer é relativamente baixa, sendo
que as taxas de sobrevida são de cinco anos para os países em desenvolvimento,
em média, de 41%(2).
Assim, ser sobrevivente ao câncer significa viver com e apesar dele, convivendo
com os efeitos colaterais e sequelas decorrentes do tratamento realizado para o
seu controle(3). Além disso, a sobrevivência é uma trajetória que começa quando
a pessoa recebe o diagnóstico de câncer e que continua por toda a vida(4).
Existem pessoas que se deixam abater pelas dificuldades, enquanto outras, além
de não sucumbirem a elas, mostram-se capazes de utilizar os momentos difíceis
para seu crescimento. Ser resiliente é exatamente isso, trata-se da capacidade
de lidar com as adversidades de forma positiva, não eliminando o problema, mas
ressignificando-o(5).
Com a evolução dos diagnósticos e tratamentos, um número cada vez maior de
indivíduos sobrevive à experiência do câncer, o que suscita o desenvolvimento
de novas pesquisas sobre as formas encontradas por estas pessoas para serem
resilientes aos impactos causados pela doença.
O presente artigo pretende discutir a construção de ser homem resiliente no
adoecer por câncer de próstata na perspectiva cultural. Tendo em vista que cada
indivíduo vivencia o processo de adoecimento de maneira distinta, dando sentido
a cada acontecimento conforme suas experiências pregressas, esse estudo teve
por questão norteadora: "Qual o contexto de adoecer por câncer de próstata para
o homem resiliente?" e por objetivo conhecer o contexto do homem resiliente ao
adoecer por câncer de próstata.
METODOLOGIA
Tratou-se de um estudo de caso etnográfico, de caráter qualitativo, apoiado em
Geertz (1989)(6) a respeito de cultura, e Woodward (2012)(1) com relação à
identidade. É um subprojeto de uma pesquisa que possui caráter quantitativo e
qualitativo cujo título é A resiliência como estratégia de enfrentamento para o
sobrevivente ao câncer.
A coleta dos dados quantitativos caracterizou a população e o grau de
resiliência, por meio da Escala de Resiliência desenvolvida por Wagnild e Young
(7) e adaptada ao português por Pesce et al.(8). Ocorreu no período de março a
junho de 2010, na cidade de Pelotas (RS) e contou com a participação de 264
adultos sobreviventes ao câncer, atendidos na Unidade de Oncologia do Hospital
Escola da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
Na referida escala, os escores têm uma amplitude que varia de 25 a 175 pontos,
com escores de 25 a 120 indicando baixa resiliência, de 125 a 145 indicando
moderadamente baixa a moderada resiliência e escores maiores que 145 indicando
moderadamente alta a alta resiliência(9).
A escolha dos informantes ocorreu em duas etapas. Primeiramente foram
selecionados, do banco de dados quantitativos, somente os homens sobreviventes
ao câncer com alto grau de resiliência, o que resultou em 40 indivíduos.
Posteriormente, foram selecionados somente os homens com histórico de câncer de
próstata, o que resultou em 11 indivíduos. Destes, cinco eram moradores de
municípios vizinhos - o que impossibilitou a participação em virtude dos
critérios de inclusão - dois não foram encontrados - nem por meio telefônico
nem pelo endereço informado - um estava muito debilitado devido à idade e de
outras comorbidades e outro não se dispôs a participar. Desta forma, a pesquisa
contou com a participação de dois homens resilientes e sobreviventes ao câncer
de próstata.
A coleta dos dados ocorreu no período de abril e maio de 2012, no domicílio dos
informantes. Foram realizados três encontros com cada um, totalizando 720
minutos. Os encontros foram previamente agendados e os dados foram coletados
por meio do ecomapa, de entrevista semiestruturada em profundidade, gravada e
transcrita na íntegra, e, de observação participante registrada em diário de
campo, objetivando conhecer em profundidade o contexto destes homens.
O estudo obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de
Enfermagem da Universidade Federal de Pelotas, sob parecer número 31/2009 e
financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul
(FAPERGS), processo número 0902702. Além disso, está em conformidade com a
Resolução n°196/96 do Conselho Nacional de Saúde/MS(10), sobre Pesquisa com
Seres Humanos. Foram garantidos aos informantes: o anonimato, mediante sua
identificação por meio das iniciais do nome e a idade (ex: A.B.C., 69 anos), o
direito de desistir a qualquer momento da pesquisa e o livre acesso às
informações, quando de seu interesse. Os informantes assinaram o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) em duas vias.
A análise dos dados foi desenvolvida em dois níveis de interpretação(11). O
primeiro foi voltado para a compreensão do contexto dos sujeitos, sua história,
sua inserção e participação nos diversos setores que compõe sua rede de
relações. Nesse momento, também foi realizado um mapeamento do sistema de saúde
local e dos perfis de morbimortalidade. O primeiro nível teve por objetivo
compreender o sujeito em sua totalidade, tendo em vista que "todo ato humano
que atravessa o meio social se realiza no sujeito que vive, pensa, sente e
reflete o mundo".
O segundo nível compreendeu o encontro com os fatos empíricos, procurando, nos
relatos dos informantes, o sentido, a lógica interna, as projeções e as
interpretações. Esse nível foi operacionalizado em três fases: a primeira,
ordenação dos dados, envolveu a transcrição das entrevistas, realizando uma
leitura desses materiais juntamente com os diários de campo, de forma ordenada,
permitindo o desenvolvimento de um mapa horizontal das descobertas. A seguir
realizou-se a classificação dos dados, através da leitura integral dos textos,
também chamada leitura flutuante, permitindo identificar as estruturas
relevantes, anotando as primeiras impressões e buscando coerência entre as
informações coletadas. Além disso, nesta etapa foi realizada uma leitura
transversal identificando, em cada discurso, as categorias empíricas, ou seja,
as unidades de sentido que foram agrupadas por semelhanças e diferenças.
Posteriormente, a análise final, na qual, foi feita releitura das unidades de
sentido, em paralelo com os objetivos da pesquisa, integrando os sentidos com
os conceitos de cultura e identidade, as bibliografias sobre o tema e o
contexto dos informantes.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A análise das entrevistas permitiu identificar de que forma os homens
vivenciaram o diagnóstico e os tratamentos contra o câncer de próstata, e como
sua identidade de ser homem influenciou esse processo e foi influenciada por
ele.
Os resultados foram agrupados em duas unidades de sentido: "Identidade do homem
resiliente: contextualizando os informantes" e "O homem resiliente se
descobrindo doente".
Identidade do homem resiliente: contextualizando os informantes
A identidade é marcada por meio de símbolos, que a representam. Para os homens
deste estudo, pode-se estabelecer como símbolos que representam sua identidade,
ser pai, marido, avô e companheiro. A representação, entendida como um processo
cultura estabelece identidades individuais, coletivas, e ocorre por meio das
práticas e sistemas simbólicos, pelos quais os significados são produzidos e
dão sentido à experiência(1).
A cultura é uma teia de significados que o homem teceu e na qual ele enxerga o
mundo, sempre procurando seu significado(6). Assim apresentam-se os homens
participantes deste estudo e busca-se apreender as teias construídas por eles,
que os fazem ser resilientes e vivenciar a experiência do adoecer por câncer de
próstata de formas diferentes.
E.S.M. tem 69 anos, é caucasiano, casado, tem uma filha e uma neta. É
aposentado e semianalfabeto. Refere-se católico não praticante e tem fé em
Deus. Mora com a esposa em bairro próximo do centro da cidade e possui moradia
própria, de alvenaria. Recebeu o diagnóstico de câncer de próstata em estágio
avançado no dia 04/10/2002. Realizou cirurgia para retirada total da próstata e
radioterapia há 10 anos. Mantém a hormonioterapia mensalmente no Serviço de
Oncologia da UFPel. Faz acompanhamento com oncologista do serviço, para exames
periódicos como o Antígeno Prostático Específico (PSA) e Densitometria Óssea.
E.S.M. tem ligação muito forte com a família (esposa, filha e neta) e diz pedir
a ajuda da filha para tomar atitudes em relação a sua vida (segundo ele "Agora,
o chefe mesmo é a minha guria"). No contexto de adoecer por câncer, pode-se
perceber uma inversão de papéis, em que se tornou dependente da filha em
diversos sentidos, principalmente naqueles relacionados ao cuidado da saúde.
O homem que antes era forte e viril, devido à doença, precisa aprender a lidar
com limitações e sentimentos não convencionados - pelo menos não tão claramente
- necessita reconstruir a sua identidade numa nova perspectiva de ser homem.
Entretanto, isso permanece no privado, porque no público, ainda figura como
independente e dono de si, não dependendo de outras pessoas em diversos
aspectos da sua vida, aqui exemplificados pela questão de ir a à Igreja: "Eu
não preciso sair da minha casa, voltar para cá meia noite para ir pedir para os
caras pedirem para Deus me ajudar".
C.B. tem 69 anos, é negro, casado, tem três filhos e três netos. É aposentado,
estudou até a 5ª série do Ensino Fundamental. Refere-se católico não praticante
e tem fé em Jesus. Mora com a esposa em um bairro próximo ao centro da cidade,
em apartamento próprio, em um conjunto habitacional popular. Recebeu o
diagnóstico de câncer de próstata em estádio inicial há aproximadamente três
anos. Não realizou procedimentos cirúrgicos, nem hormonioterapia, somente
sessões de radioterapia. Atualmente, realiza acompanhamento médico e exame de
PSA semestralmente.
A característica principal de C.B. é a noção de que é o homem que deve tomar
todas as decisões na família e perante a sociedade. Nesse sentido, apesar de
serem divididos os problemas no ambiente familiar de C.B, quem dá a última e
decisiva palavra é ele. "Podemos combinar, mas a palavra decisiva é minha.
Sempre foi e sempre vai ser enquanto eu viver". Além disso, ao vivenciar o
câncer, C.B. não considerou importante envolver a família nesse processo,
entendendo como participantes somente ele e o profissional de saúde.
Apresenta também dificuldades em confiar nas pessoas "Assim ... eu não confio
nas pessoas, sabe como é? Não acredito, sabe... é muito difícil!". Esta forma
de pensar é reflexo da construção histórica, social e cultural de ser homem,
uma vez que ele teve que aprender a ser independente desde a infância, lidando
com as dificuldades sem pedir auxílio a ninguém. Assim, ele procura não
aprofundar suas relações sociais, mantendo o mínimo contato com os vizinhos e
com seus irmãos, pelo receio de que, em algum momento, possa vir a sofrer.
C.B. também revela sua aversão a vícios muito comuns em homens na atualidade,
como o alcoolismo. Rejeita o convívio com seus irmãos, por conta de "São
pessoas [os irmãos] que ... são bem humildes, com vício de bebida sabe? Se eles
próprios não se ajudam, como vão ajudar?"
A caracterização dos homens do estudo possibilitou compreender que a identidade
de cada indivíduo se constrói mediante os significados que atribui às suas
experiências, imersas no seio familiar de origem que, por sua vez, insere-se em
determinada classe social, no tempo e no espaço(12). Conforme o modelo
culturalmente construído e ainda vigente na sociedade atual são enfatizadas
noções de que o verdadeiro homem é reservado e solitário, não expondo suas
experiências pessoais(13).
Diante disso, necessita-se compreender o homem como ser histórico e cultural,
que constrói e significa sua identidade mediante as teias de relação por ele
construídas e que dão sentido a como ele entende e vivencia as situações,
inclusive de doença, neste caso, o câncer de próstata.
A resiliência presente nesses homens não surgiu com a doença, ela permeou as
suas trajetórias de vida. Em E.S.M. ela foi construída por meio do trabalho e
das relações familiares. Apesar da pouca escolaridade, ele buscou em diversas
atividades profissionais (agricultor, marteleteiro, moldador, operador de
máquinas e carpinteiro) a sua afirmação social, o que fundamentou a sua
identidade de homem, pai, marido e provedor do lar.
Quando criança, C.B. vivenciou o abandono afetivo e, por vezes, físico,
principalmente do pai. Este fato fez com que ele percebesse que a sua
sobrevivência dependia única e exclusivamente de si mesmo. Desta forma, a
resiliência pode ser percebida como algo intrínseco nesse homem, que tem o
autocuidado como primordial em sua vida.
Apreende-se com o contexto dos homens, a necessidade da enfermagem atentar para
as questões sociais e culturais nas quais eles se inserem, ao descobrirem-se
com uma doença crônica como o câncer. Ainda, a compreensão de como constroem a
resiliência possibilita que a enfermagem se aproxime dessa clientela e construa
com ela as ações de cuidados voltadas para as suas reais necessidades.
O homem resiliente descobrindo-se doente
Sob esta temática, é relatado como foi para esses homens vivenciar os primeiros
sintomas do câncer e receber a confirmação da doença após os exames. Além
disso, será apresentado de que maneira a identidade de ser homem resiliente
contribui para a construção do processo de adoecer por câncer de próstata.
O trabalho tem um importante papel na vida dos indivíduos. Para E.S.M., o
trabalho representa uma forma de ser homem, condição primordial para sua
autonomia enquanto ser humano. O trabalho é considerado determinante no tocante
a garantir a autoridade masculina perante a família(14).
O ambiente de trabalho foi atribuído como possível desencadeador da doença, o
câncer:
Olha, guria, eu trabalhei 22 anos, em Granja. Dentro da água, no
barro. Então às vezes, por causa do frio, ainda no meio da geada, às
vezes eu ia urinar e sentia uma ardenciazinha na uretra, para urinar.
Então aquilo passou tantos anos que eu acostumei, para mim era
normal. [...] Mas nunca dei bola. [...] Aí quando já fazia uns 20
anos, 30... [...] eu estava trabalhando e aí disse para os meus
companheiros: "ó rapaz, eu estou assim, assim ..." e eles: "mas vai
no doutor!" Eu: para que, para mim era normal! (E.S.M., 69 anos)
No depoimento deste homem, percebe-se que ele associa a ardência urinária ao
fato de trabalhar em ambiente frio e úmido. Além disso, esse sintoma foi
compreendido, por muitos anos, como parte constituinte da sua fisiologia.
Ressalta-se o fato de ele ter postergado a busca por auxílio médico durante
tanto tempo, fato que se acredita vir ao encontro da construção social
relacionada à saúde do homem, que ainda o sugestiona como invulnerável.
A imagem do homem como ser forte pode implicar menores cuidados com o próprio
corpo e com a saúde, tornando-o vulnerável a diversas situações(15). Além
disso, considerando a necessidade de cuidados, a maioria dos homens tem
dificuldade em buscar ajuda em virtude de sua auto percepção(16), uma vez que
procurar um serviço de saúde implicaria admitir ser vulnerável(17).
Na fala de E.S.M., percebe-se que o primeiro sintoma de doença estava
relacionado à dificuldade mictória. Este sintoma também foi percebido por C.B.:
O bagulho é o seguinte, no momento que eu senti que não estava bem eu
procurei, [...] não tive dor, sabe o que que é dor? [...] no momento
que eu senti que não estava urinando direito, eu procurei ele [o
doutor].
No depoimento, além da dificuldade urinária, C.B. ainda estabelece a relação da
doença com a dor que, no seu entendimento, seria um avanço do quadro da doença.
Observa-se ainda a construção social do homem, com um ser forte, capaz de
aguentar os reveses da vida sem queixas, e, junto com isso o alívio por não ter
vivenciado o sofrimento, que é uma das crenças de que quem tem câncer deve
sofrer.
Quando os sintomas levam o homem a perceber que o seu problema de saúde pode
ser algo mais sério, é o momento em que ele busca ajuda do profissional de
saúde:
Aí um dia marquei uma consulta aqui com a Dra. J., [...] e aí
consultei e aí pedi, eu disse para ela: "ó Dra. eu estou assim,
assim, assim" e eu nunca fiz exame de próstata e queria que a senhora
me desse um papel para mim fazer um exame. Aí ela disse: "O senhor
está com 13 pontos e meio, no sangue, no PSA." Acredito que ela tenha
mandado fazer um PSA, naquele tempo eu não entendia ... Aí ela disse
que eu ia ter que procurar um especialista com urgência. (E.S.M., 69
anos)
Observa-se nesse depoimento a preocupação com a doença, a ponto de pedir que
fosse feito um exame específico que desse sentido aos seus sintomas. A
constatação de que há um problema na próstata vem com o resultado de um exame
que não era de seu conhecimento, o PSA, e com ele, a indicação da urgência na
busca de um especialista. Neste momento, percebe-se o saber do profissional
como parte do discurso do senso comum que busca traduzir para a linguagem do
homem, a simbologia do exame que revela a sua condição de doente.
Outro estudo também relata o desconhecimento, por parte dos homens, quanto ao
significado e a importância do PSA como exame de triagem para o câncer de
próstata. Nesse contexto, ressalta-se a importância de que o médico explique
quais exames ele está solicitando e as indicações dos mesmos. Desse modo,
prestar os esclarecimentos necessários antecipadamente, pode evitar maiores
surpresas e proporcionar tranquilidade aos homens, caso o resultado apresente
alterações sugestivas de câncer(18).
Outro exame comumente solicitado pelos urologistas, para auxílio no diagnóstico
de câncer de próstata, é o exame de toque retal, também chamado toque digital
da próstata. Esse exame, considerado de baixo custo, é um procedimento que
movimenta o imaginário masculino e provoca desconforto muito mais psicológico
do que físico. Tocar em uma parte pouco usual, para a maioria dos homens
provoca, geralmente, sentimentos negativos. Além disso, por ter um dedo
introduzido no reto, muitos homens encaram o exame como perda de sua
masculinidade. O toque retal pode ser compreendido ainda como uma ameaça à
heterossexualidade e à virilidade do homem, sendo tabu nos cuidados a saúde
(19).
Eu estou dizendo, no momento que eu senti que não estava urinando
direito, eu procurei, falei pra ele e ele disse que eu ia fazer
aquele toque, como é que é, uma vez por ano, a partir dos quarenta,
entende. (C.B., 69 anos)
Consultei com o Dr. S. ele me fez o exame de toque, e disse que tava
ruim mesmo. (E.S.M., 69 anos)
Ao contrário do que muitos homens referem sobre o exame de toque retal, os
informantes desse estudo não relatam queixas ou constrangimentos. Inclusive
eles demonstraram ter consciência da importância do exame na diagnose precoce
"eu senti aquele problema, eu tomei a providência" (C.B., 69 anos). Tomar
providência remete à questão do poder sobre o próprio corpo e optar por
realizar os exames necessários para a descoberta de seu problema de saúde.
Apesar de não expressar receio em relação ao exame em si, o medo de estar com
câncer foi maior e a crença de estar agindo de forma precoce "e o câncer, por
mais cruel que fosse, não ia surgir hoje e já me matar amanhã!" (C.B., 69 anos)
remete novamente para o temor da morte que culturalmente o câncer impõe às suas
vítimas. O resultado do exame de toque retal causou temor a estes homens, uma
vez que tiveram a confirmação de que algo "estava ruim mesmo" (E.S.M., 69
anos).
Ressalta-se ainda que, pelo fato desses homens serem gaúchos, acredita-se que a
cultura do Rio Grande do Sul possa ter refletido em como eles significam suas
experiências de doença, uma vez que, historicamente, os homens são entendidos
como fortes, corajosos, viris, que lutam por seus ideais e que não se expõem
como frágeis. Em C.B. isso se evidencia pelo fato dele entender o câncer como
algo a ser enfrentado "sem alarde". Em E.S.M., encontra-se o típico gaúcho
contador de histórias, que busca mostrar-se forte. Para ele, cada fato tem
extrema relevância e em cada relato ampliam-se as percepções e significados.
As emoções oriundas do diagnóstico variam conforme cada pessoa percebe sua
própria condição(20). A forma como a notícia é dada ao homem pode minimizar ou
ampliar os sentimentos contraditórios que emergem diante de um diagnóstico de
câncer(18). Cada pessoa entende as situações cotidianas conforme suas vivências
e segundo as lições que a vida lhes proporcionou(6).
Eles [família] pensaram que eu não sabia, mas não tinha outra doença
na próstata a não ser câncer e eu nunca falei nada. Graças a Deus
esse meu não era muito bandido, não era muito comedor. A doença, o
câncer, é um vírus infeccioso que vai infeccionando. (E.S.M., 69
anos)
Quando eu descobri esse [o câncer], não sei, não sei, as pessoas
dizem que dá aquele "ai". A vida é aqui pô! Vai ter que te conhecer,
te trata e vai vendo, é isso... Não entrei em pânico, não acreditei
que a morte fosse capaz de... Porque tem gente que a primeira coisa,
"pum", agora eu vou morrer! E isso aí nunca me passou na cabeça.
Claro, é uma preocupação natural. O que é pra fazer eu vou fazer, e
faço até hoje! (C.B., 69 anos)
E.S.M. afirma ter consciência do que acontecia com sua saúde, apesar de não
receber uma explicação que entendesse com clareza. Agradece ainda, por "seu
câncer não ser muito comedor", demonstrando que enfrentar uma enfermidade não
inclui somente a experiência pessoal pregressa do indivíduo, mas também, o
sentido que dá para os sintomas e a doença, tendo em vista o contexto cultural,
social e econômico em que está inserido(19). Ao compreender e expressar o
câncer como "comedor", E.S.M. refere por metáfora, o quão sofrida e penosa é a
experiência de vivenciar essa doença, que ainda carrega o estigma de ser algo
que corrói e consome o corpo vagarosamente(20).
Na fala de C.B. percebe-se autossuficiência e coragem para lidar com a doença
que o acometeu. Acredita-se que esse modo de encarar a enfermidade possa ter
origem na construção histórica, social e cultural permeada pelo abandono
familiar. Desde muito jovem, C.B. teve que aprender a cuidar de si. Conforme
seu relato, o pai "[...] não foi grande coisa. Pai, aquele pai mulherengo...
uma mulher em cada bairro, um filho por ali ... um homem que nunca ... sabe ...
pai qualquer um pode ser."
A terapia medicamentosa ocasionou desconforto ao homem, alterando inclusive a
sua percepção das coisas. Isso, além de reações que comprometeram o seu dia a
dia e causaram alterações anatômicas.
Não posso enxergar café preto, Coca-Cola [...] Mas que mistura que
tem nesse remédio que é logo as coisas escuras que eu não posso
enxergar? A televisão me "vira os miolos" tudo. (E.S.M., 69 anos)
Comentou ainda, mostrando o peito, que suas mamas haviam crescido e
endurecido, complementando rindo que estavam melhores do que as de
muitas mulheres que utilizam silicone. (Diário de Campo de E.S.M.,
número 02, 20/04/12)
Pelo relato de E.S.M., percebe-se que a medicação utilizada para controle do
câncer vinha ocasionando significativo desconforto no desempenho de atividades
cotidianas, por exemplo, comer e assistir televisão. Aliado a isso, a percepção
de que seu corpo, antes viril e masculino, estava adquirindo características
femininas como o crescimento das mamas, o que o levou a questionar se não
haveria solução para o problema.
A médica reitera que, em casos extremos, para indivíduos que não se
adaptam à medicação, pode ser feita a retirada dos testículos, o que
cessaria a produção de hormônios. Neste momento, E.S.M. sério, corpo
projetado para frente e tom de voz mais alto, diz que não precisa
chegar a este extremo, que tentaria as outras opções. (Diário de
Campo de E.S.M., número 02, 20/04/12)
Os tratamentos medicamentosos, em especial a hormonioterapia, provocam mudanças
corporais que tendem a refletir negativamente na autoimagem de ser homem. Além
de alterações na libido, o crescimento das mamas e as mudanças de peso
ocasionam intenso sentimento de perda, pois, para o homem, o corpo já não é
como era antes e as alterações permanentes são uma lembrança constante da
experiência do câncer(21).
Para E.S.M, a retirada dos testículos acarretaria significativa alteração na
sua visão de ser homem, uma vez que estes simbolizam, psicológica e
fisicamente, a sua virilidade.
Ao analisar a experiência do câncer sob a ótica cultural pode-se perceber que
toda a trajetória vivida pela pessoa tem características subjetivas, que são
identificadas e simbolizadas segundo o seu conhecimento prévio sobre a
enfermidade. Em uma situação-limite, cada indivíduo busca um sentido para a
experiência baseado nos aspectos culturais e sociais do grupo a que pertence,
que também o auxiliam a decidir sobre quais recursos dispor(22).
Independente do tipo de câncer e da duração dos tratamentos, vivenciar um
processo de adoecimento nunca é uma experiência fácil. Para os homens,
culturalmente distanciados por interfaces de sua identidade, a procura por
auxílio do sistema de saúde precocemente, não costuma ser rotineira. Diante
disso, destaca-se a importância da atuação da equipe de saúde nesse processo,
em especial, da enfermagem, para auxiliá-los a atentar para o cuidado da
própria saúde.
A enfermagem pode criar espaços de fomento à promoção da saúde masculina, por
meio do aproveitamento das situações cotidianas dos serviços de saúde,
orientando aqueles que procuram a unidade quanto aos fatores de risco e medidas
de prevenção do câncer de próstata, buscando identificar também os indivíduos
que apresentam algum sinal ou sintoma que possa indicar alterações associadas
(23).
Ser homem resiliente manifesta-se em diversos momentos durante a trajetória da
enfermidade: no momento que identifica os primeiros sinais da doença em seu
corpo e que busca a assistência à saúde, e no enfrentamento de forma positiva
do diagnóstico e tratamento para o câncer de próstata, principalmente ao
considerar-se que essa é uma doença que afeta o imaginário masculino e que
provoca alteração da autopercepção da sua identidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse estudo, pode-se perceber que a identidade de ser homem resiliente,
culturalmente construída, permeou a maioria das ações, no tocante ao processo
de adoecimento por câncer de próstata. Um dos homens, ao considerar os sintomas
iniciais como decorrentes de sua atividade laboral, demorou a procurar auxílio
médico. O outro, por ser mais atento aos cuidados com sua saúde, realizava os
exames periodicamente, o que fez com que seu câncer fosse descoberto
precocemente e por consequência, a terapêutica foi menos impactante.
Assim, apesar da experiência de ter o câncer de próstata, a despeito de
assemelhá-los na perspectiva da identidade como homem resiliente, a
representação desse processo marcou as diferenças entre eles, fruto,
possivelmente, da construção histórica e social, cujas práticas de cuidados a à
saúde são simbolizadas e dão sentidos à experiência daquilo que eles são e que
podem vir a ser. Desse modo, a reconstrução da identidade de homem resiliente,
passa pelo processo de ser, hoje, idoso. Acredita-se que os aspectos culturais
que permeiam as formas de pensar, agir e lidar com a doença foram fundamentais
para a construção de ser homem com alto grau de resiliência.
Desta forma, considera-se a importância de que, no tratar e cuidar da saúde dos
homens, os (as) enfermeiros(as) atentem para os aspectos culturais que tornam
esse ser humano único e especial. As chances de continuidade de qualquer
terapêutica aumentam, pois o sujeito sente-se parte integrante do processo de
cura e superação, tornando-se ativo frente à própria saúde.
Acredita-se que a limitação do presente estudo relaciona-se ao fato de ter um
número de informantes restrito, e, portanto, não ser passível de
generalizações. No entanto, como os estudos qualitativos buscam apreender o
fenômeno em profundidade o estudo respondeu aos objetivos.