Estratégias de enfrentamento por enfermeiros da oncologia na alta complexidade
INTRODUÇÃO
O câncer trata-se de um problema de saúde pública, no âmbito mundial, de grande
relevância epidemiológica no que tange à incidência e à morbimortalidade. É uma
doença crônica e representa, no imaginário das pessoas, o símbolo da
impossibilidade de cura, remetendo o ser humano ao confronto com a finitude da
vida(1).
A assistência às pessoas com câncer tem avançado ao longo dos anos. Novos
métodos de detecção precoce, rastreamento dos agentes cancerígenos e tipos de
neoplasias são exemplos da evolução. Contudo, o termo câncer é evitado pelos
profissionais de saúde e é carregado pelo estigma da iminência de morte(2).
A constante aplicação da ciência e da tecnologia no processo de cuidar em
saúde, com destaque para a enfermagem, tem influenciado significativamente a
prática destes profissionais em decorrência do surgimento de dilemas éticos
durante o exercício da profissão, inferindo-se, assim, a importância que a
bioética adquire para os enfermeiros na sua tomada de decisões frente a
problemas morais(3).
No contexto hospitalar, a equipe de enfermagem assume grandes responsabilidades
frente a esses pacientes, tendo como competência prestar assistência na
avaliação diagnóstica, tratamento, reabilitação e atendimento aos familiares.
Ainda, deve lidar permanentemente com situações de sofrimento e morte, que são
exacerbadas pelas características da demanda e do ambiente de trabalho. Esse
contexto exige dos enfermeiros uma assistência com primazia na avaliação
integral do paciente e sua família, extrapolando os limites da própria doença
(4-5).
A rotina de trabalho da enfermagem não leva em conta os problemas que os
profissionais enfrentam em seu cotidiano, tanto dentro quanto fora do trabalho.
Espera-se que os enfermeiros jamais expressem ao paciente suas dificuldades e
que possam transmitir-lhe apenas tranquilidade(5).
Na dificuldade de cuidar das pessoas com câncer surge a necessidade de
desenvolver estratégias de enfrentamento, considerando os aspectos éticos
envolvidos nas diferentes situações e relações no contexto do cuidado,
enfrentamento este que pode ser definido como um conjunto de respostas
comportamentais que o indivíduo emite, diante de uma situação de estresse, para
modificar o ambiente na tentativa de adaptar-se da melhor forma possível ao
evento estressor, de maneira a reduzir ou minimizar seu caráter aversivo(4-5).
Nesta perspectiva, justificou-se este estudo a partir da necessidade de
reconhecimento das estratégias que os enfermeiros desenvolvem diante do
enfrentamento dos conflitos e problemas no cotidiano de trabalho, identificando
assim suas fragilidades, dificuldades e limitações. O objetivo deste estudo foi
identificar as estratégias de enfrentamento dos enfermeiros de serviços de
oncologia, na alta complexidade hospitalar, diante do cuidado à pessoa com
câncer.
MÉTODO
Estudo exploratório e descritivo, com abordagem qualitativa, realizado com 18
enfermeiros que trabalhavam em unidades de internação e ambulatório hospitalar
de quimioterapia, em duas capitais do Sul do País. Para a seleção dos sujeitos,
utilizou-se a técnica de amostragem em "bola de neve", consistindo em eleger
participantes iniciais em cada uma das duas capitais, solicitando-se, ao final
de suas entrevistas, que outros sujeitos com as características fossem
indicados para as próximas coletas de dados. A coleta de dados aconteceu
simultaneamente nas duas capitais, em março de 2013, após a aprovação pelo
Comitê de Ética em Pesquisa local. A pesquisa seguiu os preceitos éticos
referentes à pesquisa e ao cuidado com seres humanos.
Uma entrevista semiestruturada foi o instrumento de coleta de dados, baseada em
três questões norteadoras: 1) Quais as dificuldades que você encontra na
convivência com os familiares e pacientes e com os outros profissionais?; 2)
Quais estratégias de enfrentamento você utiliza no cotidiano do cuidado
oncológico? e 3) Quais estratégias você sugere serem adotadas pelas equipes,
para facilitar o enfrentamento do cuidado oncológico?
Essas entrevistas foram áudio-gravadas e ocorreram em um local de preferência
do participante, sendo posteriormente transcritas na íntegra. Com relação aos
critérios de inclusão dos participantes, considerou-se o fato do profissional
desenvolver atividade assistencial com adultos com câncer e que possuíam um ano
ou mais de experiência na oncologia. A metodologia utilizada para analisar os
dados foi a análise temática, segundo Minayo(6), que compreendeu: a transcrição
das entrevistas e a leitura prévia com delimitação dos elementos chaves; a
leitura aprofundada e o agrupamento dos elementos chaves em categorias e, por
fim, o processo analítico descritivo e interpretativo, promovendo o diálogo com
a literatura atual e pertinente à temática. Para a garantia do anonimato dos
participantes, os mesmos foram identificados no estudo através da adoção de
nomes gregos.
RESULTADOS
Através da análise dos dados, emergiram três categorias principais: a) negação
e resignação no cuidado à pessoa com câncer; b) a busca de apoio na equipe de
saúde e na pluralidade e multiplicidade de olhares sobre o cuidar, incluindo o
paciente e sua família e c) a busca de aperfeiçoamento pessoal e profissional.
Negação e resignação no cuidado à pessoa com câncer
Esta categoria reflete ações individuais que culminam em estratégias que
aparentemente não se tornam benéficas para os pacientes com câncer, mesmo que o
resultado momentâneo dessas estratégias permita a continuidade das ações dos
profissionais enfermeiros. O processo de negação, que é um mecanismo de defesa
muito comum, aparece como uma constante estratégia de enfrentamento:
Acho que as fases da negação de uma doença passam pelo paciente, pela
família, e principalmente, pelos profissionais que cuidam. Tu também
está negando, até mesmo uma série de cuidados para aquele paciente.
(Kera)
Outra situação comum aos indivíduos que enfrentam o contexto oncológico de
forma individual refere-se às tentativas de afastamento, que apesar de terem
como foco a manutenção de um nível de distância entre o profissional enfermeiro
e os sujeitos envolvidos, acabam repercutindo fortemente nas ações de cuidado,
desqualificando-as e limitando-as.
Logo que entrei eu me envolvia mais, quando o paciente estava mal
fazia questão de conversar com a família e aquilo depois eu fui
perdendo, foi um bloqueio. (Perséfone)
Para eu conseguir fazer o meu trabalho com sanidade mental e
fortificada emocionalmente tenho que estabelecer alguns limites.
(Bia)
Por fim, apresentam-se nesta categoria as ações de aceitação da doença e suas
consequências, buscando demonstrar que a resignação e a naturalidade são
estratégias usadas pelos enfermeiros diante do contexto oncológico:
No começo eu sofria muito, mas depois a gente vai tendo que encarar a
realidade. (Eucleia)
Procuro trabalhar a questão da resignação, aceitando as doenças com
naturalidade. (Têmis)
A busca de apoio na equipe de saúde e na pluralidade e multiplicidade de
olhares sobre o cuidar, incluindo o paciente e sua família
Esta categoria evidencia estratégias que se pautam na coletividade, na
pluralidade de olhares e ações entre equipes de enfermagem e multidisciplinar,
assim como com as pessoas com câncer e seus familiares:
Temos uma equipe bem legal [... ] psicologia, serviço social,
enfermagem, odonto, estomatologia na verdade, e medicina. Esses
profissionais se reúnem toda a sexta-feira, das 10:30 - 11h da manhã,
e fazemos uma reunião clínica, [...] quando posso ir junto levo um
técnico. Quando não, fazemos um rodízio, coloco todos na mesma
balança. (Pandora)
Uma característica na atenção à pessoa com câncer é o envolvimento emocional
mais estreito do profissional com o paciente e seus familiares, já que,
geralmente, o tratamento é longo e as hospitalizações e os retornos são
frequentes:
Minha primeira estratégia é escutar muito o paciente, não só ele,
família também, a pessoa que tá acompanhando. (Kera)
Eu me envolvo, converso com a família, eu abraço, pego na mão, digo
alguma coisa que tente confortar ele, chamo os familiares pra fora do
quarto e converso, o familiar desabafa comigo, encaminho pra algum
lugar se for preciso. (Iris)
Os depoimentos de alguns enfermeiros denotam a necessidade dessa interação, da
formação de grupos para favorecer esse enfrentamento ou até mesmo da realização
de atividades que ultrapassem os limites da instituição hospitalar, como
atividades de lazer:
Acho importante realizar atividades que tirem o foco do trabalho,
manter uma vida social ativa ajuda bastante. (Cáris)
Eu acho que a troca de experiência entre vários profissionais,
reuniões de grupo, muitas vezes com discussões de caso, ajudam o
profissional a enfrentar melhor essas dificuldades. (Selene)
A busca de aperfeiçoamento pessoal e profissional
Nesta categoria estão presentes as estratégias ligadas ao processo de
qualificação profissional e capacitação, para atuar de forma mais competente,
humana e ética:
Nunca faço nada sem saber o porquê e isso exige estudo. (Bia)
E importante buscar conhecimento em congressos, workshop, fazer com
que a gente não só leia, mas compartilhe com o colega. (Kera)
Conforme evidenciado a seguir, Pandora expressa que a qualificação profissional
também significa desenvolver habilidades relacionais no manejo com o paciente e
seus familiares, a partir de um modo propositivo de enfrentamento que conduz o
profissional a aprender a lidar com o sofrimento, as necessidades
psicobiológicas e espirituais da pessoa com câncer, de modo a aprimorar a
escuta e a sensibilidade:
Eu não quero um profissional muito especializado em tecnologias e que
saiba mexer num monitor, quero um profissional que tenha esse olhar,
que consiga ver de forma humana. (Pandora)
DISCUSSÃO
Adoecer é uma ameaça à autoimagem e à existência de todas as pessoas, é
contatar com a sua finitude, e uma das formas de lidar com a doença é o fato
negá-la(7). Nas situações em que a negação pode atrapalhar o tratamento
disponibilizado ao paciente, é preciso construir alternativas(8). Mesmo assim,
na medida em que o cuidado é o objeto de trabalho da enfermagem e, por
conseguinte, do enfermeiro, a relação do profissional com a negação da doença
e, consequentemente, do cuidado qualificado à pessoa com câncer evidencia um
paradoxo. E esta análise tem sido exaustivamente realizada por estudos(9-10)
que contemplam a temática do cuidado à pessoa com câncer.
No entanto, há outra possibilidade de analisar este processo de negação do
cuidado. Sinaliza-se que, quando se trata do ato de cuidar, o profissional da
enfermagem, assim como outros profissionais, baseia-se em suas crenças e
valores, pontos determinantes de comportamentos que seguem oriundos de seus
hábitos de vida, os quais constroem(11) modos de ser e de se comportar na
sociedade. Indaga-se, então: quais valores e crenças este profissional conduz
que os faz limitar ou desqualificar o cuidado como estratégia de enfrentamento
no cuidado à pessoa com câncer? Valores e crenças que amparam a noção de que a
doença câncer articula-se a uma possibilidade ambígua de cura, ao sofrimento
das pessoas e à morte. Assim, deve-se considerar que o conceito de experiência
é o entrecruzamento de várias dimensões (pensamento-ação, consciência-corpo,
cultura-individualidade), o que expressa uma síntese entre corpo e cultura.
Isso implica, pois, um sistema de cuidados, em saúde, tendo a doença como um
idioma cultural socialmente determinado e articulado a crenças e padrões de
comportamento, experiência dos sintomas e alternativas de tratamento(12). Em
suma, comportamentos desenvolvidos no cuidar e o modo como os trabalhadores
expressam suas ações estão relacionados, também, a padrões culturais(13).
Culturalmente, a resignação diante do câncer e suas consequências prevalecem
entre as pessoas.
Há evidências de que a equipe de enfermagem utiliza mecanismos de enfrentamento
para conviver com o sofrimento: distancia-se dos pacientes e evita o
envolvimento, o que representa a incapacidade de lidar com a carga emocional
resultante desse convívio diário. Por outro lado, a satisfação em promover o
alívio do sofrimento do outro pode traduzir a reposição de energias, o bem-
estar e a amenização da dor, permitindo novos enfrentamentos e melhor
desempenho no seu trabalho. A valorização e a dedicação ao trabalho, quando
reconhecidas, geram uma satisfação na equipe de enfermagem, pois esta se sente
valorizada(14). Portanto, os dados que emergem na segunda categoria implicam na
discussão da possibilidade do enfrentamento, tanto pela ancoragem nada equipe
profissional, como pela compreensão do quanto é produtivo e compensador
compreender os múltiplos modos como o cuidado pode se expressar.
Muitos pacientes acometidos pelo câncer e com uma expectativa de vida limitada
sofrem, desnecessariamente, quando não recebem a atenção necessária e adequada
para os sintomas que acompanham sua doença ou compreensão de suas angústias.
Cada vez mais se fazem necessárias equipes de saúde compostas por profissionais
de diferentes áreas de formação, dispostos a esclarecer possibilidades para o
paciente e seus familiares enfrentarem este momento de suas vidas, amenizando o
sofrimento de todos, inclusive da própria equipe. Fica eminente a importância
de ações no cuidado algumas vezes desvalorizadas, como o toque, o estar
presente, o esclarecer dúvidas em relação à medicação, cuidados, patologia, bem
como sinais e sintomas que o paciente possui ou poderá apresentar. Na verdade,
são ressignificados os atributos das relações de cuidado, enfatizando valores
éticos, como a confiança e a autonomia(15).
O enfermeiro, após ingressar em uma unidade oncológica e adaptar-se ao novo
ambiente, evidencia um grande comprometimento e paixão por sua profissão e,
principalmente, pelos seus pacientes e familiares. Isto é, a vivência é
intensa, na qual a vinculação com a área se dá pela compreensão de que o
cuidado vai além do biológico, superando o sofrimento e a penalização em
direção a uma visão pautada no sentimento de gratificação pelo trabalho
desenvolvido.
Nesta perspectiva, diante da dificuldade em lidar com as pessoas com câncer, os
participantes desta investigação manifestam, na terceira categoria, o
aprimoramento profissional como uma forma de enfrentamento no cuidado à pessoa
com câncer. Portanto, é necessário um preparo contínuo para lidar com os seus
sentimentos e do paciente desenvolvendo mecanismos de proteção, pois o ambiente
hospitalar traz consigo a ideia de sofrimento, e a rotina de trabalho da equipe
de enfermagem gera momentos de grande vulnerabilidade emocional(16).
Logo, uma forma de apoiar os profissionais para lidar com estes enfrentamentos
é criar estratégias de prevenção do sofrimento moral, e uma das maneiras é por
meio da educação e do desenvolvimento da competência ética. Isto se torna
fundamental tanto para a satisfação no trabalho e disponibilidade no cuidar
quanto para a retenção dos profissionais no ambiente de trabalho(17).
Estar disponível para o doente, ou seja, através da sua presença, atenção,
cuidado, ajuda e informação, é uma forma de apoiar emocionalmente,
proporcionando uma proximidade afetiva e favorecendo as trocas significativas
entre paciente e profissional(10,18). Na oncologia, é primordial que a equipe
de enfermagem seja capaz de manter uma boa comunicação e relação com a pessoa
com câncer e com sua família, vistas como parte indissociável para o cuidado
integral. Outra abordagem que vem crescendo é o fundamentado na modalidade do
cuidado da equipe multidisciplinar, a qual traz desafios e exige habilidades
para o trabalho em equipe(19).
Diante disso, apresenta-se como fundamental que as instituições devam
proporcionar aos seus colaboradores um espaço dedicado à discussão, para que o
olhar também seja voltado para cuidar dos que cuidam(20). A criação de espaços
de discussão, de troca de experiências, até mesmo rounds, pode ser uma maneira
de reduzir o estresse e situações de sofrimento. É preciso levar em conta que
as inovações científicas e tecnológicas exigem dos enfermeiros reformulação nas
formas de pensar, ser e agir diante das exigências e requisitos da prática
assistencial(9).
O saber do enfermeiro é o resultado não só de conhecimentos teóricos e técnicos
adquiridos através de formação formal, como também de saberes práticos
adquiridos com a experiência e com a relação que estabelece com os pacientes.
Com o tempo e a experiência, o enfermeiro aprende a mobilizar, a integrar e a
transferir o conhecimento para a prática, desenvolvendo sua habilidade(9).
Identifica-se que a educação continuada e as atividades multiprofissionais
podem resultar na melhoria da qualificação profissional e da assistência
prestada ao paciente(21).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante da complexa problemática apresentada, considera-se de fundamental
importância o envolvimento e participação do enfermeiro nos debates que
envolvam pacientes com câncer, na busca de maiores conhecimentos sobre a
temática.
A enfermagem tem vivenciado dificuldades no cotidiano da assistência
oncológica. Neste contexto, desenvolve várias formas de manejo para não criar
vínculos afetivos, sendo isso um paradoxo, pois a assistência à pessoa com
câncer, ao mesmo tempo em que mobiliza as mais variadas emoções, demanda uma
conduta de proteção e de manejo de sentimentos e emoções.
Na medida em que este estudo abordou enfermeiros de diferentes instituições em
duas capitais do sul do país, seus resultados são representativos do modo de
ser e fazer de uma região. No entanto, sua abrangência é limitada, não sendo
possível generalizar os resultados, pois cada equipe e instituição possuem
características bastante distintas.
Como citar este artigo:
Luz KR, Vargas OAM, Barlem ELD, Schmitt PH, Ramos FRS, Meirelles BHS. Coping
strategies for oncology nurses in high complexity. Rev Bras Enferm [Internet].
2016;69(1):59-63.