Menores com necessidades especiais de saúde e familiares: implicações para a
Enfermagem
INTRODUÇÃO
As crianças e os adolescentes com necessidades especiais de saúde são aqueles
que apresentam riscos maiores de possuírem condições físicas, de comportamento,
desenvolvimento ou emocional crônicas(1). Atualmente, essas pessoas representam
um novo perfil de clientela com necessidades diversificadas em saúde, sobretudo
no que diz respeito a serviços especializados para prover suas demandas e
equipe multiprofissional qualificada, que forneça atendimento interdisciplinar
para eles e a suas famílias(2).
No contexto mundial, defeitos no tubo neural têm uma incidência que varia entre
0,79 a 6,39 por mil nascidos vivos(3). A segunda edição do Atlas Mundial de
Defeitos Congênitos, elaborado pela Organização Mundial de Saúde (OMS),
apresentou dados variáveis de defeitos do tubo neural para diversos países, no
período de 1993 a 1998. No Brasil, as estatísticas foram coletadas em 11
maternidades, por meio do Estudo Latino-Americano Colaborativo de Malformações
Congênitas (ECLAMC). De acordo com esse estudo, o Brasil encontra-se na quarta
posição na prevalência de espinha bífida entre os países pesquisados(4). O
levantamento de 2001 do ECLAMC mostrou taxa de 3,3 por mil nascidos vivos no
Brasil, sendo a maior entre os cinco países avaliados(5).
Entre essas malformações no tubo neural, a mielomeningocele representa
aproximadamente 75% dos casos. É considerada a forma mais grave por consistir
em uma protrusão cística que contém tecido nervoso não protegido por pele,
permanecendo exposto ao meio, e, por conseguinte, gerando complicações graves,
como alterações neurológicas, deformidades físicas, déficit de sensibilidade,
disfunções no trato urinário e no funcionamento intestinal(3,6).
Em virtude dessas sequelas, as crianças e os adolescentes com mielomeningocele
irão necessitar de maior atenção e cuidado de seus familiares, além de
enfrentar diversos desafios na realização de suas atividades cotidianas,
devido, principalmente, aos limites de mobilidade e à presença de incontinência
fecal e urinária. Essas condições impõem a necessidade de alguns procedimentos
domiciliares, como o cateterismo vesical intermitente e a utilização de
equipamentos de suporte locomotor(6-7).
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), as doenças crônicas são as
principais causas de mortes e incapacidades no mundo. Definem-se como aquelas
que possuem longa permanência, evolução lenta, normalmente são recorrentes e,
consequentemente, contribuem para o sofrimento dos indivíduos, das famílias e
da sociedade, requerendo atenção contínua e esforços de um conjunto de
equipamentos e políticas públicas(8). A mielomeningocele é considerada uma
doença crônica por demandar de seus portadores tratamento ininterrupto, cuidado
profissional prolongado e internações frequentes(9).
Nessa perspectiva, a enfermagem desempenha papel primordial no cuidado a essas
pessoas, por meio do acolhimento e do amparo às famílias desde o nascimento até
o momento de alta hospitalar e acompanhamentos posteriores, auxiliando-as a
lidar com esse processo de mudanças diante da chegada de um recém-nascido com
tal doença crônica. Desse modo, o enfermeiro precisa estar capacitado para
fornecer assistência articulada no âmbito da Rede de Atenção em Saúde, de forma
integral e humanizada, compreendendo as repercussões dessa malformação no
contexto de vida dessas famílias(10).
Torna-se, portanto, imperativa a necessidade de desenvolvimento de estudos que
visem ao aprofundamento não apenas de conhecimentos pertinentes aos aspectos
clínicos dessa enfermidade, mas que contemplem as diversas dimensões do viver
com essa condição crônica. Dessa forma, haverá a possibilidade de melhor
discussão sobre a temática e um posterior aperfeiçoamento e/ou criação de
estratégias que favoreçam sua atenção em saúde, a partir de um serviço público
que considere o universo em que esses usuários vivem, com suas especificidades
e necessidades cotidianas.
Diante do exposto, esta pesquisa objetivou compreender a experiência da família
de crianças e adolescentes com mielomeningocele diante da descoberta do
adoecimento crônico, bem como sua vivência cotidiana na realização dos cuidados
necessários a essas pessoas.
MÉTODO
Trata-se de estudo qualitativo, de natureza exploratória, realizado em hospital
público terciário de referência pediátrica no estado do Ceará. Nessa
instituição, as crianças e os adolescentes com mielomeningocele são
acompanhadas pelo Ambulatório de Especialidades, que oferece diferentes
atendimentos para os usuários menores de 18 anos com necessidades especiais de
saúde, incluindo serviços de alergologia, gastrologia, neurologia, pneumologia,
oftalmologia, ginecologia, reumatologia, cirurgia pediátrica, pediatria,
nefrologia, psicologia, nutrição, odontologia, neuropediatria, urologia,
genética e endocrinologia.
Participaram desta pesquisa 15 familiares responsáveis pelas crianças/
adolescentes com mielomeningocele. Buscou-se explorar, em profundidade, a
perspectiva dos participantes, a fim de compreender e interpretar suas
realidades e, desse modo, obter certa saturação dos temas tratados(11).
Constituíram critérios de inclusão: o familiar responsável estar presente
durante o acompanhamento e o tratamento no hospital; ser ele o acompanhante
habitual durante os serviços de saúde, de forma a compartilhar informações com
maior teor de detalhes quanto ao objeto em estudo, e apresentar disponibilidade
de tempo para participar da pesquisa. Excluíram-se, entre os responsáveis,
aqueles com algum déficit mental que prejudicasse a sua participação nas
entrevistas e que tivessem pouco conhecimento acerca do cotidiano da criança ou
do adolescente.
A coleta das informações ocorreu no período de outubro de 2013 a fevereiro de
2014. Utilizou-se uma entrevista em profundidade com dois itens, sendo o
primeiro de caracterização da criança/do adolescente e do familiar
acompanhante, e o segundo composto pelas seguintes questões norteadoras: fale
sobre sua experiência com o nascimento de um recém-nascido com necessidades
especiais de saúde e sua vivência cotidiana ao cuidar da criança/do adolescente
com mielomeningocele. Todas as entrevistas foram conduzidas, gravadas e
transcritas somente pelas pesquisadoras.
Utilizou-se, como referencial teórico, a teoria de Jean Watson, segundo a qual
o principal foco da enfermagem reside nos fatores de cuidado, que representam a
essência da enfermagem. Segundo a teoria, o cuidado pode ajudar a pessoa a
ganhar controle, tornar-se conhecedora e promover mudanças de saúde. Há uma
alta consideração pela autonomia e liberdade de escolha, atribuindo ênfase ao
autoconhecimento, autocontrole e ao cliente como pessoa encarregada(12).
Em sua obra, Watson também evidencia a necessidade de que o cuidado transcenda
a esfera biofísica, envolvendo uma atenção satisfatória à alma, levando em
consideração o contexto familiar, cultural e da comunidade em que o paciente
está inserido. Assim, o autor propõe ordens de necessidades que precisam ser
compreendidas para que o cuidado ocorra da melhor maneira possível:
necessidades de ordem inferior (biofísicas e psicofísicas) e necessidades de
ordem superior (psicossociais e intrapessoais)(12). À luz desses pressupostos,
os achados foram interpretados como meio de gerar informações que contribuam
para a assistência da enfermagem prestada às crianças e aos adolescentes com
mielomeningocele, bem como a seus familiares, com base na apresentação de um
panorama global que revela os desafios e o cotidiano dessas pessoas.
Para a análise dos achados, seguiu-se as etapas preconizadas pela análise
categorial temática de Bardin(13), que recomenda operações de desmembramento de
um texto em unidades e categorias, de acordo com reagrupamentos analógicos.
Entre as diferentes formas de categorização, a investigação por meio de temas é
considerada eficaz e rápida no caso de discursos simples e diretos. Foram
seguidas as etapas: pré-análise, exploração do material, tratamento dos
resultados, inferência e interpretação.
Na pré-análise, houve leitura flutuante dos achados e apropriação inicial do
conteúdo, com posterior seleção das partes mais relevantes ao objetivo da
pesquisa para a constituição do corpus do trabalho, por meio dos critérios de
representatividade, homogeneidade e pertinência. Ao final dessa etapa, os dados
selecionados foram editados para a análise. A segunda etapa esteve permeada por
operações de decomposição, visando à definição de categorias, por meio do
recorte dos núcleos de sentido nas falas dos participantes, que conferiram
significado aos aspectos analisados no estudo. Assim, as transcrições continham
grifos destacando as partes relevantes, posteriormente copiadas para outro
arquivo.
Na última etapa, os dados selecionados receberam tratamento de modo a serem
válidos e significativos. Desse modo, foram realizadas inferências e
interpretações no intuito de destacar as principais informações encontradas na
pesquisa e expô-las de forma clara(13). Após a análise final, com a elaboração
dos temas centrais, sintetizaram-se as seguintes categorias temáticas que,
conforme Bardin, apresentaram as características de exclusão mútua,
homogeneidade, pertinência, objetividade, fidelidade e produtividade: 1-
Enfrentando o novo e o desconhecido e 2- Cuidando de pessoas com necessidades
especiais de saúde.
Destaca-se que a pesquisa recebeu a aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa do
referido hospital e teve a anuência da gerência do Ambulatório de
Especialidades. Ademais, todas as normas da Resolução n° 466/12 do Conselho
Nacional de Saúde foram seguidas. Logo, algumas precauções foram adotadas, a
fim de proteger a identidade dos participantes, substituindo-se seus nomes
verdadeiros por outros fictícios.
RESULTADOS
Caracterização dos participantes, das crianças e dos adolescentes com
mielomeningocele
Dos 15 responsáveis, 14 eram mães e um era pai, havendo predomínio de
participantes com idade entre 30 e 40 anos (10). Em relação ao grau de
escolaridade, mais da metade havia cursado apenas o Ensino Fundamental
Incompleto (9); um responsável, o Ensino Fundamental Completo; outros três
cursaram o Ensino Médio; uma pessoa era analfabeta e outra havia cursado o
Ensino Superior Completo. Quanto ao estado civil, a maioria deles era casada ou
vivia em união estável (11). Houve predomínio de pessoas que não exerciam
atividades laborais formais, desempenhando apenas serviços do lar. Em relação
ao número de filhos e à posição da criança ou do adolescente com adoecimento
crônico, 12 possuíam mais de um filho, sendo que os nove com mielomeningocele
estavam entre os mais novos. Quanto à procedência, quase todos os participantes
residiam em municípios no interior do estado (13). A renda média das famílias
era de um a dois salários mínimos, com destaque para o Benefício de Prestação
Continuada (BPC), recebido pelas famílias, no valor de um salário mínimo.
No que diz respeito às crianças e aos adolescentes, a idade variou de três
meses a 13 anos e, destes, nove encontravam-se na faixa etária obrigatória para
a matrícula no ensino educacional, porém apenas seis frequentavam a escola. Em
relação às complicações de seu adoecimento, observou-se grande prevalência de
crianças e adolescentes com incontinência urinária e/ou fecal e com sequelas
relacionadas à locomoção. Quatro ainda não haviam sido diagnosticadas quanto às
alterações devido à faixa etária; oito não deambulavam, e três possuíam uma
marcha não funcional, ou seja, locomoviam-se com dificuldade, necessitando de
cadeira de rodas ou outros suportes para satisfazer suas necessidades.
Enfrentando o novo e o desconhecido
Para a maioria das famílias, a descoberta da mielomeningocele ocorreu somente
após o parto do recém-nascido, apesar das mães, quando gestantes, terem feito
acompanhamento completo no pré-natal, realizando, durante esse período, exames
de ultrassonografia para o monitoramento do crescimento e da formação fetal.
Na minha gravidez, eu fiz três ultrassons, mas não deu para
descobrir; se deu, eles não me disseram, porque a primeira ultrassom
que eu bati ela tava de costas, e se deu para ver, não disseram nada.
(Léa)
Fiz o pré-natal os nove meses, mas só foi descoberto quando ela
nasceu. (Penha)
Nesse contexto, observou-se que o nascimento da criança ocasionou, em algumas
famílias, grande surpresa e abalo emocional, por lidarem com o desconhecido, o
novo e o diferente, principalmente quando a mãe já havia gestado crianças
"normais", sem alterações congênitas.
E uma experiência diferente, muito diferente, porque eu tenho dois
filhos e eles são normais, nasceram normais. Logo no dia que eu tive
ela, foi diferente, porque levaram ela pra uma sala. Quando passou a
anestesia, que me botaram na cama de recuperação, ela já não veio pra
mim, eu já estranhei, porque eu não sabia o que era mielomeningocele,
eu não sabia. Até hoje, eu vim descobri por causa dela, eu não tinha
e nem imaginava o que era isso. (Mara)
Todos os recém-nascidos foram encaminhados para hospitais de referência em
municípios maiores, no intuito de ser realizada a cirurgia de reparação da
mielomeningocele. Nesse contexto, alguns entrevistados revelaram, por meio de
tristeza e choro, o sofrimento enfrentado durante o período em que acompanharam
a internação da criança no pré e pós-operatório. Esses sentimentos se
acentuaram com o afastamento e a saudade dos outros filhos que ficaram em casa
e com a difícil notícia acerca das sequelas da mielomeningocele e dos riscos
operatórios, anunciados por profissionais de saúde de maneira desumanizada.
Quando ele nasceu, ele tinha um caroço, aí quando chegou [ao hospital
de referência pediátrica] ele se operou. Aí o doutor disse: "ou ele
morre ou então ele fica aleijado". Eu disse: "seja o que Deus quiser,
ele ficando aleijado ou não, eu quero é que ele fique bom". Ele era
bem pequenininho, você dizia que ele não ia escapar. Operaram, eu
passei um mês com ele aqui no hospital, sofrendo com ele, chorava de
dia e de noite lembrando dos outros, porque, nesse tempo, os outros
eram pequenos também. (Rebeca)
Após a alta hospitalar, a chegada da criança ao domicílio gerou grandes
alterações no cotidiano da família, que precisou reestruturar sua organização
para fornecer todos os cuidados necessários e contínuos à criança, situação
desafiadora para seus membros, que expressaram sentimentos de medo e
insegurança diante do adoecimento crônico. A nova situação constituiu um
aprendizado cotidiano, como revela a fala a seguir:
Não foi muito fácil pra mim conseguir não, porque a gente não
esperava ele nascer desse jeito, mas, aos poucos, a gente vai
aprendendo, a cada dia que passa, pra hoje ele estar vivo com a
gente. Mas dizer que foi fácil nos primeiros dias, primeiros meses,
primeiros anos, foi difícil demais. A gente não tinha o conhecimento,
o primeiro filho tem experiência de nada, mas, com a graça de Deus,
estamos com ele aqui contando a história. (Ezequias)
Cuidando de pessoas com necessidades especiais de saúde
A maneira como as famílias lidaram com a chegada da criança ao lar e a
necessidade de cuidados contínuos foram aspectos variáveis entre os
entrevistados. Para alguns, não houve qualquer estranhamento diante das
deficiências e as consequentes dependências nas atividades diárias. Entretanto,
para a maioria, o cuidar de uma criança/adolescente com necessidades especiais
de saúde gerou medo, principalmente em virtude do pouco conhecimento acerca da
doença, tratamento e sequelas.
Para mim é normal, desde que ela nasceu eu é que cuido dela, pra mim
já é normal, nunca rejeitei [...]. (Rafaela)
[... ] eu tenho medo de cuidar dele, porque ele é uma criança
especial, diferente das outras. (Ezequias)
A rotina da família, principalmente a da mãe, por ser a principal cuidadora,
reorganizou-se diante das novas responsabilidades e constantes demandas. Na
maioria das vezes, essas cuidadoras afastaram-se de suas atividades externas ao
domicílio para poder ficar em casa com os filhos, dando-lhes toda a atenção
necessária, com os cuidados de higiene corporal e bucal, alimentação, troca de
fralda e vestimenta, conforme se observa nas falas:
Sou eu pra tudo, banho ele [...] às vezes, ele diz assim "mãe, eu
estou todo sujo", aí eu pego e vou lavar ele, eu troco de fralda,
limpo ele quando ele faz cocô. Eu cuido dele bem. (Rebeca)
Ela usa fralda descartável, eu banho ela, tiro da cadeira, boto na
cama, depois arrumo ela quando vai pra escola, eu coloco na
cadeirinha dela de novo, dou o almoço, ajeito ela, passo a colônia,
escovo, escovo os dentes, penteio o cabelo, porque tudo tem que ser
eu mesmo. (Naomi)
Como consequência da incontinência urinária, a maioria necessitava da
realização da Sondagem Vesical de Alívio (SVA) domiciliar, requerendo grande
comprometimento por parte do cuidador e responsabilidade quanto às demandas nos
horários previamente estabelecidos para a sua realização, o que gerou
diferentes sentimentos e expectativas nos cuidadores, como expressam as falas:
Já me orientaram pra eu passar [SVA], mas eu não tenho coragem não
[... ] foi o povo aqui do hospital mesmo, foi passado pelo médico.
(Naomi)
O cuidado é meio redobrado porque, recentemente, ela fez um
tratamento no Hospital P, aí consta que ela tem que tomar o
medicamento e fazer o cateterismo [SVA] cinco vezes ao dia, que é
botar sonda. (Lidia)
Além dessas atividades, o cuidador ainda precisava estar disponível para
deslocar-se frequentemente com a criança e o adolescente aos serviços de saúde.
Algumas dificuldades relatadas pelas mães em virtude desta rotina relacionavam-
se principalmente ao peso e tamanho da criança e do adolescente, o que
dificultava o cuidado ao longo dos anos, sobretudo por terem que carregá-los
nos braços na maioria das atividades e idas aos serviços de saúde e outros
locais necessários, como a escola.
A minha vida é ela, eu fico imaginando se não tivesse acontecido isso
comigo [licença trabalhista por tumor na garganta], porque ela vive
no hospital. E muito difícil trabalhar e cuidar. (Jane)
[Tudo] no braço [...] muito peso, é meio difícil. Não é todo mundo
que pega ela. Eu tenho que deixar ela na escola e buscar, porque não
é todo mundo. (Samara)
Destaca-se, ainda, a dificuldade de acesso à escola, devido à necessidade de
realização da SVA (sendo preciso, em alguns casos, a presença de um cuidador
nesse ambiente educacional) e a questões de natureza organizacional desses
setores, ainda pouco preparados estrutural e humanamente para receber crianças
e adolescentes com necessidades especiais de saúde, conforme verbalizado por
alguns participantes.
DISCUSSÃO
Os achados desta pesquisa referentes ao diagnóstico da mielomeningocele
corroboram a literatura ao revelarem que uma taxa elevada de gestantes não
recebeu o diagnóstico durante o período gravídico, ou o mesmo foi informado
apenas ao final da gestação(14). Ressalta-se ainda que, apesar de a
ultrassonografia ser um procedimento amplamente realizado durante o período
gestacional, inclusive na rede pública de saúde, a identificação da
mielomeningocele dependerá de uma série de fatores, entre eles a posição fetal,
a qualidade do aparelho e a experiência do profissional de saúde na realização
e na interpretação do exame, fatores que também podem estar associados à
frequência de diagnósticos tardios(15).
Ao lidarem com a notícia do adoecimento crônico, os familiares vivenciaram
situações traumáticas, com sentimentos de angústia e choque diante do
inesperado. Nesse sentido, a comunicação inadequada entre profissionais de
saúde e os pais, a omissão de informações, além da carência de suporte
emocional e esclarecimento acerca do adoecimento e do tratamento, foram
evidenciadas nas falas dos cuidadores, revelando o despreparo da equipe de
saúde para lidar de forma humanizada com o binômio mãe e filho.
Essas questões corroboram outra pesquisa, a qual revelou que os profissionais
de saúde têm estado pouco preparados para fornecer informações sobre o
diagnóstico de crianças com alterações congênitas, o que expressa a existência
de falhas na formação em saúde. Entretanto, a família sente a necessidade de
ouvir explicações por parte dos profissionais de saúde, pois o momento do
nascimento acaba suscitando muitas dúvidas. A consequência da falta de
capacitação desses profissionais pode interferir diretamente na relação dos
pais com o recém-nascido e na geração de expectativas distorcidas no que diz
respeito ao adoecimento e, desse modo, influenciar no processo de rejeição ou
aceitação do filho(16).
De fato, as mães têm necessidade de serem informadas tanto acerca do
adoecimento de seus filhos quanto dos procedimentos a que serão submetidos.
Porém, com frequência, as informações fornecidas pelos membros da equipe de
saúde não são por elas compreendidas adequadamente, e, algumas vezes, a
orientação nem sequer ocorre pelo fato de os profissionais se preocuparem muito
mais com a realização de procedimentos técnicos, distanciando-se da postura
pertinente a um cuidado humanizado(17).
Este estudo apresentou resultados semelhantes, conforme Guerini e outros
autores aduzem, nos quais os familiares de crianças com necessidades especiais
de saúde relataram que, após o nascimento e descoberta do adoecimento da
criança e de sua necessidade de cuidados contínuos, suas vidas sofreram grandes
alterações. Contudo, eles acreditavam que o esforço era válido para favorecer
uma melhor qualidade de vida a seus filhos(18).
A família passou a lidar com grandes desafios para superar seus medos e
despreparo diante da notícia da alteração congênita em seu filho, aprendendo,
com o tempo, a conviver com o novo, o diferente e a lidar com os preconceitos
de uma sociedade que rotula as pessoas com deficiência(19). A experiência da
família neste cuidado evidenciou-se pela busca por maior compreensão acerca do
problema de saúde, suas causas e efeitos em longo prazo, bem como por
sentimentos de insegurança e desconfiança. Desse modo, a alta hospitalar é
vista como algo marcante na vida dos familiares, por ser o início de um caminho
de aprendizado e de novas apropriações em relação aos cuidados(20).
A estrutura domiciliar sofreu reorganização para acolher o novo membro, sendo
comum, conforme revelam outros estudos, que a mãe passe a ser a principal
cuidadora, afastando-se de suas atividades laborais para dispensar todos os
cuidados contínuos necessários(10,21-22). Nessa perspectiva, a doença e a
prática cuidadora transcendem a esfera individual da pessoa com doença crônica
e atingem todos os membros de sua família, especialmente o cuidador principal.
Desse modo, é comum a apreciação de expressões de mães que se sentem
sobrecarregadas diante de tantas responsabilidades e funções, fundamentadas no
filho com necessidades especiais de saúde(20).
Mesmo considerando a viabilidade de correção da mielomeningocele, as
complicações são permanentes e variam de acordo com a extensão e altura da
lesão na coluna, bem como tempo de exposição e rapidez na realização do
procedimento cirúrgico. Entretanto, o uso de órteses e outros dispositivos
podem amenizar as dificuldades advindas dessas disfunções, apesar de ainda
serem exigidos grandes esforços para a criança, o adolescente e suas famílias,
principalmente na fase de crescimento e desenvolvimento infantil, o que
demandará tempo e adaptações constantes(9).
Cipriano e Queiroz também observaram aspectos semelhantes em seus dados.
Segundo eles, as mães de crianças com mielomeningocele expressaram dificuldades
no cuidar de seus filhos, por utilizarem todo o seu tempo para atender às
demandas por eles requeridas, provendo-lhes atenção nutricional, cuidados com
higiene, estímulos a seu desenvolvimento, entre outras(6).
A falta de controle vesicoesfincteriano também é mencionada na literatura como
bem prevalente entre as pessoas com mielomeningocele(6,9,23-24), o que as leva
à necessidade de utilização de fraldas, e as crianças e os adolescentes, por
dependerem dos pais para a realização da troca e higiene, podem, em
determinadas circunstâncias, ter que permanecer com a mesma fralda longos
períodos, o que compromete sua higiene(25).
Em muitos casos, a incontinência urinária torna necessária a realização da SVA
com a função de prevenir a ocorrência de complicações, como infecções urinárias
relacionadas a esvaziamento incompleto da bexiga e problemas renais, além de
ser uma alternativa para controlar a incontinência(14,22,26).
Ratificando nossos achados, estudo que investigou as percepções e os
sentimentos de cuidadores familiares sobre a realização da SVA em crianças com
mielomeningocele evidenciou o uso de expressões de conotação negativa e
positiva a respeito desse procedimento. A conotação negativa foi expressa por
palavras como medo, mal, complicado e difícil, durante a realização da técnica
com a criança(22).
Desse modo, acredita-se que, durante os treinamentos, devem ser esclarecidas as
dúvidas e trabalhado o medo dos cuidadores perante o procedimento, orientando-
os sobre sua importância para a criança e o adolescente, possibilitando-lhes
oportunidades de realizá-lo, ainda no contexto hospitalar, quando se sentirem
prontos para tal.
Dessa forma, em virtude dessas situações e frequentes sequelas, os familiares
precisarão ser orientados pela equipe de saúde também para a realização dos
demais procedimentos domiciliares necessários após a alta hospitalar, tais
como: administração de medicamentos, prevenção de acidentes e lesões de pele,
devido à redução da sensibilidade dos membros inferiores, cuidado com órteses,
auxílio com a alimentação, higiene e locomoção, entre outros.
Outro desafio presente no cotidiano dessas pessoas diz respeito ao acesso à
escola, pois há necessidade de que esta apresente estrutura adaptada a pessoas
com deficiências e conte com educadores capacitados para acolhê-las. É preciso
também que se criem políticas públicas eficazes e que sejam, efetivamente,
implementadas às já existentes, a fim de que essas pessoas recebam educação de
qualidade, com a garantia do acesso e da permanência no contexto educacional
(25).
Nesse sentido, destaca-se que, de acordo com as Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, o atendimento educacional especializado às pessoas de 4 a 17 anos com
deficiência deve ser gratuito e estabelecido de forma preferencial na rede
regular de ensino(27). Reforça-se ainda que, segundo o Plano Nacional dos
Direitos da Pessoa com Deficiência, deve ser garantida educação inclusiva às
pessoas com deficiência, por meio de equipamentos gratuitos de educação a elas
acessíveis(28).
Em relação à necessidade de tratamento, à reabilitação e ao acompanhamento em
saúde nos diferentes níveis de atenção das crianças e dos adolescentes com
mielomeningocele, salienta-se que é um direito de todos os cidadãos
brasileiros, independentemente de suas características genéticas, condições
socioeconômicas, e de conviver ou não com alguma patologia ou deficiência,
receber assistência de saúde acolhedora e isenta de qualquer tipo de
discriminação, visando à promoção de um tratamento com a qualidade igual para
todos e respeito às suas singularidades(29).
Entretanto, destaca-se que as sequelas locomotoras geram ainda mais sobrecarga
de trabalho aos cuidadores, sobretudo por residirem no interior do estado,
distantes dos serviços especializados, o que dificulta o acesso aos serviços de
saúde. Por esses motivos, o atendimento à criança e ao adolescente tem sido
comprometido, de acordo com alguns familiares, havendo necessidade de serem
discutidas entre gestores, poder público, profissionais de saúde e usuários
estratégias para que essas pessoas tenham, de fato, efetivado seu direito a um
atendimento em saúde de qualidade e contínuo.
Nesse contexto de cuidados diários e demandas em saúde, levando-se em
consideração o baixo nível socioeconômico das participantes, enfatiza-se a
importância do BPC como de vital relevância para o suprimento das famílias.
Trata-se de um benefício garantido por meio do Decreto de n° 6.214, instituído
em 2007 à pessoa com deficiência e ao idoso maior de 65 anos, que comprovem não
possuir nenhuma renda para prover sua subsistência e nem tê-la provida por seus
familiares(30).
O cotidiano dessas famílias, portanto, é permeado pelos desafios na apropriação
desses direitos, no aprendizado por meio do cuidado à criança e ao adolescente
com necessidades especiais de saúde, na busca por serviços de saúde acessíveis
e de qualidade e na luta por sua inclusão social. Esses desafios tornam-se
ainda maiores em meio a uma sociedade que discrimina as pessoas com
deficiências e as oferta poucas possibilidades, cerceando, muitas vezes, suas
reais potencialidades.
CONCLUSÃO
A notícia de adoecimento da criança e do adolescente logo após o nascimento é
um processo difícil e inesperado para as famílias, que gera dor e sofrimento,
principalmente quando a relação com profissionais de saúde não ocorre de forma
satisfatória. Nesses casos, mais angústia é gerada quando os pais, por
desconhecerem o que poderá acontecer com seus filhos, sentem-se carentes de
suporte emocional e comunicação adequada com a equipe de saúde.
Após a alta hospitalar, as famílias reestruturam-se para acolher o novo membro,
que dependerá de seus cuidados contínuos em decorrência das sequelas da
mielomeningocele, sendo normalmente a mãe a principal responsável. É ela quem
abdica de suas atividades e trabalhos para suprir todas as necessidades do
filho com adoecimento crônico, acompanhando-o nas frequentes buscas e
tratamentos nos serviços de saúde e lutando, diante das adversidades, para
proporcionar-lhe melhor qualidade de vida.
A partir dos resultados desta pesquisa e da observação acerca da experiência
dessas pessoas, evidencia-se a importância da enfermagem repensar suas ações em
busca de aperfeiçoamento e participação mais ativa nas equipes de saúde, o que
implica acolher as famílias e as crianças/adolescentes com necessidades
especiais de saúde em toda a rede de atenção. Para tanto, é preciso capacitar
os cuidadores quanto às atividades domiciliares, orientando-os em relação à
realização de procedimentos para esvaziamento vesical e prevenção de lesões de
pele, ao desenvolvimento de ações que incentivem a autonomia e a independência
das crianças e dos adolescentes, fornecendo-lhes informações acerca de seus
direitos e de como prosseguir para alcançá-los. Importante também que a equipe
esclareça eventuais dúvidas quanto ao adoecimento crônico, bem como forneça
suporte emocional e cuidado à família, que também deve ser foco de sua atenção.
A pesquisa apresenta limitações, na medida em que ouviu apenas os familiares de
crianças e adolescentes com mielomeningocele. Poderia ter tido maior amplitude
e aprofundamento de resultados caso também houvesse a participação de
enfermeiros e outros profissionais de saúde que prestam assistência a essas
pessoas. Entretanto, para a proposta desta investigação, o objetivo foi
alcançado, ressaltando-se que os achados não se encerram aqui, pois há
necessidade de mais discussões sobre a temática, bem como de desenvolvimento de
novos estudos que possam contemplar outras facetas, visando contribuir para a
melhoria da qualidade de vida dessa parcela da população.
Como citar este artigo:
Figueiredo SV, Sousa ACC, Gomes ILV. Children with special health needs and
family: implications for Nursing. Rev Bras Enferm [Internet]. 2016;69(1):79-85.