Hepatotoxicidade grave secundária a psicofármacos e indicação de
eletroconvulsoterapia a paciente com esquizofrenia
Introdução
A lista de fármacos capazes de provocar efeitos adversos hepáticos inclui mais
de mil medicamentos, dos quais cerca de 15% são neuropsiquiátricos (Aubriot-
Delmas, 1997). Nos Estados Unidos, em 2003, mais de 75% dos casos de reação
idiossincrásica hepática a drogas resultaram em transplante hepático ou morte,
o que ilustra a gravidade potencial de tais efeitos (Lee, 2003).
Relatamos o caso de uma paciente de 39 anos, com diagnóstico de esquizofrenia
paranóide, que desenvolveu dois quadros de hepatotoxicidade grave com o uso de
ácido valpróico (VPA) e de clozapina. Salientamos a importância da vigilância
cuidadosa dos efeitos colaterais de drogas psicotrópicas, especialmente sobre a
função hepática, dos fatores de risco para tais efeitos, além das
possibilidades terapêuticas da eletroconvulsoterapia (ECT) diante de restrições
ao uso de psicofármacos.
Relato de caso
Trata-se de uma mulher de 39 anos, solteira, sem filhos, do lar, com seis anos
de escolaridade formal, católica. Iniciou acompanhamento psiquiátrico no
Instituto Raul Soares (IRS) em 1988, aos 23 anos, com diagnóstico de
esquizofrenia paranóide, apresentando, na época, alterações da consciência do
eu, delírios persecutórios, alucinações auditivas, visuais e cenestésicas. Além
disso, seu comportamento era marcado por erotização, agressividade, errância e
negligência em relação ao cuidado pessoal. A história médica pregressa da
paciente, assim como a familiar, não apresentava eventos ou alterações dignas
de nota. A paciente também negava uso anterior de bebidas alcoólicas ou outras
substâncias psicoativas.
De 1988 até 2001, a paciente fez uso de haloperidol até 25mg/dia e tioridazina
até 500mg/dia, sem resposta clínica satisfatória. Em 2001, após iniciar uso de
olanzapina (até 30mg/dia), evoluiu com leve melhora na capacidade de
autocuidado, embora mantivesse sintomas delirantes e alucinatórios
proeminentes. No início de 2004, a atividade delirante persecutória acentuou-se
com conseqüente aumento da hostilidade. Foi associado VPA 500mg/dia à
olanzapina, então na dose de 20mg/dia. Após quatro semanas, a paciente passou a
exibir estado confusional hipoativo, caracterizado por rebaixamento do nível de
consciência, prostração, apatia e mutismo. Ao exame físico, mostrava-se
eutrófica, hidratada, normocorada, mas ictérica. Encontrava-se com níveis
tensionais de 120/80mmHg, freqüência cardíaca de 76bpm, eupnéica, sem ruídos
adventícios à ausculta pulmonar, abdome normotenso, dolorido difusamente, sem
massas palpáveis. Foi internada, então, em hospital geral para a investigação
clinicolaboratorial do possível quadro de doença hepática aguda. Os exames
laboratoriais revelaram aumento das bilirrubinas total (6,4mg/dl) e direta
(5,4mg/dl), das enzimas hepáticas (transaminase glutâmico-pirúvica [TGP] =
242U/l, transaminase glutâmico-oxalacética [TGO] = 112U/l, gama-glutamil
transpeptidase [GGT] = 100U/l, FA = 75U/l) e do tempo de protrombina (razão
normalizada internacional [RNI] = 2,4). O restante dos exames laboratoriais,
incluindo hemograma, ionograma, função renal, glicemia, amilase e lipase
pancreáticas, não mostrou alterações. O exame de ultra-sonografia abdominal
evidenciou leve aumento difuso do fígado. Como as sorologias para as hepatites
virais B e C foram negativas, assim como foi descartado o diagnóstico de doença
de Wilson, estabeleceram-se, então, os diagnósticos de encefalopatia hepática e
hepatite medicamentosa possivelmente secundária ao VPA. A medicação
psiquiátrica foi suspensa, mas a paciente permaneceu com redução do nível de
consciência por cerca de 20 dias. Posteriormente houve melhora clínica
progressiva e normalização das provas de função hepática com recuperação
completa em cinco semanas.
A paciente retornou ao ambulatório do IRS com comportamento bastante
desorganizado e sintomas psicóticos proeminentes, o que motivou a reintrodução
do haloperidol 10mg/dia. Entretanto não apresentou boa resposta terapêutica,
evoluindo com significativas alterações comportamentais, como mutismo,
negativismo, apatia e negligência pessoal. Diante da precariedade da resposta
clínica aos diferentes antipsicóticos empregados, optou-se por interná-la no
IRS e iniciar o uso de clozapina. As revisões clínica e laboratorial não
evidenciaram contra-indicações para a introdução desta medicação, sendo que o
hemograma e as provas de função hepática eram repetidos semanalmente. Quando
estava em uso de 150mg/dia de clozapina, seis semanas após o início da
medicação, a paciente passou a apresentar períodos de oscilação do nível de
consciência, prostração, apatia e febre de 39ºC. Os exames laboratoriais
revelaram aumento das enzimas hepáticas (TGP = 470U/l, TGO = 88U/l, GGT = 195U/
l, fosfatase alcalina [FA]= 84U/l) e neutropenia (leucócitos totais: 5.100mm3,
neutrófilos 3% e linfócitos 78%), sem outras alterações. Foi encaminhada
novamente ao hospital geral para tratamento de neutropenia febril com
antibióticos de largo espectro por 14 dias, embora não tivesse sido
identificado foco infeccioso. A hemocultura também não revelou crescimento
bacteriano. As alterações das provas de função hepática se normalizaram cerca
de sete dias após a suspensão da clozapina.
Após a alta da unidade clínica, em virtude de a paciente mostrar-se bastante
desorganizada, agressiva e com sintomas psicóticos acentuados, optou-se por
tratamento com eletroconvulsoterapia (ECT), após consentimento da família.
Enquanto estava internada no IRS, foram realizadas oito sessões com aplicações
bilaterais, utilizando-se aparelho que gera pulsos sinusoidais. Diante da
necessidade do uso de fármacos para a anestesia geral no procedimento de ECT, e
do conseqüente risco de novo quadro de hepatotoxicidade, a função hepática foi
regularmente avaliada. Pelo mesmo motivo foi efetuada apenas uma sessão de ECT
por semana. Após quatro sessões, evidenciou-se melhora significativa da
desorganização comportamental. Nas sessões seguintes, houve atenuação da
hostilidade e da atividade delirante-alucinatória. Em nenhum momento houve
elevação das provas de função hepática.
A paciente recebeu alta hospitalar após a oitava sessão de ECT. Seis meses após
a alta, em uso de 5mg/dia de haloperidol, comparece regularmente às consultas
ambulatoriais às sessões mensais de ECT. No momento, a paciente não relata
alucinações, não apresenta agressividade ou desorganização do comportamento e
mantém atividade delirante que não implica risco para si ou terceiros.
Apresenta cuidado pessoal preservado, tem desenvolvido atividades artesanais e
ajudado a família nos afazeres diários.
Discussão
O presente relato apresenta dois quadros graves sugestivos de encefalopatia
hepática que podem ser atribuídos a efeitos colaterais das medicações em uso.
Os fatos que permitem estabelecer essa relação de causalidade incluem a
proximidade temporal entre a introdução da droga e o aparecimento do problema
clínico, a resolução do quadro após a suspensão da medicação e a exclusão de
outras causas de doença hepática.
O primeiro quadro de hepatotoxicidade parece ter tido relação com o uso do VPA.
A hepatotoxicidade pelo VPA é caracterizada por grau variável de necrose dos
hepatócitos, com período de latência entre cinco e 90 dias, sendo que a biópsia
hepática raramente é útil para o diagnóstico (Lee, 2003). A hipótese
fisiopatológica mais consistente é a de que o VPA sobrecarrega a função
mitocondrial, especialmente a capacidade de beta-oxidação e a cadeia enzimática
da respiração, determinando acúmulo de produtos tóxicos do metabolismo endógeno
e conseqüente morte hepatocelular (Lee, 2003; Silva, 2004; Eadie, 2003). Alguns
fatores de risco incluem idade inferior a 2 anos; politerapia, especialmente o
uso concomitante de drogas que induzem o citocromo hepático P450 (Gopaul,
2003); e anormalidades neurológicas e meta bólicas (Bauer, 2005). O quadro
clínico é potencialmente fatal, embora a literatura registre uma única
descrição de falência hepática fulminante associada ao uso de VPA em
monoterapia (Bauer, 2005). Como a paciente também estava em uso de olanzapina,
esta poderia ter aumentado o risco de hepatotoxicidade relacionada ao ácido
valpróico. Ressalta-se, entre tanto, que a olanzapina tem baixa afinidade pelos
citocromos hepáticos P450, interferindo pouco no metabolismo de outras drogas e
sendo considerada segura quanto à hepatotoxicidade (van Kammen e Marden, 2005).
O segundo episódio de hepatotoxicidade foi associado ao uso de clozapina.
Ressalta-se que a alteração enzimática hepática com o uso da clozapina é, na
maioria das vezes, benigna e reversível, mesmo sem redução de dose (Aubriot-
Delmas, 1997). Em investigação comparando tolerância hepática e neurolépticos,
pacientes tratados com clozapina apresentaram maior freqüência de alterações de
enzimas hepáticas (37,5%) do que aqueles tratados com haloperidol (16,6%)
(Aubriot-Delmas, 1997). Estima-se a ocorrência de hepatite colestática e
hepatite fulminante fatal em, respectivamente, 0,06% e 0,001% dos casos em uso
de clozapina (MacFarlane, 1998). O mecanismo pelo qual a clozapina induz
hepatotoxicidade não está definido (Aubriot-Delmas, 1997). É interessante
afirmar que, apesar de existir uma similaridade estrutural entre a olanzapina e
a clozapina, essa semelhança parece traduzir-se apenas pela propensão que
possuem ambos os agentes à indução de ganho de peso (van Kammen e Marden,
2005). Como comentado anteriormente, a olanzapina é considerada segura do ponto
de vista de toxicidade hepática, o que não ocorre com a clozapina (van Kammen e
Marden, 2005).
A suscetibilidade de alguns pacientes ao dano hepático induzido por drogas
parece ser explicada por alguns fatores: 1) predisposição genética, como falha
em mecanismos protetores como a glutationa-redutase ou variantes genéticas de
isoenzimas do citocromo P450; 2) fatores adquiridos, como a presença de
desnutrição, alcoolismo e uso de indutores microssômicos; 3) suscetibilidade à
hepatite auto-imune desencadeada por drogas (Pessayre, 1992). Ainda não foram
desenvolvidos marcadores bioquímicos ou genéticos que possam ser empregados com
segurança na prática clínica para a identificação dos indivíduos com maior
risco de desenvolverem hepatopatia por drogas. A única espécie de prevenção
possível, no momento, é a farmacovigilância clinicolaboratorial.
Concomitantemente ao segundo episódio de hepatotoxicidade, a paciente
desenvolveu febre e neutropenia. A agranulocitose associada à clozapina é maior
entre as mulheres, aumenta com a idade e tem incidência acumulada de 0,8% em 12
meses e de 0,91% em 18 meses (Alvir, 1993; Jauss, 2000). A febre associada à
clozapina é comum, variando sua freqüência de 5% a 55% dos casos, conforme a
metodologia utilizada no estudo, e geralmente não estando relacionada a
síndrome neuroléptica maligna nem a septicemia. Contudo, se a febre ocorre
associada a neutropenia, a possibilidade de septicemia deve ser investigada,
como aconteceu no caso. É importante salientar que a presença de febre não
prediz as alterações hematológicas (Tham, 2002).
Diante das limitações farmacológicas, considerou-se o uso da ECT. As evidências
científicas atuais indicam que a ECT de curto prazo, quando combinada com
antipsicóticos, pode determinar melhora global em pacientes com esquizofrenia
(Tharyan e Adams, 2005). Pode ainda ser usada como terapêutica de primeira
escolha quando seu risco é suplantado pelos riscos dos tratamentos
convencionais e no caso de intolerância a efeitos colaterais que não podem ser
evitados e que se acredita serem menos prováveis ou graves com a ECT (American
Psychiatric Association, 2001; Weiner, 1994). A ECT é efetiva para o tratamento
de exacerbações psicóticas na esquizofrenia, mesmo em pacientes crônicos, já
que existem relatos de resposta em até 20% dos casos (American Psychiatric
Association, 2001; Weiner, 1994). Alguns autores recomendam que a ECT de
manutenção deva ser administrada por no mínimo seis meses após a indução da
remissão para prevenção de recaídas (Fleck, 1998). Postula-se ainda que o uso
combinado de ECT de manutenção com antipsicóticos, para aqueles que responderam
a um curso inicial de ECT, é superior ao tratamento de manutenção empregando
isoladamente antipsicóticos ou ECT na prevenção de recaídas (Tharyan e Adams,
2005).
Cabe destacar que a ECT ainda é pouco empregada em nosso meio, o que reflete o
desconhecimento dos profissionais em relação à eficácia e à segurança dessa
terapêutica, assim como as percepções negativas e estigmatizantes sobre a
técnica pelo leigo. Comumente o procedimento é postergado em favor de medidas
aparentemente menos agressivas, como intervenções farmacológicas,
negligenciando o fato de que há riscos consideráveis com o uso de determinadas
medicações.
Conclusão
O presente relato revela a importância da farmacovigilância como único meio
possível de tentar amenizar a gravidade dos efeitos colaterais dos
psicofármacos. Estudos são necessários para o desenvolvimento de métodos de
prevenção de efeitos colaterais das drogas, como a identificação de pacientes
de alto risco a partir de marcadores bioquímicos e/ou genéticos.