Qualidade de vida de caminhoneiros
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Introdução
Qualidade de vida (QV) é um termo já muito popularizado (Guillemin et al.,1993;
Guillemin, 1995a; Guillemin, 1995b; Mathias et al.,1994). Em 1964 foi a
primeira vez que o termo QV foi utilizado pelo então presidente dos Estados
Unidos da América do Norte, Lyndon Johnson, em referência ao sistema bancário
norte-americano (Fleck et al., 1997). Por muito tempo, através de publicações
científicas, percebeu-se a relação da saúde com a QV, algumas delas
relacionadas a uma área terapêutica específica (como, por exemplo, cardiologia
e oncologia). Nos últimos dez anos tem-se progredido com sérias dúvidas sobre o
conceito de QV, sem a delimitação de uma definição única formal, com um
contínuo entendimento das prioridades do paradigma e com uma gama de estudos
cada vez mais compreensivos (Fleck et al., 1997; Spilker, 1996).
O termo QV é usado em vários setores da sociedade e campos de estudos: saúde,
filosofia, política, cidadania, religião, cultura, entre outros. Porém os seus
conceitos são diversos. QV é um "conjunto harmonioso e equilibrado de
realizações em todos os níveis, como: saúde, trabalho, lazer, sexo, família e
desenvolvimento espiritual" (Cardoso, no prelo). QV, para Wilheim e Déak, "é a
sensação de bem-estar do indivíduo. Este é proporcionado pela satisfação de
condições objetivas (renda, emprego, objetos possuídos e qualidade de
habitação) e de condições subjetivas (segurança, privacidade, reconhecimento e
afeto)" (Cardoso, no prelo).
A rubrica da QV representa uma tentativa de quantificar, em termos
cientificamente analisáveis, a rede de conseqüências de uma doença e seu
tratamento, sob a percepção do paciente de sua habilidade para viver uma vida
proveitosa e satisfatória. O que emerge é uma definição funcional de QV,
mensurável e evolutiva através do tempo. Asua mensuração é subjetiva em dois
aspectos: primeiro, as muitas das dimensões aferidas não são, diretamente,
mensuráveis fisicamente; e, segundo, fica-se mais interessado com a visão do
paciente sobre a importância de sua disfunção do que com a sua existência. Para
muitos modelos de QV, o paciente serve como seu próprio controle interno. Desse
modo, a estratégia analítica primária tem sido a observação das mudanças na QV
durante
o curso da doença, melhor ainda com respeito a alguns valores absolutos, como
uma avaliação da doença ou sua resposta. Isso evita duas limitações importantes
para a generalização do conceito. A primeira é a cultural, representada pela
diferença entre grupos socioeconômicos ou étnicos. Há uma evidência recente de
que a elaboração funcional da QV deve ter uma validação transcultural. A
segunda limitação refere-se à avaliação aprofundada da questão. Ao contrário de
uma doença, que muitas vezes tem tempo de início definido, a QV é uma variável
contínua de toda uma vida (Cardoso, no prelo; Fleck et al., 1997; Souza e
Guimarães, 1999; Spilker, 1996). O que se quer saber é o que acontece com um
paciente num parâmetro funcional. A definição de saúde está intrínseca a esse
conceito. Uma possibilidade é basear esse modelo na definiçãoda Organização
Mundial da Saúde (OMS): "Saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental
e social, e não meramente a ausência de doença ou enfermidade", que é
recomendável, mas inclui elementos que estão longe de suprir a medicina
tradicional e apolítica. As oportunidades de emprego, a educação e a segurança
social são elementos importantes no desenvolvimento da saúde da comunidade
(Spilker, 1996). Essa definição está baseada na premissa de que a meta da
medicina é fazer desaparecerem a morbidade e a mortalidade de uma doença em
particular. O que se visa fazer é eliminar a doença e suas conseqüências e
liberar o paciente como se não tivesse sido acometido por ela.
Segundo a OMS, "a saúde não é o centro da qualidade de vida". Avaliar a QV é
avaliar dimensões. A OMS, em 1994, através de seu Grupo de Qualidade de Vida,
trouxe como definição: "QV é a percepção do indivíduo de sua posição na vida no
contexto da cultura e sistemas de valores nos quais ele vive e em relação aos
seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações" (Fleck et al., 1997;
Spilker, 1996). O conceito de QV consiste em três níveis: avaliação total do
bem-estar, domínio global (isto é, físico, psicológico, econômico, espiritual e
social) e componentes de cada domínio. Se víssemos esses três níveis numa
pirâmide, o topo seria a avaliação total do bem-estar, seguida dos outros dois,
sendo os "componentes de cada domínio" a base da pirâmide (Souza e Guimarães,
1999). Esse complexo conceito incorpora a saúde física, o estado psicológico, o
nível de independência, os relacionamentos sociais, as crenças pessoais e o
relacionamento entre as características proeminentes do ambiente. Isso denota
que a QV se refere a uma avaliação subjetiva, a qual inclui tanto as dimensões
positivas como as negativas num contexto cultural, social e ambiental (Spilker,
1996).
A grande maioria dos instrumentos de avaliação de QV foi formulada na língua
inglesa, e, por isso, direcionada para ser utilizada em população que fala esse
idioma. Devido ao crescente número de ensaios clínicos multicêntricos criou-se
a necessidade de se desenvolver medidas delineadas especificamente para
utilização em países cujo idioma não seja o inglês, assim como para populações
de imigrantes que adotam essa língua, já que, nessas duas situações, diferenças
culturais importantes podem estar presentes (Ciconelli, 1997). Entre as
melhores opções de instrumentos está o Medical Outcomes Study 36-Item Short-
Form (SF-36), que foi criado com a finalidade de ser um questionário genérico
de avaliação da QV relacionada à saúde, de fácil administração e compreensão,
porém sem ser tão extenso como os anteriores (Alonso et al., 1995; Bullinger,
1995; Ciconelli, 1997; Perneger et al., 1995; Sullivan et al., 1995; Ware et
al., 1993; Ware e Gandek, 1994; Ware et al., 1995). O SF-36 tem sido
administrado com sucesso a populações geral e específicas (Brazier et al.,
1992; Hayes et al., 1995; Jenkinson et al., 1993; McHorney et al., 1992;
McHorney et al., 1994).
O SF-36 foi derivado inicialmente de um questionário de avaliação de saúde
formado por 149 itens, desenvolvido e testado em mais de 22 mil pacientes como
parte de um estudo de avaliação de saúde, o Medical Outcomes Study (MOS)
(Ciconelli, 1997; Ware et al., 1995). Com o intuito de formular um questionário
abrangente, mas não tão extenso, elaborou-se inicialmente um questionário de 18
itens, o qual avaliava capacidade física, limitação devida à doença, saúde
mental e percepção da saúde. Posteriormente dois itens foram adicionados para
avaliação de aspectos sociais e dor, sendo então criado o Short-Form-20 (SF-
20). O SF-20 foi administrado a cerca de 11 mil participantes dos estudos de
avaliação de saúde (MOS). Esses resultados permitiram a análise de suas medidas
psicométricas e também o desenvolvimento de normas preliminares para detectar
diferenças no estado funcional e de bem-estar entre os pacientes com doenças
crônicas e alterações psiquiátricas (Ciconelli, 1997).
A escolha do SF-36 para a presente pesquisa fundamentou-se no interesse de
termos disponível, no nosso idioma, um questionário de avaliação genérica da QV
relacionada à saúde bem desenhado e que já estivesse sendo usado em outros
estudos nos dois países. Esse interesse também foi baseado na demonstração de
suas propriedades de medida, como reprodutibilidade, validade e suscetibilidade
à alteração (Ciconelli, 1997; McHorney et al., 1993; McHorney et al., 1994),
bem como de sua utilização (Ciconelli, 1997). Por ser um questionário genérico,
seus conceitos não são específicos para uma determinada idade, doença ou grupo
de tratamento, portanto permite comparações entre diferentes patologias ou
entre distintos tratamentos e culturas (Ciconelli, 1997; Ware et al.,
1995).Apopulação de caminhoneiros vem sendo estudada pelos autores também em
relação a distúrbios do sono, hábitos de vida, uso de substâncias psicoativas e
envolvimento em acidentes de trânsito.
Métodos
O método da pesquisa foi exploratório-descritivo, comparativo e de corte
transversal (seccional). Foram aplicados os seguintes instrumentos:
questionário sociodemográfico;
questionário genérico de qualidade de vida SF-36.
As entrevistas foram feitas após a assinatura de um termo de consentimento
livre e esclarecido. Houve a devida aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da
Universidade Católica Dom Bosco (UCDB).
Foi feito, inicialmente, um estudo piloto com 20 motoristas, a fim de se
adequar os instrumentos. A população do estudo incluiu 206 caminhoneiros em
atividade nas rodovias federais brasileiras no período de 15 dias.
Cada entrevista durou, em média, 20 a 30 minutos. A amostra foi seqüencial e os
sujeitos foram entrevistados, individualmente, em quatro postos de gasolina ou
em restaurantes, por amostradores (cotadores) devidamente remunerados e
treinados.
A análise estatística foi feita com os testes t de Student, comparação de
médias por análise de variância (ANOVA), análise de contingência pelo teste do
qui-quadrado (χ2), análise de correlação simples de Pearson e teste exato de
Fisher. O nível de significância foi de 5%.
O SF-36 é um questionário multidimensional formado por 36 itens englobados em
oito escalas ou componentes: capacidade funcional (dez itens), aspectos físicos
(quatro itens), dor (dois itens), estado geral de saúde (cinco itens),
vitalidade (quatro itens), aspectos sociais (doisitens),aspectos emocionais
(três itens), saúde mental (cinco itens) e mais uma questão de avaliação
comparativa entre as condições de saúde atual e as de um ano atrás. Avalia
tanto os aspectos negativos da saúde (doença ou enfermidade), como os positivos
(bem-estar ou QV) (Ciconelli, 1997; Ware et al., 1993). Na avaliação de seus
resultados, após sua aplicação, é dado um escore para cada questão, o que,
posteriormente, é transformado numa escala de 0 a 100, onde zero corresponde a
um pior estado de saúde e 100 a um melhor, sendo analisada cada dimensão em
separado. Propositalmente, não existe um único valor que resuma toda a
avaliação, traduzindo-se num estado geral de saúde melhor ou pior, justamente
para que, numa média de valores, evite-se o erro de não se identificarem os
verdadeiros problemas relacionados à QV e à saúde do entrevistado ou mesmo de
subestimá-los (Ciconelli, 1997; Ware et al., 1993).
Resultados
A Tabela_1apresenta a categorização sociodemográfica da amostra de motoristas
estudada. Houve diferença significativa apenas entre a idade (p= 0,0442) e a
escolaridade (p< 0,0001). Em relação à duração do trabalho, 43,2% dos
motoristas dirigiam mais de 16 horas/dia (p < 0,0001).
![](/img/revistas/jbpsiq/v55n3/a02tab01.jpg)
A Tabela_2mostra os oito componentes do SF-36. As dores corporais e a saúde
mental têm escores mais baixos. Acentua-se também o fato de diversos
componentes terem valores médios baixos.
[/img/revistas/jbpsiq/v55n3/a02tab02.jpg]
Em relação aos domínios do SF-36, houve uma associação significativa entre
função física (FF) e diversos fatores demográficos, designadamente a
escolaridade (a FF é maior no grupo com escolaridade secundária do que no de
instrução primária), as horas de sono (FF maior nos que dormem mais horas e
menor quando há indício de distúrbio do sono; p= 0,0003).
Houve correlação significativa entre o desempenho físico (DF) e alguns fatores
demográficos, designadamente a escolaridade (o DF é menor no grupo
profissionalizado se comparado com a escolaridade secundária e/ou primária),
que é menor nos que conduzem menos horas (DF menor quando há indício de
distúrbio do sono; p= 0,0001).
Também houve correlação significativa entre as dores corporais (DC) e o
trabalho por turnos (cotação menor nos que não fazem turnos, índice menor nos
que conduzem mais horas, e claramente menor nos que dormem menos horas e nos
que acordam cedo demais; DC menor quando há indício de distúrbio do sono; p=
0,0001).
Os escores em relação à saúde geral foram piores quando as horas de condução do
veículo eram prolongadas (mais de 11h) (p< 0,0001), quando o tempo de sono era
reduzido nos dias de trabalho e quando os trabalhadores se levantavam cedo
demais (antes das 5h).
O componente vitalidade foi menor quando houve indício de distúrbio do sono (p<
0,0001) e com o tempo menor que 10 horas de condução (p= 0,0255).
A função social é pior quando há indício de distúrbio do sono (p< 0,0001), com
a presença de acidentes nos últimos cinco anos (p= 0,0159), com o horário de
acordar nos dias de trabalho entre 6 e 7 horas (p= 0,0004), com o tempo de
condução menor que 10 horas (p< 0,0001), com a realização de trabalho em turnos
(p< 0,0001) e naqueles que têm formação profissional (p= 0,0263).
O desempenho emocional foi mais baixo quando houve indício de distúrbio do sono
(p< 0,0001). A saúde mental foi mais baixa quando existiu indício de distúrbio
do sono (p< 0,0001) e não-realização de trabalho em turnos (p< 0,0001) (Figuras
1e 2).
[/img/revistas/jbpsiq/v55n3/a02fig01.jpg]
[/img/revistas/jbpsiq/v55n3/a02fig02.jpg]
Discussão
Stoohs et al. (1994) avaliaram 90 caminhoneiros comerciais de viagens de longa
duração, com idade entre 20 e 64 anos, e concluíram que a sonolência diurna
excessiva (SDE) é um dos fatores de maior risco de acidentes nas estradas. Os
caminhoneiros referiram um total de 42 acidentes, com os mesmos critérios de
definição do presente estudo; quatro motoristas referiram dois acidentes e dois
referiram três acidentes nos últimos cinco anos (Stoohs et al., 1994). A
redução do tempo de sono, associada a viagens curtas ou longas e à SDE, é um
fator preocupante; piores índices de QV em relação à saúde geral e mental,
entretanto, sofreram menos acidentes nos últimos cinco anos.
Neste estudo também um número significativo de caminhoneiros conduz durante uma
quantidade excessiva de horas. Esse fato relacionou-se negativamente com alguns
aspectos da QV (dores e saúde geral), mas teve relações positivas com outros
aspectos, sugerindo que a noção de capacidade de desempenho possa transmitir
sensações de segurança ou bem-estar, contrariadas por indicadores mais
objetivos.
O trabalho em turnos (shift work) esteve presente em apenas 2,9% dos
caminhoneiros. Håkkånen e Summala (2000) constataram prevalência de 13% e shift
workersentre os caminhoneiros que faziam viagens de longa duração, sendo que
40% desses referiram problemas em permanecer alerta. Outras profissões sofrem,
da mesma forma e em demasia, com as mudanças do horário de trabalho,
principalmente quando os turnos são alternados, como, por exemplo, policiais
(Garbarino, 2002) e enfermeiros (Ferreira, 1985; Fitzpatrick et al., 1999;
Gupta e Pati, 1994; Matsumoto et al., 1996). Outros pesquisadores comprovam o
mesmo fato (Akerstedt e Torsvall, 1978; Bobko, 1994; Campbell, 1995; D'Alonzo
Krachman, 2000; Gordon et al., 1986; Guimarães e Teixeira, 2003; Kan e
Kupriianov, 1989; Mazzetti di Pietralata et al., 1990). Nesta pesquisa o
trabalho por turnos afetou negativamente o componente função social do SF-36,
mas os trabalhadores que o faziam tinham escores mais favoráveis noutros
componentes, designadamente nas dores corporais e na saúde mental. Falta
esclarecer se uma explicação possível seria a maior capacidade física e
psicológica dos que se dedicam ao trabalho por turnos.
São poucos os estudos que já avaliaram a QV de motoristas (Connor et al.,
2001). Os diversos estudos com o questionário SF-36 demonstram divergências
entre as pontuações médias dos oito componentes avaliados (Alonso et al., 1995;
Brazier et al., 1992; Bullinger, 1995; Hayes et al., 1995; Jenkinson et al.,
1993; McHorney et al., 1992; McHorney et al., 1993; McHorney, Kosinski, Ware,
1994; McHorney et al., 1994; Perneger et al., 1995; Stewart et al., 1988;
Stewart et al., 1989; Sullivan et al., 1995; Wachtel et al., 1992; Ware,
Sherbourne, 1992; Wells et al., 1989a; Wells et al., 1989b; Wells et al.,
1992). Connor et al. (2001) aplicaram o SF-36 e outros instrumentos em uma
amostra de 588 motoristas de carro na Nova Zelândia e encontraram prevalência
de 8,1% entre aqueles submetidos a trabalho em turnos; eles não discutiram, em
detalhes os domínios do SF-36. No nosso trabalho foram também patentes as
disparidades de alguns componentes do SF-36, mas foi clara a afetação da QV
des-se grupo populacional considerado saudável e na pujança da vida.
Efetivamente as cotações entre 90% e 100% só existiram em 53,9% dos
caminhoneiros no componente FF; em 69,5% no componente DF; em 70,4% no DC; em
44,8% na saúde geral; em 21,3% na vitalidade; em 54% na função social, em 81,7%
no desempenho emocional e em 64,1% no componente saúde mental. Além do mais,
acentua-se a deterioração da QV quando há acidentes, nos últimos cinco anos,
delineando um conjunto de variáveis a considerar em estudos futuros.
Conclusão
Em relação aos caminhoneiros avaliados neste estudo, as médias dos preditores
de qualidade de vida de acordo com o SF-36 foram melhores para desempenho
físico, vitalidade e função social. Não houve diferenças significativas em
relação aos subitens de função física, saúde geral e desempenho emocional. Há
necessidade de maior atenção e regulamentação da atividade dos caminhoneiros
para melhorar a qualidade de vida dos mesmos.