Entre o mérito e a necessidade: análise dos princípios constitutivos do seguro
social de doença alemão
Introdução
O seguro social de saúde alemão Gesetzliche Krankenversicherung GKV é
parte de amplo sistema de proteção social, com o qual compartilha princípios e
características básicas. Na Alemanha, a proteção social é garantida
especialmente através do seguro social, que é composto por cinco ramos de
seguro: velhice, invalidez e morte (previdência), doença, desemprego, acidentes
de trabalho e cuidados de longa duração. A proteção social alemã é mais ampla
do que o seguro social. Complementada pela assistência social, assegura renda
mínima mediante a comprovação de carência por testes de meios. À proteção
social poder-se-ia ainda somar toda a regulação do mercado de trabalho, as
medidas para promoção do trabalho e incentivos ao aprendizado de outras
profissões, assim como a legislação especial para proteção e garantia de
trabalho de deficientes.
O seguro social de doença garante a proteção ao risco de adoecer de forma
inclusiva e abrangente, embora, assim como os outros ramos do seguro, seja
centrado no trabalho assalariado. Cobre 90% da população e seu catálogo de
ações médico-sanitárias é completo: inclui atenção médica ambulatorial e
hospitalar em todos os níveis de atenção, assistência farmacêutica,
odontológica e psicoterápica, entre outras. Além dessas ações, o seguro doença
abrange, entre seus benefícios, o auxílio-doença, ou seja, a continuidade do
pagamento de salários em caso de doença.
O presente artigo tem por objetivo a descrição e a análise dos princípios
estruturais do seguro social de doença alemão em sua trajetória histórica e a
discussão não só de suas inter-relações e condicionamentos mútuos, como também
da contemporaneidade e forma de vigência dos mesmos. A discussão desses
princípios pode contribuir para uma melhor compreensão da política social
brasileira e subsidiar a análise de reformas do sistema brasileiro de proteção
social em geral e da proteção à saúde em particular, pois os princípios
constitutivos do seguro social alemão são em parte compartilhados pela proteção
social brasileira. Subsidiaridade, solidariedade e equivalência são princípios
incluídos no capítulo Da Ordem Social da Constituição Federal de 1988.
Inicialmente, serão abordadas as características do seguro social e
identificados seus princípios constitutivos. Em seguida, serão analisadas as
concepções de equivalência, solidariedade e subsidiariedade, para, então,
efetuar-se a discussão relativa à forma atual de vigência destes princípios. Ao
final, serão levantadas questões acerca tanto do significado tendencial das
últimas leis de contenção de gastos do seguro social de doença caso a reforma
se concretize plenamente , quanto da importância dos princípios estruturais
para a estabilidade do modelo de seguro social.
Em seguida, serão descritas as características do seguro social e identificados
os princípios básicos que o regem.
Características do modelo de proteção social alemão
A organização do Estado de Bem-Estar alemão é paradigmática de um dos tipo-
ideais de caracterização dos sistemas de proteção social modernos:
meritocrático-corporativo (Titmuss, 1958), conservador (Esping-Andersen, 1990)
ou de seguro social (Fleury, 1994; Werneck Vianna, 1991).
A gênese e a estrutura do sistema de seguro social alemão estão intimamente
ligadas ao conflito capital-trabalho. Na Alemanha, durante o processo
conservador de transição para o capitalismo, o Estado autoritário tomou para si
a responsabilidade pela segurança social e incluiu gradualmente a população
dependente do trabalho assalariado na solidariedade obrigatória.
Criado por Bismarck ao final do século passado, o seguro social alemão dirigia-
se a um grupo que, embora crescente e economicamente importante, representava
ínfima parcela da população: os trabalhadores assalariados. A política social
de Bismarck, para além do enfrentamento da questão social, conformou uma
proposta intencional de organização corporativa da sociedade corporações
submetidas ao Estado e de ampliação do controle social. Buscou combater o
avanço da social-democracia mediante a "realização dos pontos das
reivindicações socialistas, que (fossem) sejam adequados e compatíveis com as
leis do Estado e da sociedade" (Bismarck apud Oliveira, 1995:25). Por
conseguinte, a introdução do seguro social sofreu forte oposição dos
trabalhadores.
Centrado na esfera do trabalho assalariado, o Estado de seguro social assegurou
direitos sociais aos cidadãos na medida de sua participação no mercado de
trabalho, da mesma forma que no caso da nossa "cidadania regulada"
(Santos, 1979), segundo a qual os direitos do cidadão restringiam-se aos
direitos do lugar ocupado pelo indivíduo no processo produtivo.
Ao condicionar direitos ao mérito individual, o seguro social consolida grupos
com diferentes statuse privilégios. A necessidade de ajuda é avaliada como
merecida ou imerecida, cristalizando-se diferenças sociais com suas respectivas
conotações morais (Koch, 1995:81).
A centralidade da política social no mundo do trabalho assalariado caracteriza-
se de três maneiras, de acordo com o direito a benefícios sociais: "é
dependente de trabalho assalariado anterior; pressupõe disposição para o
exercício de trabalho assalariado; e o valor dos benefícios é definido segundo
os rendimentos do trabalho"(Nullmeier & Vobruba, 1995:12).
Esta ênfase no trabalho assalariado faz com que princípios norteadores das
relações de trabalho sejam transpostos para a base da política social. A
concepção de que o mérito/remuneração de cada indivíduo corresponde à qualidade
e extensão de sua produção torna-se fundamento do sistema de seguro social. No
mercado de trabalho, a remuneração corresponderia à capacidade de produção de
cada indivíduo. No seguro social, os benefícios seriam correspondentes à sua
capacidade de contribuição.
A maioria das formas de promoção de eqüidade no seguro social, em virtude da
centralidade no trabalho assalariado, está vinculada à integração no mercado de
trabalho. Contudo, as regras de limite máximo para desconto da contribuição e
para obrigatoriedade de participação nos seguros, assim como a não
obrigatoriedade de seguro para trabalhos de baixos salários a chamada
ocupação mínima , quebram essa vinculação na parte superior e inferior do
mercado de trabalho (Nullmeier & Vobruba, 1995:15). Os assalariados de alta
remuneração são liberados da solidariedade coercitiva, e os trabalhadores com
baixa integração trabalho de tempo parcial com remuneração mínima são
punidos, expulsos/excluídos da solidariedade.
Como a cidadania social é regulada pela inserção no processo produtivo, o
"processo de inclusão" (Offe, 1990) não é antagônico à exclusão, mas
sim concomitante. Um sistema de seguro social, ao mesmo tempo em que assegura
transferências e serviços baseados em determinados direitos justificados,
constrange a garantia desses direitos àqueles que não preenchem os requisitos:
"Cada inclusão é acompanhada por uma exclusão (Luhmann), pois cada
programa social condicional é construído segundo o esquema 'se-então', no qual
a negação 'se não-então não' está implícita" (Offe, 1990: 185s).
O desenvolvimento posterior do seguro social foi de inclusão e expansão
progressivas. No processo de expansão, tanto foram incluídos progressivamente
novos setores da população, como foram ampliados os benefícios e serviços
cobertos. Houve o reconhecimento cumulativo de necessidades a serem garantidas
doença (1883), acidentes de trabalho (1885), velhice (1891), desemprego
(1927) e cuidados de longa duração (1994). Ampliou-se o círculo de
beneficiários com a inclusão de novos grupos profissionais, expandindo-se a
proporção de segurados na população total, e o nível de renda e a abrangência
da cesta de serviços afiançados por cada ramo cresceram gradualmente (Alber,
1982:64).
A história do seguro social alemão, além da expansão e inclusão progressivas, é
também marcada pela estabilidade do modelo de seguro social. O sistema criado
demonstrou alta estabilidade, mantendo sua estrutura básica durante mais de cem
anos. Sobreviveu saiu ileso à queda do império, à jovem e tumultuada
república de Weimar, à inflação de 1923 e à grande depressão do início dos anos
30, ao nazismo (Terceiro Reich), bem como à derrota nas duas guerras mundiais
deste século. E, até o momento, tem sobrevivido ao neoliberalismo.
O sistema de seguro social alemão tem como características gerais: a
participação compulsória dos trabalhadores assalariados mediante contribuições
proporcionais aos salários até certo limite máximo definido por lei; a
participação paritária dos empregadores nas contribuições na maioria de seus
ramos e a administração autônoma dos órgãos de seguro, os quais são, em geral,
geridos de forma paritária pelos trabalhadores e empregadores. Os órgãos de
seguro são públicos, mas não estatais, e sua atuação é regulada e controlada
pelo Estado.
Os princípios estruturais do seguro social
O seguro social constitui-se com base nos princípios de equivalência por ser
um seguro , de solidariedade por pressupor alguma redistribuição e de
subsidiariedade por conseguinte, a ação estatal deve ser complementar. Pelo
princípio de equivalência, os benefícios são vinculados às contribuições
prévias, e são conformadas diversas instituições dirigidas a distintos grupos
de trabalhadores. O princípio da subsidiariedade, por influência da igreja,
serve para enfatizar que o Estado somente interferirá quando a capacidade da
família estiver exaurida, envolvendo responsabilidade de cada indivíduo. O
princípio da solidariedade torna as contribuições proporcionais à renda e os
benefícios de acordo às necessidades, produzindo redistribuição.
Em cada um dos ramos do seguro social, os princípios estruturais desse modelo
de proteção manifestam-se de forma diferente. Sua implementação distingue-se
conforme as especificidades das atribuições de cada ramo e a ascendência de um
sobre os outros é diversa. Isto é, embora os três princípios estruturem o
sistema, o predomínio de um sobre os outros em determinado ramo do seguro
social é diferenciado.
Nos seguros previdenciário, de desemprego e de acidentes, a maioria dos
benefícios é garantida segundo o princípio de equivalência a extensão dos
benefícios depende do valor das contribuições. Há certa correspondência entre
benefícios e contribuições. Por sua vez, nos seguros doença e de cuidados de
longa duração predomina o princípio de solidariedade: os segurados, com poucas
exceções, têm direito ao mesmo catálogo de serviços, independente do valor das
contribuições. Além disso, a administração autônoma assim como a ênfase no
trabalho assalariado e a definição inicial do asseguramento apenas aos
operários industriais tem como base o princípio da subsidiariedade: a
intervenção estatal na proteção social deve ser subsidiária, complementar. Na
realidade, o princípio da subsidiariedade manifesta-se com toda força na
assistência social, na qual os benefícios são assegurados somente quando o
indivíduo e sua família não estão em condições de suprir suas necessidades
básicas por meios próprios.
As principais características do seguro social de doença são expressões
mediadas destes princípios. O direito à utilização conforme as necessidades,
sem relação com o valor das contribuições, e o acesso direto às ações e
serviços de saúde, sem pagamento por parte dos segurados
Sachsleistungsprinzip , são expressões do princípio de solidariedade. A
pluralidade de Caixas organizadas por profissão, ramo de produção, região ou
empresa e a definição do valor monetário do auxílio-doença correspondente ao
salário de contribuição expressam o princípio de equivalência. Além disso, o
apelo à responsabilidade dos indivíduos sobre a própria saúde apóia-se no
princípio de subsidiariedade.
Os princípios de equivalência, solidariedade e subsidiariedade, estruturantes
do seguro social de saúde, analisados a seguir, têm vigência desde a sua
criação, expressando-se com diferentes ênfases no transcorrer do tempo.
1) Equivalência
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O princípio básico regente de qualquer seguro é a equivalência. Segundo este
princípio, o volume e a extensão dos benefícios deve ser equivalente ao valor
das contribuições individuais: o valor dos benefícios recebidos deve
corresponder ao valor das contribuições pagas pelo segurado.
Em qualquer tipo de seguro, a probabilidade matemática de o dano vir a afetar
um indivíduo e o valor monetário do benefício correspondente ao valor do prêmio
pago pelo segurado são calculados sob os pressupostos de grande número de
segurados para mesmo tipo de risco, a aleatoriedade da entrada dos casos de
seguro e sua independência. A possibilidade de estimativa dos riscos permite o
cálculo das contribuições a serem pagas pelos segurados a fim de que estas
sejam suficientes para cobrir as necessidades estimadas, com base no princípio
de equivalência.
O seguro individual representa uma resposta a possibilidades de danos que
ameaçam a empresa ou o indivíduo e que colocam em questão a ação utilitarista
máxima de cada um, visto enquanto homo economicus. O benefício de um seguro
privado é, em geral, a garantia de compensação financeira no caso de o
indivíduo sofrer o dano assegurado. Talvez, mais importante que a restituição
financeira, seja a criação da expectativa de segurança: a redução do
desconhecimento a respeito das conseqüências do perigo. Quer dizer, o benefício
do seguro também é bem de informação sobre o futuro de certo objeto de valor
(Lauer-Kirschbaum & Rüb, 1994:44).
O seguro social, por sua vez, reduz a insegurança social através da compensação
de riscos politicamente definidos. A especificidade do risco no seguro social
consiste no reconhecimento político de situações de vida como provocadas pela
insegurança social produção social objetiva dos riscos e a vinculação das
mesmas ao direito a benefícios sociais estatais (Lauer-Kirschbaum & Rüb,
1994:44).
Na organização da sociedade industrial capitalista, os indivíduos encontram-se
submetidos a variados riscos inerentes a ela, cujas origens não podem ser
atribuídas a comportamentos individuais inadequados, o que torna pouco
plausível que os atingidos possam enfrentar e superar isoladamente o seu
destino físico e material. Além disso, apenas pelo lado da discussão da questão
dos riscos sem entrar aqui na análise sobre origem e determinações da
política social, que não são objetos deste artigo , o enfrentamento coletivo
dos riscos decorre de suas conseqüências negativas coletivas, seus custos
externos (Offe, 1990). Ocorre, assim, o reconhecimento dos riscos e de suas
formas de enfrentamento pelo Estado central, levando-os a integrar a sua
agenda.
O princípio da equivalência decorre não apenas da lógica de seguro, mas também
da transposição de princípios regentes das relações de trabalho para a política
social. Embora a remuneração do trabalho seja conforme o valor mínimo
necessário para sua reprodução e não de acordo com o valor produzido/agregado,
existe certa correspondência entre a remuneração e a quantidade de trabalho
realizado. Desse modo, a concepção de que há relação de equivalência entre a
quantidade de trabalho realizado pelo indivíduo e sua remuneração correlaciona-
se à acepção, no seguro social, de que os benefícios devem corresponder às
contribuições.
Ao mesmo tempo, o princípio de equivalência evita o gozo de benefícios por
pessoas não autorizadas pelas contribuições, garantindo apoio ao modelo de
proteção quando prevê que o nível de benefícios deve ser correspondente às
contribuições. Previne a redistribuição interna proposital entre os
participantes de maior e menor renda. A redistribuição que de fato ocorre no
interior da comunidade de segurados não pode ser conhecida com antecipação,
pois isto viria a corroer a legitimidade do sistema (Offe, 1990).
Entretanto, no seguro social, a equivalência entre contribuições e benefícios é
rompida com a finalidade de compensação social. A vigência concomitante da
solidariedade restringe o exercício da equivalência. Contribuições e benefícios
estão relacionados aos salários, contudo não há equivalência imediata entre
ambos. O segurado não recebe de volta o valor de sua conta individual de
contribuições capitalizada no transcorrer dos anos. Uma necessidade básica de
manutenção do padrão de vida merecido pela sua participação no mercado de
trabalho, conquistado durante sua vida produtiva é definida politicamente.
A previdência social é o ramo do seguro social alemão em que a equivalência tem
maior importância. A fórmula para cálculos de aposentadoria é apresentada como
expressão da configuração de benefícios equivalentes às contribuições. Porém,
entre a contribuição e o valor da aposentadoria não há relação constitutiva
direta. A posição que o segurado ocupa na hierarquia de renda justifica o valor
da participação individual no volume financeiro colocado posteriormente à
disposição, o qual, por sua vez, é determinado conforme algum objetivo de
segurança social (Kolb, 1985, apud Nullmeier & Vobruba, 1995:16).
O nível do salário de contribuição a que devem corresponder as transferências
financeiras dos diversos ramos do seguro social tem por base não apenas o
mérito, mas também certa concepção de necessidade a ser suprida, que é, por sua
vez, politicamente definida (Nullmeier & Vobruba, 1995). Por conseguinte,
está presente uma concepção de garantia de direitos conforme a necessidade
Bedarfsgerechtigkeit nos diversos ramos do sistema, entre outros: assistência
médica completa em caso de doença, garantia do padrão de vida em níveis
reduzidos no seguro-aposentadoria após o cumprimento do tempo de trabalho 68%
em aposentadoria padrão após 45 anos de seguro e no seguro-desemprego 60%
no seguro-desemprego e 53% no auxílio-desemprego. Pode-se, portanto, denominar
este princípio como de equivalência mediada.
No seguro social de doença, a solidariedade suplanta a equivalência,
desvinculando o direito à atenção do valor das contribuições. Neste ramo do
seguro social, o princípio de equivalência vige apenas para o auxílio-doença,
correspondendo à determinada proporção dos salários de contribuição. É uma
equivalência igualmente mediada, pois os benefícios não correspondem
diretamente ao valor das contribuições, uma vez que as transferências não têm
por base fundos individuais capitalizados e o nível de reposição salarial em
caso de doença é definido politicamente.
Originalmente, o princípio de equivalência tinha maior significado também para
o seguro social de saúde em virtude da maior participação das transferências
financeiras no conjunto de gastos. Embora o pagamento de benefícios em espécie,
especialmente o auxílio-doença, permaneça como encargo do seguro social de
doença, sua importância diminuiu no transcorrer dos anos tanto relativamente,
por causa da expansão do catálogo de ações médico-sanitárias, como para a
definição das transferências financeiras (Arnold, 1993:28). Em razão de
mudanças na legislação, passaram a fazer parte do seguro social benefícios sem
relação com contribuições em particular, os relativos à política familiar e à
maternidade.
No debate atual, o apelo ao princípio de equivalência no seguro social de
doença serve para a defesa da exclusão desses últimos benefícios, tidos como
estranhos ao seguro Fremdleistungen. Estes seriam da competência estatal
direta e deveriam ser financiados com recursos fiscais, aliviando o caixa dos
órgãos de administração autônoma dos seguros sociais.
Ainda que, na sociedade capitalista, uma certa equivalência venha a ser
inevitável, é importante não esquecer que o nível a partir do qual ela deve
vigorar é politicamente definido. O ponto de equilíbrio entre equivalência e
necessidade constitui objeto de constante disputa.
2) Solidariedade
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Diversos significados e empregos são atribuídos à solidariedade: não é apenas
preceito moral; é palavra de ordem, é vínculo de classe, é promessa de
segurança burguesa e é justificativa para a redistribuição que ocorre no
interior do seguro social. O princípio da solidariedade, ao contrário do de
equivalência, significa que o ônus de cada um deve ser redistribuído dentro de
uma comunidade solidária e não que cada grupo de risco deva acumular reservas
de capital, disponíveis para cobrir danos futuros.
A palavra solidariedade origina-se de sólido (em latim solidum), o que lhe
imprime um sentido de estar sobre bases firmes. Estar com outros na mesma
situação, ter interesses comuns. A expressão do senso comum que talvez melhor
defina solidariedade seja: "um por todos e todos por um" (Schönig,
1996:101). Nesta sentença, solidarizar-se significa colocar-se conscientemente
no lugar do outro. Identificar-se com o destino do outro. O que acontece ao
outro é experimentado como se tivesse ocorrido a cada um. O indivíduo se
identifica com o grupo e o grupo se identifica com o indivíduo (Baumgartner,
1997:30). Assim, solidariedade é relação de responsabilidade entre pessoas
unidas por interesses comuns, de maneira que cada elemento do grupo sinta a
obrigação moral de apoiar os outros.
Enquanto princípio moral na tradição judaico-cristã, a solidariedade vincula o
indivíduo a uma comunidade fundamental, na qual todos homens e mulheres são
portadores de dignidade pessoal em virtude de serem criados por Deus à Sua
imagem e semelhança (Baumgartner, 1997:30). Nessa tradição, como tal princípio
advém da comunhão de pertencimento à comunidade humana de seres dignos, recebe
valor universal. Refere-se a todos os seres humanos, valendo para toda situação
em que a realização de vida digna esteja obstaculizada.
Na tradição socialista, a solidariedade provém do pertencimento à mesma classe
social. É o interesse comum de classe que imprime a cada um a obrigação moral
de responsabilizar-se pelo destino do outro. Este é o sentido em que o termo
solidariedade foi empregado nas lutas dos trabalhadores no século passado,
enquanto solidariedade de classe social. Nesta acepção, o reconhecimento de um
'nós' inclusivo de um 'estamos no mesmo barco' e a identificação com o
destino do outro são decorrências do pertencimento comum de classe.
Ao final do século passado, essa solidariedade espontânea de classe expressava-
se em Caixas autônomas de ajuda mútua organizadas pelos trabalhadores que foram
incorporadas na legislação social. Por isso, alguns autores referem-se a uma
solidariedade coercitiva em razão de a filiação ao seguro social ser legalmente
obrigatória e ter substituído iniciativas próprias dos trabalhadores (Koch,
1995). A solidariedade teria nesta acepção duas facetas. Uma, coercitiva,
imposta pelo sistema de seguro social. Outra, espontânea, de classe,
democrática/política, exercitada pelos trabalhadores.
É com sua institucionalização nos diversos ramos do seguro social que o
princípio de solidariedade vem a ser implicitamente definido. Operacionalmente,
para o seguro social como um todo, o princípio da solidariedade é vínculo que
responsabiliza cada segurado pelos encargos do conjunto. Significa que o ônus
de cada um deve ser redistribuído no interior de uma comunidade solidária
(Schulemburg, 1990:317).
Em virtude da centralidade no trabalho assalariado, o seguro social tem por
base a solidariedade de grupo. Os grupos são constituídos de modo mais ou menos
homogêneo. Definem-se conforme a posição ocupada na produção, excluindo-se do
seguro obrigatório as remunerações muito altas e muito baixas. Desse modo, o
princípio da equivalência condiciona a solidariedade e esta se exerce de forma
partida. Essa forma de segmentação na garantia da cidadania social segundo a
inserção no mercado de trabalho é característica do modelo de seguro social.
Neste modelo, a redistribuição ocorre tipicamente apenas entre os integrantes
de mesmo grupo ocupacional. Tradicionalmente, a inclusão no seguro social
distinguiu operários de empregados e trabalhadores dos diversos ramos da
produção. Estes estariam submetidos a diferentes riscos e deveriam formar
grupos distintos.
A conformação de grupos com certa homogeneidade, tendo como finalidade
facilitar o exercício da solidariedade grupal, seria a justificativa para a
exclusão de grupos de assalariados com remunerações muito altas e muito baixas,
tal como para a definição de nível máximo de renda para as contribuições
obrigatórias. Assim, o apelo a contribuir solidariamente não tensionaria demais
os interesses individuais e não afetaria a coesão do grupo. Essas exclusões
evitariam que a disposição dos indivíduos de maior renda para a solidariedade
fosse sobredistendida.
O significado do exercício da solidariedade modificou-se no processo de
expansão do seguro social. Inicialmente, a comunidade solidária era entendida
como composta por um grupo de indivíduos de mesma camada social, os operários
industriais. Atualmente, a redistribuição se dá entre diferentes estratos
sociais.
Esta evolução da proteção social da Alemanha subentende a ampliação da
solidariedade de grupo, uma vez que tanto os grupos tornaram-se cada vez mais
abrangentes, como o financiamento por meio de recursos fiscais adquiriu maior
importância com o passar do tempo.
O seguro social de doença é o ramo do seguro social em que o princípio da
solidariedade adquire maior importância. Enquanto nas outras áreas do seguro
social vigora uma equivalência mediada pela solidariedade, no seguro social de
saúde impera o princípio da necessidade, o que o torna um sistema cunhado pelo
princípio da solidariedade. Os segurados recebem assistência na medida de suas
necessidades de saúde e contribuem de acordo com sua capacidade financeira.
Idade, sexo, risco de adoecer, estado de saúde e composição familiar não são
levadas em conta no cálculo das contribuições.
As contribuições dos segurados enquanto proporção de seus salários são
dependentes de suas possibilidades financeiras. O direito à atenção conforme a
necessidade é independente do valor das contribuições, isto é, da capacidade de
financiamento de cada indivíduo (Nullmeier & Vobruba, 1995:21).
Apesar de a proteção à saúde ser solidária e abrangente, é necessário relembrar
que a solidariedade é restrita aos integrados ou àqueles com disposição para
participar no mercado de trabalho. Além disso, nem toda a população empregada é
obrigatoriamente assegurada.
A vigência do princípio da solidariedade produz redistribuição no interior do
seguro social de doença. Contribuições proporcionais à renda e direito a
benefícios correspondentes às necessidades levam a efeitos distributivos para
muito além das técnicas de seguro de compensação de riscos. Entre os incluídos,
os trabalhadores em melhor situação financeira contribuem para a satisfação das
necessidades dos economicamente mais fracos. Os sadios ou os que adoecem menos
freqüentemente pagam para os doentes; os segurados sem dependentes, para os
segurados com dependentes; e, por fim, os mais jovens, para os mais velhos.
Embora esta redistribuição seja preferencialmente horizontal, isto é, ocorra no
interior de mesma "comunidade" de trabalhadores submetidos a certos
riscos comuns, também é vertical quando é feita daqueles que recebem melhor
remuneração para os que obtêm pior remuneração, mas não se realiza diretamente
entre os grupos mais bem remunerados e aqueles em pior situação econômica. A
redistribuição efetua-se com primazia entre os grupos com baixo risco de
adoecer e maior remuneração e aqueles com alto risco de adoecer e baixa renda.
É igualmente uma redistribuição entre jovens e velhos o chamado contrato
intergeracional. O seguro social de saúde dos aposentados é deficitário. A
receita das contribuições pagas por aposentados (50%) e pela previdência social
(50%) correspondente ao que seria o encargo dos empregadores não é
suficiente para cobrir as despesas com saúde dos aposentados. Uma parte das
contribuições dos trabalhadores ativos equivalente a cerca de três pontos
percentuais financia o déficit do seguro social de doença dos aposentados
(Oldigen, 1994:73). Além disso, a redistribuição de renda no seguro doença
também se processa dos segurados sem dependentes para os segurados com
dependentes sem rendimentos, já que vigora uma compensação sobre o peso da
família.
Tradicionalmente, esta redistribuição foi restrita ao interior do grupo de
segurados de cada Caixa de Doença Krankenkasse , organizadas por ocupação,
região ou empresa e com adscrição compulsória de clientelas. Todavia, a partir
de 1993, a redistribuição foi ampliada para o conjunto do sistema pela Lei da
Estrutura da Saúde. Com o intuito de introduzir a competição entre as Caixas,
esta lei ampliou a liberdade de escolha das Caixas pelo trabalhador. A
liberdade de escolha, anteriormente restrita a certos grupos ocupacionais, foi
estendida para a maioria dos segurados. Ao mesmo tempo, com o intuito de evitar
uma competição predatória, foi criado um mecanismo de transferências
financeiras entre as Caixas, objetivando a compensação da estrutura
diferenciada de riscos de seus segurados.
Por meio deste mecanismo, a redistribuição rompeu os limites da comunidade de
segurados de cada Caixa, o que levou à redução da amplitude das diferenças
existentes entre as taxas de contribuição das diversas Caixas. As taxas de
contribuição, até então, eram bastante diferenciadas, em virtude da adscrição
compulsória de segurados a distintos tipos de Caixas, conforme sua inserção no
processo produtivo.
Para Offe (1990:181), a redistribuição que ocorre no âmago do sistema é não
intencional. A redistribuição que ocorre entre pessoas sadias e doentes, entre
necessitados de terapias mais caras e mais baratas, entre famílias com e sem
crianças, entre pessoas que morrem cedo e que vivem mais, não é
estrategicamente desejada. Os efeitos de redistribuição decorrem de
circunstâncias naturais da existência humana, são contingentes.
Os segurados reconhecem a validade da redistribuição que ocorre no interior do
sistema expressão do princípio de solidariedade. Pesquisas de opinião e
análises qualitativas têm demonstrado que o efeito redistributivo em favor dos
mais idosos, doentes crônicos e familiares dependentes é desejado pelos
segurados (SVR, 1994; Ulrich et al., 1994; Braun, 1995; Rinne & Wagner,
1995). A aceitação da redistribuição, porém, não decorre sobretudo do alto
valor atribuído à solidariedade. As justificações normativas para a
solidariedade têm papel subordinado para a aceitabilidade do sistema. Cálculos
comuns, não financeiros, de interesse individual é que garantem a
aceitabilidade do sistema (Ulrich et al., 1994). Trata-se de um cálculo de
interesse intertemporal que torna aceitável o sistema solidário: a expectativa
de utilização e a confiança na garantia de atenção futura.
Embora poucos sejam os que se consideram na posição de favorecidos pela
redistribuição, ou seja, conquanto a grande maioria dos entrevistados assuma a
posição de quem paga pela redistribuição, esta posição é avaliada de modo
positivo. A garantia da possibilidade de uso segundo o princípio da
necessidade, na qual os segurados incluem suas expectativas de utilização
futura, torna a redistribuição aceitável (Ulrich et al., 1994:356). A
compensação é estar sadio e o fator tempo exerce aí papel fundamental. O
sistema garante a reciprocidade no caso de mudança de posição em razão da
expectativa de maior utilização futura. Quanto mais idoso for um indivíduo,
maior será sua necessidade de atenção, havendo assim a perspectiva de
redistribuição intertemporal em benefício de cada um.
Considerar a redistribuição pelos segurados como primariamente intertemporal
da juventude para a velhice mais do que interpessoal, bem como não desejar a
mudança de posição ninguém deseja ficar doente para utilizar mais serviços ,
faz com que a posição de pagante-líquido (avaliam que pagam mais do que gastam
com a utilização) seja apreciada como positiva (Ulrich et al., 1994:370).
Os segurados têm confiança na estabilidade da garantia de proteção em situações
futuras que ultrapassem sua capacidade de pagamento. Valorizam positivamente
suas experiências de utilização e levam em conta que, no futuro, a atenção da
qual necessitarem estará garantida, demonstrando alta satisfação com o sistema
solidário (SVR, 1994; Ulrich et al., 1994; Braun, 1995; Rinne & Wagner,
1995). Para a maioria dos segurados, o sentimento de segurança baseia-se na
forma de organização do sistema, tida como a mais adequada para o asseguramento
do risco de doença: um sistema obrigatório e solidário a futura utilização
não está vinculada à capacidade de financiamento de cada um e dependerá da
necessidade.
3) Subsidiariedade
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Outro dentre os princípios básicos do seguro social de doença, segundo o Código
Social alemão Sozialgesetzbuch , é o princípio de subsidiariedade. Segundo
este, a responsabilidade primeira pela saúde é do indivíduo e de sua família. O
Estado deve tomar a seu encargo apenas aquilo que os indivíduos ou famílias não
estão em condições de garantir: "a compensação solidária deve ser uma
ajuda para a auto-ajuda" (BMAS, 1994:140).
O quinto livro do Código Social, que trata especificamente do seguro social de
doença, apela para a responsabilidade própria dos segurados: "Os segurados
são co-responsáveis por sua saúde. Eles devem contribuir para a prevenção das
doenças e da incapacidade e a superação de suas conseqüências, através de uma
conduta de vida conscientemente saudável e uma participação precoce em medidas
preventivas, bem como através da cooperação ativa no tratamento das doenças e
na reabilitação" (BRD, 1993:109).
A vigência do princípio de subsidiariedade no seguro social de doença significa
que os riscos dos custos da doença somente devem ser garantidos por uma
comunidade solidária maior quando o indivíduo ou sua família por si mesmos não
estiverem em condições de superar o risco. Este princípio justifica a definição
de limite máximo de renda para a obrigatoriedade de participação no seguro
social. Quem recebe acima de determinada quantia, delimitada por lei, deve
prover por seus próprios meios, privadamente, a sua proteção mediante a compra
de seguro privado ou da formação de poupança.
No decorrer de mais de cem anos de história do seguro social de saúde, o
princípio da subsidiariedade foi perdendo força na estruturação do sistema.
Originalmente, este princípio tinha maior importância, pois o grupo de
segurados obrigatórios era pequeno e a extensão dos benefícios era baixa. Com a
ampliação do catálogo de ações médico-sanitárias e a inclusão de parcela cada
vez maior da população, seu significado foi passando de modo gradual para
segundo plano (Schulemburg, 1990: 315).
A subsidiariedade perdeu importância em razão da incorporação de novos ramos de
serviços e ações que tradicionalmente estavam a cargo da família. Os cuidados
dispensados aos velhos, por exemplo, tradicionalmente quase que restritos à
comunidade familiar, foram assumidos progressivamente pelo seguro doença até
1994, quando foi criado novo ramo do seguro social: o seguro social de cuidados
de longa duração Pflegeversicherung , que assegura cuidados domiciliares e
asilares, sobretudo para idosos. Este caso exemplifica de modo claro uma
necessidade que anteriormente era coberta apenas de forma subsidiária e que foi
incorporada pela solidariedade.
No momento presente, é na assistência social que vigora integralmente o
princípio da subsidiariedade. A assistência social na verdade, externa e
complementar ao sistema de seguro social elucida bem o princípio da
subsidiariedade: apenas quando o indivíduo e sua família estão impossibilitados
por seus próprios meios é que o Estado pode intervir.
O princípio de assistência pressupõe financiamento fiscal sem contribuições
diretas dos beneficiários, mas o auxílio só se concretiza pela comprovação da
carência. Uma prova da necessidade é decisiva para o direito ao benefício e
para definir o tipo e a extensão da assistência social, a qual é ajuda
individualizada, ajustada à situação de cada caso e deveria ser, ao mesmo
tempo, subsidiária: complementar à ajuda própria e ao auxílio dos familiares
(Frerich, 1996:35).
Em virtude da ampla cobertura e da extensão do catálogo de ações, o princípio
da subsidiariedade não caracteriza a prática atual do seguro social de doença.
Entretanto, esta definição está hoje no centro da argumentação por políticas de
contenção. No debate atual, alguns autores chegam a questionar se a grande
maioria da população coberta pelo seguro social de doença é, de fato,
necessitada de proteção (Schulemburg, 1990).
A reatualização contemporânea do significado de subsidiariedade justifica uma
breve recuperação do debate sobre este princípio. O seu significado ainda é
objeto de controvérsia e sua discussão tem assumido diferentes ênfases.
Na Alemanha, o debate sócio-político sobre a questão da subsidiariedade mantém
sua vitalidade há mais de um século (Deppe, 1985; Sachsse, 1994). Tal debate
tem adquirido importância reiteradamente em períodos de crise e altos índices
de desemprego (Deppe, 1985), e, desde os anos 80, com a coalizão liberal
conservadora no poder, tem sido evocado como fundamento para a maioria das
reformas conservadoras.
As mais diferentes discussões acerca da ordem política deixam-se subsumir ao
termo subsidiariedade: debates sobre a relação entre auto-responsabilidade e
regulação estatal, assistência social pública e beneficente, pequenas redes
sociais e grandes organizações burocráticas.
No que diz respeito ao seguro social, sua preponderância inicial explica o
caráter restritivo do sistema: a pouca abrangência do grupo de segurados e os
benefícios estritos. Desde o início, a discussão sobre subsidiariedade
desenvolve-se segundo duas linhas principais de interpretação: uma, de caráter
liberal de defesa da livre iniciativa , e outra, de maior influência na
implementação deste princípio na Alemanha, advinda da doutrina social católica.
Uma das raízes do princípio de subsidiariedade encontra-se no pensamento
liberal dos séculos XVIII e XIX (Sachsse, 1994:718), segundo o qual, a
sociedade era concebida como autônoma: uma sociedade de trocas auto-reguladas
pelas leis de mercado, na qual o indivíduo sujeito livre de qualquer coerção
e auto-responsável socializa-se. O Estado, concebido como esfera distinta da
sociedade e responsável pelo exercício legítimo da violência, teria
essencialmente como tarefa a garantia das condições gerais de sociabilização
Vergesellschaftung da sociedade de trocas. A garantia da existência deveria
ser deixada à iniciativa própria do indivíduo, porque, na concepção liberal, a
reprodução pertence à esfera privada, é responsabilidade primária do indivíduo.
A responsabilidade do Estado deveria ser restrita apenas a situações
excepcionais, nas quais o indivíduo não consegue garantir sua existência por
seus próprios meios, suprindo suas necessidades no mercado. Ou seja, a atuação
do Estado deveria ser subsidiária, o que garantiria a liberdade individual
(Sachsse, 1994).
Como a ajuda é subsidiária quer dizer, é complementar, vem em segunda linha
, a necessidade tem que ser comprovada. A subsidiariedade legitima os chamados
testes de meios como condição de elegibilidade para acesso aos benefícios. Este
princípio que seria para os liberais, antes de tudo, defesa da esfera
privada, da liberdade individual é que permite a intromissão, por vezes
drástica, do Estado na vida privada dos indivíduos (Deppe, 1985:85).
Em síntese, na tradição do pensamento social liberal, subsidiariedade refere-se
a uma distribuição da responsabilidade social entre indivíduo, comunidade e
Estado, em que a auto-responsabilidade individual tem precedência sobre a
proteção e a segurança estatais (Sachsse, 1994:718).
A outra linha de interpretação do princípio de subsidiariedade está no
pensamento social católico. Na Alemanha, pela forte ascendência da doutrina
católica no que se refere à difusão deste princípio, a vigência da
subsidiariedade adquire conotação diferente da concepção plenamente liberal.
O catolicismo social alemão delimitou seu campo político em contraposição tanto
ao liberalismo, como ao socialismo (Sachsse, 1994: 725). Como a igreja exerceu
influência na conformação do próprio Estado Social, a subsidiariedade serviu
para enfatizar que o Estado somente interferiria quando a capacidade da família
estivesse exaurida (Esping-Andersen, 1990: 27). Embora há muito difundido pela
doutrina católica, o termo apenas foi explicitamente referido na Encíclica
Social Quadragesimo Anno, de 1931, em contexto de avanço do socialismo e de
expansão de doutrinas totalitárias na Europa (Baumgartner, 1997).
Na formulação clássica dessa Encíclica, subsidiariedade é princípio de
equilíbrio no campo de tensão entre a intervenção estatal e a liberdade
societal. A liberdade de iniciativa individual é afirmada e a intervenção
estatal é considerada como de apoio, subsidiária às iniciativas individuais ou
de grupos subordinados. "O que cada um a partir de sua própria iniciativa
e com suas próprias forças pode produzir-conseguir não lhe deve ser subtraído e
destinado à atividade da Sociedade (Estado), pois deste modo repudia-se a
justiça. O que as coletividades pequenas e sub-ordenadas podem fazer e levar a
bom cabo ser tomado como direito das demais comunidades sobre-ordenadas, é
simultaneamente e antes de tudo, prejudicial e perturba toda a ordem social. A
atividade da sociedade (Estado) é em sua essência e conceito subsidiária: ela
deve apoiar os membros do corpo social, mas nunca lhe é permitido destroçá-los
ou absorvê-los." (Quadragesimo Anno, 1931, apud Baumgartner, 1997:35;
Quadragesimo Anno, 1931, apud Deppe, 1985:84.)
Assim, o Estado não deveria subtrair às famílias as tarefas que elas mesmas
estão em condições de preencher. A auto-ajuda deveria ser promovida e
possibilitada. E, após uma bem-sucedida 'ajuda para a auto-ajuda', a
comunidade/Estado deveria novamente retirar-se (Schönig, 1996:102). Além disso,
para a igreja católica, a subsidiariedade seria o corretivo contra o excessivo
coletivismo: "a arma e o muro de proteção contra tudo o que o coletivismo
é, e o que leva ao coletivismo" (Nell-Breuning, 1955, apud Deppe, 1985:
84).
Na concepção da doutrina católica, a sociedade é composta organicamente por
variado conjunto de coletividades dispostas em círculos ou cascas concêntricas
(como uma cebola). Cada coletividade menor teria, frente às maiores, a
responsabilidade primeira pela conformação de vida de seus membros. Um possível
entendimento seria o seguinte: antes de tudo, o indivíduo deve se auto-ajudar;
quando ele tiver esgotado esta possibilidade, a família deve auxiliá-lo;
unicamente depois de efetuado este apoio é que deve atuar o município, para
então interferir o estado e, posteriormente, a união (Frerich, 1996:32).
Para outros representantes da doutrina social católica, no entanto, o princípio
de subsidiariedade não afirma incondicionalmente que os indivíduos e as
pequenas comunidades devam atuar primeiro e, somente após terem esgotado todas
as suas forças, é que a sociedade e o Estado devem intervir. Estes reformistas
sociais católicos defendem que, antes que homens e mulheres possam colocar suas
próprias forças em movimento, é necessário que a sociedade já tenha realizado
uma série de medidas (Nell-Breuning, 1957, apud Engelhardt, 1994:740). Os
riscos sociais não podem ser combatidos apenas pelo indivíduo; a sociedade tem
que garantir condições prévias para a promoção de cada um. Mais que assegurar
igualdade de oportunidades, esta intervenção seria uma 'ajuda para a auto-
ajuda'. No dito "não dê ao pobre o peixe, ensine-o a pescar", se
fossem enfatizadas as tais condições, a frase completa seria: promova os meios
para que possa adquirir e manejar os instrumentos de pesca.
Esta é a reformulação da concepção de subsidiariedade da doutrina cristã alemã
efetuada no final dos anos 50 por Nell-Breuning. Segundo este reconhecido
representante da doutrina social católica, a sociedade/Estado deve garantir as
precondições para auto-ajuda. Para que o indivíduo possa empregar suas forças
com êxito, torna-se necessária uma série de medidas prévias por parte do
Estado. Além disso, as coletividades menores teriam também o direito a
reivindicar auxílio às coletividades sobreordenadas.
Ao mesmo tempo, para a doutrina social católica, subsidiariedade e
solidariedade não são noções contraditórias. O princípio da subsidiariedade
pode ser entendido como contrário ao princípio da solidariedade, em virtude de
o primeiro representar o pensamento liberal no qual a intervenção do Estado
deve se dar apenas nos caso em que o indivíduo não possa suprir sua necessidade
no mercado , e o segundo, o valor socialista, de igualdade em que a
redistribuição objetiva a equalização de benefícios líquidos individuais
(Pereira, 1990: 413). Entretanto, na acepção da doutrina social católica, o
princípio da subsidiariedade seria imanente à idéia de solidariedade, pois a
subsidiariedade enfatiza a auto-responsabilidade do indivíduo não apenas por si
mesmo, mas também pelo conjunto da comunidade solidária à qual pertence
(Frerich, 1996:32; Baumgartner, 1997:32).
O pensamento social católico diferencia-se do liberal clássico nesta ênfase da
necessidade de o Estado garantir as precondições para a promoção do
desenvolvimento das potencialidades de cada família, no direito das comunidades
menores em relação às maiores e na consideração da família e não do indivíduo
como núcleo social básico (Deppe, 1985; Sachsse, 1994). Estas são as
características imprimidas ao princípio de subsidiariedade na conformação da
proteção social alemã em razão da influência da igreja católica. A questão da
solução das necessidades via mercado, embora presente pelo lado liberal, teve
menor destaque.
O debate sobre a subsidiariedade no transcorrer do século 20 assumiu diferentes
ênfases. Em geral, este debate foi mais voltado para a questão da assistência
social, em que a igreja tem tradicionalmente maior participação por meio das
suas entidades filantrópicas, mas atualmente adquire também relevância para a
área da saúde em especial, por causa da influência do neoliberalismo.
Contemporaneamente, alguns autores levantam a necessidade do debate de nova
subsidiariedade, a qual objetivaria a substituição da condução externa
regulativa por uma autocondução situacional (Sachsse, 1994:734; Wilke, 1996).
Assim, a subsidiariedade descreveria a relação entre subsistemas autônomos
auto-referenciados, que não conhecem nem ponta nem centro (Luhmann, 1981, apud
Sachsse, 1994:734).
No debate acadêmico atual, na área da saúde, podem-se observar duas concepções
distintas para a subsidiariedade. Uma, que defende entendimento mais restrito e
apela para a auto-responsabilidade dos indivíduos (Schulemburg, 1990; Arnold,
1993). Estes devem, antes de tudo, auto-ajudar-se e solicitar o apoio de sua
família para depois recorrer aos benefícios sociais do Estado. Outra corrente,
preocupada com a manutenção de um sistema solidário, retoma as formulações
sobre subsidiariedade do político social católico Nell Breuning. Para este
reformador social católico, como mencionado acima, a sociedade deve criar
condições e pressupostos sob os quais cada indivíduo possa exaurir as próprias
possibilidades. Nesta concepção, subsidiariedade deixa de ser antagônica à
solidariedade, e as ações devem ser prestadas por aquelas instituições
consideradas como mais adequadas para tal (Reiners, 1987).
Por conseguinte, nessa linha de pensamento, a forma atual do seguro social de
doença é o sistema mais adequado para uma 'economia social de mercado'
(denominação atribuída ao modelo alemão pelos democratas-cristãos). A
pluralidade de Caixas, com sua especificidade para algumas profissões, seria
expressão da subsidiariedade. Caixas diferenciadas corresponderiam a exigências
de determinadas regiões ou profissões. Os mineiros e agricultores, por exemplo,
possuem Caixas próprias, com condições especiais de financiamento e subsídio
estatal direto.
Nos anos 90, o debate sobre o princípio da subsidiariedade, em especial na área
da saúde, foi revitalizado. Atualmente, pode-se dizer que o fortalecimento do
princípio de subsidiariedade expresso em todas as proposições de estímulo à
auto-responsabilidade corresponde à premissa neoliberal de mais mercado/menos
Estado.
Privatização de riscos, seletividade e focalização princípios neoliberais
para a área social são defendidos tendo por fundamento a subsidiariedade da
intervenção estatal. Subsidiariedade é o princípio básico da política social
focal. Política focal é, em essência, o conjunto de medidas definido para
minorar os problemas sociais apenas de extratos populacionais mais expostos aos
riscos, selecionados com base em algum critério.
No debate atual, a defesa da subsidiariedade significa a retirada da garantia
de asseguramento coletivo de riscos, tanto pela diminuição da participação
estatal, quanto mediante a redução da parcela da provisão garantida
solidariamente via seguro social.
De todo modo, o recurso à subsidiariedade não leva necessariamente à completa
retirada do Estado. Embora o apelo atual para auto-responsabilidade em nome da
subsidiariedade tenha como propósito limitar e/ou dispensar a ajuda estatal,
subsidiariedade, mesmo em seu sentido mínimo, tem dupla implicação. Ao mesmo
tempo que a intervenção estatal deve ser apenas complementar, a vigência da
subsidiariedade significa que o Estado intervém em alguma medida. Assim, apelar
à subsidiariedade significa rediscutir a 'justa' medida da intervenção estatal
e não a retirada do Estado.
Considerações finais
Como vimos nos tópicos anteriores, no modelo de seguro social, a centralidade
no trabalho assalariado implica que características das relações do mercado de
trabalho sejam transpostas para a base da política social, cristalizando
desigualdades, mas, ao mesmo tempo, o Estado Social nega parcialmente os
mecanismos de mercado ao assegurar a satisfação de necessidades sociais
politicamente definidas. Neste modelo de proteção, o objeto das disputas
políticas o conflito básico está na adequação entre mérito e necessidade,
isto é, em que medida os direitos sociais devem corresponder às necessidades de
cada indivíduo ou ao seu mérito.
Embora estruturado com base no mérito, uma concepção de distribuição está
embutida em diversas áreas do seguro social. Necessidades politicamente
definidas fazem parte da estruturação do sistema, e, uma vez que o princípio da
necessidade também se faz valer, independente da capacidade contributiva do
indivíduo, a solidariedade toma força no interior do sistema. O princípio de
justiça distributiva conforme as necessidades presente no sistema de seguro
social, não deve assim ser subestimado.
Há uma constante tensão entre os princípios constitutivos do seguro social
equivalência/mérito, solidariedade/necessidade e subsidiariedade. A vigência
plena dos princípios de equivalência e subsidiariedade é contraditória ao
exercício da solidariedade. Ao passo que a solidariedade pressupõe alguma
redistribuição, a equivalência dos benefícios às contribuições o direito a
benefícios conforme o 'mérito' nega esta possibilidade, e a subsidiariedade
restringe a comunidade solidária. A solução encontrada para este conflito,
assim como para as contradições inerentes ao somatório dos elementos de
natureza distinta civil, político e social da cidadania (Fleury, 1997:38),
resulta da correlação de forças em cada momento (Esping-Andersen, 1990). O
ponto de equilíbrio temporário entre a solidariedade e a subsidiariedade, bem
como entre a solidariedade e a equivalência, é politicamente definido em cada
conjuntura.
No seguro social de doença, impera o princípio da necessidade. Ao garantir a
todos os segurados a utilização de serviços de saúde conforme a necessidade e
independente do valor das contribuições, o seguro social de saúde subsume a
equivalência à solidariedade. A precedência do princípio da necessidade sobre o
princípio da equivalência atenua as características conservadoras do modelo de
seguro social alemão de cristalização das desigualdades produzidas pela
participação no mercado de trabalho. Além disso, a expansão e a uniformização
do catálogo de serviços e benefícios e a progressiva inclusão de camadas cada
vez mais abrangentes da população acoplada às possibilidades de emprego quase
pleno deram feição fortemente universal ao sistema atual.
Dessa forma, historicamente, com os processos de inclusão e expansão do seguro
social de doença, o princípio da solidariedade suplantou os princípios de
equivalência e de subsidiariedade. No processo atual de contenção, corre-se,
porém, o risco de uma revitalização destes princípios. A tensão sempre
existente entre a garantia de proteção conforme o mérito ou a necessidade, e
entre a responsabilidade individual e aquela da comunidade solidária, tornou a
aumentar.
Atualmente, a discussão sobre a subsidiariedade volta a ter destaque e sua
vigência é reatualizada em especial por meio da majoração do co-pagamento.
Recentemente (junho de 1997), a coalizão liberal-conservadora no poder,
rompendo com a tradição anterior de soluções corporativamente negociadas, fez
valer a sua maioria parlamentar e aprovou mecanismos de privatização da
demanda, como o forte aumento dos valores de co-pagamento e a abertura da
possibilidade de introdução de elementos próprios dos seguros privados: a
restituição de despesas, o estabelecimento de franquias e prêmios pela não-
utilização.
Embora existam mecanismos que atenuem a participação direta nos gastos pelos
usuários pertencentes às camadas de renda mais baixa e ainda que a proporção
estimada do co-pagamento no conjunto dos gastos do seguro social de doença
alemão, mesmo com os aumentos, permaneça em nível inferior ao de outros países
europeus, esta clara opção por mecanismos que penalizam pacientes e segurados
de menor renda afeta os princípios básicos do seguro social de doença. Provoca
impacto negativo sobre o princípio da solidariedade, sob a alusão de fortalecer
a subsidiariedade. Para o aumento da participação dos pacientes nos custos da
doença, é evocada a necessidade de fortalecimento da auto-responsabilidade de
cada indivíduo, reativando a concepção de subsidiariedade prevalente quando da
instituição do seguro doença ao final do século passado.
Deste modo, contemporaneamente, a tendência é de reforço à subsidiariedade
com base na qual a coação à ampliação da responsabilidade individual
concretiza-se na privatização de riscos via co-pagamento , e há indícios de
retorno da equivalência, pois poderá vir a ocorrer um reordenamento dos
segurados em Caixas de primeira e segunda classe não mais por profissão, e,
sim, por nível de renda. O aprofundamento de desigualdades poderá, assim, vir a
ser um dos resultados da competição entre as Caixas, possibilitada pela
ampliação da liberdade de escolha das Caixas pelos segurados definida com a
Lei da Estrutura da Saúde de 1993 , e da introdução de mecanismos do seguro
privado como novas opções para estabelecimento de contratos, abertas com as
Leis de Reordenação do Seguro Social de Doença de 1997.
Não obstante essas medidas recentes possam vir a afetar de modo negativo o
princípio da solidariedade, isto não implica necessariamente o desmantelamento
do sistema. Se, por um lado, o seguro social poderá vir a permanecer estável,
pois a segmentação e a reprodução de privilégios são intrínsecas a este modelo
de proteção social, por outro, a identificação de tendências não significa a
sua concretização. O sistema atual mantém uma alta aceitabilidade e, na
realidade, embora tenham ocorrido algumas restrições, a proteção social ao
risco de adoecer na Alemanha permanece ampla e invejável, garantindo atenção à
saúde em todos os níveis de complexidade a 90% da população.
Agradecimentos
A elaboração deste artigo foi possibilitada por bolsa de doutoramento sanduíche
concedida pela Capes, com estágio realizado no Institut für Medizinische
Soziologie der J. W. Goethe Universität em Frankfurt am Main, entre abril de
1996 e junho de 1997.