Indivíduo e a mudança nas organizações de saúde: contribuições da
psicossociologia
Introdução
A grave crise que o setor saúde no Brasil vem enfrentando nos últimos anos se
expressa como uma crise de governabilidade do sistema e das organizações de
saúde, de resolutividade e eficiência. Esta crise tem impulsionado experiências
inovadoras no que se refere tanto ao desenho de novos sistemas de gestão, como
ao desenvolvimento de ferramentas gerenciais. Apesar de todas as dificuldades
para desenvolver processos de mudança nas organizações, tais experiências têm
possibilitado a democratização dos processos decisórios, o acúmulo de
conhecimentos sobre a problemática específica da gestão em saúde e uma maior
visibilidade dos projetos institucionais.
Essas experiências são inspiradas em duas grandes matrizes teórico-
metodológicas: o enfoque estratégico de planejamento e gestão e a abordagem da
gestão da qualidade total. Apesar dos avanços alcançados, é preciso reconhecer
os limites dessas perspectivas para subsidiar os processos de mudança
organizacional.
As duas abordagens consideram a dimensão humana presente nos processos
organizacionais e reforçam os processos participativos. O enfoque estratégico,
não obstante reconhecer a incerteza, aposta na possibilidade do cálculo
racional sobre o comportamento humano como instrumento para mudança. A
abordagem da gestão da Qualidade Total (GQT), embora reconheça a dimensão
cultural na vida organizacional, limita-se a um tratamento instrumental das
relações humanas nas organizações, negando inclusive o seu caráter conflitivo.
A gestão da qualidade total
Qualquer balanço que se faça sobre a difusão de novas idéias e proposições no
campo das teorias administrativas durante os últimos vinte anos, sem dúvida,
irá apontar a GQT como a abordagem mais bem-sucedida neste intento. Ao longo
desse período, a GQT, veiculada nas versões de seus principais autores - Deming
(1990), Garvin (1988), Ishikawa (1993) e Juran & Gryna (1991), ganhou
contornos de uma espécie de movimento social, cruzando todas as sortes de
fronteiras: do Japão aos países ocidentais, das empresas privadas até a
administração pública, da esfera estritamente industrial para organizações do
setor de serviços, como saúde e educação. Difusão em tal escala, que hoje é
difícil imaginar alguma organização de médio ou grande porte que não tenha
experimentado ou, então, que não expresse interesse em vir a empregar tais
métodos em sua administração.
No campo específico da saúde, embora essa propagação tenha sido mais tardia e a
implementação da Qualidade Total enfrente ainda dificuldades de natureza
metodológica - em face do desafio da melhoria dos processos clínicos - e
organizacional - em virtude da resistência e da baixa adesão em geral observada
entre os profissionais médicos -, verifica-se mesmo assim um percentual
bastante alto de adoção de projetos de GQT. Como ilustração, vale mencionar os
sistemas de acreditação hospitalar, mecanismo já consagrado de avaliação da
qualidade da assistência em saúde, que acabaram incorporando a perspectiva
gerencial da Qualidade Total como base do seu processo de análise das
organizações de saúde.
Evidentemente, esse boom veio acompanhado por controvérsias de diversas ordens,
aqui esquematicamente separadas em dois grandes blocos. Em primeiro lugar,
aparecem as críticas associadas ao acúmulo de resultados pouco expressivos
quando da aplicação dos princípios, das práticas e técnicas preconizadas pela
GQT. Essas evidências frustrantes contrastavam fortemente com as promessas
anunciadas e as expectativas geradas em torno da GQT, servindo, em certa
medida, de justificativa para o lançamento de mais uma "nova"
perspectiva gerencial no início dos anos 90 - a reengenharia. De toda maneira,
a reação dos teóricos e adeptos da Qualidade Total perante tais resultados foi,
em geral, associá-los não propriamente a falhas ou a insuficiências do enfoque,
mas meramente a problemas restritos ao processo de implementação dessas idéias,
como, por exemplo: (a) o baixo engajamento das lideranças organizacionais nesse
projeto; (b) o limitado esforço de treinamento de pessoal nas técnicas de
trabalho em equipe ou no manuseio das ferramentas de controle estatístico de
processos; (c) o curto período de desenvolvimento do programa para a maturação
das mudanças organizacionais pretendidas (Hackman & Wageman, 1995).
Um outro terreno privilegiado de discussão em torno do enfoque da Qualidade
Total, de maior interesse para o presente trabalho, foi nos âmbitos teórico-
conceitual e político-ideológico. Apresentada por seus apologistas como um novo
e revolucionário paradigma para a gestão das organizações, teóricos da área
viriam a interrogar justamente sobre a contribuição específica, em termos de
originalidade e inovação, aportada pela GQT. Ou seja, questionava-se em que
medida essa abordagem constituía-se de fato em uma nova filosofia gerencial,
com uma compreensão própria e bem fundamentada sobre o funcionamento e a gestão
das organizações (Tuchi, 1997).
Já no plano político-ideológico, o debate concentrou-se em torno das
proposições de empowerment e de participação dos trabalhadores no processo de
mudança e de melhoria contínua da organização. Afinal, interrogava-se sobre o
caráter ou o sentido dessas propostas, se efetivamente libertário e
emancipador, conforme advogado, ou apenas mais uma tentativa de se
instrumentalizar e manipular com nova roupagem o comportamento desses
trabalhadores, com vistas ao melhor desempenho das empresas.
Naturalmente, essa polêmica política e teórica em torno da GQT segue em aberto,
e são inúmeras as razões para isso. O caráter assumidamente ideológico dessa
discussão implica de antemão reconhecer a impossibilidade de conclusões
inequívocas. De outra parte, trabalhos discutindo o valor ou o impacto da
Qualidade Total apóiam-se muitas vezes em avaliações de situações e
experiências organizacionais bastante particulares e radicalmente distintas,
não sendo possível a generalização de suas evidências. Em verdade, estudos
comparativos sobre essas iniciativas sugerem que, concomitantemente à
popularização da Qualidade Total, verifica-se um fenômeno de progressiva
diluição de seus conceitos e premissas, de tal sorte que, sob o rótulo de GQT,
encontrar-se-iam projetos bastante diversos de mudança organizacional. A
Qualidade Total, nesses casos, serviria antes de tudo como fonte de legitimação
das iniciativas de mudança (De Cock & Hipkin, 1997).
Dessa forma, seria mais pertinente discutir a Qualidade Total a partir dos seus
pressupostos teórico-conceituais. Essa análise, entretanto, tampouco é de fácil
consecução, já que autores como Deming (1990) ou Juran & Gryna (1991), mais
que teóricos, eram homens essencialmente práticos, sendo suas obras
especificamente voltadas para dirigentes e administradores de empresas e
marcadas por uma orientação essencialmente prescritiva, longe, portanto, de
oferecer explicações mais estruturadas e profundas sobre os fenômenos
organizacionais. Além disso, as obras desses autores, ao mesmo tempo em que
apresentam pontos de vista comuns em torno dos elementos constitutivos da GQT,
divergem em outras questões importantes.
Não obstante tais dificuldades, discutem-se brevemente a seguir as premissas
fundadoras dessa abordagem, sobretudo aquelas mais relacionadas às pessoas e à
organização.
"A maior parte dos obstáculos às contribuições significativas dos
trabalhadores para a melhoria da qualidade residem na filosofia, nos valores e
crenças e em suas manifestações - os sistemas de controle gerencial -
desenvolvidos sob a liderança de Frederick W. Taylor"(Juran & Gryna,
1991:273).
Essa curta citação não deixa dúvidas sobre a posição crítica da GQT em face do
paradigma taylorista de organização e gestão do trabalho. Seja ao propor uma
outra lógica e uma nova sistemática de garantia e de melhoria contínua da
qualidade, seja ao pensar mais diretamente sobre a natureza da motivação humana
e sobre o processo de organização do trabalho, Deming e seus colegas afastam-se
bastante dos pressupostos e das prescrições presentes na Organização Científica
do Trabalho (OCT), a ponto de Schiff & Goldfield (1995) sugerirem a
existência de uma convergência de idéias entre Deming (1990) e Braverman (1980)
- marxista, autor do clássico Trabalho e Capital Monopolista: A Degradação do
Trabalho no Século XX.
De fato, os teóricos da GQT rejeitam o constructo do homo economicus, ser
absolutamente racional, movido por estreitos interesses de ordem material e
financeira. Aproximando-se da perspectiva humanista radical, esses autores
consideram que o homem possui uma propensão natural de buscar aperfeiçoar-se
(Sullivan, 1986). Assim, em vez da premissa do comportamento de desleixo e de
boicote na atividade laboral por parte dos trabalhadores, justificativa
taylorista para a instauração de um rígido sistema de controle gerencial e
ainda para uma marcada separação entre o trabalho intelectual e manual, de
acordo com a Qualidade Total, os empregados têm uma motivação intrínseca para o
trabalho, preocupando-se com a sua qualidade e com o seu aprimoramento, cabendo
à gerência justamente favorecer esse processo mediante a mudança do clima
organizacional - "afastar o medo" (Deming, 1990) - e a oferta de
programas de educação continuada.
A idéia de envolvimento e de participação veiculada pela GQT, por sua vez, não
se resume apenas a uma espécie de aplicação defensiva e tardia da Escola de
Relações Humanas (McArdle et al., 1995), representando um dos elementos
nucleares do modelo de gestão proposto. Sob a ótica da Qualidade Total, o
problema da qualidade de bens e serviços produzidos converte-se em uma tarefa
coletiva, perpassando todas as áreas da organização e saindo das mãos de
especialistas para envolver o conjunto dos seus funcionários. As ações de
melhoria contínua têm por base a análise dos processos de trabalho, atividade a
ser desenvolvida mediante o engajamento de funcionários e gerentes em equipes
interdepartamentais. Desse modo, a partir da GQT, a participação de
funcionários na tomada de decisões internas, particularmente em questões
relativas ao processo de organização do trabalho, é institucionalizada.
Indicados tais avanços da GQT diante principalmente do paradigma clássico e
ainda dominante de gestão, é necessário, todavia, reconhecer que suas premissas
não logram superar uma visão simplista e instrumental do indivíduo e da sua
inserção na organização. Afinal, apesar de todas as prescrições em torno do
empowerment e do estímulo à criatividade dos trabalhadores, ainda que Deming
(1990) em seus princípios reporte-se à subjetividade presente nas organizações,
discorrendo sobre a necessidade de se afastar o medo ou de se removerem as
barreiras que privam as pessoas do justo orgulho pelo trabalho realizado
(Nogueira, 1994), a Qualidade Total acaba por tomar o indivíduo como um ser
passivo, pronto para introjetar as preocupações e metas da empresa e para
submeter-se aos programas de melhoria de qualidade sem maiores questionamentos.
Por isso mesmo, esses autores não chegam a problematizar de forma mais profunda
a questão da participação. Da mesma maneira, a organização tampouco é vista
como uma arena atravessada por visões de mundo e interesses conflituosos; pelo
contrário, este é tomado como espaço de harmonia social.
Emergem, dessa forma, algumas contradições presentes nessa filosofia gerencial.
O indivíduo, proclamado como elemento-chave para a organização, ao fim é
concebido como uma criatura meramente funcional, desprovida de crenças,
valores, desejos ou emoções, longe, portanto, de ser reconhecido como um ator
político e muito menos como um sujeito singular. Nesse sentido, as propostas de
participação e do estímulo à criatividade do indivíduo mostram-se claramente
instrumentais, já que devem estar a serviço do alcance de melhores resultados
organizacionais, sem que se ponham em questão os objetivos e a estrutura de
poder dessa organização.
Ora, voltando agora à discussão inicial em torno das dificuldades e dos
insucessos observados em programas de Qualidade Total, pode-se sugerir que uma
das razões para isso encontra-se exatamente nas suas limitações teórico-
conceituais ao tratar do problema do indivíduo e da organização. A exemplo de
outras perspectivas gerenciais, a GQT parece assim prometer muito mais do que
realmente oferece.
O enfoque estratégico de planejamento
Ao introduzir a dimensão humana e política nos processos de planejamento e
gestão, o enfoque estratégico representa, sem dúvida, um rompimento com a maior
parte dos pressupostos positivistas que tradicionalmente orientaram a produção
teórico-metodológica e as experiências em planejamento econômico e social.
Particularmente na América Latina, a crença na superioridade da racionalidade
técnica para definir prioridades na alocação dos escassos recursos não resistiu
ao confronto com a complexidade e a incerteza dos processos sociais e,
especialmente no âmbito da gestão pública, com a baixa governabilidade das
organizações.
O planejamento deixa de ser, assim, apenas uma questão de ciência e técnica.
Consiste, antes de tudo, numa arte singular: "a arte de governar em
situações de poder compartido" (Matus, 1993). Reconhece-se a pluralidade
de atores no processo de planejamento, com diferentes capacidades (poderes) e
interesses, disputando projetos e os recursos para implementá-los. Planejamento
e gestão deixam de dizer respeito a um "problema de administração das
coisas pelos homens" e passam a significar um problema de interação entre
os homens na busca de seus objetivos ou "um problema entre os homens"
(Matus, 1993).
É preciso reconhecer, no entanto, que a racionalidade político-estratégica é
apenas uma das formas - não a única - de expressão da dimensão humana nos
processos de planejamento. E aqui parece residir uma das principais limitações
desse enfoque para enfrentar os problemas que ele mesmo reconhece. Se é verdade
que o sujeito do planejamento não é mais único, supostamente neutro e movido
exclusivamente pela racionalidade técnica, a afirmação da pluralidade de atores
e de suas parcialidades e interesses não ultrapassa os limites da análise da
disponibilidade de poder e dos fenômenos que podem ser concebidos e explicados
como fenômenos da ordem da consciência e/ou da vontade.
Assim, do tratamento dos problemas de interação humana no enfoque estratégico
não fazem parte indivíduos ou sujeitos singulares, mas atores políticos
(individuais ou coletivos) considerados como tais em virtude dos recursos que
controlam (poder), de suas capacidades de organização, de seus projetos
políticos (Matus, 1993) e de suas ideologias (Testa, 1986). Ética e vontade,
aliadas ao exercício da racionalidade teleológica-instrumental na utilização
dos recursos de poder disponíveis, são tudo o que move ou explica o
comportamento dos diferentes atores. Desse modo, a subjetividade reconhecida
pelo enfoque estratégico como um importante elemento de análise dos processos
sociais e de intervenção sobre os mesmos é uma subjetividade restrita (ou
identificada) à consciência.
A base essencialmente fenomenológica do conceito de "situação",
trabalhado por Matus (1993) como elemento fundamental para a apreensão do
significado das ações e das falas dos homens no mundo, ilustra bem essa
perspectiva. Se, por um lado, reconhece-se que por trás do que um ator diz ou
manifesta reside um "não dito" muito maior - sua situação, na qual o
que foi dito ou manifesto se apóia e ganha inteligibilidade -, por outro lado,
esse "não dito" é dado por sabido (pelo menos para o ator em
questão), pertencendo, portanto, ao mundo dos fenômenos conscientes.
A crença segundo a qual o comportamento dos homens é guiado exclusivamente por
fatores conscientes (e por isso conhecidos e passíveis de controle) fica bem
evidenciada na pretensão de Matus (1993) de que a situação confira à ação e à
linguagem um significado livre de equívocos. Assim, por exemplo, a definição de
uma causa (nó explicativo) de um problema deve ter um sentido desprovido de
ambigüidade. A ambigüidade e o equívoco constituem o espaço de manifestação do
desconhecido, do "erro", da contradição e da incoerência - condições
que a consciência procura rejeitar.
Tal compreensão da determinação do comportamento dos indivíduos ou dos atores
tem desdobramentos importantes sobre a proposta metodológica do autor para o
planejamento. Desse modo, se esse enfoque considera, com base no conceito de
situação, a necessidade de uma explicação "policêntrica" da
realidade, isto é, que considere as visões presumíveis dos diferentes atores
envolvidos, guarda também a expectativa de que é possível se chegar, pela via
da construção de consenso, a um sentido único (uma explicação única) e isento
de ambigüidade, de ambivalência ou contradição, o que pode ser considerado como
extremamente raro ou praticamente impossível nas interações humanas.
Essa perspectiva racionalista, herdada das abordagens positivistas/normativas
de planejamento, parece ser congruente com outra crença, relativamente bem
desenvolvida no enfoque e igualmente com expressões em sua proposta
metodológica, que é a crença na possibilidade de redução da incerteza dos
processos sociais e, conseqüentemente, de aumento do grau de controle (ou
governabilidade) sobre os mesmos. A rigor, tal pressuposição caracteriza uma
das principais contradições nas quais o enfoque estratégico de planejamento e
gestão estará irremediavelmente imerso: parte do reconhecimento da
complexidade, incerteza e impossibilidade de controle dos processos sociais,
mas não pode, pelo próprio caráter instrumental-teleológico inerente a qualquer
abordagem de planejamento, deixar de tentar controlá-los. Assim, as análises de
cenários, a análise de motivação dos atores, as simulações e todo o restante da
análise estratégica não deixam de ser expressões dessas tentativas de controle.
Para que essas análises possam ser minimamente desenvolvidas, algum grau de
previsibilidade sobre o comportamento dos atores é necessário, e isso só se
obtém partindo-se do pressuposto de que os atores se moverão apenas em função
de escolhas racionais. Logo, tanto Matus (1996) como Testa (1986) trabalham com
categorias como "vontade", "motivação" e
"interesse". Mesmo quando admitem "componentes subjetivos e
informais em algum entorno da questão estratégica", que fazem parte do
"caráter" das pessoas que pensam a estratégia (Testa, 1986:195) ou,
entre os determinantes da ação de um ator, o seu "código de
personalidade" (Matus, 1996), estes são identificados com padrões de
comportamento e preferências de ordem volitiva.
Uma das principais conseqüências dessa forma de compreensão das interações
humanas é o não-reconhecimento dos próprios limites do planejamento e da
gestão; a rigor, das práticas de governo. O espaço de possibilidade de
construção da governabilidade estaria demarcado por duas grandes alternativas
estratégicas polares: a anulação/aniquilamento do outro (pelo uso da força, da
violência) e a construção de um acordo normativo com base em argumentos
racionais. Se não se pretende atuar no primeiro pólo, só restam os instrumentos
decorrentes do que ainda pode ser considerado um modelo iluminista de política,
que supõe possível a obtenção da felicidade humana com base em argumentos
racionais e universais.
É preciso, portanto, "desconstruir" tal perspectiva para que se possa
melhor explorar os limites, mas também as possibilidades, de construção de
projetos coletivos e, no caso das nossas organizações de saúde, voltados para a
valorização da vida. Para tanto, uma das primeiras condições é o deslocamento
do foco de referência teórica central de um "indivíduo centrado nas
necessidades"(racional e "naturalmente" determinadas) para a
existência de um "sujeito do desejo e das pulsões"(Birman, 1997:112).
Um sujeito que manifesta em suas falas e em suas ações não apenas o que é
sabido, mas o que ele próprio desconhece e o que é ambíguo e equívoco, que se
expressa e se move no mundo segundo (e sobretudo em função de) outras lógicas
além da lógica da identidade e da não-contradição.
A partir daqui, impõe-se a necessidade de revisão da própria concepção de
organização, bem como da noção de sujeito e da compreensão dos processos
intersubjetivos em seu interior. É o que se busca neste artigo, com o exame das
contribuições da abordagem psicossociológica.
A abordagem da psicossociologia
A psicossociologia é uma vertente da Psicologia Social, que enfoca os grupos,
organizações e comunidades em situações cotidianas, utilizando para tal a
metodologia da pesquisa-ação. Com base em seus estudos, são produzidas
explicações sobre a criação e evolução do vínculo entre os indivíduos, e também
sobre a dinâmica social e seus processos de mudança. No presente trabalho nos
limitaremos a enfocar as principais concepções de Eugène Enriquez e André Lévy,
dois dos principais autores da psicossociologia francesa contemporânea.
Enriquez (1997) compreende o fenômeno organizacional a partir de suas dimensões
cultural, simbólica e imaginária, sendo central a teoria psicanalítica de
Freud, incorporando também elementos da filosofia e sociologia contemporâneas,
com destaque para o pensamento de Cornelius Castoriadis.
Castoriadis centra sua discussão na possibilidade de autonomia/criatividade dos
sujeitos. Ressaltando a anterioridade dos processos sociais com relação ao
indivíduo, o qual só existe no interior de uma sociedade e de uma cultura
dadas, que lhe são prévias e determinam sua conduta. Assim, toda sociedade
tende a produzir indivíduos massificados, conformados a seus valores e ideais,
ou seja, heterônomos (Enriquez, 1994a).
No entanto, também com base em de Castoriadis, Enriquez sublinha que os
processos sociais são marcados por ambivalências e contradições e que nunca
determinam totalmente o comportamento do indivíduo. Enfim, as sociedades e os
indivíduos não são totalmente heterônomos. Todo indivíduo pode demonstrar uma
parcela de originalidade e autonomia.
Do referencial psicanalítico, a psicossociologia destaca os elementos
imaginários presentes e determinantes nos processos sociais e organizacionais.
Trata dos processos de identificação, de projeção, de culpabilização, de
formação de fantasmas que atravessam a vida dos grupos (Enriquez, 1997).
O que é inovador, na perspectiva psicanalítica, e que vem representar uma
ruptura com o pensamento psicológico e mesmo filosófico precedente, é o
deslocamento do lugar da verdade do sujeito, apontando como ilusória a idéia de
identidade pessoal ou unidade do sujeito e afirmando que os indivíduos são
compostos de uma pluralidade de pessoas psíquicas, introduzindo a idéia de um
sistema Inconsciente (Enriquez, 1994b). A psicanálise aponta, assim, o
descentramento do sujeito, determinado pela sua cisão psíquica, pela
convivência de dois registros simultâneos: o da consciência e o do
inconsciente, regidos por processos e lógicas distintas, pela pressão de
pulsões antagônicas, sobredeterminando seu comportamento.
Dessa forma, o homem passa a ser visto como sujeito clivado, não integrado,
atravessado por falhas, desejos, acompanhado por uma inquietante estranheza.
Nessa perspectiva, ele estabelece vínculos de identificação com numerosos
sujeitos e grupos em um processo que perpassa toda a sua vida.
A incorporação do referencial psicanalítico vai permitir reconhecer e lidar com
os fatores inconscientes na vida social e também organizacional, compreendendo-
os como fenômenos não simplesmente desconhecidos, mas que atuam de forma
indomável, obedecendo a outros processos e princípios (Enriquez, 1997).
A psicanálise vai afirmar, portanto, que existe uma outra cena (a do
imaginário, a do inconsciente) que é operante, que afeta a vida psíquica dos
indivíduos e grupos. A psicossociologia teria por objetivo, nas palavras do
próprio Enriquez, "...elucidar a (ou as) significação(ões), talvez mesmo
os sentidos divergentes (ou não-sentidos) que organizam o funcionamento da
outra cena" (Enriquez, 1997:29).
Essa abordagem nos obriga a considerar outros elementos, distintos daqueles
tradicionalmente tratados pelas teorias organizacionais, para se compreender a
possibilidade de ação cooperativa e de desencadeamento de processos de mudança
nas organizações. Os processos grupais, a construção de seu imaginário social,
de seu sistema de valores comum (representações) e seus respectivos mecanismos
de identificação e idealização são elementos centrais.
A identificação é um processo psíquico através do qual um sujeito assimila
características do outro, adotando-o como modelo e transformando-se. A
personalidade se constitui por sucessivas identificações (Laplanche &
Pontalis, 1986). Esse processo representa um estabelecimento de um laço
(investimento) afetivo do indivíduo com o outro. Nesse processo, como observa
Freud (1976), há uma espécie de "enriquecimento" do ego com as
propriedades do objeto de investimento amoroso. Uma forma importante de
identificação reconhecida por Freud (1976), e que constitui a base dos laços
que unem os membros de um grupo, é a que se dá por meio da percepção de uma
qualidade comum partilhada com outras pessoas e é comandada pelo vínculo que
liga cada indivíduo ao líder do grupo.
A idealização é um processo de identificação, no qual as qualidades e o valor
do objeto são elevados à categoria de perfeitos (Laplanche & Pontalis,
1986). É um processo em que ocorre uma tendência de falsificação do julgamento
sobre a realidade. Pode ser descrita como uma "fascinação" ou
"servidão" pelo objeto (Freud, 1976). Ao contrário da identificação,
na idealização ocorreria, segundo Freud (1976), um empobrecimento do ego, que
entregou-se ao objeto. Para Enriquez (1994c), a idealização é o mecanismo que
permite a toda a sociedade instaurar-se e manter-se, e a todos os indivíduos
viverem como seus membros, pois a possibilidade de constituição de qualquer
pacto social pressupõe algum nível de idealização sobre o coletivo. Esses
processos de idealização implicam, por um lado, uma agressão à singularidade
dos indivíduos, que se submetem ao objeto idealizado sem interrogações, mas não
deixam de representar também um papel defensivo (Laplanche & Pontalis,
1986), produzindo certa tranqüilidade e estabilidade psíquica, protegendo os
indivíduos contra suas pulsões destrutivas e os seus fantasmas de
desintegração.
Esses processos também se verificam no âmbito específico das organizações. Para
construção de um projeto comum, é necessário que as representações sobre a
organização sejam não apenas intelectualmente pensadas, mas afetivamente
sentidas. "Não se trata unicamente de querer coletivamente; trata-se de
sentir coletivamente..." (Enriquez, 1994c:57). Esse sentimento, fonte do
comportamento grupal, só pode emergir se ligado a um sistema de idealização,
fruto de processos conscientes e inconscientes. O processo de idealização é o
que dá "consistência, vigor e aura excepcional" tanto ao projeto
quanto aos indivíduos, possibilitando sair de sua cotidianidade e partilhar da
mesma ilusão (Enriquez, 1994c:57). Todavia, uma idealização maciça da
organização pelo indivíduo tem como resultado a perda de autonomia e
criatividade dos indivíduos e da própria capacidade de resposta das
organizações.
Assim, os grupos e as organizações enfrentam um problema básico, que é o
conflito entre o desejo de cada um dos indivíduos de ser reconhecido em sua
originalidade e especificidade, de fazer-se aceito em sua diferença e, por
outro lado, de ser igualmente reconhecido como um dos membros do grupo e da
organização, portanto semelhante aos seus pares, formando um corpo social e não
um aglomerado de indivíduos. A forma como uma organização tratará esse conflito
imanente pode levar, em seus extremos, a duas alternativas: à massificação, na
qual a falta de inovação e inventividade predominam, conformando um projeto
comum de caráter monolítico; e à diferenciação, em que o projeto comum admite a
expressão de desejos variados e é fruto de argumentações e negociações, sendo a
cooperação originada da aceitação e do tratamento dos conflitos. Contudo, essa
segunda alternativa, difícil de ser constituída pelo nível de maturidade que
exige, pode levar à maximização das contradições e à própria dissolução do
grupo ou à constituição de subgrupos, consumindo suas energias na tentativa de
elaboração de seus conflitos. Esse quadro aproxima-se da chamada
"organização política", no dizer de Mintzberg (1989), configuração em
que a construção de um projeto comum se torna praticamente impossível.
A essa problemática, podem-se acrescentar, considerando-se especificamente a
atual conjuntura de desvalorização do setor público e de enfraquecimento do
projeto de Reforma Sanitária no Brasil, importantes limitações ao
desenvolvimento de processos de idealização envolvendo as organizações públicas
de saúde.
À luz dessas questões e focalizando mais especificamente a problemática
organizacional, destacam-se, na visão da psicossociologia, elementos que
articulam a instância política/social às relações cotidianas, lutas e
estratégias dos sujeitos.
Para a psicossociologia "... a organização aparece assim como uma
modalidade específica e transitória de estruturação e encarnação da
instituição" (Enriquez, 1997:81). Na verdade, uma instituição não existe
fora das organizações concretas que ela produz e dá sentido. Assim, se a
instituição é o lugar do poder, a organização será o lugar dos sistemas de
autoridade (da repartição de competências, de responsabilidades). Dito de outro
modo, a organização "... é a transmutação em tecnologia, em
'quinquilharia', da Instituição" (Enriquez, 1997: 81). O termo tecnologia
se refere aqui tanto às máquinas, quanto às metodologias e aos procedimentos de
trabalho, que têm por objetivo estabilizar e canalizar os desejos e os projetos
dos diversos grupos e sujeitos na organização.
Nessa perspectiva, Enriquez (1997) recupera a discussão de Alain Touraine sobre
a "racionalidade da organização" e privilegia em sua análise a tensão
entre o imperativo de rendimento ótimo da máquina e a resistência à reificação
dos seres humanos e grupos sociais. Essa compreensão adquire particular
importância no momento atual, pois observa-se a utilização abundante de métodos
modernos e instrumentos de gestão que tendem a reforçar o aspecto maquinista
das organizações e a moldar uma concepção limitada e igualmente simplista dos
processos de mudança.
Ao considerar as organizações como estruturações que visam a colocar a ordemem
toda parte, Enriquez (1997) nos ajuda a melhor compreender a complexidade dos
processos de mudança nas organizações. A partir de uma visão psicanalítica, as
organizações são o lugar da compulsão à repetição, característica que expressa
uma forma de proteção contra algumas angústias fundamentais que atravessam os
grupos e as relações intersubjetivas nas organizações.
Enriquez (1997) apresenta uma concepção geral da organização caracterizando-
a como um sistema cultural, simbólico e imaginário. Toda organização dispõe de
uma estrutura de valores e de normas que condicionam seus membros a uma certa
forma de apreensão do mundo e de orientação de suas condutas. Trata-se de
representações sociais historicamente constituídas, resultando na conformação
de determinada cultura, que se traduz, por exemplo, "(...) em atribuições
de postos, em expectativas de papéis a cumprir, em condutas mais ou menos
estabilizadas, em hábitos de pensamento e ação (...)" (Enriquez, 1997:33).
Tais representações encontram uma correspondência, do ponto de vista psíquico,
sobre os sujeitos que compartilham determinadas imagens sobre as organizações
das quais fazem parte - um imaginário social, que deve ser mais ou menos
interiorizado por seus membros (Enriquez, 2000).
A organização, nessa perspectiva, é compreendida como uma microssociedade por
excelência, e por isso atravessada pelos mesmos problemas que caracterizam o
vínculo social (Enriquez, 2000). Toda vida em sociedade é geradora de
angústias. Do mesmo modo, a organização luta - a rigor, os indivíduos e grupos
em uma organização lutam - contra várias angústias. O medo do
"informe", do caos, é uma delas. Toda a organização se apresenta como
"formação" e luta contra a ameaça de um caos desorganizador. Assim, o
espontâneo, o imprevisto, os movimentos criadores são vividos, em sua maioria,
como "desordens". Do mesmo modo, a novidade, o desconhecido, podem
ser vividos como "fissura".
Outra fonte de angústia, contra a qual as organizações procuram se defender,
são as pulsões que atravessam a vida psíquica dos indivíduos e têm seus efeitos
na vida social e organizacional. Pulsão é um dos conceitos mais difíceis da
Teoria Psicanalítica, tendo sido revisto em vários momentos da obra freudiana.
Freud reconheceu a teoria das pulsões como um campo impreciso, representando a
mitologia da própria psicanálise. Nos limites permitidos por este trabalho, é
possível apenas observar que se trata de um processo dinâmico, que pode se
caracterizar como um impulso, carregado de energia e voltado para um objetivo,
que em última instância é suprimir um estado de tensão. As pulsões apresentam
um caráter limítrofe entre o somático e o psíquico. A pulsão é um representante
psíquico de excitações provenientes do corpo e encontra-se na origem do
funcionamento psíquico inconsciente do homem (Laplanche & Pontalis, 1986;
Roudinesco & Plon, 1998). A teoria freudiana sempre apresentou as pulsões
de forma dualista e a distinção mais importante é entre pulsão de vida e a
pulsão de morte, fundamentais na dinâmica psíquica e na organização da vida
social.
As organizações buscam canalizar a pulsão de vida (ou todos os impulsos
criativos dos indivíduos) no sentido do trabalho produtivo e dos objetivos
organizacionais. Assim, "... adotam como valores sempre a eficiência, e às
vezes o dinamismo e a mudança. Tentam então pôr em funcionamento o processo de
ligação favorecendo a coesão e a harmonia ..." (Enriquez, 1997:126).
No entanto, a pulsão de vida só tende a ser aceitável quando se dirige para a
coesão da organização. Ameaçada pelo fantasma de uma invasão da afetividade e
de condutas irracionais, a organização, de certo modo, impede a pulsão de vida
de poder se desenvolver. Assim, paradoxalmente, a criatividade tão reclamada e
especialmente valorizada pela novas abordagens gerenciais acaba, muitas vezes,
refreada.
Além disso, as organizações, enquanto lugar da ordem, da reprodução, também
favorecem a expressão da pulsão de morte (enquanto compulsão à repetição),
desenvolvendo tendências à homogeneização, à massificação dos indivíduos, à
inércia, enfim, à resistência à mudança.
Por outro lado, as organizações tentam se defender contra os impulsos de
destruição (outra expressão da pulsão de morte) que poderiam atacar seu
funcionamento interno (assim, por exemplo, tentam limitar a competição interna,
limitando poderes, definindo funções e regras de funcionamento).
Retomando a perspectiva trabalhada por Enriquez, a "organização se
instaura, funciona e se estabiliza no interior de um campo pulsional e
passional" (Enriquez, 2000:19).
O exposto até aqui permite destacar que uma das principais contribuições da
psicossociologia à compreensão dos processos de mudança organizacional é o seu
entendimento como um acontecimento que, antes de ser material, objetivo, é
psíquico e, portanto, subjetivo.
"O psiquismo (o mental) e sua dinâmica são, então, por excelência, o lugar
da mudança, da possibilidade de desligamentos e de novas combinações. As
condições materiais, objetivas, só têm valor de mudança quando elas são
apropriadas mentalmente ao nível de suas significações." (Levy, 1994a:116)
Na perspectiva da psicossociologia, a mudança se diferencia de um processo
evolutivo, de crescimento ou reprodução. Ela se apresenta de modo descontínuo,
pressupondo rupturas, reorientações bruscas, redirecionamentos. Mudar é escapar
à lei da repetição, é introduzir o inédito, é se abrir a uma história, à
aventura (Lévy, 1994a).
A mudança exige então indivíduos criativos, sujeitos autônomos, para resgatar a
perspectiva de Castoriadis. As questões abordadas neste texto indicam o
equacionamento entre reprodução e criatividade como principal desafio a ser
enfrentado nos processos de gestão. Os processos de mudança devem poder
promover a inserção de indivíduos criativos em um projeto organizacional (para
o qual algum nível de idealização é necessário), sem, contudo, cair na
armadilha do controle sutil de seus pensamentos e comportamentos através de uma
idealização maciça da organização.
É preciso reconhecer, portanto, que o dilema principal ao qual as organizações
estão irremediavelmente imersas é o de, simultaneamente, favorecer a construção
de uma identidade coletiva e o exercício da singularidade e da autonomia dos
sujeitos.
Fica evidente, pela análise da problemática organizacional aqui realizada, que
o indivíduo se liga à organização por vínculos não apenas materiais, mas
sobretudo afetivos e imaginários, e que as organizações, embora não criem uma
estrutura psíquica, utilizam-se dela. Assim, toda organização é objeto de
transferência, não só espontânea, mas também induzida, de afetos, emoções,
qualidades e atitudes, podendo propiciar a satisfação de necessidades
narcísicas dos indivíduos. (Freitas, 1999).
Neste sentido, a tão esperada adesão dos indivíduos ao projeto organizacional
pode ser o resultado de dois tipos de processos que, na realidade se apresentam
combinados e que são decorrência da produção de um sistema imaginário pela
organização. No primeiro caso, a organização se apresenta como a instância
central capaz de responder aos desejos narcísicos de reconhecimento e potência
dos indivíduos, assegurando proteção contra quebra de suas identidades. Desse
modo, tende a substituir o imaginário do indivíduo pelo seu próprio,
apresentando-se como superpoderosa e nutriz, aprisionando-o em um
"imaginário enganoso" (Enriquez, 1997), que o impossibilita de
produção autônoma e criatividade.
Outra possibilidade é a organização engendrar o que Enriquez (1994a) denomina
de imaginário motor, favorecendo a criatividade e sendo capaz de conviver com
mudanças e rupturas. Um imaginário que comporta a espontaneidade, a
experimentação e o pensamento questionador.
Por ser este um imaginário que abre espaço para o questionamento da própria
organização e de suas regras, ele é muito menos desenvolvido que o primeiro
(Freitas, 1999). Considerado ainda o contexto de constantes pressões em que as
organizações operam, é necessário desde já reconhecer as dificuldades
enfrentadas para a instauração de tal processo em seu âmbito. De outra parte,
cabe perguntar se a criatividade, o processo de aprendizagem permanente, o
aprimoramento contínuo, enfim, o conjunto de inovações e mudanças de que as
organizações atualmente necessitam pode efetivamente ser alcançado senão
através de tal sorte de arranjo social e humano.
A intervenção psicossociológica
A organização, como apontamos anteriormente, é o lugar da resistência à
mudança, sustentando o pensamento racional e consciente, podendo tornar-se uma
estrutura de "solidificação dos seres e das coisas", facilitando,
assim, mais a expressão da pulsão de morte que de vida. Entretanto, ao mesmo
tempo a mudança lhe é indispensável. A organização apresenta, na verdade,
desejos contrastantes, apontando dessa forma que "... zonas de
instabilidade podem descerrar-se" (Enriquez, 1997:290). É exatamente sobre
estas zonas que a intervenção vai se concentrar, situando-se na tensão entre
resistência e mudança.
O trabalho da psicossociologia será justamente sobre as resistências, que
também podem ser o lugar da mudança. É um trabalho de análise nos níveis
organizacional e grupal que busca mudanças não apenas nas estruturas, mas
igualmente nos hábitos, atitudes, mentalidades e nos processos psíquicos. O
material privilegiado sobre o qual se fará o trabalho de intervenção
psicossociológica são as palavras, as representações, as condutas, enquanto
efeito de processos inconscientes e intersubjetivos que revelam a organização
como espaço de confronto entre sentimentos e fantasias polares, como a angústia
e a alegria, os temores de desmembramento e os desejos de onipotência, a
identidade individual e coletiva (Enriquez, 1997).
Enriquez (1997) define esse trabalho como um encaminhamento progressivo de
sentido, sentido a ser descoberto e construído, com a emergência de novas
falas. Tal trabalho se apóia em indagações e, por isso, ele deve permitir a
emergência de novos conflitos, provocar uma certa "fratura" no modo
de funcionamento da organização.
Essa perspectiva busca questionar, na vida organizacional, o desejo de
constituição de um mundo sem conflitos, de uma imagem monolítica da
organização, que responde aos anseios de segurança dos sujeitos.
O trabalho de intervenção psicossociológica se inicia a partir da própria
análise da demanda, procurando reconstituí-la baseando-se em seus sentidos
manifestos e latentes, e se centra na discussão de problemas concretos da
organização, em grupos de trabalho que visam à livre expressão das pessoas, ao
favorecimento de um processo de auto-organização dos vários grupos e sua
influência sobre os rumos da organização.
Essa proposta, embora esteja centrada na abordagem psicanalítica, não deixa de
valorizar a expressão consciente dos desejos e vontades dos indivíduos e grupos
na organização, não pretendendo substituir de imediato sua lógica pela busca de
um sentido inconsciente que desvelaria a "verdade" de suas falas e
ações, mas ir permitindo a emergência de novas significações que resultam da
análise desse material (Enriquez, 1997).
A intervenção psicossociológica pressupõe, simultaneamente a consideração das
estruturas psíquicas, e, portanto de suas exigências pulsionais, e das
estruturas sociais, com suas dimensões tanto simbólica, quanto política
(Nasciutti, 1992). Nessa perspectiva, Enriquez (1997) propõe a articulação de
diferentes instâncias de análise das organizações, envolvendo suas dimensões
social/histórica, institucional, organizacional, grupal, individual e
pulsional. Assim, consideram-se, nas intervenções, tanto as experiências
vividas pelos indivíduos e grupos, seus sentimentos e representações que fazem
de si mesmo e da organização, como suas estratégias enquanto atores sociais.
Dessa forma, por exemplo, a interrogação sobre a estrutura e a repartição de
poder não se esgota numa perspectiva funcional e política, mas avança para uma
análise das representações e fantasias, por vezes contraditórias, que "...
cada indivíduo, cada grupo tenha da organização, de seus modos de identificação
com aquela (e as razões das identificações massivas como das identificações
distanciadas), projeções que ele pode ser levado a produzir (projeções que
instauram a organização como perseguidora ou ao contrário como o lugar de
realização de si mesmo, como um elemento de desenvolvimento)"(Enriquez,
1997:248).
Nesse sentido, a intervenção psicossociológica deve contribuir para que cada um
reflita sobre o seu lugar (real e imaginário) na organização e encontre um novo
lugar, mas, ao mesmo tempo, deve permitir a interrogação sobre os vínculos que
cada um estabelece com ela. Por que a organização nos prende? Por que nos
apegamos (ou não) a ela? (Enriquez, 1997)
Essa perspectiva de análise das organizações não deve ser confundida com um
processo de psicanálise de grupo nem tampouco com análises individuais no
espaço organizacional. Os aportes da psicanálise só são pertinentes para a
elaboração das relações que os indivíduos e os grupos estabelecem com a
organização e com o poder e para o enfrentamento dos problemas operacionais da
organização.
No que diz respeito mais particularmente ao papel do consultor que intervém em
uma organização valendo-se da perspectiva psicossociológica, cabe chamar a
atenção para a necessidade de um investimento afetivo. Esta perspectiva fica
muito bem ilustrada na visão de André Lévy: "... penso que só é possível
realizar um trabalho que valha a pena com grupos e organizações quando se tem
um interesse afetivo verdadeiro pelas pessoas que fazem parte deles; penso que
uma atitude voluntária e falsamente objetiva, desapaixonada, científica, pode
ser apenas uma máscara para o desprezo profundo com relação ao outro e
representar apenas ações tecnocráticas a serviço de um desejo de poder mais ou
menos oculto" (Lévy, 1994b:175).
Outra característica do consultor, na visão de Enriquez (1997), é não se situar
em um único lugar. O consultor intervém tanto como analista, quanto como
expert, perito no campo organizacional. Não há um setting permanente. O autor
também assinala a necessidade de o consultor "... trabalhar com o conjunto
do sistema cliente e não com alguns de seus representantes" (Enriquez,
1997:263).
Nessa mesma perspectiva, Lévy (1994a) observa que o consultor não deve estar
ligado a nenhum grupo em particular na organização, a não ser transitoriamente.
Seu trabalho pode evoluir entre pessoas e grupos e não se restringir à análise
de reuniões, mas incluir entrevistas, observações, pesquisa-ação etc. Essa
condição é necessária, pois a organização, em seus mecanismos de defesa e
resistência à mudança, tende a enquadrar e restringir o trabalho de análise em
um lugar determinado, buscando mantê-lo sob controle e, com isso, esvaziando-
o de seu significado.
Acima de tudo, o trabalho do consultor deve permitir à organização se perceber
como plural e não como um todo homogêneo, compacto, sendo atravessada por
conflitos, divisões e alianças. Essa visão se contrapõe ao "fantasma do
Uno" que atravessa toda a organização, constituindo um imaginário da
organização sem fissuras.
Do exposto até aqui é possível concluir que a intervenção psicossociológica nem
sempre irá corresponder às expectativas iniciais daqueles que esperam das
intervenções resultados de curto prazo, que estão muito mais ávidos por
respostas do que por perguntas e que têm muito pouca tolerância para com a
incerteza.
A avaliação dos resultados da intervenção psicossociológica implica considerar
o alto grau de incerteza e ambigüidade dos processos sociais, bem como a
impossibilidade de se garantir controle sobre os processos de intervenção.
Nesse sentido, "... é inevitável que as intervenções tenham resultados
ambíguos que podem ser interpretados de maneira muito diferentes, segundo o
molde de análise utilizado. Nós queremos determinadas coisas e damos origem a
outras. O social é feito assim" (Enriquez, 1997:288).
Sublinhando que as mudanças sociais levam tempo para serem amadurecidas e para
se apresentarem como necessárias, traduzindo-se em condutas concretas, Lévy
(1994a) observa que é exatamente o trabalho sobre as resistências e a pulsão de
morte que abrirá uma porta essencial para a mudança. São esses aspectos da
prática de análise psicossociológica que lhe conferem identidade e a
diferenciam das abordagens tecnológicas ou manipuladoras da mudança social.
Em síntese, o objetivo da intervenção psicossociológica pode ser considerado
como o de "... ajudar uma instituição que se percebe em estado de crise a
se transformar progressivamente numa instituição na qual as capacidades
criativas possam superar os conflitos" (Enriquez, 1997:263).
Concluindo, trata-se de um processo vivo, que deve possibilitar o surgimento de
novas significações, evitando a cilada do "pensamento herdado", das
ilusões sobre a organização.
Considerações finais
Diante da grave crise de governabilidade, resolutividade e eficiência que as
organizações de saúde no Brasil vêm enfrentando, os recém-veiculados
"valores gerenciais" e as metodologias introduzidas por meio de
propostas inovadoras no campo do planejamento e gestão organizacional buscam se
apresentar como um caminho para o enfrentamento dos determinantes dessa
situação.
O cerne de todas essas experiências inovadoras é gerar o compromisso dos
indivíduos com um projeto institucional. Todavia, conforme aqui discutido, as
abordagens correntes mostram-se insuficientes para a compreensão da dinâmica
entre os indivíduos e as organizações ou para o favorecimento da construção de
processos de mudança voltados para a valorização da missão pública das
organizações de saúde e capazes, ao mesmo tempo, de possibilitar a autonomia e
criatividade de seus profissionais.
O presente estudo procurou apresentar uma outra perspectiva não só para a
análise, como para a intervenção na problemática da relação entre indivíduos e
organizações. A importância das contribuições da abordagem psicossociológica
francesa para a compreensão das organizações públicas de saúde no Brasil, bem
como para a intervenção em seus processos, evidencia-se quando se aprofunda a
análise da situação dessas organizações e do contexto em que se inserem.
Palco de manifestação das contradições sociais e dos processos de exclusão e
desvalorização da vida que marcam a sociedade brasileira contemporânea, as
organizações públicas de saúde vivem uma crise que não é o resultado apenas das
políticas de sucateamento e da conseqüente insuficiência de recursos, mas de um
complexo processo de desqualificação da assistência que combina omissão, falta
de ética, baixa responsabilidade institucional, descompromisso com relação aos
processos organizacionais, falta de solidariedade e apatia com relação à dor e
ao sofrimento alheios (Sá, 2001).
Uma outra dimensão dessa crise se apresenta quando se considera mais
especificamente o contexto político-institucional brasileiro, especialmente no
âmbito público, onde o Estado, ao mesmo tempo em que impõe sobre as
organizações públicas um projeto de reforma administrativa, cujos eixos
centrais são a privatização e a modernização gerencial, não garante as
condições suficientes de financiamento e operação para as suas organizações.
Tal situação, uma das fontes do mal-estar que atravessa atualmente essas
organizações, representa, por analogia à discussão realizada por Losicer
(1995), uma ameaça de morte. Assim, nossas organizações públicas vivem
processos de angústia e sofrimento derivados da alta incerteza quanto às suas
possibilidades de sobrevivência. Esses processos, longe de favorecerem a
mudança, reforçam a resistência, a estereotipia, e as ansiedades paranóides e
depressivas nas organizações, aumentando, dessa maneira, a complexidade e os
desafios das intervenções organizacionais. É fácil, assim, reconhecer a
relevância de um olhar psicossociológico sobre o problema.
A singularidade e inovação da abordagem psicossociológica para a compreensão e
intervenção nas organizações se reflete não só no aporte teórico empregado -
particularmente a abordagem psicanalítica para elaboração das relações entre os
indivíduos e grupos, e para o enfrentamento dos problemas organizacionais -
como na própria forma de conceber a intervenção. A intervenção
psicossociológica, tal como concebida por Eugène Enriquez, pode ser
caracterizada como um trabalho de favorecimento da descoberta e busca contínua
de sentidos - social-histórico, institucional/organizacional, grupal,
individual e pulsional - para as interações humanas nas organizações e,
simultaneamente, o que é fundamental destacar, de intervenção especializada no
campo gerencial.
Tal perspectiva impõe um importante diferencial para a intervenção
psicossociológica nas organizações quando comparada a outras propostas de
intervenção no campo gerencial. Assim, por exemplo, a intervenção começa pela
própria análise do pedido de intervenção e da(s) demanda(s) que o sustenta(m),
sendo fundamental a compreensão do cliente como o conjunto dos indivíduos e
grupos integrantes da organização, apontando os riscos de se ligar
exclusivamente a um determinado grupo. Outro elemento a ser valorizado e que
diferencia essa abordagem é o reconhecimento da incerteza quanto aos resultados
da intervenção, que é caracterizada, acima de tudo, como um contrato em aberto,
em virtude da natureza social do processo organizacional.
Ao mesmo tempo, não se pode desconhecer que a complexidade da abordagem - que
considera, ao lado da vontade dos atores e dos problemas estratégicos/
operacionais da organização, os processos inconscientes que a atravessam - pode
dar origem a práticas simplificadoras, restritas a uma dimensão reflexiva e
pedagógica, não diferenciadas de outras tantas abordagens manipuladoras de
"gestão pelo afetivo". De outra parte, não se pode deixar de
considerar que é essencial o desenvolvimento de experiências concretas de
aplicação dessa abordagem em organizações de saúde no País, que possam
aprofundar, no plano empírico, a avaliação sobre seus limites e possibilidades.
O presente trabalho procurou demonstrar que há um grande potencial de
contribuição da abordagem psicossociológica para as organizações públicas de
saúde no Brasil e sua discussão e aplicação é algo que não pode prescindir do
diálogo e articulação com outros aportes e experiências do campo da gestão.