Das causas às conseqüências econômicas da transição demográfica no Brasil
As relações entre crescimento da população e desenvolvimento desafiam
estudiosos por muito tempo. É vasta a bibliografia sobre o tema e não é tão
longa a lista de evidências que possam comprovar as inter-relações entre os
dois processos de transformação. Complexas por sua natureza, essas inter-
relações podem ser encontradas nas conexões tanto entre crescimento
populacional e crescimento da renda (crescimento econômico), quanto entre
crescimento populacional e distribuição da renda (distribuição dos frutos do
crescimento econômico). Para identificar tais relações torna-se necessário
perguntar quais seriam, por um lado, as possíveis conseqüências do crescimento
populacional sobre o crescimento e a distribuição da renda e, por outro, quais
seriam os possíveis efeitos do crescimento e da distribuição da renda sobre o
crescimento populacional.
Se por desenvolvimento se entende mais do que crescimento da renda, levando-se
em conta também os processos de transformações estruturais em diferentes
esferas da sociedade, percebe-se logo que a complexidade das relações é ainda
maior. A evolução do debate, das pesquisas e da produção científica sobre o
tema no Brasil segue, em linhas gerais, a mesma tendência dos estudos,
discussões e da agenda no plano internacional.
Há cerca de três décadas discutia-se as causas e conseqüências do crescimento
populacional. Hoje, discute-se as causas e conseqüências da transição
demográfica. A chamada "bomba demográfica" já foi desativada, muita coisa mudou
no mundo e, do ponto de vista demográfico, a maior mudança foi a
universalização do processo de transição demográfica. Em todas as regiões do
mundo, mais cedo ou mais tarde, mais rapidamente ou mais lentamente, os níveis
de mortalidade e de fecundidade estão caindo. O que parecia imutável nas
condições de subdesenvolvimento do início dos anos 60 tornou-se, a partir do
conhecimento daquela época, surpreendentemente mutável. Expressões como "bomba
demográfica" foram substituídas por "bônus demográfico" ou "janela de
oportunidades".
Este artigo pretende examinar como essas relações entre população e economia
foram interpretadas e discutidas e como influenciaram o pensamento e a pesquisa
acadêmica e, eventualmente, algumas propostas de políticas públicas no Brasil.
Não pretendemos fazer uma revisão bibliográfica extensiva nem abordar todos os
aspectos das complexas relações entre população e desenvolvimento,1 mas
simplesmente gostaríamos de situar o debate no Brasil, de identificar as
principais linhas de investigação acadêmica relacionadas com o tema e de
sumariar os avanços que estão em curso na pesquisa sobre população e economia e
suas implicações para as políticas públicas e o desenvolvimento.2
Antecedentes
É impressionante como houve um enorme avanço no conhecimento científico sobre
população no Brasil. Consolidaram-se no país uma excelente base de dados,
principalmente sobre o mercado de trabalho, um sólido conhecimento técnico e
uma invejável produção acadêmica. Talvez valesse a pena lembrar os quatro
pilares que foram importantes para que isso acontecesse. Primeiro, a criação de
um programa de estudos populacionais na Escola de Saúde Pública da USP,
liderado pela professora Elza Berquó, que foi o embrião para o desenvolvimento
do Núcleo de Demografia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)
e, posteriormente, do Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Unicamp.
Segundo, a criação de um Núcleo de Demografia no Centro de Desenvolvimento e
Planejamento Regional (Cedeplar) da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), liderado pelo professor José Alberto Magno de Carvalho, que se
constituiu, posteriormente, no Departamento de Demografia do Cedeplar/UFMG.
Terceiro, o fortalecimento da pesquisa econômica, social e demográfica e a
modernização do processo de produção de informações econômicas e sociais do
IBGE, sob a liderança do professor Isaac Kerstenetzky.3 Quarto, e como
conseqüência natural do que vinha acontecendo, a criação da Associação
Brasileira de Estudos Populacionais (Abep), em 1977.4
Isto tudo aconteceu, aproximadamente, no curto espaço de uma década, o que dá
uma idéia de como era grande o interesse pelos estudos populacionais naquela
época, havendo disponibilidade de recursos e demanda por pesquisas.
Quais eram as principais questões da agenda relativa a população e
desenvolvimento?
Logo após a Segunda Guerra Mundial, o debate circunscrevia-se a duas linhas de
pensamento que se contrapunham. De um lado estavam os chamados pessimistas,
que, seguindo a tradição malthusiana, entendiam que a população crescia muito
rapidamente em relação aos recursos disponíveis e, em conseqüência, tornava-se,
no longo prazo, um impedimento ao crescimento econômico. De outro lado estavam
os otimistas, que acreditavam que o crescimento populacional, ao contrário,
estimularia o consumo e ofereceria a mão-de-obra necessária ao crescimento
econômico. Ademais, nos países geograficamente muito grandes, com baixa
densidade demográfica, o crescimento populacional poderia, eventualmente,
também assegurar condições para a ocupação e a proteção do território.
Mas é interessante também registrar o que se discutia na época acerca das
alternativas para promover o desenvolvimento e sobre o papel das estratégias
dos países desenvolvidos e das instituições multilaterais com relação aos
chamados países subdesenvolvidos.
Passada a guerra, os Estados Unidos e as instituições de Bretton Woods, o Fundo
Monetário Internacional e o Banco Mundial, empenharam-se na reconstrução da
Europa através da implementação do chamado Plano Marshall.
Nos anos 50 e início dos anos 60, os países subdesenvolvidos, em geral,
apresentavam crescimento econômico relativamente acelerado, acompanhando o
desempenho das economias avançadas. A ajuda ao desenvolvimento era,
predominantemente, o resultado de relações bilaterais e a ação do Banco Mundial
concentrava-se sobretudo na reconstrução da Europa.
Naquela época, desenvolvimento econômico era de alguma maneira identificado com
crescimento econômico e industrialização. Entendia-se que os determinantes do
crescimento econômico, que seria a base para o desenvolvimento, eram universais
e, assim, todos os países eventualmente passariam pelo mesmo processo. Os
países subdesenvolvidos estariam no estágio em que estiveram no passado os
atuais países desenvolvidos. Haveria, pois, uma convergência para os níveis de
desenvolvimento dos países avançados, como os Estados Unidos e os países da
Europa Ocidental. Ficaram famosos os chamados estágios de desenvolvimento de
Rostow.5 Também teve grande repercussão e impacto nos estudos sobre
desenvolvimento econômico a teoria de Lewis, que estabelecia que havia um
excedente de mão-de-obra nas atividades tradicionais rurais com baixa
produtividade e que o crescimento das atividades urbano-industriais com maior
produtividade poderia valer-se dessa mão-de-obra. Dada sua oferta ilimitada, em
razão do crescimento demográfico no campo, a absorção de mão-de-obra nas
atividades urbano-industriais dar-se-ia sem aumento dos salários, que ficariam
no nível de subsistência. Os resultados dos censos demográficos dos anos 50 e
60 mostraram que, acompanhando o processo rápido de urbanização, crescia uma
parcela da população que não se incorporava ao mercado de trabalho, mas
ocupava-se de atividades tradicionais de baixa produtividade. Era uma população
que crescia nos centros urbanos, excluída do mercado de trabalho, que vivia de
atividades de baixa produtividade e/ou esporádicas, resultando no aumento do
segmento da população pobre urbana. Graças ao impacto da difusão de
antibióticos e outras medidas que resultaram na queda da mortalidade infantil,
as taxas de crescimento populacional elevaram-se. Enfim, parecia que, ao invés
de se desacelerar, o crescimento demográfico acelerava-se com o processo de
desenvolvimento econômico e, apesar do crescimento econômico, a pobreza não se
reduzia. Ao contrário, crescia.
No âmbito das relações internacionais, consolidava-se a chamada Guerra Fria,
formando-se dois blocos: de um lado os Estados Unidos e seus aliados da Europa
Ocidental e de outro lado o Bloco Soviético (União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas e o Leste Europeu). Esse conflito teve papel importante nas
estratégias relativas à ajuda e às alianças com os países do chamado Terceiro
Mundo.
Foi nesse contexto que o debate sobre população e crescimento econômico tornou-
se central nas discussões sobre o desenvolvimento nos anos 60. A principal
contribuição acadêmica dessa época para se entender as relações entre população
e econômica foi, sem dúvida, o livro de Coale e Hoover (1958), que, com base em
amplo estudo sobre a Índia e o México, trouxe uma nova interpretação à visão
malthusiana. Esses autores inovaram ao incorporar o conhecimento sobre a
dinâmica demográfica nos modelos de crescimento econômico. O mais importante
foi examinar os efeitos das mudanças na estrutura etária da população, causadas
pelas quedas da mortalidade e da fecundidade, sobre o crescimento econômico.
Uma de suas principais conclusões, utilizando um modelo convencional de
crescimento econômico, era a de que, com a redução da relação de dependência,
devida à queda de fecundidade, haveria um aumento na taxa de poupança e, em
conseqüência, na taxa de crescimento. Ao contrário, com a manutenção de taxas
altas de fecundidade, com redução da mortalidade infantil, elevava-se a
proporção de jovens e, em conseqüência, o consumo, eliminando-se a poupança e
levando a economia à estagnação. Vale dizer, com a mesma renda familiar,
domicílios com número maior de crianças consomem mais e não poupam, ao passo
que domicílios com menor número de filhos consomem menos e poupam. As
implicações para as políticas públicas decorrentes dessa interpretação são
diretas: dadas as externalidades negativas resultantes da manutenção de um
tamanho maior de família, seriam necessárias políticas de planejamento familiar
para promover o controle da natalidade. Essa orientação de política pública
passou a ter vasta aceitação e foi, em certa medida, incorporada aos programas
de ajuda aos países em desenvolvimento.
Ao mesmo tempo em que, entre os economistas, ao menos do ponto de vista lógico,
parecia incontestável que o rápido crescimento populacional teria um impacto
negativo sobre a população, outras interpretações foram tomando corpo.
Certamente a voz oposta mais influente foi a de Boserup (1981), que, com base
em estudos sobre a agricultura na África, argumentava que mudanças tecnológicas
seriam induzidas pelo crescimento populacional. Assim, rápido crescimento
populacional e aumento da densidade demográfica na agricultura levariam à
mudança tecnológica, com conseqüente aumento da produtividade e do crescimento
econômico. Mas foram, com certeza, os resultados dos estudos empíricos de
Kuznets (1963, 1966 e 1973) que mais dúvidas colocaram acerca dos impactos
negativos causados pelo crescimento populacional sobre o crescimento econômico.
Foi nesse ambiente que ocorreu a Primeira Conferência Internacional de
População e Desenvolvimento, promovida pelas Nações Unidas, em Bucareste, em
1974, onde duas visões foram contrapostas. De um lado, os defensores do
planejamento familiar, que propunham a implantação de políticas públicas
controlistas e a subordinação de ajuda aos países em desenvolvimento à adoção
de políticas de planejamento familiar. De outro lado, os defensores de que a
melhor política para a queda da fecundidade seria o desenvolvimento econômico.6
Estabelecia-se, então, uma profunda oposição de duas visões relativas às inter-
relações entre população e desenvolvimento e, como conseqüência, diferentes
sugestões para políticas públicas e para ajuda aos países do chamado Terceiro
Mundo. Um corolário do argumento favorável ao controle da natalidade referia-se
às políticas de combate à pobreza. O planejamento familiar teria impacto
positivo na redução da pobreza ao promover a queda do número médio de filhos
por domicílio. Assim, o controle do crescimento populacional poderia estimular
o crescimento econômico e a redução da pobreza.
A repercussão do debate no Brasil
Nesse período, final dos anos 60, início dos anos 70, a economia brasileira
crescia a níveis relativamente altos e o país estava sob um regime de ditadura
militar. Era a fase do chamado milagre econômico. As idéias neomalthusianas não
encontraram terreno fértil no Brasil.
Do lado acadêmico havia reservas muito grandes quanto às implicações políticas
da tese que enfatizava os efeitos negativos do crescimento populacional. Foi
desse período a publicação do livro de Singer (1970) refutando a visão de Coale
e Hoover (1958).7
O debate sobre população e desenvolvimento teve mais fôlego nas pesquisas sobre
o setor informal e as relações entre população e mercado de trabalho. Várias
pesquisas sobre a dinâmica dos mercados de trabalho no país e o papel do setor
informal foram desenvolvidas na época.8 Com a economia crescendo, o debate mais
caloroso era sobre a concentração da renda, que tendia a agravar-se ao longo do
processo de crescimento econômico. Setor informal e concentração de renda,
entre economistas, e marginalidade urbana, entre os cientistas sociais, eram os
temas predominantes do debate e das pesquisas. Não havia motivação nem
interesse para aprofundar os estudos sobre os possíveis impactos do crescimento
populacional sobre o crescimento econômico. A contribuição da análise
demográfica para os estudos de mercado de trabalho concentrava-se nos temas das
migrações internas e da oferta de mão-de-obra: aumento da participação da
mulher na população economicamente ativa (PEA) e variações nos níveis de
atividade e composição da PEA. Chamavam mais a atenção dos especialistas os
processos de migração, como a ocupação das regiões Centro-Oeste e Norte, a
chamada nova fronteira agrícola, e a acelerada urbanização.9
No plano político, o país vivia sob uma ditadura militar e entre os militares
predominava uma visão muito particular sobre crescimento demográfico, qual
seja, que o tamanho da população é importante para a ocupação do país e é tema
de segurança nacional. Um país grande, em território e população, será um país
também mais forte do ponto de vista político e militar.
Somando-se a isso, a Igreja Católica opunha-se publicamente a qualquer ação do
Estado no sentido do estabelecimento de programas de controle da natalidade. E,
finalmente, a esquerda entendia que a América Latina e o Brasil, em particular,
necessitavam de desenvolvimento econômico e de melhor distribuição de renda,
não de controle da população. Nessas condições, parece-nos que também não havia
terreno para as idéias de controle da população prosperarem no plano
político.10 Faltariam canais para que vozes defensoras de políticas
controlistas pudessem ter repercussão relevante para alterar o rumo das
políticas públicas. O Congresso Nacional, espaço natural para a repercussão das
opiniões da sociedade, não tinha liberdade de ação como em uma democracia e a
mídia não parecia dar grande espaço para o tema.11
Já no final da década de 70, as primeiras evidências da queda da fecundidade no
Brasil chamaram a atenção dos especialistas, sobretudo porque o país não havia
adotado nenhuma política explícita de controle da natalidade.12 Os
pesquisadores brasileiros passaram a buscar as causas13 da queda da fecundidade
e foram talvez pioneiros ao enfatizar os aspectos institucionais.
A literatura econômica sobre os determinantes da fecundidade era
predominantemente de cunho microeconômico e apontava os efeitos da mudança nos
custos relativos dos filhos sobre a determinação de tê-los. A qualidade se
sobrepunha à quantidade na formação do tamanho ideal de família. A educação era
elemento-chave na determinação de se ter ou não um filho adicional, assim como
a queda da mortalidade infantil, ao permitir o aumento no número de filhos
sobreviventes. Esses modelos, que se tornavam mais complexos do ponto de vista
de sua especificação, supunham um mundo simples e homogêneo, onde preço e
quantidade definiriam o tamanho da família, tudo o mais constante.
A Pesquisa Nacional de Reprodução Humana14 desenvolvida no Cebrap nos anos 70
foi um esforço para determinar diferentes contextos aos quais se relacionariam
diferentes comportamentos reprodutivos.15 Buscar entender o papel das escolas,
da igreja, da mídia e da comunidade médica era a contribuição importante dessa
pesquisa.
A preocupação com elementos institucionais na determinação da ruptura do
comportamento reprodutivo tradicional foi partilhada também por Paiva,16 que
procurou argumentar que mudanças institucionais nas relações de trabalho no
campo brasileiro poderiam estar na base da desestabilização do aparente
equilíbrio entre tamanho médio da família e relações de trabalho no campo.
Finalmente, cabe mencionar, como fizeram Potter e Tuirán-Guitiérrez (2005), as
observações de Faria sobre os possíveis efeitos esperados ou não-esperados de
políticas públicas implementadas no Brasil (Faria, 1989; Faria e Potter, 1999),
como a expansão da cobertura médica e a conseqüente "medicalização" do
comportamento reprodutivo e sexual, a expansão da cobertura dos serviços da
previdência social e o papel da mídia, em especial da televisão, na formação de
padrões de família,17 na mudança no padrão de consumo, com aumento da
participação de bens duráveis, em um período em que a produção industrial
crescia rapidamente.
Enfim, tomando-se em conta os temas de pesquisa e a produção acadêmica da
época, verifica-se que, no Brasil, as preocupações com as causas da queda da
fecundidade ocuparam mais os esforços dos pesquisadores do que os efeitos do
crescimento populacional sobre o crescimento econômico.
O contexto internacional também mudou
Quanto Malthus escreveu o seu clássico ensaio sobre população, as condições que
eventualmente estimulavam o mecanismo que determinava o equilíbrio entre
tamanho de população e recursos na Inglaterra já haviam sido alteradas. No
final do século XVIII, os níveis de fecundidade apresentavam uma clara
tendência de elevação naquele país.
Algo semelhante estava acontecendo quando ocorreu a Primeira Conferência de
População e Desenvolvimento em Bucareste, no início dos anos 70. Em vários
países, a fecundidade já começava a cair, embora não de maneira homogênea
internamente, e as condições da economia dos países em desenvolvimento não eram
mais as mesmas das décadas de 50 e 60.
A década de 70 inicia-se sob mudanças profundas na economia com repercussões
sobre todos os países e, principalmente, sobre os chamados países
subdesenvolvidos. Em agosto de 1971 os Estados Unidos abandonaram a regra de
paridade fixa da moeda estabelecida no acordo de Bretton Woods. Iniciava-se uma
nova fase de instabilidade e volatilidade das moedas, tornando as economias
emergentes muito mais vulneráveis. O aumento dos preços do petróleo e, mais
tarde, a elevação das taxas de juros nos mercados financeiros internacionais
tiveram impacto devastador nas dívidas das economias emergentes que, na sua
maioria, com desequilíbrio fiscal, enfrentaram crises profundas, com iliquidez,
alta inflação e recessão.18 Seguiu-se um período de instabilidade que
representou, na América Latina, a transição de um modelo de crescimento
econômico com base na substituição de importações e na liderança do Estado para
outra estratégia de crescimento econômico que buscava a integração da economia
no mercado internacional via fluxo de comércio e de capitais. É a nova
globalização.
É também evidente o impacto da ruptura do modelo de crescimento sobre o
desempenho das economias na América Latina. Se até a década de 70 o crescimento
era relativamente mais elevado e estável, a partir dos anos 80 as taxas médias
de crescimento são mais baixas e há uma enorme volatilidade no crescimento19
(ver o Gráfico_1 para o caso do Brasil).
No plano político internacional, têm início a era Regan nos Estados Unidos e a
era Thatcher na Inglaterra. Agora são os novos conservadorismo político e
liberalismo econômico que terão enorme repercussão sobre os programas de ajuda
e a política das instituições multilaterais. Em seguida cai o muro de Berlim e
com ele vai-se a Guerra Fria.
Essas mudanças foram importantes para refazer a agenda internacional. Desde
então, passam a ter prioridade, nas economias emergentes e em transição, os
programas de reformas estruturais, a redução da intervenção do Estado na
economia e os ajustes macroeconômicos. Busca-se construir blocos econômicos e
acordos de comércio.20 Eliminam-se barreiras aos fluxos de capitais.
Crescimento econômico, projetos de investimentos em infra-estrutura e
perspectivas de longo prazo perdem sua importância relativa na agenda
econômica, dominada então pela volatilidade do mercado financeiro e pela
vulnerabilidade das economias emergentes. O capital externo assume maior
relevância nos investimentos nas economias dos países em desenvolvimento.
Crescimento populacional perde espaço na agenda internacional.21
Nesse contexto prevalecem as preocupações com a condução da política
macroeconômica, com o controle da inflação, da dívida e do déficit públicos.
Derrubam-se barreiras alfandegárias e não-alfandegárias para estimular o
comércio exterior.
O governo conservador dos Estados Unidos reduz seu apoio aos programas de
planejamento familiar e deixa de exercer pressões sobre os organismos
internacionais para fomentar o controle populacional nos países em
desenvolvimento. Ao contrário, reduz-se o financiamento aos programas de
estímulo às políticas populacionais e ao planejamento familiar.
Nesse novo ambiente é realizada a Conferência Internacional de População e
Desenvolvimento do Cairo, em 1994,22 cujo resultado não surpreendeu mais
ninguém. Não mais se enfatizou os programas de planejamento familiar. A ênfase
foi no "empowerment" das mulheres, especialmente na área da escolha
reprodutiva. Enfatizou-se o poder das mulheres e a liberdade. A saúde
reprodutiva da mulher é o novo tema. Uma dimensão importante no novo conceito
de desenvolvimento preconizado por Amartya Sen (1999).23 Sen desenvolveu a
idéia da importância da mulher como agente de mudança social e acredita que o
acesso da mulher tanto à educação quanto ao mercado de trabalho são elementos
essenciais ao seu "empowerment". E associado ao aumento da participação da
mulher no mercado de trabalho e do seu nível educacional, segundo Sen, está a
redução dos níveis de fecundidade.
Na visão de Sen, a ênfase sobre o conceito de desenvolvimento deixa de se
concentrar no crescimento econômico para tratar do acesso às oportunidades
econômicas, sociais e políticas. A liberdade é um conceito central não apenas
como meio mas também como o próprio fim do desenvolvimento. Nesta nova visão de
desenvolvimento enfatiza-se muito a importância da redução da pobreza e da
desigualdade, que serão temas centrais na agenda das agências multinacionais a
partir dos anos 90. Todavia, nenhuma delas retoma algum tipo de política
populacional controlista como condição à ajuda aos países em desenvolvimento.
Seja por influência da nova agenda econômica concentrada nas questões de curto
prazo e nas reformas estruturais, seja por influência da orientação
conservadora do governo norte-americano, o fato é que o planejamento familiar
não aparece como componente em nenhum programa de ajuda ou em agenda de
reformas e políticas.24
Os impactos da transição demográfica
Atualmente, há um enorme acervo de pesquisas e de resultados encontrados sobre
as relações entre crescimento populacional, crescimento econômico e
distribuição da renda. Embora os resultados empíricos não sejam totalmente
conclusivos, há avanços importantes que estão instruindo os estudos mais
recentes. Como observam Birdsall e Lustig (1998), as relações são muito
complexas e os efeitos, negativos e positivos, se anulam quer seja em relação
ao crescimento da renda, quer seja em relação à pobreza (distribuição da
renda), e por isso os resultados apresentados na literatura não confirmam uma
clara relação de causalidade.
Relativamente à transição demográfica, podemos identificar três fases distintas
em relação às mudanças da distribuição etária (veja o Gráfico_2 para o caso
brasileiro). Na primeira fase ocorre um aumento na proporção de jovens e, em
conseqüência, aumento na taxa de dependência, em função da queda da mortalidade
infantil. Depois, segue-se um período de redução da taxa de dependência, graças
à redução da proporção de jovens, em decorrência da queda de fecundidade, e,
mais tarde, a taxa de dependência volta a se elevar, porque aumenta a proporção
da população idosa, enquanto as coortes menores chegam às idades produtivas.
Essas mudanças na estrutura etária ocorrem ao longo de décadas e em cada fase
pode-se pensar em diferentes impactos. Por exemplo, as preocupações de Coale e
Hoover eram informadas pela experiência da primeira fase nas mudanças da
estrutura etária e, parece-nos, concentravam-se então no exame dos impactos
mais imediatos da redução da fecundidade, isto é, o aumento relativo do
segmento da população em idade de trabalhar, no início da segunda fase. As
evidências recentes25 mostram, por exemplo, que o aumento na parcela da
população em idade produtiva (PIA) está positivamente relacionado com o aumento
da poupança e da produtividade e, em conseqüência, com o crescimento econômico.
Ao contrário, o aumento da proporção da população idosa está negativamente
relacionado com essas variáveis. A poupança gerada no período da idade
reprodutiva será consumida no período da velhice, com efeitos tanto sobre a
poupança privada quanto sobre os gastos públicos.26
Além da continuidade na exploração das relações entre mudanças na estrutura
demográfica e poupança/investimento, que foi iniciada com Coale e Hoover, a
discussão atual introduz um novo componente importante que é a relação entre as
mudanças na estrutura demográfica e a política fiscal, com efeitos tanto sobre
o equilíbrio das contas públicas quanto sobre as políticas sociais.
Atualmente, acredita-se que nos países em desenvolvimento, em particular nos
países da América Latina, que estão na segunda fase das mudanças na estrutura
etária em razão da transição demográfica, há possibilidades de se tirar
proveito da redução da taxa de dependência (aumento relativo da população em
idade de trabalhar) para promover os ajustes necessários para enfrentar a fase
seguinte em décadas futuras. É o que se chama de "bônus demográfico" ou
"dividendo" demográfico. Esses países passam pela fase em que o crescimento
populacional tem efeito positivo sobre o crescimento econômico. Como observa o
relatório do Fundo Monetário Internacional (IMF, 2004), deve-se aproveitar a
oportunidade para implementar políticas que assegurem potencializar os
benefícios do dividendo demográfico. Veja que não se trata mais de discutir
políticas de controle da natalidade, mas sim de, compreendendo o processo de
transição demográfica, definir políticas que possam ajudar o crescimento e
melhorar a distribuição da renda.
Um outro tema que merece atenção refere-se aos fluxos migratórios
internacionais. O processo de globalização dos últimos anos, diferentemente do
que ocorreu no final do século XIX, não se completou. Desta feita, os mercados
se abrem ao livre fluxo de bens, serviços e capitais, mas não se abrem às
pessoas. Naquela época, também as barreiras aos fluxos de migrantes foram
eliminadas, o que permitiu um movimento expressivo de migrantes da Europa para
o chamado Novo Mundo, por exemplo. Agora, barreiras à imigração internacional
restringem os fluxos de pessoas e são um tema de discussão nas relações
internacionais e na determinação de políticas de integração.27 Para vários
países, principalmente países menores, as migrações são importantes para a
formação da poupança, em razão das transferências de rendimentos dos imigrantes
para seus familiares, e, como conseqüência, para o próprio crescimento dessas
economias.
Além das migrações internacionais, outro tema relativo à população que passa a
ter maior importância nos estudos sobre desenvolvimento é a mortalidade. A
incidência de Aids em vários países subdesenvolvidos, efeitos da violência e de
guerras civis sobre segmentos jovens da população e diferenciais de mortalidade
nas idades mais avançadas são questões relevantes na discussão sobre
desenvolvimento econômico e social nos dias atuais.
Os avanços recentes nos estudos sobre população e desenvolvimento no Brasil
Estudos sobre os impactos da queda da fecundidade sobre as políticas sociais e,
conseqüentemente, sobre a distribuição dos gastos públicos já estão na agenda
dos pesquisadores brasileiros há vários anos. Embora os primeiros estudos que
constataram a queda da fecundidade no Brasil estivessem muito centrados em
descrever e indicar as causas desse processo, a preocupação quanto às suas
conseqüências sobre, pelo menos, o sistema educacional, o mercado de trabalho e
a previdência social sempre esteve presente.28 Ao longo das duas últimas
décadas, porém, esta preocupação foi se tornando mais refinada, pela própria
influência da literatura internacional, ampliando o debate sobre o chamado
bônus demográfico, e com isso cresceu o interesse por temas relacionados com os
impactos do processo de envelhecimento da população no Brasil.
Enquanto surgiam as primeiras evidências da queda da fecundidade no Brasil e o
debate sobre suas conseqüências tomava corpo, crescia, paralelamente, o volume
de pesquisas sobre o funcionamento do mercado de trabalho no país. É nesse
contexto que algum investimento foi feito no sentido de se tentar compreender
os mecanismos através dos quais as mudanças no tamanho e na composição da
oferta de trabalho deveriam afetar, no curto e no longo prazo, as diversas
variáveis econômicas.
Com base na ampla experiência com técnicas de padronização para controle dos
efeitos de composição da estrutura etária nos diferenciais de taxas brutas de
mortalidade, os demógrafos contribuíram ao debate identificando o papel dos
perfis etários da atividade econômica de homens e mulheres e de seus
rendimentos do trabalho. Como decorrência, mensuraram os efeitos de composição
causados pelas mudanças na estrutura etária da população economicamente ativa
sobre a distribuição de rendimentos.
De fato, a preocupação com a desigualdade da distribuição de renda vinha
intensificando-se no Brasil desde os anos 70, quando o quadro de
recrudescimento do processo de concentração estimulou um debate altamente
ideológico, no qual qualquer tentativa de identificar mecanismos de
concentração que não se baseasse exclusivamente no modelo político de
desenvolvimento adotado era recebida com desconfiança. Algumas vozes
consideradas conservadoras, como Langoni (1973) e Simonsen (1978), defendiam a
idéia de que o aumento da participação de jovens no mercado de trabalho
brasileiro, ocorrido nos anos 60 e 70 em decorrência da queda da mortalidade do
período anterior, teria desempenhado seu papel no aumento dos índices de
desigualdade.29
Se esse argumento era verdadeiro, com a queda da fecundidade, em curso a partir
dos anos 70, o efeito esperado do novo cenário de reversão das tendências
demográficas deveria ser o de diminuição da desigualdade de renda. Alguns
estudos tentaram identificar essa tendência e as inovações metodológicas desse
período foram as rigorosas análises de decomposição das medidas de
desigualdade, que passaram a explicitar, uma a uma, as componentes da
desigualdade, mensurando o exato papel da estrutura etária. Com as análises de
shift-share, ou os chamados exercícios contrafactuais, tornou-se possível
simular os efeitos esperados da mudança da estrutura etária da população
ocupada, assim como da composição educacional, regional, por sexo, por setor de
atividade, e assim por diante.30
Estimadas as contribuições de cada uma das componentes da desigualdade total,
desde logo ficou claro que, conquanto houvesse, de fato, uma parcela a ser
atribuída à estrutura etária da população, a magnitude desse efeito não deveria
ser exagerada.31 De longe, a componente educacional, dada pelo nível tanto
quanto pela distribuição da escolaridade da população brasileira, mostrou ser a
de maior impacto e, assim, o principal foco da análise sobre os determinantes
da desigualdade no Brasil voltou-se, nos últimos anos, para a questão
educacional.
Todavia, o entrelaçamento da mudança da estrutura etária e das transformações
na distribuição de escolaridade da população economicamente ativa faria com que
os efeitos do envelhecimento da população continuassem sendo objeto de
interesse das pesquisas sobre desigualdade. Projetando a escolaridade das
diversas coortes de entrada no sistema educacional no Brasil, estudos têm
apontado o papel da inércia demográfica na redefinição das dotações
educacionais da PEA brasileira (Wajnman e Menezes Filho, 2003; Vélez, Soares e
Medeiros, 2002). Em outras palavras, esses trabalhos indicam que não é possível
mudar dramaticamente a quantidade e a distribuição de escolaridade da
população, dada a sobrevivência de coortes cujo patamar de escolaridade máximo
já foi atingido em períodos anteriores às maiores mudanças no sistema escolar
do país. Wajnman e Menezes Filho (2003) mostram o efeito dessa limitação sobre
os diferenciais de rendimento no mercado de trabalho brasileiro, indicando que,
durante o processo de acomodação dos ganhos educacionais na trajetória de
envelhecimento das coortes, previsto para as próximas décadas, a desigualdade
no Brasil pode se elevar ainda mais.32
Olhando da perspectiva histórica, uma vantagem comparativa da demografia tem
sido sua ênfase no trato das fontes de dados e de métodos que propiciam a
abordagem de ciclos de vida e a combinação de informações transversais para a
inferência da perspectiva longitudinal. A prática do uso do diagrama de Lexis,
um dos instrumentos mais simples e mais poderosos da análise demográfica,
permite aos demógrafos a combinação das dimensões de coorte, período e idade na
análise das variáveis econômicas. É o uso desse instrumento que sugere a
decomposição das tendências de coorte, período e idade nos processos de mudança
social. Essa abordagem considera que uma mudança social pode ser determinada
pelas alterações no ambiente sócio-econômico-cultural, pelas alterações
inerentes aos ciclos de vida dos indivíduos que compõem uma sociedade, ou ainda
pela constante substituição de gerações com comportamentos distintos (ver
Ryder, 1965). Inicialmente proposto como método de análise das tendências de
fecundidade, os chamados modelos IPC (idade-período-coorte) foram recentemente
incorporados à pesquisa econômica.
Nesse aspecto, o Brasil apenas seguiu de perto a literatura dos países
desenvolvidos, que produziu estudos dessas tendências em variáveis como taxas
de participação, consumo, poupança, criminalidade etc.33 A exuberância da
produção local nessa linha pode ser atestada pelo volume de trabalhos que, no
curto espaço de tempo entre o final dos anos 90 e o início dos anos 2000,
focaram uma grande variedade de temas segundo a abordagem de período, coorte e
idade.34 Tendências de comportamento das taxas de participação econômica foram
analisadas por Rios-Neto e Oliveira (1999). O estudo da evolução da
desigualdade da distribuição de rendimentos também recebeu esse tratamento em
Firpo, Gonzaga e Narita (2003) e Wajnman e Menezes Filho (2003). Mudanças no
mercado de trabalho, como tamanho de jornada (analisado por Gonzaga, Machado e
Machado, 2003), distribuição dos trabalhadores por posição na ocupação
(Magalhães, 2003), evolução das taxas de desemprego (Penido, 2003) e a
participação econômica dos idosos (Souza, 2003), foram decompostas segundo
tendências de período, coorte e idade.35
Vale notar, no entanto, que o que possibilitou e impulsionou a farta produção
de estudos nessa linha no país foi a disponibilidade da série histórica de
dados anuais da PNAD, que se inicia em 1976 e que hoje já completa uma série de
27 anos de informações socioeconômicas e demográficas observadas. A enorme
melhoria no acesso aos microdados das PNADs, tanto quanto os exemplos da
literatura internacional, motivaram a incorporação das dimensões demográficas
aos estudos do comportamento de diversas variáveis econômicas. Uma vez que a
partir de dados transversais como os da PNAD não é possível identificar e
acompanhar cada indivíduo ao longo do tempo, a concatenação das informações
através dos anos deve se dar por meio de alguma característica de grupos de
indivíduos que seja possível acompanhar no tempo. A coorte surge então como
unidade de análise natural para a construção dos chamados pseudopainéis, com a
idade servindo de marcador das coortes através dos períodos, de tal modo que,
para cada ano observado, os indivíduos de uma determinada coorte tornam-se um
ano mais velhos. Assim, a adequação da dimensão da coorte à construção de
pseudopainéis parece ter sido uma importante motivação para que coortes se
tornassem unidades de análise bastante usuais na pesquisa econômica no Brasil.
É importante destacar ainda que, nesse processo de incorporação dos conceitos e
instrumentos típicos da análise demográfica pelos cientistas sociais das mais
diversas áreas, as fronteiras da pesquisa entre as diferentes áreas das
ciências sociais têm se estreitado. Contribuiu para isso o fato de a pesquisa
aplicada com uso de microdados no Brasil ter se disseminado paulatinamente,
como decorrência da própria ampliação de sua oferta. Nesse sentido, o IBGE
desempenhou papel fundamental, ao democratizar o acesso aos microdados de todas
as suas pesquisas, de forma cada vez mais barata, mais ágil e simples de lidar.
Do lado dos usuários, o crescente interesse por técnicas de pesquisa empírica,
a ampliação do leque de métodos estatísticos e a disponibilidade de pacotes
computacionais cada vez mais poderosos explicam a mudança radical nos contornos
da pesquisa sobre as relações entre população e as distintas dimensões do
desenvolvimento socioeconômico.
A antiga agenda revisada
Ao longo dos últimos anos, o escopo do debate sobre as possíveis conseqüências
do envelhecimento só tem feito aumentar, com os estudos incorporando maiores
possibilidades metodológicas de identificação de tendências e, também, maior
arsenal de informações nas quais se baseiam. Desse modo, atualmente são várias
as áreas de interesse para as quais a preocupação sobre os efeitos da transição
demográfica tem se estendido.
Na área de economia da saúde, por exemplo, cresce a preocupação com os
prováveis impactos da transição demográfica sobre os gastos públicos com saúde.
Sabe-se que a mudança do padrão epidemiológico que acompanha o processo de
envelhecimento reconfigura inteiramente o perfil etário dos gastos com a saúde,
afetando não apenas a saúde dos idosos, para quem o padrão de morbidade torna-
se crescentemente mais complexo e oneroso, mas também os gastos nas demais
faixas etárias. Dadas as enormes disparidades sociais e regionais que o Brasil
abriga, o principal desafio nessa área é o fato de que o perfil de gastos já se
modifica, como nos países desenvolvidos, com o dramático aumento do peso
relativo dos gastos com recém-nascidos e com idosos (cada vez mais numerosos e
mais longevos), ao mesmo tempo em que uma parcela significativa dos gastos
ainda é direcionada para as morbidades típicas de países subdesenvolvidos (ver
Saad, 1990; Kilsztajn et al., 2002; Nunes, 2004; Berenstein, 2005).
Outra área que recebe atenção crescente é a que relaciona os impactos do
envelhecimento com a economia das famílias. Alguns aspectos têm sido discutidos
neste caso. Em primeiro lugar, o envelhecimento da população, convivendo com a
diminuição do tamanho das famílias e a crescente participação das mulheres no
mercado de trabalho, suscita a questão de quem se ocupa com os cuidados com os
idosos e as perspectivas de redução de bem-estar desse segmento populacional
(ver Goldani, 2004; Camarano et al., 2004). Por outro lado, estudos sobre
transferências intergeracionais no Brasil têm mostrado que, por meio do sistema
previdenciário, a política social brasileira tem sido muito mais eficaz em
combater a pobreza dos idosos do que a das crianças e dos jovens.36 Como
resultado, os rendimentos dos idosos brasileiros, contabilizando-se seus
rendimentos do trabalho e de aposentadoria, têm respondido por parcelas
crescentes da composição de suas rendas familiares e exercido papel fundamental
na redução da pobreza dos domicílios em que vivem (ver Camarano et al., 2004;
Wajnman et al., 2004).
Um tema diretamente associado a este é o dos determinantes das mudanças nas
condições de participação dos idosos no mercado de trabalho (ver Liberato,
2003; Perez, 2005). Além disso, permanece a questão da crescente inviabilidade
financeira e política do sistema previdenciário brasileiro, que, baseado no
modelo de repartição simples e em uma razão de dependência crescente, tende a
gerar retornos cada vez mais negativos para as coortes atuais e futuras (ver
Fernandes, 1993).
Com tudo isso, um outro campo incipiente e promissor da pesquisa em população e
desenvolvimento é o estudo da magnitude e da direção dos fluxos
intergeracionais das transferências públicas e privadas na sociedade brasileira
(ver Turra, 2000). Conhecer as perspectivas da transição demográfica com
relação a esses fluxos é essencial para a formulação correta das políticas
sociais visando ao longo prazo.
Assim, um breve inventário do rol de temas que têm sido contemplados nas
pesquisas sobre relações entre as variáveis populacionais e o desenvolvimento
socioeconômico aponta que, ao menos no âmbito acadêmico, os estudos há muito se
distanciaram do enfoque político-ideológico que marcou o início do debate, para
se concentrarem cada vez mais nos aspectos técnicos das relações entre
população e desenvolvimento.
Entretanto, os novos rumos da pesquisa acadêmica não significam que o antigo
debate ideológico esteja superado no Brasil. Muito pelo contrário, nos últimos
tempos a sociedade brasileira vê reacender o interesse pelas relações entre
população e pobreza, a partir das evidências sobre a ineficiência do
crescimento em gerar redução de pobreza e dos ainda relativamente altos níveis
de fecundidade remanescentes nos bolsões de pobreza do país.37 Na contramão das
tendências do debate no âmbito internacional, alguns políticos e outras figuras
públicas do cenário nacional têm se manifestado a favor da necessidade de
regulação da fecundidade dos pobres como forma de combate à pobreza. O debate
acerca dessas declarações tem aparecido na mídia com bastante freqüência e
mobiliza a opinião pública de forma pouco usual.38
Na esfera das ações governamentais, por outro lado, cabe lembrar que, desde os
anos 90, a agenda política brasileira tem procurado incorporar as recomendações
do Programa de Ação Mundial aprovado na Conferência Internacional de População
e Desenvolvimento do Cairo, de 1994. Assim, em 1996 o governo Fernando Henrique
Cardoso criou o Conselho Nacional de População e Desenvolvimento (CNPD), com o
objetivo de fortalecer as relações entre o Estado e a sociedade e visando à
formulação, implementação e avaliação de políticas relativas à população e ao
desenvolvimento, com destaque para a garantia à saúde integral da mulher.39
Mais especificamente, o Estado brasileiro assumiu a tarefa de promover o
planejamento familiar gratuito com a Lei 9.263, de 1996. Recentemente, em 2005,
o governo Lula lançou a "Política Nacional de Direitos Sexuais e Direitos
Reprodutivos", reafirmando o compromisso da Lei do Planejamento Familiar e
prevendo ações em três eixos principais: ampliação do acesso aos métodos
anticoncepcionais reversíveis, ampliação do acesso à esterilização cirúrgica
voluntária e introdução da reprodução humana assistida no Sistema Único de
Saúde (SUS).
Observações finais
Atualmente há uma crescente preocupação com as conseqüências da transição
demográfica sobre o desenvolvimento. A possibilidade de se tirar proveito do
chamado bônus demográfico sugere a necessidade de se implementar políticas que
tomem em consideração o processo de mudança populacional e suas relações com as
diferentes variáveis econômicas. O ideal seria levar em conta o conhecimento
sobre a distribuição demográfica futura e suas implicações para a economia para
se tomar, hoje, as decisões de políticas públicas que terão repercussões também
no futuro.
Isto, contudo, deve ser feito de acordo com as condições específicas de cada
país. Alguns exemplos são importantes para se entender as questões.
Por exemplo, o aumento da participação relativa da população em idade produtiva
tem uma relação positiva com o crescimento econômico. Todavia, para se
potencializar essa relação, no caso do Brasil, torna-se necessário estimular a
geração de emprego feminino, a eliminação da discriminação no mercado de
trabalho e a extinção do trabalho infantil, bem como reduzir tanto o tamanho
das atividades informais de trabalho ' isto é, promover a formalização do
emprego ' quanto o desemprego. Certamente, um dos mecanismos importantes para
tanto, no caso brasileiro, é a redução da pobreza e da desigualdade. Assegurar
acesso à educação e à saúde é indispensável para o aumento da produtividade dos
segmentos da população que estão ingressando ou vão ingressar no mercado de
trabalho nos próximos anos. Implementar políticas que assegurem a atuação das
mulheres como agentes de mudanças e do desenvolvimento é outro passo importante
para promover o desenvolvimento. Promover a formalização do mercado de trabalho
é essencial, muito embora sua concretização seja complexa e dependa, em parte,
de reformas difíceis de serem acordadas e aprovadas no Congresso Nacional e de
serem implementadas. Cremos que, neste aspecto, talvez a oportunidade do bônus
demográfico esteja sendo perdida. O melhor aproveitamento do período em que a
razão de dependência é menor depende das possibilidades de absorção da mão-de-
obra em atividades mais produtivas. A história passada de baixos níveis
relativos de escolaridade das coortes que atualmente estão em idade produtiva e
a presente estrutura do mercado de trabalho são fatores que dificultam obter os
ganhos do bônus demográfico. Do mesmo modo, as enormes dificuldades na
implementação de reformas no programa de previdência social, que possam
eliminar os desequilíbrios correntes, contribuem para que se esvaziem as
oportunidades concedidas pela transição demográfica. Como se pode ver no
Gráfico_2, a partir de 2020 a taxa de dependência demográfica iniciará outro
período de crescimento.
Outro exemplo, com vistas aos impactos da estrutura demográfica sobre as
políticas públicas, principalmente previdência social e saúde, refere-se aos
estudos de mortalidade, que terão grande prioridade. Estudos sobre padrões e
diferenciais de mortalidade de segmentos adultos e de idosos segundo diferentes
características socioeconômicas poderão trazer subsídios importantes para as
políticas sociais.40
Ainda outro exemplo. Há de se pesquisar mais, também, o impacto das migrações
internacionais sobre a economia. No caso do Brasil, se de um lado as
transferências de recursos dos migrantes têm efeitos positivos, embora com
impactos regionais diferentes, de outro lado cabe examinar se essas migrações
não estariam promovendo transferência de capital humano para o exterior, na sua
maioria resultado de investimento público.
Outra questão importante refere-se ao impacto futuro sobre a previdência social
previsto para quando a transição demográfica entrar na sua terceira fase e a
taxa de dependência voltar a crescer. Essa questão é bastante complexa porque o
sistema de previdência no Brasil já opera em desequilíbrio estrutural. Do lado
da receita, há uma parcela considerável da população ativa que não contribui
por estar no setor informal; do lado das despesas os gastos são crescentes. No
futuro, não apenas o desequilíbrio poderá se agravar, mas também é possível que
o aumento do volume de população idosa sem cobertura da previdência torne ainda
mais grave o problema social no país.
Diante das evidências, dos estudos e das discussões, é possível fazer uma
listagem das questões e alertar para seus impactos e para a necessidade de
políticas públicas visando enfrentá-las. Contudo, é necessário também entender
as dificuldades em passar do conhecimento à implementação de políticas.
Em primeiro lugar, o timing das mudanças demográficas e o das decisões de
políticas públicas não são exatamente coincidentes. O agente público, em geral,
prioriza as decisões sobre questões cujos resultados aparecem no horizonte de
sua administração. As questões demográficas indicam a necessidade de medidas
cujos resultados só advirão depois de décadas.
Em segundo lugar, muitas das sugestões relativas, por exemplo, às finanças
públicas referem-se a opções entre gastar com a população presente ou gastar
com gerações futuras. Taxar as gerações presentes ou taxar as gerações futuras.
São decisões sobre fluxos entre gerações. Não é uma opção trivial escolher
entre o presente e o futuro.
Em terceiro lugar, ainda no campo das decisões de políticas públicas, é
necessário entender que elas quase sempre decorrem de pressões da sociedade,
quer mediante manifestações no Poder Legislativo, quer através da mídia, quer,
ainda, por meio da mobilização da sociedade organizada. Parece-nos razoável
supor que é pouco provável que um canal importante de influência na escolha de
políticas públicas se mobilizaria por temas cujos impactos aparecerão após, no
mínimo, uma geração. É mais comum a população se mobilizar por questões cujos
efeitos sejam sentidos de imediato.
Em quarto lugar, mesmo no caso de políticas cujos impactos podem ocorrer mais
imediatamente, como as que se referem ao mercado de trabalho, as opções não são
necessariamente consensuais. Muito ao contrário. Por exemplo, não há dúvidas de
que todos concordam que o país deveria voltar a crescer em termos sustentados e
ter taxas de desemprego mais baixas. Mas como fazer é outra estória. O desafio
ao crescimento econômico no Brasil pode, para uns, indicar a necessidade de se
aprofundar e concluir o programa de reformas econômicas e manter a austeridade
fiscal e, para outros, ao contrário, pode indicar a necessidade de se reduzir
as taxas de juros e elevar os gastos públicos. Parece-nos que a discussão dos
possíveis impactos demográficos dificilmente irá influenciar a escolha de
políticas e reformas para estimular o crescimento econômico.41
O que é lamentável, posto que diferentes políticas públicas terão impactos
diferentes sobre um cenário que já é conhecido e não foi levado em conta.42
Parece-nos, por fim, ser desejável que se entenda que o crescimento econômico é
elemento necessário ao processo de desenvolvimento. Contudo, mudanças
estruturais são determinantes para que o desenvolvimento seja amplo e
inclusivo, e a transição demográfica é uma dessas mudanças que oferece
oportunidades e desafios para o desenvolvimento futuro.