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BrBRHUAp0102-30982008000100004

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National varietyBr
Year2008
SourceScielo

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Vai , tira a roupa... e... pronto...": o acesso a consultas ginecológicas em Belo Horizonte, MG

Introdução O Brasil é um país marcado por fortes desigualdades sociais. Uma das muitas facetas dessa desigualdade está relacionada ao acesso aos serviços de saúde. A própria organização dos serviços - do tipo misto - reflete essa desigualdade. De um lado, um sistema público com orientação universal, integral e equânime, o Serviço Único de Saúde (SUS); de outro, existe um sistema privado, constituído pela oferta de seguros de saúde e pela assistência contra-pagamento direto (RIBEIRO et al., 2002). Mesmo após duas décadas desde a implantação do SUS, ainda é grande a população com dificuldade de acesso à assistência médica, sobretudo quando se trata do segmento mais carente (SENNA, 2002).

A consulta médica, de maneira geral, tem grande importância na vida dos pacientes. No caso das mulheres, a consulta ginecológica é fundamental para prevenção do câncer, especialmente o cérvico-uterino e o de mama, sendo também indispensável em programas de planejamento familiar, pré-natal, atendimento a patologias obstétricas e controle de doenças sexualmente transmissíveis (SIMÃO et al., 2004; CARVALHO; FUREGATO, 2001; BRASIL, 2002). A Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte, por meio do programa de atenção integral à saúde da mulher, recomenda que todas as mulheres passem por uma consulta ginecológica anual (BELO HORIZONTE, 1997). Contudo, o acesso ao ginecologista está muito aquém do desejado e longe de ser universal. Dados da pesquisa SRSR (Saúde Reprodutiva, Sexualidade e Raça/Cor), de 2002, indicam que, no município de Belo Horizonte, cerca de uma em cada quatro mulheres não realizou consulta ginecológica nos 12 meses anteriores à pesquisa. Assim, dada a importância deste tipode atendimento para a saúde da mulher, estudar aquelas que têm ou não acesso a consultas ginecológicas auxilia a repensar e reformular políticas públicas, para que se voltem ao público sem acesso a cuidados de saúde sexual e reprodutiva.

Este trabalho objetiva descrever e analisar o acesso das mulheres de 18 a 59 anos às consultas ginecológicas em Belo Horizonte, no início deste século. Tal finalidade é atingida por meio de duas análises distintas, mas que atuam complementarmente: a qualitativa e a quantitativa.

Demografia e saúde: uma breve revisão De acordo com dados censitários, a Taxa de Fecundidade Total - TFT, para o Brasil, era de 6,2 filhos por mulher, em 1960, diminuindo para 2,3, em 2000 (BERQUÓ; CAVENAGHI, 2006; RIOS-NETO, 2005). Para Belo Horizonte, a TFT, em 2000, correspondia a 1,6 filho, ou seja, abaixo do nível de reposição e próximo à taxa observada em alguns países desenvolvidos (PNUD, 2000).

Contudo, a redução dos níveis de fecundidade não foi uniforme no Brasil, que, apesar de generalizada, esta queda seguiu formas e ritmos diferentes, que refletem as disparidades socioeconômicas e regionais do país (MARTINE; CARVALHO, 1989; BERQUÓ; CAVENAGHI, 2004). Ainda hoje, diferenciais importantes nos vários segmentos socioeconômicos. As mulheres das camadas mais pobres da população apresentaram, em 2000, uma fecundidade de 4,1 filhos por mulher, número bem superior àquela encontrada para o país, de 2,3 (BERQUÓ; CAVENAGHI, 2004). Mesmo com a queda da fecundidade, estas mulheres não têm tido a informação necessária acerca das possibilidades de regulação da fecundidade, bem como do acesso aos quase sempre deficientes serviços públicos de saúde (CARVALHO; BRITO, 2005).

As razões que levam as pessoas a procurarem um médico resultam de uma complexa interação de fatores demográficos, socioeconômicos e psicológicos, além do perfil de morbidade do indivíduo e da sua avaliação do serviço de saúde (MENDONZA SASSI et al., 2003), ou da conjugação de fatores sociais, individuais e culturais (SAWYER et al., 2002). Além disso, características socioeconômicas e demográficas podem influenciar a facilidade com que as pessoas obtêm os serviços de saúde (TRAVASSOS; MARTINS, 2004). No caso da mulher, o acesso a serviços de saúde também é influenciado pelas relações de poder, entendidas como a habilidade que a mulher apresenta de exercer influência e controle no nível interpessoal (SAFILIOS-ROTHSCHILD, 1982).

Neste estudo, são quatro as dimensões de acesso utilizadas: socioeconômica; demográfica; de saúde; e de poder. No que se refere à dimensão socioeconômica, vários trabalhos que indicam a renda como um importante marcador do acesso à saúde. Apesar de a população mais pobre precisar mais dos serviços de saúde, a proporção de indivíduos que procuram o serviço tende a aumentar ao longo da distribuição de renda (NERI; SOARES, 2002). No que tange a consulta ginecológica, um estudo sobre os fatores associados à realização de exames preventivos para cânceres femininos por mulheres brasileiras, em 2003, relata a mesma tendência, ou seja, as mulheres com renda mais baixa realizaram menos o exame preventivo do que aquelas numa faixa de renda mais alta (NOVAES et al., 2006). Sclowitz (2005), em estudo com mulheres em Pelotas, em 2002, sugere que a prevalência de consulta ginecológica no ano anterior apresentou aumento progressivo nas classes sociais mais altas.

A escolaridade, outra variável da dimensão socioeconômica, é indicada como tendo uma relação positiva com o acesso a serviços de saúde. Mendonza-Sassi et al. (2003) relatam que, para o grupo com menor escolaridade, as chances de procurar um médico diminuem em 56%. Num estudo feito com mulheres residentes em Belo Horizonte, em 2002, foi constatado que as mais escolarizadas apresentaram chance de terem tido uma consulta ginecológica, nos meses anteriores à pesquisa, quase duas vezes superior à daquelas com escolaridade mais baixa (SIMÃO et al., 2004).

Quanto à dimensão demográfica, aspectos como idade, raça/cor, estado conjugal, parturição e religião merecem investigação. A idade das mulheres está intrinsecamente ligada à busca por um serviço gineco ógico, pois, em cada fase da vida, elas apresentam particularidades que exigem um acompanhamento ginecológico regular - menarca, primeira relação sexual, gravidezes e partos, contracepção, menopausa, climatério, além de doenças que passam a ser mais presentes em algum momento da vida, exigindo, assim, um maior ou menor acesso à consulta ginecológica ao longo do ciclo de vida (NÉRI; SOARES, 2002; SCLOWITZ et al., 2005).

Estudos mostram que a raça/cor também é importante no que se refere ao acesso à consulta ginecológica. Ser branco possibilita um acesso maior aos serviços de saúde, ou seja, uma pessoa branca tem suas chances de consumir serviços de saúde aumentadas em 3% (NÉRI; SOARES, 2002). De acordo com dados da PNDS de 1996, cerca de 35% das entrevistadas negras1 nunca haviam feito um exame ginecológico, enquanto para as brancas este percentual era de 22%. Indagadas sobre a realização de exame ginecológico no último ano, este déficit persistia: 60% de negras e 46,5% das brancas não o haviam feito (PERPÉTUO, 2000).

O estado conjugal também deve ser considerado. Quanto ao exame papanicolau, preventivo de câncer uterino, um estudo realizado em 2003 apontou que as mulheres casadas apresentavam uma chance maior de realizarem o exame do que as não-casadas (NOVAES et al., 2006).

A gravidez é, muitas vezes, o único momento em que as mulheres buscam o ginecologista, além de ser a ocasião em que muitas mulheres têm um primeiro contato com este médico. Segundo Novaes et al. (2006), entre as brasileiras que tinham filhos, 77% fizeram o exame papanicolau; este percentual era de 65% para aquelas sem filhos.

A religião também é importante no que diz respeito à consulta ginecológica, podendo influenciar o comportamento das mulheres. Um estudo sobre adolescentes do Rio de Janeiro indicou que o crescimento do protestantismo e a queda da proporção de católicos causaram um impacto na fecundidade dessas mulheres (MCKINNON et al., 2004). Nota-se, portanto, que a religião apresenta um importante papel no comportamento reprodutivo das adolescentes, o qual pode ser estendido para a consulta ginecológica.

A dimensão saúde engloba o tipo de serviço, o número de consultas, a posse de plano de saúde, a contracepção, a idade na primeira relação e ter tido alguma DST. No caso de Belo Horizonte, quando indagadas sobre onde ocorreu a última consulta ginecológica, 30% das negras indicaram que realizaram este atendimento na rede pública e 28% por meio de convênio; para as brancas, estes percentuais foram de 17% e 42%, respectivamente (SIMÃO et al., 2004).

No tocante ao tipo de serviço, uma relação positiva esperada entre posse de plano e acesso a serviços de saúde (NOVAES et al., 2006). No caso de Belo Horizonte, as mulheres com plano de saúde apresentaram chance três vezes superior à das usuárias do SUS de terem feito uma consulta com um ginecologista nos 12 meses anteriores à pesquisa (SIMÃO et al., 2004).

O método anticoncepcional também é de fundamental importância, que a escolha por um método deveria ser feita junto ao ginecologista, com todo o suporte necessário (COSTA et al., 1998). Em Belo Horizonte, em 2002, as usuárias de preservativo apresentavam 1,3 vez a chance das não-usuárias de terem feito uma consulta nos 12 meses anteriores à pesquisa. Percebe-se a mesma tendência no caso das mulheres esterilizadas, com 1,5 vez a chance das não-esterilizadas de terem buscado consulta. No caso das usuárias de métodos modernos, este número subiu para 1,6 (SIMÃO et al., 2004). Nota-se, assim, que ser usuária de um método contraceptivo e, sobretudo, moderno aumentou a chance da mulher de ter ido ao ginecologista.

A idade na primeira relação sexual poderia ser considerada tanto uma variável demográfica quanto de saúde. A partir da primeira relação sexual, a mulher passa a estar exposta a DSTs e gravidez, fazendo com que ela busque com mais freqüência um ginecologista. De fato, o ideal seria que toda mulher, antes de ter sua primeira experiência sexual, procurasse um ginecologista e se informasse não sobre métodos, mas também a respeito dos diversos aspectos que envolvem uma relação sexual.

Outro indicador importante é a própria informação sobre ter tido alguma DST ou sintoma, pois, se uma mulher teve alguma doença sexualmente transmissível ou sintoma, ela provavelmente terá recorrido a um ginecologista. Em Belo Horizonte, as mulheres que haviam tido alguma DST apresentaram quase duas vezes a chance de ter ido ao ginecologista em relação àquelas que não tiveram qualquer DST (SIMÃO et al., 2004).

A dimensão poder pode ser pensada do ponto de vista da autonomia, que esta é muito importante na procura por serviços de saúde. Autonomia possui diversos significados relacionados a autodeterminação, direito à liberdade, privacidade, escolha individual e livre vontade. Segundo Costa et al. (2006), autonomia é a capacidade de pensar, decidir e agir, com base no pensamento livre e na decisão independente. Pode ser entendida ainda como a habilidade para obter informação e utilizá-la como ponto de partida para a tomada de decisão em relação a preocupações particulares e de cunho íntimo. A informação é pressuposto fundamental para a autonomia. Quanto maior a autonomia da mulher, maior deverá ser o seu conhecimento e, conseqüentemente, maior será a sua busca por uma consulta ginecológica. Ademais, mulheres com maior autonomia e conhecimento sobre consulta ginecológica provavelmente mostrar-se-ão mais à vontade diante desta.

Estudos que abordam a consulta ginecológica convergem ao indicarem o desconforto das mulheres diante dos exames a que são submetidas durante a consulta (CARVALHO; FUREGATO, 2001; MAGEE, 1988). A vergonha que as mulheres têm de estarem nuas diante dos médicos, sendo observadas e manipuladas, o medo do exame e do resultado, o atendimento rápido e impessoal, a relação autoritária da equipe com as pacientes, o espaço inadequado, o tempo de espera para o atendimento, a emissão de resultados e a marcação das consultas são outros motivos apontados pela literatura que podem desencorajar uma consulta ginecológica (COSTA et al., 1998). Entretanto, as motivações para a busca por uma consulta ginecológica são várias e vão desde o medo do câncer, o desejo de cuidar-se e a presença de algum incômodo até a obrigatoriedade de exames na rotina do programa de saúde (CARVALHO; FUREGATO, 2001).

Dados e metodologia Etapa quantitativa Na etapa quantitativa, utilizaram-se os dados da pesquisa Saúde Reprodutiva, Sexualidade e Raça/Cor (SRSR), realizada em Belo Horizonte e Recife. Este banco de dados é oriundo do Programa Ensino e Pesquisa em Saúde Reprodutiva, Sexualidade e Raça/Cor (MIRANDA-RIBEIRO; CAETANO, 2003). O questionário da pesquisa incluía, além de questões sociodemográficas, temas como fecundidade, casamento e atividade sexual, abordando questões como acesso a plano de saúde, atendimento médico, gravidez, contracepção e DSTs (MIRANDA-RIBEIRO; CAETANO, 2003).

Das 1.302 mulheres entrevistadas em Belo Horizonte, foram excluídas aquelas de 15 a 17 anos, as que declararam nunca ter tido relação sexual, as que disseram nunca ter ido ao ginecologista e as que se declararam MSM (mulheres que fazem sexo com mulheres). As com menos de 18 anos foram excluídas porque, na etapa qualitativa, foram entrevistadas maiores de idade. Foram excluídas também deste trabalho as mulheres amarelas e indígenas, por representarem pequena parcela da população em estudo. Portanto, o banco de dados utilizado neste trabalho foi composto por 983 mulheres entre 18 e 59 anos. As variáveis foram agrupadas nas quatro dimensões mencionadas: demográfica, socioeconômica, saúde e poder.

Foram quatro as variáveis da dimensão demográfica trabalhadas: idade, raça/cor, situação conjugal e parturição. A idade foi categorizada em nove níveis: 18 a 19, 20 a 24, 25 a 29, 30 a 34, 35 a 39, 40 a 44, 45 a 49, 50 a 54 e 55 a 59 anos. Quanto à raça/cor, os dados foram coletados por meio de pergunta baseada no quesito cor do IBGE, com cinco categorias pré-codificadas, restando três para análise neste banco de dados: branca, preta e parda. As mulheres pardas e pretas apresentamse em categorias separadas, em vez de reunidas na categoria "negra", que se pretendia verificar possíveis diferenças entre estes dois grupos. A situação conjugal foi dividida em cinco categorias: solteira, casada, unida, divorciada/separada e viúva. Decidiu-se por manter casadas e unidas em categorias separadas, uma vez que a união com casamento civil e/ou religioso pode significar maior estabilidade do que a união consensual. No caso de divorciada/separada, decidiu-se por unir as duas categorias, pois ambas representam casos em que a mulher teve um companheiro, não mais o tem e esta ruptura foi deliberada - seja por parte da mulher, do homem ou de ambos.

Finalmente, a parturiçãofoi dividida em quatro categorias: sem filhos, 1 filho, 2 filhos, 3 filhos ou mais. Devido ao declínio da fecundidade, julgou-se adequado fazer a diferenciação quanto ao número de filhos.

Foram cinco as variáveis utilizadas para a dimensão socioeconômica: número de bens duráveis, número de cômodos na casa, escolaridade, religião e plano de saúde. As duas primeiras foram inseridas como uma proxyde renda, que diversos estudos indicam que renda é determinante no acesso aos serviços de saúde, ou seja, quanto maior a renda do indivíduo, maior será seu acesso a estes serviços. No caso da variável número de bens duráveis, a categorização foi feita com base na atribuição de pontos para cada um dos bens duráveis presentes no domicílio, conforme categorização da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa2.

A variável escolaridade foi dividida em quatro categorias: 0 a 3 anos de estudo (analfabetas funcionais), 4 a 7, 8 a 11 e 12 anos ou mais. No caso da variável religião, foram três as categorias: católica, protestante/pentecostal e atéia/ outros. Optou-se por unir protestante e pentecostal porque ambas apresentam a mesma origem e diferenciam-se da religião católica em sua base. A variável plano de saúde, de acordo com a literatura pesquisada, está positivamente associada ao acesso a serviços de saúde, incluindo a consulta ginecológica.

A dimensão saúde capta questões de acesso, vida sexual, contracepção e DSTs.

Variáveis tais como onde costuma procurar o ginecologista, onde procurou o ginecologista nos últimos 12 meses e se tem ou teve acompanhamento ginecológico regular permitem indicar se essa mulher é usuária do serviço público de saúde ou se busca a consulta por outros meios, além de caracterizar se a entrevistada vai ao ginecologista regularmente. O método anticoncepcional foi dividido em seis categorias: métodos hormonais, métodos de barreira, DIU, métodos cirúrgicos, naturais/outros e não está usando/nunca usou. Optou-se por deixar o DIU em uma categoria separada porque a opção por este método implica, necessariamente, uma intervenção ginecológica; o mesmo vale para os métodos cirúrgicos. A idade na primeira relação foi dividida em cinco categorias: menos de 15 anos, 15 a 19, 20 a 24, 25 a 29 e 30 anos ou mais.

Por fim, a variável da dimensão poder - evitaria relação se o parceiro se recusasse a usar camisinha - foi incluída no modelo como uma tentativa de indicar o grau de autonomia da entrevistada. Assume-se que uma mulher com poder é aquela que evitaria a relação caso o parceiro se recusasse a usar preservativo. Apesar de instigante, sabe-se que a variável apresenta limitações. Em primeiro lugar, nem toda mulher considera o uso de preservativo algo importante, sobretudo entre as que têm relação estável e parceiro fixo.

Assim, mesmo que tenha poder, ela pode responder que não evitaria a relação caso o parceiro se recusasse a usar camisinha. Portanto, nesse caso, a resposta não seria uma proxyde poder. Uma outra razão para a mulher não tentar evitar a relação sem camisinha pode estar ligada à contracepção. Caso ela utilize outro método ou esteja no climatério, o fato dela não evitar relação sem preservativo pode não ser um sinal de falta de poder na relação, mas um simples reflexo do fato de este método ser fortemente relacionado apenas à prevenção da gravidez.

Ainda assim, e tendo ciência destas limitações, optou-se por manter a variável.

Nesta etapa, utilizou-se o método Grade of Membership (GoM), que possibilita delinear perfis internamente homogêneos e, além disso, permite classificar os indivíduos em relação à sua proximidade aos perfis. Esta propriedade do método é bastante desejável e conveniente, uma vez que não é possível esperar que todos os indivíduos tenham todas as características de um dado perfil homogêneo, podendo partilhar características de múltiplos conjuntos. De fato, o GoM lida com dois dos maiores problemas na determinação de uma classificação ou tipologia: a identificação de grupos e a descrição de diferenças entre os mesmos (CERQUEIRA, 2004).

Os perfis formados são chamados de perfis extremos e correspondem a conjuntos bem definidos. Quanto maior o número de variáveis inseridas no modelo, mais bem definido será o conjunto. Estas variáveis poderão ser internas, quando são potencialmente importantes na conformação do perfil, ou externas, quando são variáveis dependentes, de estratificação do perfil (MANTON et al., 1994).

Para cada elemento de um conjunto, um escore de pertinência, gik, que indica o grau de pertinência do i-ésimo elemento, ao k-ésimo conjunto ou perfil. A determinação de escores de pertinência, gik, para cada unidade de estudo, permite representar a heterogeneidade destas, sendo que este escore pode variar entre zero e um. Um escore zero indica que a observação não pertence ao perfil k; o escore um indica que esta observação possui todas as características do perfil k. Logo, quanto mais uma observação i se aproximar do perfil extremo k, maior será seu grau de pertinência a este perfil e, conseqüentemente, menor será o grau de pertinência em relação aos demais perfis (CERQUEIRA, 2004).

Assim, o valor gik representa a proporção de pertinência a cada perfil extremo, com as seguintes restrições:

Além do parâmetro gik, o modelo também estima a probabilidade de uma categoria l, de uma variável j, pertencer ao perfil extremo k, ou seja, a probabilidade de resposta 1 para a j-ésima variável pela entrevistada com o k-ésimo perfil extremo, λkjl. Assim, λkjl os medem a probabilidade de que exista, na população, alguém com grau de pertinência total ao perfil k, dada a resposta à categoria l na variável j (SAWYER et al., 2002).

Nesse estudo, uma categoria entra como característica marcadora de um perfil extremo se a razão entre seu λkjl e a freqüência marginal for igual ou superior a 1,2, ou seja, se λkjl for pelo menos 20% superior à freqüência marginal. Este parâmetro mínimo teve como fundamento outros trabalhos que aplicaram a mesma técnica (SAWYER et al., 2002; CERQUEIRA, 2004).

Na versão do pacote estatístico aqui utilizada - DSIGoM version 1.0, Decision Systems, INC, 1999 -, deve-se escolher uma variável indicadora, para definição do número de perfis extremos a serem gerados (LACERDA et al., 2005). A escolaridade foi escolhida como variável indicadora, o que fez com que o modelo gerado apresentasse quatro perfis, que era este o número de categorias da variável em questão. Assim, cada perfil foi marcado pela probabilidade de 100% de mulheres "tipos puros" pertencerem a uma dada categoria de escolaridade (cada um dos quatro níveis da variável indicadora). Ou seja, existe no modelo construído uma correlação muito elevada entre cada nível da variável indicadora e o perfil formado. Esta propriedade é desejável e esperada para todas as variáveis, mas, no caso da variável indicadora, isso é previamente especificado. A escolha desta variável indicadora se deu pelo fato de a literatura indicar ser a escolaridade um fator determinante no acesso a serviços de saúde em geral e, conseqüentemente, à consulta ginecológica. Logo, é esperado que cada perfil seja altamente correlacionado com a variável escolaridade.

Cabe observar que a variávelfoi ao ginecologista nos últimos 12 mesesfoi tida como a variável externa, ou seja, de estratificação dos perfis gerados, mas que não é importante na determinação dos perfis em si.

Finalmente, a prevalência de cada perfil na população estudada pode ser calculada por intermédio de uma média das pertinências das mulheres em cada perfil, equivalendo a um escore médio para cada um dos perfis. Estes escores médios representam a prevalência de cada um dos perfis na população total pesquisada (DRUMOND et al., 2007) e foram calculados para o presente estudo.

Etapa qualitativa A pesquisa qualitativa tenta interpretar os fenômenos sociais com base nos sentidos que as pessoas lhes dão (POPE; MAYS, 2005). As informações obtidas por métodos qualitativos garantem ao pesquisador maior flexibilidade e criatividade no momento da coleta e na análise (GOLDENBERG, 1997). Isto ocorre porque as pesquisas qualitativas têm como objetivo lidar com a subjetividade e a singularidade dos fenômenos sociais, não tendo a pretensão de criar dados generalizáveis. No campo da saúde, a pesquisa qualitativa tem sido empregada para abordar questões sobre fenômenos sociais, variando desde comportamentos humanos, como a anuência dos pacientes ao tratamento e a tomada de decisões por profissionais da saúde, até a organização da clínica hospitalar (POPE; MAYS, 2005).

A técnica utilizada neste trabalho foi a entrevista em profundidade, que pode ser definida como "um processo de interação social entre duas pessoas na qual uma delas, o entrevistador, tem por objetivo a obtenção de informações por parte do outro, o entrevistado" (HAGUETTE, 1997, p.86). A principal vantagem desta técnica é possibilitar ao pesquisador obter informações não acessíveis por meio de questionários estruturados e que ajudam a compreender o comportamento do entrevistado e sua representação a respeito de sua experiência de vida, a partir da identificação de situações e opiniões acerca do tema pesquisado (WEISS, 1994).

Foram utilizadas neste estudo 33 das 60 entrevistas semi-estruturadas oriundas do Projeto "Aspectos quantitativos e qualitativos acerca do acesso à contracepção e ao tratamento e diagnóstico de câncer de colo uterino: uma proposta de análise para o município de Belo Horizonte, MG",3 levado a campo pelo Cedeplar. As entrevistas foram realizadas entre março e junho de 2006, em Belo Horizonte, com mulheres de 18 a 59 anos.4 O critério de escolha das 33 entrevistas foi baseado em seis variáveis, de forma que as mulheres da etapa quantitativa e qualitativa tivessem características comuns com relação a escolaridade, idade, situação conjugal, raça/cor, plano de saúde e parturição.

As 33 mulheres entrevistadas distribuem-se pelos quatro perfis delineados na etapa quantitativa (Quadro_1).

A análise das entrevistas qualitativas foi feita com base em um estudo temático dos dados obtidos, categorizando-os a partir das questões de interesse. Foram usadas transcrições literais das falas das entrevistadas, refletindo pensamentos e opiniões das mesmas. Utilizou-se uma espécie de análise de conteúdo, definida como "uma técnica de pesquisa para fazer inferências replicáveis e válidas dos dados, a partir do seu contexto" (KRIPPENDORFF, 1980, p.21).

Diferentemente dos dados quantitativos, as entrevistas qualitativas não poderão ser generalizadas para a cidade de Belo Horizonte, mas permitirão investigar, mais a fundo, aspectos sobre as consultas ginecológicas na perspectiva das pacientes.

Perfis de acesso às consultas ginecológicas em Belo Horizonte Das 983 mulheres analisadas neste trabalho, ou seja, aquelas de 18 a 59 anos, que tinham tido relação sexual e haviam consultado ginecologista alguma vez na vida, 75,2% (739) tiveram consulta ginecológica nos 12 meses anteriores à entrevista, enquanto 24,8% (244) não consultaram um ginecologista neste mesmo período.

A construção dos perfis extremos é feita a partir da estimação dos valores de λkjl. Posteriormente, é calculada a razão entreesses valores e as freqüências marginais de cada categoria contemplada no modelo, o que possibilitará definir as características dominantes em cada perfil. As categorias em que a razão entre probabilidade estimada e freqüência marginal é maior ou igual a 1,2 são aquelas que delineiam os perfis (Tabela_1).

Perfil I: as mulheres mais desfavorecidas As mulheres que correspondem aos tipos puros do perfil I apresentaram maior probabilidade de serem as mais desprivilegiadas quanto às características socioeconômicas. Isso se reflete claramente no número de bens duráveis e de cômodos existentes em suas casas. Estas mulheres têm escolaridade de 0 a 3 anos e apresentam maior probabilidade de não possuírem plano de saúde; na população total, 46% das mulheres tinham plano de saúde, para aquelas pertencentes ao perfil I essa proporção era de 6,4%, ou seja, as mulheres deste perfil têm cerca de 7 vezes menor probabilidade de ter acesso a um plano de saúde. No que se refere às características demográficas, as mulheres deste perfil apresentam maior probabilidade de serem mais velhas, que suas idades variam entre 45 e 59 anos, de serem pretas, unidas, divorciadas/separadas ou viúvas. Essas mulheres possuem, também, maior probabilidade de terem três ou mais filhos - do total, 29,9% estavam nesta faixa de parturição, enquanto para o perfil I essa porcentagem era de 76,1%.

Quanto à dimensão saúde, as mulheres deste perfil apresentam maior probabilidade de não estarem usando/nunca terem usado algum tipo de método anticoncepcional ou de fazerem uso de métodos cirúrgicos, tendo iniciado sua vida sexual com menos de 15 anos ou mais de 30. No que diz respeito à consulta ginecológica, essas mulheres apresentam maior probabilidade de não terem acompanhamento regular e de não terem visitado o ginecologista nos 12 meses anteriores à pesquisa. As mulheres pertencentes aos tipos puros deste perfil apresentam 100% de probabilidade de terem ido ao serviço público procurar um ginecologista; para o total da amostra, este percentual correspondia a 47,51%.

No que tange a variável da dimensão poder, as mulheres deste perfil não tentariam evitar uma relação sexual caso o companheiro se recusasse a usar preservativo. duas possíveis explicações: ou elas não se sentiram com poder para exigir isso, ou não consideram relevante o uso de preservativo.

Perfil II: as mulheres desfavorecidas As mulheres contempladas pelo perfil II apresentam escolaridade um pouco mais alta (4 a 7 anos de estudo) quando comparadas àquelas do perfil I. Percebe-se a mesma tendência de ligeira melhora em relação ao perfil I nas demais variáveis da dimensão socioeconômica. No tocante ao plano de saúde, estas mulheres registram trinta pontos percentuais a mais de probabilidade de não terem plano de saúde relativamente ao total da amostra (88,2% e 54%, respectivamente).

Estas entrevistadas possuem, também, maior probabilidade de terem poucos bens duráveis e cômodos em suas casas. Quanto às variáveis da dimensão demográfica, estas mulheres têm maior probabilidade de serem um pouco mais jovens (40 a 49 anos) quando comparadas às do perfil I e de terem uma parturição de dois ou mais filhos. As mulheres deste perfil apresentam, ainda, maior probabilidade de serem pardas, protestantes ou pentecostais e de serem casadas, unidas ou divorciadas/separadas.

Na dimensão saúde, as mulheres pertencentes a este perfil têm maior probabilidade de fazerem uso de DIU ou de algum método cirúrgico, bem como de não terem um acompanhamento ginecológico regular e de não terem ido ao ginecologista nos 12 meses anteriores à pesquisa. A probabilidade de terem procurado o serviço público para consulta com ginecologista é superior nesse perfil (95,9%) relativamente ao total (47,5%).

Na variável da dimensão poder, percebe-se a mesma tendência do perfil anterior, que estas mulheres apresentam maior probabilidade de afirmarem que não evitariam a relação sexual se o parceiro se recusar a usar preservativo.

Perfil III: as mulheres favorecidas As mulheres pertencentes ao perfil III tinham entre 8 e 11 anos de estudo. No que concerne às demais variáveis da dimensão socioeconômica, apresentam maior probabilidade de terem 7 a 8 cômodos em suas casas e maior número de bens duráveis comparativamente aos dois perfis anteriores. no que se refere à dimensão demográfica, essas mulheres apresentam maior probabilidade de serem mais jovens, com idades de 18 a 34 anos, de serem solteiras e sem filhos ou com apenas um filho.

Nas variáveis da dimensão saúde, essas mulheres têm maior probabilidade de usarem métodos hormonais ou naturais/outros, bem como de procurarem o serviço particular para uma consulta ginecológica. As mulheres deste perfil também apresentam maior probabilidade de ocorrência da primeira relação sexual mais jovens (idades de 25 a 29 anos).

Diferentemente dos dois perfis anteriores, não um padrão bem delineado no que diz respeito à dimensão poder.

Perfil IV: as mulheres mais favorecidas O perfil IV reúne as mulheres de alta escolaridade (12 anos ou mais de estudo).

Comparadas àquelas pertencentes aos demais perfis, essas mulheres apresentam maior probabilidade de terem maior número de bens duráveis e de cômodos em suas residências. Enquanto no total apenas 23,2% das entrevistadas dispõem de nove cômodos ou mais, neste perfil tal proporção é de 62,6%. Ainda verifica-se maior probabilidade de serem atéias ou professarem outras religiões e de terem plano de saúde, proporção esta que atinge 98,3% das mulheres deste perfil, enquanto apenas 46% do total tinham acesso a um plano. Nota-se, portanto, que, nas variáveis socioeconômicas, estas mulheres apresentam situação bastante favorável.

Observando as variáveis da dimensão demográfica, estas mulheres possuem maior probabilidade de terem de 35 a 39, 45 a 49 ou 55 a 59 anos, de serem solteiras, brancas e de não terem filhos (cerca de 2 vezes mais do que no total).

Nas variáveis da dimensão saúde, as mulheres deste perfil apresentam maior probabilidade de fazerem uso de método de barreira ou de não estarem usando ou de nunca terem usado algum método anticoncepcional, com maior probabilidade de terem iniciado suas vidas sexuais com idade entre 20 e 29 anos. Elas apresentam, ainda, maior probabilidade de terem um acompanhamento ginecológico regular e de procurarem este serviço por intermédio de plano de saúde ou consulta particular.

Na dimensão poder, se o parceiro se recusasse a usar preservativo numa relação, as mulheres deste perfil tentariam evitar tal relação com alguma certeza.

Prevalência dos perfis Verificou-se que o perfil com maior prevalência foi o perfil III, que corresponde às mulheres favorecidas, cujo escore médio é de 0,389, representando 38,9% do total da amostra. Nos demais, os valores corresponderam a 29,3% no perfil II (mulheres desfavorecidas), 19,9% no IV (mais favorecidas) e 11,9% no I (mais desfavorecidas). Ressaltese que 41,2% do segmento pesquisado classifica-se nos perfis I e II, que representam camadas populares. Portanto, ainda é muito grande a proporção de mulheres com baixa escolaridade e maior probabilidade de viverem em piores condições, incluindo um pior acesso à consulta ginecológica.

Percepções acerca da consulta ginecológica em Belo Horizonte O acesso à consulta ginecológica vai além do número de consultas, da sua periodicidade ou dos fatores investigados até o momento. É preciso, ainda, entender, na perspectiva das mulheres, as motivações para procurar (ou não) o ginecologista e o que acontece "dentro das quatro paredes do consultório".

A primeira consulta ginecológica É razoável esperar que a primeira consulta ginecológica seja importante na vida da mulher. É ela que "apresentará" a paciente a esta consulta. Uma boa primeira experiência é fundamental para que a mulher volte outras vezes e faça da consulta ginecológica um instrumento de prevenção e conhecimento. O momento de sua realização também é aspecto primordial, que esta consulta tem importante papel informativo, além de ser de grande relevância para que a mulher tenha uma vida sexual saudável. Temas como o próprio corpo, sexualidade e métodos anticoncepcionais devem ser discutidos com o ginecologista. As entrevistadas entendem a importância desse momento e é consenso que a primeira consulta deve ocorrer ainda durante a adolescência.

Muitas mulheres acreditam que a primeira consulta deve estar vinculada à primeira menstruação, que este é um momento em que o corpo da mulher passa por grandes transformações. O início da vida sexual também foi apontado por muitas entrevistadas como um momento adequado para que a primeira consulta ginecológica aconteça, quando a informação é de extrema importância. A consulta ginecológica, nesta ocasião, foi mencionada como um instrumento relevante para que uma gravidez precoce seja evitada.

E:5 Quando você acha que uma mulher deve ir ao ginecologista pela primeira vez? Célia: Ai, eu acho que assim que ela começa a ter as primeiras relações sexuais, .

E: Você acha que deve ir? Célia: É. Pra prevenir, ? (4 a 7 anos de estudo, 49 anos) Os depoimentos sugerem que teoria e prática estão bem distantes no caso das mulheres de camadas populares. Apesar de serem favoráveis à prevenção, para estas mulheres a primeira consulta esteve intimamente relacionada à gravidez.

Elas procuraram uma consulta ginecológica, pela primeira vez, quando estavam grávidas ou por desconfiarem de estar nesta condição.

E: Agora, quando que a senhora casou? Sara: Ah, eu casei tava com 20 anos.

E: 20 anos? Sara: É.

E: E nessa época a senhora ia ao ginecologista? Sara: Não.

E: E quando engravidou? Sara: Ah, quando engravidei eu fui. Eu fiz pré-natal, até trabalhava ainda. Eu fiz pré-natal quase na véspera de eu ganhar.

(0 a 3 anos de estudo, 55 anos) para as mulheres com oito ou mais anos de estudo, a primeira consulta se deu em outro momento da vida, em função da vontade de receber orientação sobre sexo e um método anticoncepcional ou, ainda, após a menarca.

E: Você lembra a primeira vez que você foi ao ginecologista? Cíntia: A primeira vez que eu fui, deixa eu ver... Foi antes de ter a primeira relação que eu fui na primeira vez. Que eu fui procurar saber, ? Do remédio. Como acontecia, e tal.

E: E você lembra como que foi essa consulta? Cíntia: (...) Eu fui pra conversar com ele, que eu queria ter relação e tal. Ele conversou normal, explicou, ? As coisas, o jeito de como engravidar e tal, também.

(8 a 11 anos de estudo, 23 anos) Portanto, as entrevistas sugerem que a primeira consulta ginecológica se deu em momentos bem diferentes para estes dois grupos de mulheres. De fato, as mulheres de camadas populares, que mais precisam de informação sobre aspectos ligados à sexualidade e à saúde reprodutiva, são exatamente aquelas que não utilizaram a consulta ginecológica para esta finalidade. É importante ressaltar que a consulta ginecológica foi considerada, por muitas entrevistadas, o momento em que acontece o aprendizado sobre questões relacionadas ao sexo.

Como, em geral, as famílias não discutem esses assuntos e as escolas, muitas vezes, deixam a desejar, este papel é atribuído ao ginecologista. Esta idéia foi mais recorrente no caso das mulheres mais velhas. Isto pode ter acontecido porque as mais jovens, por viverem numa época em que o conhecimento é mais acessível (Internet, televisão), não vêem o ginecologista como a única fonte de informação.

Como estas mulheres se sentiram na primeira consulta ginecológica? Segundo as entrevistas, elas ficaram envergonhadas e constrangidas neste primeiro contato, independentemente da idade e do nível de escolaridade, que mesmo as mulheres de maior escolaridade afirmaram que se sentiram desconfortáveis na primeira consulta.

E: É... E você lembra quando foi a primeira vez que você foi ao ginecologista? Mariana: Foi em 2001...

E: E você lembra como foi a sua primeira consulta? Mariana: Ah... Eu fiquei morrendo de vergonha...

E: (risos) Me conta um pouquinho como foi...

Mariana: ... Eu fiquei com vergonha !? Ah... Esse negócio de ficar tirando a roupa perto dos outros é horrível.

(8 a 11 anos de estudo, 29 anos) É curioso perceber, ainda, como a vergonha e a timidez podem ser dificultador para que as mulheres busquem esta consulta. Carmem acredita, num primeiro momento, que a mulher não deve ir nunca ao ginecologista, tamanho é o constrangimento que ela sente no momento do exame. Quando indagada sobre os riscos que corre não indo a esta consulta, ela revê sua postura. No entanto, fica clara a barreira existente entre a paciente e a consulta, sendo que a maneira como o médico a trata é responsável por este obstáculo - a forma de tratamento contribui para o aumento da vergonha.

E: Quando a senhora acha que as mulheres devem começar a ir ao ginecologista? Carmem: Ah, eu acho que não deve ir nunca (...) E: É mesmo? Carmem:Só da gente ter que ficar pelada (...) E: Mas igual a senhora falou, se ficar doente? Mesmo assim? Carmem:Ah, ce sabe que que é? Ah, mas mesmo assim (...) não, eu acho que deve ir se atender, mas eu acho que se tiver um posto, um médico que trata a gente ia, mas acontece que eu acho que tem médico muito sem educação, a gente pega e fica com vergonha ? Falando as coisa assim, gritando com a gente, a primeira não, a primeira (...) e a gente pega e não vai.

(0 a 3 anos de estudo, 50 anos) No decorrer das entrevistas, percebese que as mulheres atribuem grande importância à primeira consulta ginecológica, considerando-a uma valiosa fonte de informação, seja sobre métodos contraceptivos e funcionamento do corpo, seja a respeito de gravidez. Independente da escolaridade da mulher ou do momento indicado para que esta consulta aconteça, ela está sempre associada a esta busca pela informação e prevenção.

As mulheres de camadas populares, apesar de terem ido ao ginecologista pela primeira vez por estarem (ou pensarem estar) grávidas, acham que este não é o momento oportuno para a primeira consulta e acreditam que o ideal é ir antes da primeira gravidez. É possível que haja uma mudança de conduta e elas transmitam às suas filhas a importância de irem ao ginecologista antes de engravidarem, ou pode ser que, para elas, a teoria continue muito distante da realidade. Deve-se considerar, nesta discussão, a questão do acesso, que, conforme mencionado, as mulheres com menor renda e menos escolaridade apresentam menor acesso à consulta ginecológica se comparadas àquelas com uma condição socioeconômica mais favorável.

Se a segunda hipótese for verdadeira, deve-se considerar, ainda, que a idade média na primeira relação sexual diminuiu e, ao mesmo tempo, que a idade média na primeira gravidez aumentou nos últimos anos, o que faz com que as mulheres que procuram o ginecologista apenas na primeira gravidez façam mais tardiamente. Elas estariam, assim, mais expostas e sem o devido cuidado com relação às DSTs. Outro ponto importante refere-se à queda da fecundidade. Se as mulheres menos favorecidas procurarem o ginecologista apenas quando estiverem grávidas, as consultas acontecerão cada vez com menor freqüência, que houve uma redução brusca na fecundidade das mulheres brasileiras, inclusive daquelas menos escolarizadas, as quais, apesar de ainda terem mais filhos do que as mulheres de maior escolaridade, não mais chegam a atingir os níveis de fecundidade observados 30 anos.

No que concerne a dimensão socioeconômica, percebe-se um abismo entre as mulheres de maior e de menor escolaridade. O acesso das primeiras à consulta ginecológica se deu num momento bem diferente daquele em que aconteceu a primeira consulta das mulheres com baixa escolaridade. O mesmo abismo pode ser notado em relação às variáveis da dimensão demográfica. O acesso à primeira consulta das mulheres mais velhas e com parturição mais alta ocorreu por ocasião da primeira gravidez, enquanto para as mais jovens e com parturição baixa ou nula se deu quando estas eram mais jovens e buscavam informação.

Depois da primeira consulta ginecológica Com base nas entrevistas, pode-se dizer que a maioria das mulheres percebe a importância de se ir ao ginecologista regularmente. No entanto, mais uma vez, a teoria está muito distante da prática. Conforme visto, muitas mulheres, principalmente as menos escolarizadas, não tiveram uma consulta ginecológica nos 12 meses anteriores à pesquisa. Como revelam os depoimentos a seguir, são muitos os motivos para isso.

Algumas entrevistadas indicaram que depender do serviço público para a realização da consulta é uma barreira, que o atendimento é demorado e uma grande dificuldade em marcar a consulta no horário desejado pela paciente. O fato de muitas mulheres terem uma atividade profissional dificulta o acesso, pois o posto de saúde costuma funcionar em horário comercial. Assim, é comum a mulher procurar atendimento ginecológico quando está doente ou, ainda, durante campanhas, que atraem as pacientes para a consulta porque atendimento é mais ágil e acessível, com horário diferenciado e, na maioria das vezes, nos finais de semana.

E: E por que você não vai? Normamente? Luana: Eu vou te falar a verdade, eu num tenho assim nem muito tempo.

Igual a gente trabalha fora, o atendimento público, ele é assim, é o horário que eles marcarem. Igual esse prédio aqui, é muita dificuldade pra trabalhar nele (...). Se eu me deslocar na parte da manhã aqui, um dia, duas horas que eu me deslocar daqui (...) (4 a 7 anos de estudo, 44 anos) Outras entrevistadas indicaram que não realizaram consulta ginecológica no último ano porque não gostam ou sentem vergonha. É interessante perceber que isto ocorreu independente da idade ou da escolaridade. Uma mulher jovem declarou que a dependência da mãe para marcar a consulta é um dificultador, que a mãe faria muitas perguntas. Neste caso, não apenas a vergonha referente à consulta, mas também a relação com a mãe aparece como barreira na busca pelo atendimento ginecológico. Logo, a família - e a forma com que lida com a sexualidade das filhas - pode dificultar o acesso à consulta.

Como revela Taís, novamente a gravidez está muito relacionada à busca pela consulta ginecológica de uma maneira geral, que a entrevistada procurou novamente o atendimento quando se encontrava nesta situação. Durante a gravidez, a consulta ginecológica é vista como uma obrigação.

E: E como você foi voltar depois? (...) ficou com vergonha e não voltou de novo? Taís:Só quando eu fiquei grávida (risos) que eu voltei de novo. Tive que ir, ? E: É.

Taís: eu fui.

(4 a 7 anos de estudo, 44 anos) As mulheres que realizaram consulta ginecológica nos 12 meses anteriores à pesquisa indicaram que o principal motivo foi a busca pela prevenção. Vale ressaltar que estas são, em sua maioria, mulheres de alta escolaridade.

E: E por que razão você costuma ir ao ginecologista? Silvia:Ah, eu acho que é mais pela questão da prevenção mesmo. Que ainda mais no caso da mulher, ? Que é tudo interno, você não consegue ver, você percebe quando a coisa grave. A minha mãe sempre me educou assim também, com essa consciência, tanto a mim quanto a minha irmã. Então é preventivo mesmo. (...). É isso ai.

(12 anos ou mais de estudo, 35 anos) Independente da escolaridade da mulher e de sua idade, as entrevistas sugerem que, assim como a primeira, as consultas ginecológicas subseqüentes estão muito associadas a situações de desconforto. A vergonha é o sentimento predominante nestes momentos, sendo que, para as mulheres menos escolarizadas, lembrar do momento da consulta e, principalmente, do exame ginecológico em si causa nelas constrangimento. Vale ressaltar que este desconforto para as mulheres com 12 anos ou mais de estudo é menos freqüente.

E: E como você se sente indo ao ginecologista? Qual que é sua sensação? Camila: Mal [risos] E: Mal? Camila: Mal... vergonha, chegar , abrir as pernas... [risos] Nossa, horrível.

(8 a 11 anos de estudo, 29 anos) Outros sentimentos também muito presentes no momento da consulta são o medo e o nervosismo. A situação em si e o fato de as pacientes terem que ficar nuas fazem com que as impressões criadas em relação a este momento sejam, de alguma maneira, negativas.

E: Como é que? O que a senhora sentiu quando foi ao ginecologista? Como é que a senhora se sentiu? Carmem: Saí de com raiva. isso.

E: É? A senhora sentiu raiva na hora que saiu? E na hora que a senhora chegou ? Como é que foi? Carmem: Ah, fiquei com medo.

E: Ficou com medo? Carmem: Fiquei morrendo de medo.

E: Por que a senhora ficou com medo? Carmem:Ah, porque este negócio de toque na gente, num gosto não.

(0 a 3 anos de estudo, 50 anos) Quando indagadas sobre como se sentem na consulta ginecológica, as mulheres com escolaridade mais alta (12 anos ou mais de estudo) indicaram não ser a consulta ginecológica um momento totalmente confortável. No entanto, isso não se apresenta como uma barreira para a busca pela consulta.

Fica claro, ao longo das entrevistas, o desconforto que a mulher sente no momento da consulta ginecológica. Entretanto, nota-se que este desconforto vai se atenuando com o aumento da escolaridade das entrevistadas. Enquanto mulheres com baixa escolaridade não gostam nem de falar sobre o assunto, as mais escolarizadas mostramse mais tolerantes a esta consulta, mesmo admitindo que ela ainda gera um certo constrangimento. Nota-se que o conhecimento da importância da consulta ginecológica na vida da mulher pode estar atuando como um atenuante da vergonha que a mulher sente. Observa-se, também, que não uma tendência bem definida por idade. Neste caso, a escolaridade acaba sendo mais determinante do que a idade.

Outro ponto importante refere-se ao poder da mulher. As entrevistadas com menor escolaridade e menos poder possuem uma relação extremamente desfavorável com o médico. Isto se não apenas pela escolaridade, mas também pelo tipo de atendimento, o qual, para essas mulheres, na maioria das vezes, acontece via SUS. No outro extremo, as mais escolarizadas têm atendimento via plano de saúde, o que lhes confere mais poder em relação ao médico e a possibilidade de escolher seu ginecologista, além do fato de a própria escolaridade possibilitar maior conhecimento e acesso à informação.

A qualidade da consulta foi trazida à tona por todas as entrevistadas. A importância do diálogo durante a consulta é afirmada por mulheres tanto de baixa como de alta escolaridade. As entrevistadas pontuam que, muitas vezes, o médico pensa que a paciente sabe de tudo e não explica certos aspectos com o devido cuidado. Neste sentido, além da conversa, os depoimentos sugerem que o ginecologista deve olhar para a paciente e ser receptivo quanto à troca de idéias, e não apenas proceder como se a paciente não tivesse opinião e sentimentos. Percebe-se, ainda, que a consulta ginecológica, principalmente no caso das mulheres mais escolarizadas, torna-se um evento mais natural quando a mulher é mais velha.

No que tange a busca pela consulta ginecológica, fica claro que uma diferença entre as mulheres com alta escolaridade e as demais. As primeiras indicam saber a importância da consulta ginecológica e a fazem sem apresentar qualquer tipo de problema, mas a realizam somente em busca de prevenção. Para estas mulheres existe uma cultura da prevenção, ou seja, ir ao ginecologista regularmente faz parte de seu cotidiano.

No outro extremo, as mulheres de camadas populares não fazem esta consulta regularmente, sendo três os maiores obstáculos para que isso não ocorra: a vergonha; a falta de eficiência do SUS, que se apresenta como uma barreira prática na busca pela consulta ginecológica; e a falta de diálogo e carinho do ginecologista com relação à paciente, sobretudo a usuária do SUS, que não tem a opção de escolher seu médico.

E: A médica lhe atendeu bem? Taís:Hum, tipo assim... dela eu ainda num... assim, porque igual eu te falando... cheguei, , ela começou e pronto. Então, num teve assim... ela num conversa, nem nada não.

E: Mas você gostou dela? Taís:Ó, gostar eu não gostei não. Mas é a única, , que tem ...

então a gente tem que... num tem, , opção...? E: E por que você não gostou dela? Taís:Ó, te falar a verdade, ela nem olha pra cara da gente.

E: É? Taís:Não. fala assim: vai , tira a roupa... e... pronto... E...

olha, nem olha não. tira mesmo o líquido e marca o dia de buscar.

assim.

(4 a 7 anos de estudo, 44 anos)

Considerações finais Este trabalho teve como objetivo investigar o acesso das mulheres à consulta ginecológica em Belo Horizonte, dada a importância ímpar que representa para a saúde da mulher.

As mulheres de 18 a 59 anos que serviram de base para este estudo foram divididas em quatro perfis. Os perfis I e II reuniram as mulheres mais desfavorecidas e as desfavorecidas, respectivamente, aqui chamadas de mulheres de camadas populares. Além da baixa escolaridade (até sete anos de estudo), as mulheres que tipicamente representaram este perfil tinham maior probabilidade de serem mais velhas, apresentando idade entre 40 e 59 anos, terem dois filhos ou mais, serem negras (pretas ou pardas) e alguma vez unidas. Estas mulheres apresentaram grande probabilidade de não possuírem plano de saúde, de não terem acompanhamento ginecológico regular, de não terem ido ao ginecologista nos últimos 12 meses e buscarem esta consulta por meio do SUS. Estas mulheres ainda apresentaram maior probabilidade de fazerem uso de métodos de contracepção cirúrgicos e, aparentemente, não possuem poder, que registraram maior probabilidade de não se recusarem a ter uma relação sexual se o parceiro se recusasse a usar o preservativo. A prevalência destes dois perfis na população estudada foi de cerca de 42%.

O fato de o perfil em que se encontram as mulheres mais desfavorecidas ser o menos prevalente na população é um elemento positivo. Contudo, deve-se considerar que quase 12% da amostra estudada, em média, possui alguma característica deste perfil, proporção esta não desprezível.

Outro ponto importante é o fato de o perfil IV, com as melhores características, ser o terceiro em prevalência, o que indica que muito ainda deve ser trabalhado para que as mulheres alcancem uma situação mais favorável quanto ao acesso às consultas ginecológicas e às condições de vida de modo geral.

Sobre as percepções destas mulheres a respeito da consulta ginecológica, percebese que, independente da idade, escolaridade, raça/cor e de qualquer outra característica, é atribuída grande importância a ela. No entanto, as mulheres de camadas populares são as que se sentem mais envergonhadas durante a consulta. Com relação à primeira consulta, as mulheres com escolaridade mais alta foram pela primeira vez ao ginecologista buscando informação e prevenção; as menos favorecidas buscaram o ginecologista por estarem grávidas.

As entrevistadas atendidas via SUS apresentaram algumas demandas no que diz respeito à consulta ginecológica. Até o momento, o diálogo não tem sido suficiente para que as pacientes se sintam confortáveis diante do médico.

Assim, elas não se sentem à vontade para perguntar ao médico tudo o que gostariam e, muitas vezes, saem da consulta sem entender os procedimentos a que foram submetidas. O tempo de duração da consulta também foi indicado como umponto que tem deixado a desejar. Elas afirmaram que, devido à falta de médicos nos postos de saúde, estes ficam sobrecarregados e, por isso, o atendimento às pacientes é muito rápido.

Um ponto importante levantado por algumas entrevistadas refere-se ao funcionamento dos postos de saúde apenas em horário comercial, o que dificulta o acesso, pois elas trabalham neste horário. Ademais, o fato de terem que chegar cedo nos postos para conseguir a consulta também é um dificultador, principalmente quando trabalham e possuem horários rígidos.

Ainda são muitos os investimentos que devem ser feitos para que as mulheres tenham uma vida mais saudável. São necessárias políticas de conscientização com enfoque, principalmente, nas mulheres mais desfavorecidas e menos escolarizadas, que são estas as que apresentaram maior probabilidade de não terem feito consulta ginecológica nos 12 meses anteriores à pesquisa. Postos de saúde com horários mais flexíveis e abrangentes também são de grande importância. É necessário, ainda, capacitar e conscientizar os médicos para atender este público, pois as mulheres de camadas populares sentem falta de um atendimento mais humano, com diálogo e espaço para que se sintam à vontade - não basta "tirar a roupa e pronto".


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