População, grupos étnico-raciais e economia cafeeira: São Carlos, 1907
Introdução e relevância
No município de São Carlos, localizado na região central do Estado de São
Paulo, a formação de uma população estabelecida iniciou-se ainda na primeira
metade do século XIX, com as primeiras fazendas tocadas a braço escravo. Algum
gado e o cultivo da cana-de-açúcar, logo depois suplantado largamente pela
lavoura cafeeira, foram as atividades estruturantes dessas primeiras
propriedades. Nos anos 80 do século XIX, quando o café já predominava, o
município inseriu-se definitivamente na vigorosa economia cafeeira, com a
chegada da ferrovia. A facilidade desse transporte, inaugurado em 1884,
viabilizava a ampliação das lavouras, não apenas escoando a produção local, mas
também trazendo o imigrante europeu, um novo elemento que marcaria
profundamente o perfil demográfico do município e de grande parte do oeste
paulista (TRUZZI, 2007). São Carlos acompanhou assim a transição de uma
economia tocada por trabalho escravo para outra em que predominavam colonos
livres,1 de origem europeia, constituindo-se demograficamente por grupos
variados, que construíram um tecido social diversificado.
Esse trabalho busca analisar e discutir as características demográficas e a
inserção social de diferentes grupos étnico-raciais presentes na população do
município duas décadas após a abolição da escravatura.
Para tanto, foi utilizado como fonte principal o recenseamento realizado em
1907 pelas autoridades do município, em que foram arroladas as características
de 38.642 indivíduos. Essa fonte, nominativa e inédita, assume grande
importância para o conhecimento do perfil étnico-racial da população local em
uma época na qual a imigração de massa foi mais volumosa, uma vez que os
recenseamentos nacionais de 1890 e 1900 não foram bem-sucedidos, apresentando
problemas e lacunas.2
Assim, lamentavelmente, para o período em que o fluxo da imigração estrangeira
no Brasil foi mais intenso, não se dispõe de boas informações censitárias,
indicativas da cor e da nacionalidade dos diferentes grupos. Somente em 1920
foi realizado um novo censo nacional, que arrolou a população total de São
Carlos em 54.225 indivíduos, sem distingui-los, contudo, quanto à cor e ao
domicílio rural ou urbano. Por essas razões, acrescidas à circunstância de
serem raros os recenseamentos municipais no período, o censo de 1907 realizado
em São Carlos reveste-se de grande importância para o conhecimento do perfil
demográfico e da inserção socioprofissional de diferentes grupos étnico-raciais
em um município em grande medida exemplar da economia cafeeira paulista do
período.
Motivação e estrutura do censo
A origem do censo de 1907 - como revela ofício enviado pelo prefeito de São
Carlos, Manoel Antonio de Mattos, ao presidente da Câmara dos Deputados do
Estado de São Paulo - deve-se à Lei n.1.038 de 19/12/1906, que dispunha sobre a
organização municipal, promulgada pelo Dr. Jorge Tibiriçá, presidente do
Estado. Segundo tal Lei (art.17, §15), era incumbência das Câmaras Municipais
"levantar periodicamente as estatísticas do município, e sobretudo o
recenseamento da população e o cadastro do território, para o que poderão
solicitar auxílio do Estado". Muito provavelmente, esse censo visava subsidiar
a Câmara Municipal de São Carlos em relação a seu artigo 7º: "O número de
vereadores de cada município será fixado pelo governo, na proporção de um
vereador para dois mil habitantes, não podendo, porém, ser inferior a oito e
nem superior a vinte".
Diante de tal diretriz, a Câmara, então composta por oito vereadores, agiu
rápido e autorizou o intendente, em 4 de fevereiro de 1907, a recensear a
população municipal. Este, por sua vez, por meio da Lei municipal 126,
promulgada no mesmo dia, autorizou sua efetiva realização.3
Infelizmente, pouco se sabe sobre a forma como foi realizado esse levantamento,
pois nenhum conjunto de instrução aos responsáveis por coletar as informações
foi localizado até o momento. Esse recenseamento coletou as seguintes
características de cada indivíduo da população: nome, idade, sexo, estado
civil, profissão, cor e nacionalidade. Não há indicação das unidades
censitárias, o que dificulta a percepção exata do chefe da família e de quais
membros habitavam o mesmo domicílio. Essa informação pode ser apenas inferida
pela proximidade de sobrenomes comuns, mas não é precisa e tende a ignorar os
agregados. Além das variáveis mencionadas, o censo incluiu ainda duas
informações binárias (sim / não) referentes a ser ou não proprietário e a saber
ou não ler.
A compilação dos indivíduos e de suas respectivas características encontra-se
ainda agrupada segundo a localização domiciliar da população no território, que
se distribuía entre o próprio núcleo da cidade de São Carlos, quatro bairros
adjacentes ao núcleo principal, uma área suburbana de transição e 19 regiões
rurais, cada uma delas com denominações distintas, que, em geral, correspondiam
ao nome de antigas fazendas, servidas pela malha ferroviária implantada no
município entre 1884 e 1893. Entre essas regiões rurais, encontravam-se Ibaté4
e Santa Eudóxia, duas áreas nas quais já constavam, em 1907, as respectivas
vilas.
A chegada de imigrantes e seu impacto demográfico
É provável que, depois dos índios, logo dizimados ou empurrados em direção ao
interior, os primeiros habitantes da região que hoje abriga o município de São
Carlos tenham sido contingentes de quilombolas, fugidos da perseguição da
polícia e de fazendeiros. Estes últimos, por sua vez, vieram tanto de
municípios de implantação mais antiga no Estado de São Paulo, como Itu,
Piracicaba e Campinas, quanto do sul de Minas Gerais, na fronteira norte de São
Paulo. Ao abrirem as primeiras fazendas na região, tiveram de importar
escravos, sobretudo de regiões decadentes, nordestinas e mineiras, mesmo que a
um preço mais elevado, para suprir a carência crônica de mão de obra, já que o
tráfico negreiro havia sido extinto desde 1854. Com o prenúncio da abolição,
esses fazendeiros passaram a importar imigrantes europeus para substituir os
escravos nas lides rurais. Vieram também, ainda que em menor proporção,
famílias mineiras e nordestinas, estas fugidas das secas, que buscavam se
inserir na economia cafeeira em expansão (TRUZZI, 2007).
Na década final do século XIX, o município de São Carlos foi, por alguns anos,
o maior receptor de imigrantes do interior paulista, recebendo diretamente da
Hospedaria de Imigrantes de São Paulo, entre 1893 e 1907,5 26.918 imigrantes
segundo as estatísticas da época. Nem todos aí permaneceram, assim como
imigrantes que originalmente foram enviados a outros locais acabaram por se
dirigir e se fixar em São Carlos, "uma das melhores lavouras do Estado de São
Paulo", segundo o Relatório da Secretaria de Agricultura, Commercio e Obras
Públicas do Estado de São Paulo de 1894.
A Tabela_1 mostra a evolução dos contingentes populacionais presentes no
município no decorrer dos 21 anos que separam os dois levantamentos
populacionais de 1886 e 1907.
Menos de duas décadas após a abolição do cativeiro, a população de São Carlos,
que entre 1886 e 1907 mais do que duplicou, teve sua composição racial alterada
significativamente, graças ao grande afluxo de imigrantes europeus e,
provavelmente também, ainda que em bem menor grau, à saída de ex-escravos do
município. Mesmo que as categorias raciais não coincidam exatamente, é possível
comparar as cifras disponíveis em 1886 (quando, dos 16.104 indivíduos que
habitavam o município, 37% foram arrolados como pretos ou pardos) com as do
censo municipal de 1907 (em que pretos e mulatos não ultrapassavam um oitavo da
população do município). Os caboclos, presentes em 1886 - quando o contato com
a população nativa era ainda recente na própria região e presente em áreas mais
ermas, a oeste do território paulista - foram subsumidos em 1907 como brancos
ou mulatos, dependendo provavelmente da cor e também da posição social de cada
indivíduo. O mesmo deve ter ocorrido com a categoria pardo, um atributo que, em
épocas próximas à abolição, serviu também para designar, em algumas áreas do
país, a condição de libertos (MATTOS, 1998).
Dos 5.950 indivíduos arrolados como pretos ou pardos em 1886, mais da metade
(2.982) permanecia sob o jugo da escravidão, 1.277 foram identificados como
ingênuos, filhos livres de mulher escrava, decorrentes da aplicação da Lei do
Ventre Livre de 1871, enquanto os 1.681 restantes correspondiam aos libertos ou
indivíduos já nascidos livres e classificados como pretos ou pardos. De
qualquer modo, apenas dois anos antes da abolição, é possível estimar que o
percentual de pretos ou pardos, ainda escravizados ou pelo menos nascidos em
famílias de escravos, era no mínimo de 80% em São Carlos.
Essa população perdeu participação relativa, sobretudo com a chegada dos
estrangeiros, que, em 1886, respondiam por 12,7% da população (mais da metade
já era italiana), aumentando para 39,4% em 1907 (quase três quartos dos
estrangeiros eram italianos), mais do que setuplicando seu contingente em
termos absolutos. Além disso, a população branca foi também incrementada pelo
afluxo de brasileiros brancos (cujo volume absoluto mais do que triplicou), que
acorreram ao município atraídos pela prosperidade de suas lavouras.
O impacto da imigração internacional também pode ser observado na estrutura e
dinâmica populacional. A razão de sexo declinou e a população rejuvenesceu no
período. Em 1907, havia 109 homens para cada 100 mulheres no conjunto da
população, uma razão bem menor do que a verificada em 1886 (de 122 para 100),
provavelmente graças à imigração familiar e à menor presença relativa de negros
na população. Em 1886, 42,9% da população possuía até 15 anos de idade; em
1907, 46,3% tinham até 14 anos.
No tocante aos eventos vitais, as diferenças entre as duas épocas são também
bastante relevantes. Comparando-se as médias de nascimentos, casamentos e
óbitos dos anos 1882-83, 1883-84 e 1885-86 com as de 1905, 1906 e 1907,6 obtêm-
se os resultados apresentados na Tabela_2.
No período, aumentou a proporção de filhos legítimos entre os nascidos vivos,
assim como as taxas brutas de natalidade e nupcialidade em função da entrada de
imigrantes no município. A taxa de mortalidade, por sua vez, diminuiu. Em São
Carlos, como em outras áreas cafeeiras, as taxas de morbi-mortalidade sofreram
o impacto das políticas de saúde implementadas pelo governo paulista (RIBEIRO,
1993; TELAROLLI Jr., 1997). Estas estiveram, entre o final do século XIX e
início do XX, subordinadas aos interesses da cafeicultura, concentrando suas
ações no sentido de controlar a proliferação de epidemias e diminuir a
ocorrência de endemias que afetavam os trabalhadores do café. Entre 1895 e
1898, por exemplo, São Carlos foi seriamente afetado por surtos de epidemia de
febre amarela, que produziram muitas vítimas, tornando a cidade praticamente
deserta entre os meses de novembro e abril, quando as temperaturas maiores
aguçavam o problema (MONSMA; TRUZZI; CONCEIÇÃO, 2003; JUNQUEIRA, 2004).
As informações disponíveis nos Anuários Demógrafo-sanitários do Estado de São
Paulo, da época, trazem o número de nascimentos por nacionalidade dos pais, sem
discriminar se a palavra pais refere-se a ambos, pai e mãe, ou apenas ao pai.
Se for levado em conta que havia uma forte homogamia matrimonial por
nacionalidade no período (TRUZZI, 2007b), como mostram as estatísticas, é
possível deduzir que o aumento da taxa geral de fecundidade, no período, tenha
sido influenciado, sobretudo, pela fecundidade de mães estrangeiras.
Considerando-se o número de nascidos vivos segundo a nacionalidade dos pais e o
de mulheres estrangeiras e o de mulheres brasileiras entre 15 e 49 anos,
separadamente, chega-se a uma taxa bruta de fecundidade bastante elevada para
as estrangeiras (276 nascidos vivos por 1.000 mulheres) e menor para as
brasileiras (150 por 1.000). É preciso, no entanto, sublinhar que, entre os
brasileiros, o registro civil dos eventos vitais ainda não havia se tornado um
hábito como já o era entre os estrangeiros, mais acostumados à formalização
desses eventos. Portanto, é possível que tenha havido um sub-registro de
nascidos vivos de mulheres brasileiras.
Por outro lado, havia ainda o componente da estrutura etária mais velha das
estrangeiras a interferir em tais taxas. Na ausência de dados mais sólidos, as
taxas aqui calculadas são um indicativo de que a imigração impactou também no
sentido de ampliar o crescimento vegetativo e aumentar a legitimidade, em São
Carlos e no Estado de São Paulo como um todo.
O Gráfico_1 exibe a pirâmide etária de italianos residentes em São Carlos em
1907, tipicamente conformada por uma população imigrante: mais homens do que
mulheres, poucas crianças e uma evidente predominância de pessoas em idades
produtivas e reprodutivas.
Portanto, com a chegada dos imigrantes, principalmente a partir da última
década do século XIX, abriu-se um novo panorama demográfico. Se a distribuição
por nacionalidades registra que os brasileiros constituíam mais de 60% da
população do município, não se pode esquecer, contudo, que entre estes
brasileiros encontram-se arrolados muitos filhos de estrangeiros nascidos no
Brasil, em função da norma vigente do jus solis.
Entre os imigrantes estrangeiros, os italianos predominaram amplamente,
atingindo quase 30% da população do município. Em seu conjunto, eram
procedentes tanto de regiões do norte da Itália, como o Vêneto, quanto do sul,
como a Calábria (TRUZZI, 2007b).
Mas não foram apenas brasileiros e italianos que moldaram a população. Afora
tais grupos majoritários, os 10% restantes da população do município abrigavam
espanhóis, portugueses, alemães, turcos (na verdade sírios e libaneses) e
indivíduos de outros grupos numericamente não tão expressivos.
Distribuição da população
É sempre sujeita a controvérsias a demarcação entre áreas urbanas e rurais. No
agrupamento utilizado pelo censo, há áreas nitidamente rurais, outras
claramente urbanas e outras zonas de transição entre uma e outra. Na
necessidade de se adotar um critério, considera-se aqui área urbana o próprio
núcleo urbano de São Carlos, acrescido dos quatro bairros destacados pelo censo
(Vila Nery, Vila Izabel, Vila Pureza e Botafogo). As outras áreas, que incluem
as regiões de propriedades rurais, mais os subúrbios da cidade e as vilas de
Ibaté e Santa Eudóxia, foram agrupadas como rurais por se considerar que a
influência desse meio era preponderante nessas áreas.
Adotando-se esse critério, conclui-se que, em 1907, 77,8% da população habitava
o meio rural (30.058 indivíduos), enquanto a população urbana perfazia 22,2% do
total (8.584 pessoas). Mesmo considerando-se os subúrbios área urbana, pode-se
afirmar que mais de três quartos da população do município residiam em áreas
rurais. Os brasileiros, incluindo os filhos de estrangeiros, constituíam mais
de 60% da população do município. A presença de brasileiros era mais marcante
no meio urbano (quase 70%) do que no rural (58%).
Fora do núcleo urbano assim considerado, os bairros rurais mais populosos (mais
de 2.000 habitantes) eram Ibaté, Água Vermelha, Santa Eudóxia, Babylonia,
Monjolinho e Jacaré. Dos habitantes de Ibaté e Santa Eudóxia, viviam nas vilas,
fora das fazendas, 10,7% e 25,7%, respectivamente. A distribuição da população
recenseada segundo a situação domiciliar é apresentada na Tabela_3.
Distribuição da população por sexo
Conforme o esperado em se tratando de uma sociedade receptora de imigrantes,
havia no município mais homens (52,1%) do que mulheres (47,9%). Contudo, tais
proporções não se mantêm ao se analisarem separadamente os meios rural e
urbano, pois, no primeiro, o percentual masculino (52,9%) sobrepuja o feminino
(47,1%), enquanto na cidade há mais mulheres (51%) do que homens (49%).7 De
fato, em relação ao seu próprio contingente, as mulheres encontram-se mais
concentradas na área urbana (23,6% do total de mulheres do município) do que os
homens (20,9% do total desses). As pirâmides etárias apresentadas nos Gráficos
3 e 4 permitem uma visão mais acurada do que se passa.
Neste perfil da pirâmide etária, é possível verificar que a dinâmica
demográfica do município caracterizava-se não só por elevadas natalidade e
mortalidade, mas também pela presença de um movimento imigratório acentuado. Os
homens predominavam sobre as mulheres, principalmente nas faixas etárias
produtivas e reprodutivas. A população apresentava-se jovem; as crianças de até
dez anos representavam mais de um terço da população, resultado de uma alta
natalidade, para a qual contribuiu muito a população imigrante, que, chegada ao
Brasil em idade reprodutiva ou ainda na infância, passava a gerar filhos, agora
brasileiros.
Dado que na zona rural estava concentrada a maioria da população, a pirâmide
demográfica é bastante semelhante à da população total, apresentada no Gráfico
3. Já o perfil da pirâmide da população urbana apresenta algumas diferenças
daquele relativo à população total, revelando uma população mais envelhecida do
que na área rural: as crianças até dez anos representavam uma parcela menor no
seu conjunto (28,7%) do que a obtida para o rural (34,2%). No que diz respeito
à população considerada ativa, ou seja, aquela entre 15 e 64 anos de idade, a
razão de sexo no meio urbano ficava bastante próxima à da população total e no
rural alcançava a cifra de 121 homens para cada 100 mulheres. O maior
predomínio de mulheres no urbano era alcançado nas faixas etárias de 10 a 34
anos (87,6), enquanto a maior concentração de homens dava-se nas idades entre
45 e 64 anos (147,6).
Composição étnico-racial da população e sua distribuição no território
Como já salientado anteriormente, a composição étnico-racial sofreu grande
alteração com a chegada dos imigrantes ao município de São Carlos. Observando-
se a distribuição étnico-racial entre as áreas urbanas e rurais, constata-se em
1907, entre os brasileiros, a maior incidência relativa de pretos nas áreas
urbanas (26,5% do total de pretos no município), em relação a mulatos e
brasileiros brancos (22,4% e 25,5%, dos respectivos totais).
No meio rural, o maior contingente de negros (801 indivíduos, 14,7% da
população total da região) encontrava-se nas fazendas de Ibaté, embora
relativamente o bairro de Fortaleza alcançava percentuais mais elevados (26,1%)
na população. A presença de brasileiros era mais marcante no meio urbano (quase
70%) do que no rural (58%). Entre os imigrantes, os italianos predominavam
amplamente, atingindo quase 30% da população do município, sendo mais presentes
no meio rural. Em algumas localidades, como Canchim e Colônia, eles
representavam mais da metade da população local. É significativo que esses
bairros rurais onde os italianos predominavam amplamente sejam os mesmos onde a
população negra e mulata exiba as menores porcentagens de incidência (3,1% e
7,1%, respectivamente). Em contraposição, Fortaleza, caracterizada pelo alto
percentual de negros (26,1%), é também a localidade rural de menor presença
italiana (13,3%). Tal fenômeno pode ser indicativo tanto da existência de redes
quanto da disputa entre negros e italianos no mercado de trabalho rural.
Afora brasileiros e italianos, os 10% restantes da população do município
abrigavam espanhóis (4,3%), portugueses (4,2%), alemães, turcos e indivíduos de
outras nacionalidades. Dos contingentes estrangeiros, os espanhóis, recém-
chegados, eram os menos urbanizados (apenas 12,7%), seguidos por italianos
(15,8%) e portugueses (23,7%). Acompanhando o padrão étnico, dos 113 indivíduos
registrados como turcos, todos, sem exceção, habitavam áreas urbanas ou os
povoados de Ibaté, Santa Eudóxia e Água Vermelha.
Os portugueses atingiam taxas superiores a 10% da população nos bairros urbanos
de Villa Izabel e Botafogo e no de Capão Preto, na zona rural. Os espanhóis,
além do seu perfil eminentemente rural, já apontado, não se distribuíam
uniformemente nas áreas rurais, mas, ao contrário, concentravam-se em alguns
bairros, onde alcançavam proporções significativas, superiores a 10%: Pinhal,
Visconde do Rio Claro, Capão Preto e Ararahy.
Na área urbana, já era possível se observar, desde então, a presença marcante
de negros (pretos e mulatos) nas vilas mais afastadas (Pureza, Isabel e Nery),
com participações (44,7%, 33,1% e 24,4%, respectivamente) bem acima da média de
outros locais, tanto do núcleo urbano mais central, onde a população negra não
atingia 10% dos habitantes, quanto das zonas rurais (em que a participação do
contingente negro era ainda menor). Assim, a maior incidência de negros nas
vilas citadas explica-se porque foi precisamente nesses locais, relativamente
mais distantes do centro urbano, que os negros se instalaram ao deixarem as
fazendas de café, após a abolição. Conquanto não se possa falar em segregação
espacial, pois somadas, as populações negras dessas três vilas não atingiam nem
um quarto do total da população negra da cidade, já é nítido um processo de
periferização dessa população. De fato, conforme ilustra a Tabela_5, ao se
considerarem os quatro bairros (Vilas Pureza, Isabel, Nery e Botafogo) mais os
subúrbios como periferia do núcleo urbano central, observa-se que a chance de
um negro (preto ou mulato) habitar a periferia era quase o dobro daquela de um
brasileiro branco ou de um estrangeiro.
Estado civil
No tocante ao estado civil, foram considerados apenas os homens com no mínimo
16 anos e as mulheres com no mínimo 14 anos de idade, para que a população de
solteiros não fosse superestimada pela influência das crianças.8
Em 1907, havia no município 10.661 homens e 10.139 mulheres com no mínimo 16 e
14 anos, respectivamente, perfazendo 20.800 indivíduos. Considerando-se esse
universo, predominavam os casados (62,7%) sobre os solteiros (30,7%) e viúvos
(6,6%). No meio urbano, os solteiros (34,4%) e, sobretudo, os viúvos (9,9%)
aumentavam sua representatividade, o que, nesse último caso, é indicativo do
efeito de atração que a cidade exercia sobre o grupo ou, ao contrário, da menor
disposição do meio rural em manter indivíduos mais idosos e provavelmente menos
produtivos. Além disso, dada a importância do trabalho familiar, tanto na
grande fazenda de café quanto na pequena propriedade rural, é provável que
indivíduos vivendo sozinhos fossem mais atraídos pela cidade. De qualquer modo,
do total de viúvos habitando o município, mais de 35% residiam em áreas
urbanas, em contraste com percentuais mais discretos de casados (em torno de
21%) e de solteiros (cerca de 27%).
Ainda é preciso chamar a atenção aqui para a possibilidade de ocorrerem uniões
consensuais, prática comum tanto entre segmentos da população nativa quanto
entre imigrantes que tencionam permanecer temporariamente no país que os
acolheu. Como não dispomos de nenhuma instrução sobre o procedimento de coleta
de dados do censo, não se sabe como foram tratados tais casos. De qualquer
modo, em relação a 1886, diminuiu a proporção de solteiros de uma maneira geral
como resultado do aumento das uniões formais, provavelmente porque os
imigrantes, além de mais numerosos em 1907, já estavam habituados ao casamento
formal. Assim, em 1886, a proporção de solteiros entre indivíduos de 16 anos e
mais era de 39,3%; em 1907, a mesma proporção para pessoas de 15 anos e mais
era consideravelmente menor: 22,9%.
É interessante ainda mencionar outro aspecto sobre as proporções entre homens e
mulheres. Do total de homens, 3.641 eram solteiros, 6.590 casados e 430 viúvos.
Entre as mulheres, 2.743 eram solteiras, 6.446 casadas e 950 viúvas. Havia,
portanto, certa desproporção, de um lado, entre homens e mulheres solteiros
(133 para 100)9 e, de outro, entre homens e mulheres viúvos, estas muito mais
numerosas (100 para 221), enquanto, entre casados, as frações eram semelhantes
(102 para 100). Tais desequilíbrios são indicativos de uma sociedade receptora
de imigrantes trabalhadores, na qual os homens solteiros tendem a prevalecer
sobre as mulheres solteiras em áreas rurais (tornando-as mais disputadas no
mercado matrimonial) e a longevidade feminina é maior do que a masculina.
Também não se pode esquecer que os viúvos recasam-se muito mais do que as
viúvas, daí haver menos viúvos do que viúvas. No meio urbano, por exemplo, há
quase quatro vezes mais viúvas do que viúvos.
Já uma análise dos grupos étnico-raciais segundo o estado civil evidencia
diferenças muito significativas entre estrangeiros e brasileiros. Conforme
mostra a Tabela_6, enquanto apenas a metade dos brasileiros é casada, no caso
dos estrangeiros esta cifra se eleva para 70%. Tal fenômeno possivelmente está
associado à característica familiar da imigração e ao costume mais difundido
entre estrangeiros de formalizar as uniões, já aludido. Por outro lado, também
chama atenção a circunstância de haver percentuais maiores de casados entre
brasileiros negros (tanto pretos quanto mulatos) do que entre brancos,
provavelmente porque os primeiros tivessem mais necessidade de se valer do
casamento como uma estratégia de reconhecimento social.10
Instrução
No tocante à instrução, o censo distingue entre os que sabiam e os que não
sabiam ler. No total do município, considerando-se a população de no mínimo 12
anos de idade (23.773 indivíduos), 8.400 sabiam ler (apenas 35% da população) e
15.371 não. Entre esses últimos, mais de 85% habitavam as áreas rurais. Havia,
portanto, diferenças bastante acentuadas entre os meios urbano e rural: nesse
último, apenas 28% da população foi registrada como tendo capacidade de
leitura, enquanto no meio urbano tal índice se elevava a quase 60%.
Além das possibilidades abertas na cidade quanto à frequência à escola, algumas
atividades urbanas exigiam que o indivíduo fosse alfabetizado. Entre homens e
mulheres também havia diferenças significativas em prejuízo destas: 42,8% dos
homens e 26,8% das mulheres com 12 anos ou mais no município sabiam ler.
Cruzando-se a capacidade de leitura com a variável cor e nacionalidade,
observa-se que apenas um quinto dos brasileiros sabia ler, sendo que, entre
esses, o contingente mais prejudicado era o de pretos e mulatos, em que 10% o
faziam. Entre os estrangeiros, os espanhóis exibiam as taxas menores11 (um
quarto do grupo), italianos e portugueses registravam cerca de 30%, seguidos
por turcos, diversos e alemães, esses últimos contando com 60% do grupo com
capacidade de leitura.
Profissões
O extenso rol das profissões apresentadas pelo censo constitui um bom
indicativo do grau elevado de desenvolvimento da divisão social do trabalho da
época. O complexo cafeeiro exigia uma pauta de atividades relativamente
diversificada, abrindo um leque amplo de oportunidades de trabalho não
propriamente agrícola, tanto na zona rural como na urbana. Aqui também cabe uma
ressalva a respeito do critério adotado para a construção da tabela, que é
diferente da apresentada pelo censo. Usualmente, depara-se na leitura do censo
com crianças registradas com a profissão do pai (por exemplo: Fulano de tal,
dois anos, negociante). Para corrigir tal distorção nas tabelas de profissões,
computam-se apenas os indivíduos com, no mínimo, 12 anos de idade, embora fosse
comum, no meio rural, crianças a partir de oito anos ajudarem seus pais com as
lides da lavoura, o mesmo podendo ocorrer em algumas atividades no meio urbano.
Assim, o universo considerado para a análise que se segue das profissões
compõe-se não da população total, mas dos 23.773 indivíduos com no mínimo 12
anos de idade.
Como os subúrbios da cidade e ainda os núcleos das vilas de Ibaté e Santa
Eudóxia acham-se incluídos na zona rural, é claro que se encontram aí
profissões de feitio mais urbano. Observe-se, porém, que, mesmo excluindo-se da
zona rural tais contingentes, a gama de profissões existentes nas regiões
estritamente rurais ainda é bastante significativa, o que pode indicar a
relativa autossuficiência das fazendas da época. De fato, nas grandes
propriedades, é comum existirem profissionais como escrivão, guarda-livros,
ferreiro, intérprete, marceneiro, professor, pedreiro, seleiro e até matador de
formigas.12
É claro que as classificações adotadas pelo censo são muitas vezes imprecisas,
como ocorre, por exemplo, com a categoria "lavrador", que pode denotar, ao
mesmo tempo, o proprietário de terras ou simplesmente o trabalhador agrícola,
remunerado como assalariado, parceiro ou colono. De qualquer forma, observa-se
que, entre os lavradores, mais de 70% são proprietários, enquanto para colonos
esse percentual não atinge 1% (7% para camaradas e 20% para administradores), o
que indica uma clara correlação entre lavradores e proprietários. Tudo leva a
crer que a profissão de lavrador, por ser mais abrangente, compreenda todos os
indivíduos responsáveis por decisões envolvendo o cultivo de terras, "quer seja
por sua conta e por suas mãos, quer seja por conta de outrem a quem pague,
seja, enfim, como proprietário ou rendeiro" (BARBOSA, 1943, p. 51).
Outro exemplo são as ambiguidades produzidas pelas categorias negociante e
comerciante; feitor (de turma e de fazenda), fiscal e supervisor; empregado,
criado e doméstica, etc. Trabalhador também aparece como uma categoria pouco
específica, distinta de operário. De qualquer modo, não há informações se as
categorias registradas refletem aquilo que o indivíduo declarou ou a percepção
do funcionário que coletou os dados, ou ainda, o que é mais provável, uma
mistura dos dois.
A Tabela_7 relaciona perfis étnico-raciais da população com as ocupações mais
frequentes no meio rural. Dos 18.123 indivíduos de 12 anos ou mais, dois terços
eram colonos. Destes, quase 60% eram italianos e os brasileiros somavam 25%,
figurando a seguir espanhóis (8%) e portugueses (6%). Entre os 3.016
brasileiros colonos, 1.848 eram brancos, 990 eram pretos e 178 mulatos. Chama
atenção aqui a presença significativa de famílias de colonos negros (pretos e
mulatos provavelmente remanescentes da época da escravidão), mais numerosos do
que colonos portugueses ou espanhóis, ao arrepio do que normalmente é referido
na literatura, que normalmente atribui a tal grupo ocupações mais periféricas
no latifúndio cafeeiro (como a de camaradas), ou mesmo o abandono das fazendas
por ocasião da abolição da escravidão. Como observou Monsma (2006), os negros
nem foram excluídos e nem se autoexcluíram do regime de colonato (ver também
PALMA, 2007). Mais de um terço dos indivíduos maiores de 12 anos pretos ou
mulatos foram registrados como colonos.
Entre lavradores, havia uma clara predominância de brasileiros brancos (quase
60%), além dos italianos que já respondiam por um quarto desta ocupação,
enquanto os brasileiros negros não somavam 10%. Estes eram mais abundantes
entre camaradas, empregados e cozinheiros. Quase três quartos dos
administradores eram brasileiros brancos (talvez porque, nessa época, os
fazendeiros ainda temessem contratar estrangeiros para essa função, ou porque
preferissem indivíduos com o domínio da língua), que também se destacavam entre
os ferroviários (50%) e empreiteiros (39%). Os italianos, além de colonos,
representavam 55% dos negociantes no meio rural e disputavam com brasileiros
negros a profissão de carroceiro e carreiro, ocupações manuais com pouca
qualificação.
No meio propriamente urbano, onde se distinguem as profissões apresentadas pela
Tabela_8, há continuidades e algumas mudanças em relação às ocupações na área
rural. Os italianos permanecem se destacando entre os negociantes (mais da
metade) e os brasileiros brancos entre os lavradores (58%). Em contrapartida,
estes, no meio urbano, passam a ser mais frequentes do que os negros na
profissão de empregados (46%), além de constituírem 58% das costureiras. Os
negros estão mais representados em profissões subalternas - cozinheiro (68%),
lavadeira (46%) e criado (41%) - e ainda disputam com os italianos a profissão
de camaradas (residentes em área urbana).
Os italianos constituíam três quartos dos carroceiros e sapateiros, sendo
também bastante representativos entre os alfaiates (65%) e trabalhadores (48%).
Os portugueses, por sua vez, ainda que numericamente pouco expressivos,
encontravam-se sobre-representados entre os ferroviários, com mais de 30% dos
postos de trabalho (já representavam um quarto dessa ocupação nas áreas
rurais), logo abaixo de brasileiros brancos (40%). Dos 61 estudantes compilados
pelo censo que habitavam a área urbana, nada menos que 58 eram brasileiros
brancos. Chama também atenção a concentração ocupacional dos turcos: 46
negociantes entre 47 indivíduos.
A situação de proprietário segundo condição étnico-racial
A circunstância de ser ou não proprietário, atribuída a cada indivíduo, pode
fornecer uma aproximação do desempenho e da inserção na estrutura social de
cada grupo étnico-racial no período estudado. Para tanto, consideraram-se os
indivíduos de no mínimo 21 anos de idade, tanto em áreas urbanas quanto rurais.
A Tabela_9 expõe tais resultados, expressos em percentuais.
Em primeiro lugar, os dados demonstram que era mais fácil (porque mais barato)
ser proprietário no meio urbano do que no rural. De fato, no primeiro, quase
40% dos indivíduos maiores de 21 anos eram proprietários, enquanto no segundo
essa proporção não atinge 12%. Chama a atenção, em ambas as situações, os
baixos índices dos espanhóis proprietários, inferiores inclusive aos de
brasileiros negros. Isso se deve, em parte, à sua condição de recém-chegados.
No meio urbano, o grupo diversos é o que mais detém, relativamente a seu
tamanho, propriedades, seguido por portugueses e brasileiros brancos.
No meio rural, ser proprietário inclui tanto aqueles que detinham propriedades
agrícolas, quanto os que possuíam apenas uma casa, ou um comércio, desde que
localizados na zona rural. Nesse caso, despontam os turcos (sírios e
libaneses), acompanhados dos brasileiros brancos (muito distintos de
brasileiros negros). Entre os estrangeiros, após os turcos, alemães e
portugueses se destacam, relativamente a seus contingentes.
Em termos absolutos, consoante a expressão numérica do grupo, os italianos
predominavam, entre os estrangeiros, como proprietários no meio rural. Trata-
se, obviamente, de propriedades relativamente pequenas. A Estatística Agrícola
realizada poucos anos antes, referente ao ano agrícola 1904-1905, indicou que
havia no município 313 estabelecimentos rurais, 80,5% dos quais eram de
propriedade de brasileiros. O maior contingente de proprietários estrangeiros
era composto justamente pelos italianos (12,8%), sendo que metade deles possuía
até dez alqueires e 37,5% eram donos de terras cujas áreas ficavam entre 10 e
50 alqueires (BASSANEZI; FRANCISCO, 2003; TRUZZI, 2004).
Elites e associações de cunho étnico-racial
Em uma sociedade receptora de imigrantes, emersa há menos de duas décadas do
regime escravista, é relevante observar em que medida os diferentes grupos
étnico-raciais lograram se organizar, constituir interlocutores e mesmo
adentrar ao círculo restrito das elites rurais locais. Um dos indicadores de
permeabilidade, já comentado, refere-se ao acesso à propriedade - sobretudo
rural - desses diferentes grupos. Outro possível indicador, aproximativo, diz
respeito à entrada de indivíduos em profissões ou atividades de algum prestígio
para a época.
É notável o quase monopólio de brasileiros brancos entre profissionais liberais
(médicos, advogados, farmacêuticos e professores) e em cargos de direção na
ferrovia (considerada um ótimo local de trabalho). Além disso, eles dominavam
amplamente entre funcionários públicos, comerciantes (provavelmente de café) e
administradores de fazendas (Tabela_10).
Os italianos, numerosos entre os imigrantes, já se insinuavam em algumas dessas
ocupações, mas predominavam mesmo entre os negociantes, industriais e diretores
de colônia. Notáveis são ainda as presenças de alemães entre engenheiros,
portugueses entre feitores e de turcos entre negociantes. Ressalte-se ainda a
participação muito pequena de negros nesse quadro: nenhum entre as categorias
mais prestigiosas e apenas cinco negociantes, cinco administradores, dois
feitores e um industrial, perfazendo apenas 13 em um conjunto de 634
indivíduos.13
Relativamente à capacidade mobilizadora e organizativa dos diferentes grupos,
no caso de São Carlos, é incontestável a influência da maçonaria, desde 1874,
quando parece ter sido fundada a primeira loja, que reunia muitos fazendeiros e
o próprio pároco local. Nos anos 80 do século XIX, dois clubes de recreação e
instrutivos disputavam a adesão dos cidadãos brasileiros e brancos mais
abastados da cidade.
Entre imigrantes, os espanhóis foram os primeiros a propor, já em 1892, uma
Sociedade Espanhola de Socorros Mútuos (O Popular, 17 de março de 1892). Ao que
parece, o intento foi realizado em 1896, com a fundação da Sociedade Espanhola
Beneficente e Instrutiva de São Carlos, que funcionou em prédio próprio desde
sua fundação. Presidida por um fotógrafo, sua primeira diretoria reunia
negociantes e um industrial.
Os italianos, por sua vez, lograram fundar, já em 1894, uma loja maçônica
própria, a "Cristoforo Colombo", de perfil anticlerical, cujas sessões
transcorriam em italiano. Ao final do século XIX, sua diretoria era composta em
maioria por negociantes, ao lado de um médico (o Dr. Vicenzo Pellicano, formado
pela Universidade de Nápoles) e de um alfaiate. O fato de essa loja maçônica
ter se desarticulado no final do século XIX e de vários de seus membros terem
colaborado na fundação de outra loja, de perfil mais abrangente, cuja diretoria
reunia indivíduos de distintas origens e profissões, já denota a precoce
integração da elite urbana italiana à determinada parcela das elites locais.
Entre os membros dessa nova loja, da qual muitos italianos participavam
ativamente, incluíam-se também fazendeiros e políticos locais. Outras duas
associações italianas surgiram nos albores do século XX: a Meridionali Uniti
Vittorio Emmanuele III, em 1900, que reunia italianos do sul; e a Dante
Alighieri, em 1902, mais conhecida porque, por muitos anos, manteve uma escola
para filhos da colônia italiana. Por iniciativa dessa última, fundou-se, ainda
em 1903, o Patronato degli Emigranti, presidido pelo Dr. Pellicano, com o
intuito de amparar os colonos em suas relações de trabalho.
Os portugueses tentaram se organizar, mas tudo indica que não lograram fundar
uma associação própria. Como já mencionado, entre eles havia vários empregados
na ferrovia e estes sim não tardaram a fundar, em 1905, uma associação
denominada Protectora das Famílias dos Empregados da Companhia Paulista.
Já a população negra demorou bem mais para se organizar. A Sociedade Recreativa
Flor de Maio, até hoje em funcionamento, foi fundada apenas em 1928, por
ferroviários, detentores de um emprego digno, mas que não podiam entrar em
outras associações graças ao preconceito de cor. Antes disso, há notícias da
fundação, em 1908, portanto duas décadas após a abolição, da Sociedade
Beneficente Luís Gama, presidida em 1912 por João Anacleto de Paula e Silva,
residente nos arrabaldes da cidade.14 Infelizmente, não há mais informações
sobre essa instituição, embora haja indícios de que estivesse ativa em 1915,
quando da publicação de um almanaque local.15
De qualquer modo, é muito contrastante a situação da colônia italiana com a dos
negros. Enquanto a primeira estava organizada em várias associações, mantinha
uma escola para seus filhos, dominava o comércio local e dispunha de
profissionais em ocupações de algum prestígio, os negros, discriminados pelos
brancos de modo geral, só conseguiram se organizar mais tardiamente, e contavam
com muito poucos interlocutores junto às elites locais.
Considerações finais
Fundado em meados do século XIX à beira do segundo degrau do Planalto
Ocidental, além de Rio Claro e aquém de Araraquara, São Carlos logo se
conformou como um município típico do segundo ciclo da economia cafeeira
paulista. Suas lavouras, inicialmente tocadas a braço escravo, passaram a
acolher, a partir do último quartel do século XIX, contingentes numerosos de
imigrantes, sobretudo italianos, que provocaram um impacto decisivo em sua
população.
Tais transformações, ocorridas em um período no qual os censos nacionais foram
deficitários, podem agora ser captadas plenamente graças à existência de um
censo municipal, que permite apresentar em detalhes o perfil da população de um
município dos mais significativos da economia cafeeira paulista. Assim,
destacam-se a predominância dos domicílios rurais na razão de 3 para 1, a
maciça presença de italianos, que compunham cerca de 30% da população total
(sem contar seus filhos nascidos no Brasil), a maior incidência de homens em
zonas rurais, a maior importância da família e da instrução entre os
imigrantes, bem como as diferenças significativas entre eles e entre os meios
rural e urbano.
Entre tais características, procurou-se ainda deslindar aqui as especificidades
dos diferentes grupos étnico-raciais e, sobretudo, os indícios de seu
posicionamento na estrutura social vigente, apreendidos, principalmente, pela
inserção ocupacional, por padrões domiciliares na cidade, pelo acesso à
propriedade, seja rural ou urbana, e pela capacidade associativa. Neste quadro,
é inevitável constatar que os negros, menos de duas décadas após a abolição,
acumulavam handicaps significativos: profissionalmente, embora não excluídos
(como supõe de modo geral a literatura) do regime de colonato, encontravam-se
sobre-representados em profissões subalternas e alijados tanto de ocupações
mais prestigiosas quanto dos cargos de comando; em relação a outros grupos,
apresentavam ainda taxas elevadas de analfabetismo, dificuldade em se
organizar, maior chance de habitar a periferia urbana, menos propriedades e
menor interlocução junto às elites locais.
Assim, os resultados apontam no sentido de corroborar a noção de que os
imigrantes de fato adentraram a estrutura social paulista em um patamar
diferenciado em relação aos negros saídos há pouco da escravidão. Embora os
imigrantes fossem recém-chegados, rapidamente estabeleceram-se identidades
contrastivas no tecido social, entre brancos e não-brancos: inclusiva para os
imigrantes e discriminatória para pretos e mulatos. O resultado é um panorama
demográfico rico, diversificado e racialmente excludente, de um município
representativo de uma fase tão decisiva da história da economia cafeeira
paulista.