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BrBRHUAp0102-30982012000200010

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National varietyBr
Year2012
SourceScielo

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Autonomia, gênero e gravidez na adolescência: uma análise comparativa da experiência de adolescentes e mulheres jovens provenientes de camadas médias e populares em Belo Horizonte

Introdução A autonomia pode ser considerada um elemento-chave para conquistar a saúde sexual e reprodutiva: nenhum nível de educação será capaz de proteger a mulher de exposição ao vírus HIV e à gravidez indesejada se ela não puder negociar o sexo seguro. Na falta da autonomia, a mulher não se sentirá suficientemente empoderada para recusar o sexo ou demandar o uso do preservativo (SEN; BATLIWALA, 2000).

Pesquisas realizadas em diferentes países demonstraram que o uso de indicadores de autonomia é bastante útil para medir o impacto das desigualdades de gênero em diferentes áreas da vida da mulher, tanto em níveis macro quanto micro de análises (CASIQUE, 2006; RILEY, 1997; JEJEEBHOY, 1995; MASON, 1993; DAS GUPTA, 1990). Tais estudos demonstraram que o aumento do controle das mulheres sobre suas próprias vidas e sobre seu acesso a recursos materiais e sociais é fundamental para melhorar a qualidade de vida e de saúde de mulheres e crianças.

Autonomia tem sido definida como sendo relativa ao "grau de acesso da mulher a, e seu controle sobre, recursos materiais (incluindo alimentação, renda, terra e outras formas de bem-estar) e sociais (incluindo conhecimento, poder e prestígio) dentro da família, da comunidade e da sociedade mais ampla" (JEJEEBHOY, 2000, p. 205). O conceito de autonomia relaciona-se com a amplitude do controle da mulher sobre sua própria vida. Baseada nesta definição, Jejeebhoy (2000) criou cinco dimensões de autonomia ' autoridade para tomar decisões econômicas e relacionadas com os filhos; mobilidade; ausência de ameaça do companheiro; acesso a recursos econômicos e sociais; e controle sobre recursos econômicos ' e selecionou indicadores para cada uma delas.

Especificamente na esfera reprodutiva e sexual, a autonomia relaciona-se com: o fato de a jovem/mulher poder ou não determinar, com segurança, quando e com quem terá relações sexuais; a saúde sexual; a regulação da fertilidade; e a maternidade segura (SEN; BATLIWALA, 2000). A ausência de autonomia na esfera da sexualidade pode ser considerada um risco para a saúde sexual e reprodutiva da mulher. Existem evidências significativas de que a falta de autonomia significa um grande obstáculo, quando não uma impossibilidade de as mulheres negociarem tanto a frequência da relação sexual quanto o uso de métodos de prevenção de gravidez e das Aids/HIV/DSTs (doenças sexuais transmissíveis).

Em nosso trabalho, adaptamos os indicadores propostos para analisar as esferas da autonomia relacionadas com maior susceptibilidade à gravidez entre mulheres jovens moradoras de bairros de classe média e de favelas de uma mesma área urbana de Belo Horizonte, Minas Gerais. A decisão de focar a análise no fenômeno da gravidez na adolescência deve-se ao fato de que esse tem sido objeto frequente de interesse tanto da mídia quanto de importantes pesquisas realizadas na última década1 e é intenção aqui contribuir com novos elementos para esse diálogo.

A despeito de indicações de uma reversão nas taxas de nascimentos para mães entre 15 a 19 anos (BERQUÓ, CAVANAGAH, 2005), a prevalência da gravidez na adolescência permanece relativamente alta, como um fenômeno quase que exclusivo das camadas mais pobres da população (BASSI, 2008). E se, hoje, os resultados de diferentes pesquisas forçaram uma revisão de várias representações presentes no senso comum sobre a gravidez na adolescência, ao mostrar que elas não são necessariamente indesejadas ou mesmo não planejadas, o fato de muitas vezes resultarem de escolhas das jovens não nos preclui de examinarmos o contexto em que essas escolhas são feitas e, principalmente, as suas consequências.

A análise do impacto da desigualdade de gênero na redução da autonomia da jovem em diferentes esferas da sua vida e, mais especificamente, na esfera da sexualidade e da reprodução, que se propõe apresentar aqui, é uma contribuição nesse sentido. Longe de estigmatizar a experiência da gravidez na adolescência, o objetivo é compreender alguns dos múltiplos fatores, incluindo a desigualdade de gênero e de classe, que estão associados a ela. Dentro desse processo, o principal desafio foi construir indicadores das diferentes dimensões de autonomia de mulheres jovens que fizessem sentido no contexto cultural e social investigado ' uma grande metrópole localizada em um país industrializado, no qual coexistem valores e comportamentos "modernos" com expectativas tradicionais acerca dos papéis de gênero e o machismo que caracteriza as sociedades latino-americanas.

Desenho da pesquisa e métodos A presente pesquisa foi realizada em Belo Horizonte, Minas Gerais, Estado localizado na Região Sudeste do Brasil, a mais rica e desenvolvida do país, mas ainda fortemente marcada por desigualdades sociais. Segundo o Censo de 2010, a capital mineira possui 2.375.000 habitantes, sendo a Região Metropolitana de Belo Horizonte a terceira maior do país, com uma população de quase cinco milhões de habitantes (IBGE, 2010). A cidade se divide em nove regiões administrativas, das quais a regional Centro-Sul é a que concentra os bairros mais ricos e também algumas das favelas mais extensas do município. Esta regional foi escolhida como lócus da pesquisa por permitir comparar a experiência de vida de mulheres jovens de diferentes níveis socioeconômicos vivendo na mesma região geográfica e administrativa, às vezes na mesma rua.

Para a pesquisa, foi utilizado um mix dos métodos quantitativos e qualitativos: inquérito, grupos focais e entrevistas em profundidade. Aqui são apresentados os resultados quantitativos. O trabalho de campo da fase quantitativa durou um ano, de janeiro de 2007 a janeiro de 2008. Foram realizados dois inquéritos em momentos diferentes: no primeiro, entre janeiro e setembro de 2007, foram entrevistadas 292 adolescentes e mulheres jovens (entre 15 e 24 anos de idade) moradoras dos bairros de classe média da regional Centro-Sul de Belo Horizonte; no segundo, de setembro de 2007 a janeiro de 2008, foram entrevistadas 365 adolescentes e mulheres jovens da mesma faixa etária residentes em cinco favelas daquela região (Complexo da Serra, Barragem Santa Lúcia/Morro do Papagaio, São José, Acaba Mundo e Querosene).

O tamanho da amostra de cada inquérito foi calculado com base na prevalência da gravidez na adolescência para ambos os grupos e também no tamanho da população de mulheres jovens (entre 15 e 24 anos) em cada área. Em pesquisa anterior na favela do Taquaril, encontrou-se uma prevalência de gravidez na adolescência de 38%, em 2005 (CHACHAM et al., 2007). os registros de nascidos vivos (Sinasc) do mesmo ano indicaram uma prevalência de 3% de partos em adolescentes nas maternidades privadas de Belo Horizonte, utilizadas principalmente por mulheres de classe média e alta. Estes números foram empregados como parâmetros para a prevalência esperada de gravidez, em ambos os grupos. Com uma equação para amostra probabilística aleatória com nível de significância de 5%, a amostra foi definida a partir do número total de adolescentes e mulheres jovens entre 15 e 24 anos residentes nos bairros e nas favelas da regional Centro-Sul, de acordo com o Censo de 2000.

Para participar da pesquisa, foram sorteados 40 setores censitários normais (bairros) e 30 setores censitários subnormais (favelas) da Regional Centro-Sul.

Posteriormente, foi realizada uma contagem do número de mulheres entre 15 e 24 anos residentes naqueles setores. Finalizada a contagem, elaborou-se uma lista de idade e endereço de cada mulher identificada e foram selecionadas aleatoriamente 12 jovens em cada um dos 70 setores sorteados para serem entrevistadas.

As entrevistadoras eram estudantes do curso de Ciências Sociais e foram treinadas e supervisionadas pelos pesquisadores. Elas receberam uma lista com 12 nomes para cada setor censitário e tinham como meta entrevistar nove adolescentes e mulheres jovens. Todas as entrevistadas foram contatadas em casa e assinaram um consentimento informado para participar da pesquisa.2 As entrevistas ocorreram em locais privados, onde a jovem se sentisse confiante e confortável, e duravam cerca de 50 minutos. Ao todo foram entrevistadas 648 jovens entre 15 e 24 anos moradoras de favelas e de bairros de classe média da regional Centro-Sul de Belo Horizonte. Após as entrevistas, cada questionário foi conferido por um dos pesquisadores principais, e 20% das entrevistas foram aleatoriamente escolhidas para serem checadas. Todas as respostas para algumas questões-chave foram conferidas. Após o processo de checagem, as respostas para as questões abertas e fechadas do questionário foram codificadas, inseridas em uma base de dados e analisadas por meio do Statistical Programme for Social Sciences(SPSS 16.0). Como medida de associação, aplicou-se o teste do chi- quadrado de Pearson e as correlações foram aceitas quando o p-valor era próximo ou inferior a 0,05.

O questionário aplicado na regional Centro-Sul foi baseado no modelo usado anteriormente na pesquisa realizada na favela do Taquaril (CHACHAM et al., 2007), cujos indicadores de autonomia foram inspirados no trabalho de Jejeebhoy (2000), na Índia, e no de Araújo e Scalon (2005). O Quadro_1 apresenta as variáveis utilizadas como indicadores das diferentes dimensões de autonomia.

Nesse artigo será apresentada uma análise da relação da prevalência da gravidez na adolescência com as características socioeconômicas das jovens entrevistadas e com os fatores associados com a autonomia na esfera da sexualidade e a liberdade de violência e controle.

Resultados Perfil socioeconômico das adolescentes e jovens entrevistadas A análise das características socioeconômicas das entrevistadas indicou, conforme era de se esperar, uma grande disparidade de renda entre as que residiam nos bairros de classe média e as residentes nas favelas da região Centro-Sul. Na favela, em 54% dos domicílios, a renda mensal era de até dois salários mínimos,3 o que denota condições materiais bastante precárias, tendo em vista que foi encontrada uma média de sete moradores por domicílio. nos bairros de classe média, 37% declararam renda familiar mensal superior a 20 salários mínimos e 56% entre 5 e 20 salários mínimos, sendo que o número de residentes em cada domicílio era bem mais baixo, em média quatro.

O abismo econômico encontrado entre as adolescentes e jovens dos dois grupos pesquisados era esperado, dada a profunda desigualdade de classe existente no Brasil. Contudo, também foi possível observar uma grande heterogeneidade dentro dos próprios grupos pesquisados: tanto na favela como nos bairros de classe média, diferentes níveis de renda coexistiam no mesmo território. Entre as jovens residentes em bairros da regional Centro-Sul de Belo Horizonte, foram encontrados níveis de renda familiar compatíveis com os das camadas médias e médias-altas da população, mas também um grupo relativamente pequeno (5%) que declarou renda familiar mensal entre dois e cinco salários mínimos. Na favela, foi observado um percentual próximo (4%) de jovens que declararam uma renda familiar de cinco salários ou mais. Essas diferenças intragrupos se mostraram relevantes para a análise do comportamento sexual e reprodutivo das jovens, o que será discutido a diante.

Outra diferença entre os dois grupos refere-se à chefia do domicílio. A maioria das moradoras dos bairros de classe média (51%) declarou que o pai era o responsável pelo domicílio, contra 31% das residentes em favelas. As jovens residentes em favelas declararam em maior número morar em domicílios chefiados por mulheres: para 34% a chefe era a mãe e em 4,5% dos casos eram elas mesmas as responsáveis pelo domicílio. entre as jovens de classe média, 25% declararam que a mãe era a responsável pelo domicílio e 0,7% afirmou ser ela própria a responsável pelo domicílio. Uma proporção bem maior de moradoras de favela (18%) declarou que o parceiro era o responsável pelo domicílio, em comparação às entrevistadas em bairros (1,7%).

A chefia feminina estava associada a uma renda domiciliar mais baixa nos dois grupos de entrevistadas, mas, entre as jovens da favela, as que residiam com a mãe declararam renda familiar mais alta do que as que residiam em domicílios chefiados pelos parceiros ou por elas mesmas.

Em relação ao estado civil, apenas 3,1% das moradoras dos bairros de classe média estavam ou haviam sido casadas ou unidas no momento da entrevista.

Entre as moradoras das favelas, apesar da grande maioria ser solteira (69%), quando analisamos o grupo de 20 a 24 anos de idade encontramos uma proporção muito mais alta de jovens que haviam se casado ou unido (54%), especialmente quando comparamos com as jovens de classe média da mesma faixa etária, entre as quais somente 4,5% haviam se casado ou unido. entre as adolescentes de 15 a 19 anos residentes em favelas, 14% encontravam-se nessa situação, contra 1,4% das adolescentes de classe média.

Conforme esperado, dada a grande associação entre classe e raça no Brasil, onde os negros representam 70% da população que vive abaixo da linha de pobreza, a grande proporção das jovens entrevistadas que declararam ser pardas ou pretas residia em favelas (84,5%), enquanto nos bairros de classe média 69% das jovens se declararam brancas.

A religião foi mais um ponto de diferenciação entre os dois grupos de jovens: nas favelas, houve uma predominância das religiões evangélicas/pentecostais (42%), superando a católica (37%) em número de adeptas, sendo que 20% declararam não ter religião. nos bairros de classe média, o número de católicas continua a ser expressivo (52%), apesar de um grande número ter se declarado sem religião (28%). Entre as jovens de classe média, 12% declararam ser espírita e apenas 6% evangélica ou protestante.

Importante indicador da desigualdade de classe é o nível de escolaridade das entrevistadas: a maioria absoluta (98%) das adolescentes residentes nos bairros de classe média estava estudando, enquanto mais de 30% das adolescentes residentes em favelas haviam parado de estudar. Entre estas, 31,5% pararam de estudar por ter engravidado e/ou para cuidar dos filhos. Contudo, uma proporção significativa delas (30%) declarou que parou simplesmente porque não gostava de estudar, dado que pode ser interpretado como indicador da baixa qualidade do ensino oferecido na região.

Os resultados também indicam que o ensino médio é o limite da escolarização das moradoras das favelas, ou seja, elas não conseguem acessar o ensino superior.

Entre as adolescentes de 15 a 19 anos, 44% das moradoras dos bairros de classe média possuíam ensino médio ou técnico completo e 5% estavam na universidade; entre as adolescentes residentes em favelas, apenas 7% haviam concluído o ensino médio e nenhuma estava na universidade. Para as jovens de 20 a 24 anos residentes em bairros de classe média, 70% estavam cursando ou tinham completado um curso superior, enquanto apenas 3,3% das jovens da mesma faixa etária residentes em favelas frequentavam universidade, apesar de 34% delas terem concluído o ensino médio.

Com relação à inserção das entrevistadas no mercado de trabalho, observou-se que as moradoras das favelas ingressam mais precocemente no mercado de trabalho: 25% das adolescentes entre 15 e 19 anos moradoras das favelas exerciam algum trabalho remunerado, contra 14% das residentes nos bairros de classe média. A proporção de jovens entre 20 e 24 anos exercendo atividade remunerada era a mesma nos dois grupos, em torno de 50%. Entretanto, o rendimento médio mensal das moradoras dos bairros de classe média era de dois salários mínimos, predominando como ocupação o estágio do ensino superior (48%). entre as moradoras das favelas, o rendimento médio mensal correspondia a ½ salário mínimo, predominando o trabalho no comércio varejista (36%) e o serviço doméstico (24%). Observa-se claramente uma concentração das jovens residentes em favelas em empregos no setor de serviços de baixa qualificação, baixos salários, relações precárias de trabalho, sem estabilidade e com poucas chances de ascensão profissional. Considerando-se que um número significativo delas havia completado o ensino médio, um nível de escolaridade relativamente alto para os padrões brasileiros, fica evidente a limitação desse diploma em promover uma inclusão qualificada no mercado de trabalho.

Características do comportamento sexual e reprodutivo das adolescentes e jovens entrevistadas Especificamente em relação à gravidez na adolescência, verificou-se uma prevalência de 27,3% de gravidez antes dos 19 anos de idade entre as residentes em favelas, enquanto para as jovens das camadas médias esse percentual foi 16 vezes menor, ficando em 1,7%. em relação à gravidez antes dos 20 anos ' recorte comumente utilizado para a análise da gravidez na adolescência ', a proporção foi de 30,7% para o grupo das residentes em favelas, não se alterando para as jovens residentes em bairros. A prevalência da gravidez antes dos 15 anos de idade foi de 3,2% entre as jovens residentes em favelas e 0% para as de classe média.

O recorte para a análise da gravidez na adolescência adotado neste trabalho, ao contrário da grande maioria dos estudos da área, será o da gravidez ocorrida até os 18 anos de idade, seguindo o marco etário estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990. A justificativa para tal escolha se fundamenta na nossa observação em pesquisas anteriores de que a gravidez antes dos 18 anos de idade resulta em maior impacto na trajetória afetivo-conjugal da jovem e na sua escolarização do que aquela ocorrida após os 18 anos de idade, momento que, em tese, ela teria completado o ensino médio e é considerada uma adulta, legal e socialmente.

A despeito das diferenças extremas em relação à prevalência da gravidez na adolescência entre as entrevistadas, foi possível observar que existe uma semelhança muito grande em alguns aspectos das trajetórias sexuais dessas jovens: a proporção de entrevistadas que haviam se iniciado sexualmente foi praticamente a mesma: em torno de 70% nos dois grupos. No entanto, aquelas de classe média se iniciaram sexualmente um pouco mais tarde (17 anos em média) do que as jovens residentes em favelas (15,7 anos em média). Dada essa diferença, verificou-se uma proporção maior de adolescentes sexualmente ativas entre as entrevistadas nas favelas (50%) do que entre as das camadas médias (45,6%).

Contudo, apesar de serem sexualmente ativas menos tempo, as jovens de classe média declararam ter tido um número pouco maior de parceiros em média (três) do que as residentes em favelas (dois parceiros em média). O sexo pré-marital foi prática comum para os dois grupos, sendo que para a grande maioria das entrevistadas (84%), a primeira relação sexual ocorreu no contexto de uma relação estável, com um noivo ou namorado, a exemplo dos resultados encontrados por Aquino et al. (2003).

Apesar das semelhanças na trajetória sexual das jovens das camadas médias e das residentes em favelas, em relação à experiência reprodutiva as disparidades encontradas entre os dois grupos foram substanciais: além da diferença na prevalência da gravidez na adolescência, mais da metade das jovens residentes em favelas que eram sexualmente ativas declarou ter engravidado ao menos uma vez (57%), contra 5,4% das entrevistadas de classe média. Entre as jovens residentes em favelas, a primeira gravidez ocorreu em média aproximadamente um ano após a iniciação sexual e se traduziu, na maioria das vezes, na experiência da maternidade: entre as entrevistadas que haviam engravidado, 70% das adolescentes (15 a 19 anos) e 91% das jovens (20 a 24 anos) residentes em favelas eram mães. Entre as 11 entrevistadas de classe média que haviam engravidado, apenas cinco eram mães (quatro haviam interrompido a gravidez e uma estava grávida no momento da pesquisa). duas jovens residentes em favelas declararam ter provocado um aborto, sendo que 12% das adolescentes e 20% das jovens declararam ter tido pelo menos um aborto espontâneo.

A prevalência do uso do preservativo na primeira relação sexual foi alta nos dois grupos, ainda que mais elevada entre as jovens de classe média (88% contra 71%). A principal razão apontada para o uso do preservativo, nos dois grupos, foi a prevenção de gravidez e de HIV/DSTs. o principal motivo para o não uso do preservativo na primeira relação dada pelas residentes em bairros de classe média foi de que "confiavam no parceiro" (30%), enquanto para as residentes das favelas, as principais razões foram: "não ter o preservativo na hora" (20%); "não se lembrou" (20%); "ter sido levada pelo momento" (17%) ou "não saber que era importante" (12%), fatores que apontam para uma falta de planejamento em relação ao momento da primeira relação, o que não significa que ela não fosse desejada.

Nos dois grupos observou-se uma queda no uso do preservativo após a primeira relação, sendo que apenas 53% das jovens dos bairros de classe média e 44% das residentes em favelas declararam ter usado o preservativo na última relação sexual. A diminuição do uso da camisinha coincide com a entrada da jovem em relações estáveis, conjugais ou não, nas quais o preservativo é substituído por outros métodos contraceptivos. Entretanto, as entrevistadas pertencentes às camadas médias aparentemente foram muito mais bem-sucedidas nessa substituição: apenas 4,4% delas declararam não ter utilizado contraceptivo na última relação sexual, contra 22% das residentes nas favelas (entre elas, 36% estavam grávidas no momento da pesquisa e mais da metade justificou não ter usado algum método por esquecimento ou por não tê-lo em mãos no momento).

Esses dados indicam que, para as entrevistadas da favela, ao abandono do uso da camisinha não se segue uma adoção sistemática do uso de outro método contraceptivo. A dificuldade de acesso aos métodos contraceptivos ainda permanece como uma questão importante para elas. Embora a grande maioria tenha declarado que tem acesso a preservativos e pílulas anticoncepcionais nos centros de saúde, nem sempre estes estão disponíveis quando a jovem vai ao centro de saúde. Além disso, vários desses métodos, como a pílula, por exemplo, requer uma consulta ao ginecologista, o que demanda tempo até ser agendada, bem como a participação em um grupo de planejamento familiar, o que pode ser intimidador para uma jovem, pois significa exposição pública do interesse em obter contracepção em um ambiente frequentado por familiares e vizinhos. Esses obstáculos ao acesso dos serviços de saúde contribuem para que uma proporção relativamente baixa das jovens residentes em favelas que nunca engravidaram declarassem que haviam ido ao ginecologista (27%), enquanto 70% das jovens de classe média na mesma situação passaram por essa experiência.

Os resultados indicam que as jovens de classe média fazem um uso mais sistemático e eficaz dos métodos contraceptivos quando deixam de usar o preservativo. Elas também utilizaram a contracepção de emergência com maior frequência: 27% afirmaram ter utilizado esse tipo de contracepção ao menos uma vez, contra 5,6% das moradoras das favelas. Apesar de o conhecimento sobre contracepção ter sido praticamente universal em ambos os grupos (mais de 98% conhecem pelo menos um método contraceptivo), as moradoras dos bairros de classe média, quando perguntado, elencaram um número maior de métodos.

O acesso ainda precário aos serviços de saúde sexual e reprodutiva pode ser diretamente relacionado com o uso menos consistente dos métodos contraceptivos, principalmente entre as adolescentes de 15 a 19 anos: 78% das que engravidaram declararam que não usavam nenhum método contraceptivo quando ficaram grávidas, apesar de 70% delas terem declarado que não desejavam a gravidez. A prevalência muito maior de gravidez e da maternidade entre as adolescentes pobres certamente é um reflexo dessa realidade.

Características sociodemográficas associadas à prevalência da gravidez na adolescência entre as jovens entrevistadas Na Tabela_1 apresentam-se os cruzamentos de algumas características socioeconômicas das jovens com a prevalência da gravidez antes dos 19 anos.

Verificou-se maior prevalência da gravidez na adolescência entre as entrevistadas com níveis de renda mais baixo dentro de cada grupo. Entre as residentes em favelas, 45% das que residiam em domicílios com renda mensal de até um salário mínimo engravidaram antes dos 19 anos de idade, sendo que essa diferença foi mais acentuada ainda entre as entrevistadas residentes em bairros de classe média.

Entretanto, a gravidez entre as adolescentes residentes em bairros de classe média que declararam renda familiar mais baixa não se traduziu em um impacto negativo na sua escolaridade, como ocorreu entre as moradoras em favelas. Mesmo para as jovens com renda familiar mais baixa, o fato de residerem em bairros de classe média melhora o acesso à educação. a associação negativa da gravidez na adolescência com o nível de escolaridade foi bastante pronunciada entre as jovens residentes em favelas, principalmente quando comparadas com aquelas que tiveram filhos após os 19 anos ou que fizeram sexo e nunca engravidaram.

Entre as entrevistadas residentes em favelas, as que ficaram grávidas até os 19 anos tinham um nível de escolaridade mais baixo do que todas outras entrevistadas, enquanto a gravidez após os 19 anos aparentemente não impacta nos níveis de escolaridade entre as jovens desse grupo. As adolescentes que engravidaram antes dos 19 anos tinham uma média de 7,5 anos de escolaridade, contra uma média de nove anos para as jovens que engravidaram após os 19 anos ou nunca engravidaram. Entre as jovens que engravidaram após os 19 anos, 28% completaram o ensino médio, proporção que corresponde a apenas 13% para as que engravidaram antes dos 19 anos.

A gravidez antes dos 19 anos parece ter sido um fator importante de interrupção dos estudos ou de sua não retomada, sendo que as jovens que passaram por essa experiência interromperam seus estudos com 16,8 anos de idade em média e 60% delas declararam que largaram a escola porque engravidaram ou tinham que cuidar dos filhos. entre aquelas que engravidaram após os 19 anos, apenas 16% declararam ter saído da escola por causa de gravidez e/ou filhos. A experiência da gravidez antes dos 19 anos de idade, entre as entrevistadas residentes em favelas, reduziu suas chances de completar a escolarização e alcançar uma inserção mais qualificada no mercado de trabalho.

Em relação à trajetória profissional das jovens, associada ao menor nível de renda e de escolaridade, constatou-se uma inserção mais precária no mercado de trabalho entre as residentes em favelas que engravidaram antes dos 19 anos: 35% trabalhavam como domésticas e 15% em trabalhos manuais, contra 20% e 7%, respectivamente, para todas as outras jovens residentes em favelas. Aquelas que ficaram grávidas na adolescência declararam ter trabalho remunerado em maior número, contudo, as jovens que nunca tiveram filhos ou que tiveram após os 19 anos de idade mencionaram, em maior número, estar trabalhando como comerciárias ou assistentes administrativas. entre as moradoras dos bairros de classe média, não diferença entre o nível de escolaridade e o tipo de ocupação das que tiveram o primeiro filho antes dos 19 anos e daquelas que nunca fizeram sexo ou das que fizeram sexo e nunca engravidaram. Para as jovens residentes em favelas, foi possível observar que a gravidez na adolescência amplia as desigualdades sociais existentes nesse grupo específico.

Obviamente, seria necessário um estudo longitudinal para avaliar as consequências dessa desvantagem inicial entre as jovens que engravidaram na adolescência, identificada no presente estudo. Nada garante que ela se prolongue pela vida adulta ou que seja significativa em longo prazo. No entanto, esses resultados levantam novas questões sobre as diferenças entre as jovens com diferentes trajetórias reprodutivas e afetivas. Para as adolescentes residentes em favelas que estavam casadas ou unidas no momento da pesquisa, 70% haviam engravidado ao menos uma vez, proporção que alcançava 91% entre as jovens de 20 a 24. para as residentes em bairros de classe média, a associação entre as experiências da gravidez, maternidade e entrada em uma união conjugal não foi tão pronunciada.

Como seria de se esperar, a maioria das jovens residentes em favela que engravidaram antes dos 19 anos declarou residir com um parceiro, apesar de uma proporção significativa delas ter mencionado residir com a mãe ou com os filhos. Entretanto, aquelas que eram sexualmente ativas e que declararam que a mãe era a responsável pelo domicílio apresentaram maior probabilidade de nunca ter engravidado, quando comparadas com as adolescentes que moravam em casas em que o pai era o responsável pelo domicílio, apesar de a proporção de virgens ser maior nesse último grupo (dados não apresentados).

Entre moradoras de favelas, residir em domicílio chefiado pelo pai é um fator que adiou a iniciação sexual, enquanto morar em casa chefiada pela mãe parece contribuir para reduzir o número de gravidezes entre as jovens sexualmente ativas, possivelmente em função de uma atitude mais aberta e menos conservadora da mãe em relação à sexualidade da filha. Resultados similares foram encontrados na pesquisa conduzida na favela do Taquaril (CHACHAM et al., 2007).

Ao contrário do que seria de se esperar, não foi verificada associação significativa entre gravidez na adolescência e cor/raça e religião. A homogeneidade racial encontrada intragrupos pode ter amenizado essa relação e, no que se refere à religião, somente entre as jovens de classe média esse fator mostrou ter algum impacto. Para as jovens da favela, apesar da grande proporção de evangélicas, que em geral eram conservadoras acerca das suas declarações (sobre a importância da virgindade e do casamento, por exemplo), a relação fluida que aparentam ter com a religião, com grande número delas declarando frequentes trocas de igrejas (mais comum entre as evangélicas), pode contribuir para que os indicadores do comportamento sexual e reprodutivo sejam os mesmos para as jovens de diferentes religiões (dados não apresentados).

Violência de gênero, indicadores de autonomia e gravidez na adolescência Na Tabela_2 são apresentados os dados referentes à relação da gravidez na adolescência com fatores associados à violência e ao controle por parte de um parceiro. Os fatores selecionados foram: ter sido proibida de usar algum tipo de roupa, e por quem; ter sido proibida de ter algum amigo, e por quem; ter hora marcada para chegar em casa, e quem determina; ter sofrido violência física por parte do parceiro; ter sofrido violência sexual por parte de um parceiro. Em pesquisa realizada com jovens residentes na favela do Taquaril (CHACHAM et al., 2007), tais variáveis mostraram associação positiva com a gravidez na adolescência.

O grau de controle dos pais não variou muito entre as classes sociais, estando mais relacionado com a idade da jovem, ou seja, as mais velhas possuíam maior liberdade diante do controle parental (dado não apresentado). A presença de maior controle por parte dos pais estava negativamente associada com a iniciação sexual apenas para as adolescentes de 15 a 19 anos, o que não ocorria com as jovens de 20 a 24 anos, cuja grande maioria era sexualmente ativa (92%).

Entre as entrevistadas de ambos os grupos, ter tido um parceiro que tentou exercer algum controle sobre elas e/ou foi violento física ou sexualmente estava fortemente associado com ter ficado grávida antes dos 19 anos. Essa associação foi especialmente forte entre adolescentes que haviam ficado grávidas e que estavam unidas ou casadas, em uma proporção significativamente maior do que as outras jovens na mesma faixa etária (dados não apresentados).

Esse resultado indica o impacto negativo de uma união conjugal precoce para a adolescente, bem como a necessidade de uma análise diferenciada da trajetória das jovens que engravidaram mais no início da adolescência em relação àquelas que experimentaram a gravidez após os 19 anos de idade ou mais.

As jovens que ficaram grávidas depois dos 19 anos eram mais prováveis de ter sofrido controle e/ou violência por parte do parceiro quando comparadas com as jovens que nunca tiveram sexo ou que tiveram sexo e nunca ficaram grávidas, mas não quando comparadas com as jovens que ficaram grávidas antes dos 19 anos, mesmo considerando que as primeiras eram mais prováveis de estarem casadas ou unidas (dados não apresentados).

Os resultados encontrados são bastante consistentes com os da pesquisa na favela do Taquaril (CHACHAM et al., 2007). O novo elemento é que a associação entre ter um parceiro controlador e abusivo e a gravidez na adolescência foi encontrada em jovens com diferentes perfis socioeconômicos, um forte indicativo do efeito pernicioso da violência de gênero, independentemente de classe social. Apesar de a magnitude do fenômeno ter variado em função da classe social ' a proporção de entrevistadas da classe média que declararam ter sofrido controle e violência por parte do parceiro foi bem menor4 do que entre as jovens residentes em favelas ', o resultado foi o mesmo: as entrevistadas que passaram pela gravidez na adolescência estavam mais propensas a ter tido relação com um parceiro autoritário e violento em algum momento da sua trajetória afetiva (a pergunta não se restringia ao parceiro atual).

Evidentemente não é possível estabelecer uma relação de causalidade aqui, mas dado que as entrevistadas que tiveram sexo e nunca ficaram grávidas e as que ficaram grávidas após os 19 anos ' especialmente as residentes dos bairros de classe média ' declararam com menor frequência ter sofrido controle e violência por parte de um parceiro do que as jovens que ficaram grávidas antes dos 19 anos, pode-se concluir que uma associação entre controle e violência por parte do parceiro e o início da vida reprodutiva e conjugal, ainda na adolescência.

Esse efeito poderia ocorrer tanto devido ao fato de a gravidez favorecer o estabelecimento de uma união conjugal precoce, na qual a jovem estaria em desvantagem em relação aos recursos econômicos e sociais que pode mobilizar, quanto em consequência de uma relação violenta e abusiva por parte de um parceiro, na qual a autonomia da jovem em relação à sua sexualidade e reprodução é limitada. Somando-se a isso, a permanência e forte aceitação de estereótipos tradicionais acerca dos papéis tradicionais de gênero entre as jovens residentes em favelas (dados não apresentados) podem contribuir no sentido de naturalizar as relações desiguais e mesmo violentas entre homens e mulheres, bem como identificar a maternidade e a domesticidade como trajetórias naturais da mulher.

Esses resultados são reforçados pelos dados apresentados na Tabela_3, na qual estão os cruzamentos de fatores referentes à saúde sexual da jovem com a prevalência da gravidez na adolescência. Nas correlações observadas, a única variável ligada à autonomia que mostrou uma relação forte com a gravidez na adolescência nos dois grupos (bairros de classe média e favelas) foi a idade da primeira relação sexual: a iniciação sexual até os 15 anos de idade está fortemente associada à ocorrência da gravidez antes dos 19 anos. Esse efeito não pode ser explicado somente pela ampliação do tempo em que a jovem está exposta ao risco de uma gravidez devido a uma iniciação sexual precoce, mas parece estar mais ligado a outros fatores como o não uso ou um uso menos eficaz da contracepção pelas adolescentes. Em média, elas engravidaram muito mais rapidamente após o início da vida sexual do que as jovens que tiveram a primeira relação após os 15 anos de idade.

O fator "ter conversado com o parceiro sobre contracepção antes da primeira relação sexual" mostrou-se associado com menor ocorrência da gravidez na adolescência apenas para as moradoras das favelas, o que pode indicar que a necessidade dessa negociação esteja um pouco superada entre jovens de classe média, dado a alta prevalência do uso do preservativo nesse grupo. A forte associação encontrada entre a gravidez na adolescência com a não utilização de preservativo ou de método contraceptivo na primeira relação aponta novamente para a importância da autonomia na esfera da sexualidade para as mulheres negociarem o uso do preservativo com os seus parceiros desde o início da sua vida sexual. a associação da gravidez na adolescência com o não uso do preservativo na última relação pode estar relacionada com a maior probabilidade das jovens que engravidaram de estarem casadas ou unidas, constituindo a presença de uma união estável o fator preditor de maior força do não uso do preservativo para jovens sexualmente ativas (CHACHAM et al., 2007).

Discussão No Brasil e em outros países da America Latina não são comuns estudos que utilizam variáveis relacionadas à autonomia e à capacidade de tomada de decisões da mulher como indicadores de desigualdade de gênero, analisando seu impacto na trajetória de vida destas mulheres. Pesquisas utilizando essas variáveis tendem a se concentrar na Ásia e na África (SEN; PRESSER, 2000).

Apesar disso, estudos recentes (CASIQUE, 2000, 2001, 2003, 2006) indicam sua adequação para dimensionar o impacto da desigualdade das relações de gênero em diferentes esferas da vida das mulheres na América Latina. Casique (2003 e 2006) explora dados da pesquisa ENSARE realizada no México em 1988 para discutir a relação entre maior grau de autonomia e de capacidade de tomada de decisões por parte da mulher com maior probabilidade de uso de contracepção e menores chances de ser vítima de sexo forçado pelo parceiro. A correlação entre empoderamento feminino com maior capacidade de controle da mulher sobre sua vida sexual e reprodutiva é claramente sustentada pelas análises desenvolvidas nesses trabalhos.

Diferentemente da experiência mexicana, as últimas pesquisas de demografia e saúde realizadas no Brasil não continham perguntas que pudessem ser utilizadas para a construção de indicadores de autonomia. Contudo, resultados de uma pesquisa anterior (CHACHAM et al., 2007), realizada em 2005 na favela do Taquaril, localizada na região leste da cidade de Belo Horizonte, apontam para a validade do uso desses indicadores para a realidade brasileira. Nessa pesquisa buscou-se construir indicadores de autonomia para medir o impacto da desigualdade de gênero na saúde sexual e reprodutiva de mulheres jovens. Os resultados indicaram uma associação entre altos níveis de autonomia em diferentes esferas da vida com baixos níveis de vulnerabilidade na trajetória sexual e reprodutiva das mulheres jovens. Tais resultados nos inspiraram a incorporar, nesse novo projeto, jovens das camadas médias, num esforço de compreender como a desigualdade de gênero interage com a desigualdade de classe na trajetória sexual e reprodutiva de mulheres jovens.

O foco dessa pesquisa na saúde sexual e reprodutiva de adolescentes e mulheres jovens está ligado ao fato de que muitas evidências apontam para uma vulnerabilidade maior das jovens nessa esfera, em especial as de classes populares, dado que muitas delas são dependentes financeiramente de seus parceiros, em especial nas situações de gravidez não planejada e/ou casamentos precoces (GAGE, 2000). No contexto de privação econômica, a habilidade das adolescentes e jovens em negociarem quando o sexo ocorrerá ou quando contraceptivos serão usados pode ser bastante reduzida.

No Brasil, assim como em outros países da América Latina, a vulnerabilidade adicional de mulheres pobres pode ser relacionada com a alta prevalência da gravidez na adolescência nas camadas com renda mais baixa da população (RODRIGUEZ, 2008), principalmente quando se comparam com os padrões reprodutivos de mulheres jovens oriundas dos setores médios da população (HEILBORN et al., 2006; BASSI, 2008; FONTOURA; PINHEIRO, 2009). Segundo a Pesquisa de Demografia e Saúde de 2006 (Demographic and Health Surveys ' DHS), tanto a gravidez na adolescência quanto o casamento precoce (ou a coabitação) são muito mais comuns nas áreas rurais pobres e nas favelas das grandes cidades brasileiras (BRASIL, 2009).

Contudo, é importante salientar que a gravidez na adolescência não pode ser considerada uma fonte de problemas sociais. Resultados de pesquisas recentes relativizam o impacto social da gravidez na adolescência, mostrando que a intermitência ou a ausência escolar entre meninas de baixa renda tende a ser independente de gravidez e que a gravidez na adolescência, mesmo quando não planejada, nem sempre é indesejada (HEILBORN et al., 2006). E certamente a maternidade precoce não é responsável pela perpetuação do "ciclo de pobreza" ou pelo aumento da população pobre (STERN, 1997), que a baixa renda tem impacto muito mais significativo do que a gravidez na escolarização da adolescente (CORREA, 2009). Ao mesmo tempo, nesse esforço de relativização, não se pode deixar de observar que uma gravidez não planejada pode acarretar, especialmente para as jovens de classes populares, uma redução no número de anos de estudo e uma inserção precoce e mais precária no mercado de trabalho (FONTOURA; PINHEIRO, 2008; ALMEIDA; AQUINO; BARROS, 2006). Os efeitos da gravidez na adolescência na trajetória reprodutiva futura da mulher é outra questão em geral não considerada, mas que pode se tornar cada vez mais relevante, na medida em que o início precoce da reprodução significa, muitas vezes, um encerramento precoce dessa trajetória, o que pode afetar as futuras decisões reprodutivas dentro das parcerias conjugais subsequentes dessas mulheres.

A tendência a taxas de fecundidade relativamente altas entre adolescentes pobres em regiões urbanas, longe de ser uma característica exclusiva do Brasil, está presente em praticamente todos os países da América Latina e do Caribe, podendo ser relacionada com os diferentes problemas sociais presentes na região. Em uma das análises mais extensivas sobre esse fenômeno, Rodriguez (2008, p. 5) atribui essa tendência da fecundidade adolescente latino-americana ao resultado de uma "síndrome de modernidade truncada" em dois âmbitos: sexual,pela combinação de uma liberalização da conduta sem um aumento da capacidade de controle contraceptivo pessoal (psicológico da jovem e falta de apoio familiar) e material (acesso a serviços); e social, pelo aumento das capacitações formais (em particular, da educação) sem uma expansão consequente das oportunidades materiais (em particular, de trabalho).

A falta de reconhecimento da sexualidade adolescente e a persistência de expectativas tradicionais em relação ao comportamento sexual esperado de homens e mulheres, aliadas à dificuldade do acesso à contracepção e aos outros meios de prevenção para um sexo mais seguro, produzem não apenas as condições de uma alta prevalência da gravidez não planejada, mas também podem ser associadas a uma maior suscetibilidade das mulheres jovens a infecções pelo HIV e outras DSTs (BRASIL, 2009).

Na atual pesquisa, procurou-se compreender o papel da desigualdade de gênero, somada à desigualdade de classe social, como sendo um dos fatores de maior impacto na saúde sexual e reprodutiva das mulheres jovens. A inclusão na análise dos indicadores de autonomia resulta da busca por ferramentas analíticas que permitissem ir além dos macroindicadores de desigualdade de gênero tradicionalmente utilizados nas análises quantitativas nesta área: renda, ocupação e níveis de escolaridade. Contudo, na presente discussão, também fica claro que uma análise sustentada somente por essa perspectiva é insuficiente para a compreensão de fenômenos tão multifacetados, dada a intersecção entre as desigualdades produzidas pelas relações de gênero, classe social e raça existentes nos países latino-americanos. Buscou-se, então, desenvolver uma estratégia de análise para investigar a complexa articulação entre desigualdades de gênero e de classe, estudando seus efeitos sobre a trajetória sexual e reprodutiva de mulheres jovens de diferentes classes sociais, residentes em uma grande metrópole brasileira.

No que se refere às limitações do estudo, a principal corresponde aos números de entrevistados sempre limitados dos inquéritos que utilizam amostragem. Em geral, as entrevistadoras eram bem recebidas pelas jovens e suas famílias e a grande maioria das jovens aceitou prontamente participar da pesquisa. Houve algumas recusas, mas a maior parte porque os responsáveis não permitiram a participação da jovem. O obstáculo mais comum enfrentado pelas pesquisadoras, especialmente com as moradoras dos bairros de classe média, foi não encontrar a jovem em casa ou de a jovem não ter tempo para a entrevista, que muitas têm várias atividades extraescolares. Apesar de as jovens residentes em favelas também terem uma agenda apertada durante a semana, em geral elas podiam ser encontradas em casa no fim de semana.

A despeito dos limites impostos pelo escopo do estudo, os resultados corroboram nossa hipótese inicial sobre a importância do uso dos indicadores de autonomia como uma forma de nos aproximarmos da compreensão acerca do impacto da natureza das relações de gênero ' se mais tradicionais (significando maior controle por parte do homem) ou mais igualitárias ' no comportamento sexual e reprodutivo das mulheres. O uso desses indicadores se mostra relevante para pesquisas realizadas em outros contextos que não sejam o de sociedades tradicionais ou com baixo nível de desenvolvimento, possibilitando uma nova abordagem a ser explorada em diferentes áreas.

Os resultados apontam para a existência de uma relação estatisticamente significativa entre diferentes indicadores de autonomia das mulheres e a prevalência de gravidez na adolescência em ambos os grupos estudados ' mulheres jovens residentes em bairros de classe média e em favelas da mesma região geográfica do município. Os níveis de autonomia das entrevistadas se mostraram diretamente relacionados ao contexto de sua relação com o parceiro. A relação com um parceiro abusivo e controlador diminuiu a capacidade de as mulheres jovens negociarem o uso do preservativo e o momento da relação sexual, aumentando sua vulnerabilidade à gravidez não planejada e ao risco de exposição a uma DST, especialmente entre as que se uniram/casaram ainda na adolescência.

Por outro lado, a comunicação e negociação entre os parceiros, bem como a existência de diálogo sobre sexo e contracepção, são elementos cruciais para uma vida sexual saudável e satisfatória. Concluindo, relações de gênero desiguais, ao reduzirem a autonomia da mulher, diminuem suas chances de evitar uma gravidez não programada, independentemente de classe social.

Entretanto, apesar de a desigualdade de gênero atingir, em uma dimensão quantificável, a saúde sexual e reprodutiva de mulheres de diferentes classes sociais, a influência do contexto socioeconômico e do acesso aos níveis mais altos de educação também tem uma grande contribuição. Ou seja, apesar de relações com parceiros autoritários aumentarem a chance de uma gravidez na adolescência em ambos os grupos, outros fatores de ordem econômica e social contribuem para que sua prevalência seja inúmeras vezes maior entre mulheres de classes populares residentes em favelas. Elas constituem uma população sujeita a várias vulnerabilidades, que vão além da condição de pobreza, passando também pela segregação socioespacial e estigmatização, somando-se a presença de diversas formas de violência, incluindo a de gênero.

Neste contexto, uma gravidez precoce não programada pode afetar a trajetória de vida da jovem de maneira mais significativa, ao reduzir suas chances de completar sua escolaridade e impactando negativamente sua inserção no mercado de trabalho formal e qualificado. Este desfecho para a gravidez precoce não programada não será vivenciado pelas jovens dos estratos socioeconômicos mais altos. Novamente é importante reafirmar que não se trata aqui de estigmatizar a gravidez na adolescência, mas sim reconhecer que esta traz consequências negativas para as jovens que vivem em ambientes com múltiplas vulnerabilidades sociais que se realimentam.

Comentários finais e recomendações Os resultados sugerem que, na elaboração e implementação de políticas púbicas direcionadas para as necessidades de adolescentes e jovens, é fundamental aumentar o acesso de mulheres e homens jovens de classes populares a melhores oportunidades educacionais e profissionais, além de garantir acesso a informações e serviços de saúde sexual e reprodutiva antes da ocorrência da gravidez ou de uma infecção sexualmente transmissível.

Igualmente imperativo é garantir que adolescentes e jovens que passaram pela experiência da gravidez precoce tenham a oportunidade de retomar os estudos e receber treinamento profissional, além de acesso à creche. Com relação à escola, é preciso implementar programas que discutam a desigualdade de gênero na família e nas relações afetivas e seu impacto sobre as mulheres, bem como desenvolver estratégias para coibir e punir a violência de gênero.

Finalmente, como o ensino médio não é capaz de preparar a jovem para alcançar posições mais qualificadas no mercado de trabalho, programas sociais devem atuar no sentido de incrementar suas oportunidades de um melhor futuro profissional por meio de capacitações que não reproduzam as ocupações tradicionalmente tidas como femininas ' cozinheiras, enfermeiras, babás, cabeleireiras, cuidadoras ', mas ampliem para atividades diversas tanto quanto elas desejarem.

A ausência de políticas públicas focadas nas especificidades deste segmento populacional aponta para uma total falta de compreensão de sua realidade e do impacto das rápidas mudanças econômicas e das precárias condições de trabalho sobre suas vidas, a "modernização truncada" que Rodriguez aponta (2009). Neste sentido, é urgente pensar novas políticas que tornem possível a adolescentes e jovens de classes populares acessarem o ensino superior ou técnico, de forma que um treinamento profissional adequado contribua para sua incorporação no mercado de trabalho qualificado, com melhores perspectivas de remuneração e de carreira profissional. Este é um caminho que contribuirá para superarmos as relações de gênero opressivas e desiguais que ainda persistem.


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