A reorganização espacial dos homicídios no Brasil e a tese da interiorização
Introdução
A partir da década de 1980, o Brasil assistiu a um crescimento muito expressivo
nas taxas de homicídios, o que impulsionou a produção acadêmica sobre o tema
entre cientistas vinculados às mais diversas áreas do conhecimento.1 Entre
esses estudos predominam aqueles com foco em uma cidade e, em menor proporção,
em uma região. Poucos foram os trabalhos que analisaram o fenômeno de forma
abrangente, contemplando as diferentes regiões brasileiras, sejam estas
metropolitanas ou não. Isso se deve, em nosso entendimento, a três fatores: a
fraca tradição brasileira em estudos comparativos; a própria dificuldade de se
analisar um universo social, geográfico e demográfico tão complexo como as
regiões brasileiras; e a dinâmica temporal dos homicídios, que vem provocando
mudanças profundas na sua distribuição espacial, como pode ser observado pelas
quedas em algumas regiões metropolitanas (RM) do Sudeste e pelo crescimento
muito expressivo em outras do Norte, Nordeste e Sul do país.2 Há uma dinâmica
social/criminal ' ainda pouco conhecida ' que faz com que a tradicional
regularidade nas taxas de homicídios ' e de suicídios (DURKHEIM, 1996, 1999) '
seja afetada bruscamente, o que, por sua vez, coloca grandes desafios a uma
análise abrangente e comparativa. Acrescente-se a isso o fato, nada animador
para os pesquisadores, de o estudo poder ficar defasado rapidamente em função
dessas mudanças nas taxas contrastadas com o tempo necessário para divulgação,
tratamento e análise dos dados.
Neste contexto, Waiselfisz e sua equipe têm empenhado esforços no sentido de
produzir uma visão global da evolução temporal e espacial dos homicídios no
Brasil, por meio das várias edições do Mapa da violência. Em 2011 (WAISELFISZ,
2011), a referida publicação revela dois processos de desconcentração em curso:
interiorização e disseminação. O primeiro seria marcado pelo arrefecimento da
mortalidade homicida nas capitais e regiões metropolitanas e expansão nos
demais municípios brasileiros. Já o processo de disseminação estaria associado
ao fato de diversas UFs, sem grande tradição na ocorrência de homicídios,
passarem a experimentar substantivos incrementos nesta modalidade criminal.
Waiselfisz e sua equipe revelaram uma série de importantes padrões e processos
sociais, históricos e espaciais vinculados aos homicídios no Brasil.
Entretanto, os fenômenos de interiorização e disseminação carecem de maior
qualificação e aprofundamento, uma vez que as análises presentes no Mapa da
violência são pautadas, no mais das vezes, em um conjunto de tabelas, gráficos
e cartogramas coropléticos construídos em escala estadual, fato que prejudica a
visualização e análise do conjunto dos municípios brasileiros, bem como a
identificação de clusters homicidas, processos de contágio e padrões regionais
mais amplos. O presente estudo visa preencher esta lacuna.
Inicialmente, o artigo procura captar algumas regularidades na distribuição
espacial e temporal dos homicídios para, em seguida, tentar compreender as
mudanças e rupturas. Para tanto, são utilizados os dados de algumas edições do
Mapa da violência, que reúnem informações para todo o Brasil e utilizam uma
fonte de dados única, SVS/MS. O ponto de partida da análise será a década de
1980, quando o homicídio cresce de forma mais expressiva, primeiro comparando-
se as capitais e o interior e depois as regiões metropolitanas e o Brasil. Em
função das dificuldades que representaria analisar todos os anos compreendidos
entre 1980 e 2010, optou-se por focar no ano inicial de cada década, a saber,
1980, 1990, 2000 e 2010. Posteriormente, apresenta-se uma análise geográfica
dos homicídios no Brasil a partir da escala regional, revelando os padrões
espaciais que caracterizam a tese da interiorização e da disseminação com base
na evolução do fenômeno entre 1999 e 2006. No caso do Mapa da violência, o
artigo explora uma séria histórica de 30 anos, cujo principal objetivo é
identificar o início do crescimento da violência homicida a partir da década de
1980 e os processos seguintes de queda, estabilização e aumento em diferentes
regiões do país. Ou seja, para essa visão mais panorâmica, utiliza-se essa
fonte que já se consolidou como uma das principais referências nacionais nos
estudos dos homicídios no país. Na segunda parte, a análise concentra-se em um
período mais restrito, 1999 a 2006, uma vez que o objetivo não é mais a análise
histórica e panorâmica, mas sim o teste de duas teses difundidas pelo Mapa da
violência, a da interiorização e a da disseminação dos homicídios. Em ambos os
casos, a fonte dos dados é o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do
Ministério da Saúde.
Homicídios no Brasil: 1980 a 2010
Uma apreciação da evolução recente dos homicídios no Brasil revela alguns
padrões recorrentes. O primeiro é a concentração dos homicídios nas capitais,
em relação ao restante do Estado. Nos quatro anos iniciais das décadas, 1980,
1990, 2000 e 2010, poucas capitais apresentaram taxas inferiores às dos seus
respectivos Estados e, mesmo assim, as diferenças foram pouco expressivas. Em
1980, Salvador, Florianópolis e Cuiabá registraram taxas de homicídios por 100
mil habitantes menores do que as de seus Estados, mas nas três a diferença foi
de apenas um dígito a favor do Estado. Em 1990, a recém-criada Palmas e Cuiabá
também se enquadravam nessa situação (WAISELFISZ, 2007). Em 2000, todas as
capitais superaram seus Estados (WAISELFISZ, 2010) e, em 2010, apenas três
capitais apresentaram valores ligeiramente inferiores aos dos seus Estados: Rio
de Janeiro, São Paulo e Campo Grande.
A segunda regularidade refere-se à concentração nas regiões metropolitanas.3 Se
em 1980 a taxa de homicídios do Brasil era de 23 por 100 mil habitantes, apenas
a RM de Salvador apresentava valor inferior. Em 1990, a taxa brasileira subiu
para 28, sendo que metade das RMs não atingia esse patamar e a outra metade o
superava. O que se nota aqui é estabilização dos homicídios em um grupo de RMs,
ligeira queda em outro grupo e crescimento exacerbado em um terceiro grupo, ou
seja, uma dinâmica bem diferenciada entre as dez RMs. Entre 1990 e 2000, o
Brasil registrou uma leve queda, passando de 28 homicídios por 100 mil
habitantes para 26,7. Neste último ano, seis RMs apresentaram taxas superiores
à nacional e quatro ficaram abaixo desse valor. Em 2010, a taxa brasileira
(26,2 por 100 mil hab.) praticamente se estabilizou em relação a 2000 e apenas
a RM de São Paulo registrou taxa inferior (15,4). Todas as outras nove RMs
exibiram valores mais elevados, sendo que cinco delas com mais de 50 homicídios
por 100 mil habitantes (Tabela_1). Curiosamente, ganha força, pelas
interpretações do próprio Mapa da violência (WAISELFISZ, 2004), o argumento da
interiorização dos homicídios, que será retomado e discutido adiante. Esses
dados podem ser visualizados na Tabela_1, em que as RMs sombreadas são aquelas
cujas taxas eram inferiores à do Brasil no ano inicial de cada década.
![](/img/revistas/rbepop/v30s0/a11tab01.jpg)
Outro aspecto que pode ser extraído dos dados da Tabela_1 refere-se às mudanças
nas taxas de algumas RMs, alterando, significativamente, suas posições durante
essas três décadas. Importante observar também a trajetória de expressivo
crescimento da RM de Salvador, que, de seis mortes por 100 mil habitantes, em
1980, atingiu a cifra de 60,1, em 2010. Já a RM do Rio de Janeiro, neste mesmo
ano, apresentou a segunda mais baixa taxa desse grupo, atrás apenas de São
Paulo.
Considerando ainda o universo das dez RMs, quando se analisa sua participação
no total de homicídios registrados no Brasil, observam-se crescimento até 2000
e queda significativa em 2010. Os homicídios nessas RMs correspondiam a 47,8%
do total nacional em 1980, 55,29% em 1990, 56,14% em 2000 e 38,25% em 2010. A
hipótese aqui é que grande parte dessa queda tenha se dado em virtude da
acentuada redução registrada na RM de São Paulo e, secundariamente, na do Rio
de Janeiro. Na primeira, a taxa de 2010 corresponde a menos de ¼ do seu valor
na década anterior e, na segunda, cai para menos da metade. Para verificar esse
possível "efeito São Paulo", a Tabela_2 apresenta a participação de dez e de
nove RMs (o grupo das dez, sem São Paulo) no total dos homicídios registrados
no Brasil. Observa-se que, ao excluir São Paulo, o conjunto das nove RMs não
superam 50% dos homicídios, como ocorria nos anos 1990 e 2000, mas a queda é
também bem menos significativa ao longo das quatro décadas, sendo que entre
2000 e 2010 verifica-se um ligeiro acréscimo. Isso aponta para a magnitude da
RM de São Paulo e de seus efeitos no conjunto das regiões metropolitanas. Os
dados da Tabela_1 mostram que, entre 2000 e 2010, mais duas RMs, além do Rio de
Janeiro e de São Paulo, apresentaram redução (Recife e Vitória), mas as outras
seis tiveram seus índices aumentados.
[/img/revistas/rbepop/v30s0/a11tab02.jpg]
O que se está procurando mostrar aqui é que a magnitude da interiorização
precisa ser relativizada em função, por um lado, do "efeito São Paulo" e, por
outro, de uma dinâmica dos homicídios em que a queda em algumas regiões
metropolitanas é compensada pelo crescimento em outras. Se a interiorização
pode ser percebida no conjunto,4 a análise detida da trajetória das distintas
RMs mostra que não há um processo uniforme de redução.
O desafio de entender essa dinâmica denominada "interiorização", mas também por
uma categoria que aparece posteriormente, a de "disseminação", acabou
demandando um estudo mais detalhado. Antes de apresentá-lo, no entanto, é
necessário que se faça uma breve exposição da tese da interiorização da
violência, tratada nas seguidas edições do Mapa da violência, e da
disseminação, que aparece no Mapa da violência de 2012.5
A tese da interiorização dos homicídios
A tese da interiorização aparece pela primeira vez no Mapa da violência de 2004
(WAISELFISZ, 2004), que analisa a distribuição dos homicídios entre 1993 e
2002. Apesar de identificar as mais altas taxas de homicídios nas capitais e
RMs, o estudo chama a atenção para o fato de que, a partir de 1999, a taxa de
crescimento do interior supera a das capitais e das RMs. Provavelmente foi a
tese da interiorização que fez com que o Mapa de 2008 (WAISELFISZ, 2008)
representasse um corte com os anteriores, ao privilegiar os municípios mais do
que as regiões. Esse novo recorte gerou grandes reações, uma vez que alçou à
celebridade midiática municípios pouco conhecidos, como os que ocuparam os três
primeiros lugares no Mapa de 2008: CoronelSapucaia (MS), Colniza (MT) e
Itanhangá (MT), este último com nenhum homicídio de 2002 a 2004 e 4 e 5
registros em 2005 e 2006; mas, em função da sua população, esses eventos
corresponderam a uma taxa de 105,7 homicídios por 100 mil habitantes nos dois
anos (WAISELFISZ, 2008). No Mapa de 2010 (WAISELFISZ, 2010), o tema da
interiorização ganhou uma sessão específica. Antes de apresentar os dados é
importante saber as definições utilizadas para regiões metropolitanas e
interior. As RMs consideradas foram as dez tradicionalmente estudadas pelo
Mapa; além disso, a análise contempla as capitais dos Estados e o interior,
assim definido: "No contexto do estudo, definiremos operacionalmente o interior
como os Municípios que não são capital nem fazem parte das regiões
metropolitanas tradicionais (as dez regiões metropolitanas trabalhadas nos
diversos capítulos)" (WAISELFISZ, 2010, p. 125). O que se percebe, para uma
discussão que se pretende nacional, é uma definição muito restrita de regiões
metropolitanas, e outra muito alargada do que seria interior.
Os resultados apresentados pelo Mapa de 2010 (WAISELFISZ, 2010) compreendem o
período de 1997 a 2007 e mostram um crescimento dos homicídios no Brasil, nas
capitais, nas RMs e no interior até 2003, quando atingiram, respectivamente, as
taxas de 28,9, 46,1, 49,1 e 17,9 por 100 mil habitantes. Em 2004 todos
registraram redução e, a partir de 2005, o interior recuperou a trajetória de
crescimento, passando de 17,2 em 2004 para 18,5 em 2007. Mas isso não deve
ocultar as diferenças das taxas de homicídios por 100 mil habitantes nos três
espaços, mesmo no último ano do período. Ou seja, as taxas das capitais (36,6)
e das RMs (36,6) correspondem, praticamente, ao dobro daquela observada para o
interior (18,5), em 2007.
O Mapa da violência de 2012 (WAISELFISZ, 2011) ampliou o universo das RMs, que
passaram das dez anteriormente analisadas para 33, incorporando as legalmente
instituídas e as três Regiões Integradas de Desenvolvimento (Ride). A tese da
interiorização da violência ganhou novos contornos na medida em que a
polarização metrópoles/capitais versus interior foi relativizada. Primeiro,
alargou-se o grupo das metrópoles e, consequentemente, redefiniuse o interior.6
Em segundo lugar, foi introduzida a categoria de disseminação da violência,que
contemplou tanto o crescimento dos homicídios em outras capitais e RMs quanto a
sua queda em São Paulo e Rio de Janeiro, como se pode ver por essas duas
passagens:
A disseminação atuou espalhando a violência homicida para todas as
regiões do país, numa espécie de reequilíbrio hidrodinâmico dos vasos
comunicantes: dos estados mais violentos para os menos violentos.
(WAISELFISZ, 2011, p. 43).
Esse fenômeno de disseminação se produz a partir das quedas, bem
significativas, de alguns estados com forte peso demográfico e
impacto nas estatísticas nacionais, como São Paulo e Rio de Janeiro e
de aumentos em um maior número de estados, mas de menor peso
estatístico. (WAISELFISZ, 2011, p. 47).
Outra diferença do Mapa de 2012 (WAISELFISZ, 2011) foi o fato de contemplar uma
série de 30 anos: 1980 a 2010. Em relação ao Brasil, o autor chama atenção para
o crescimento dos homicídios até 2003, queda em 2004 e 2005 e uma situação de
instabilidade nos anos seguintes. Essa instabilidade revela um fenômeno para o
qual estamos chamando a atenção e que não pode ser reduzido ao que se
convencionou a chamar de interiorização. Ainda que os homicídios cresçam em
municípios não metropolitanos, há uma redistribuição entre distintos espaços,
com quedas em algumas capitais e RMs e aumento em outras. Já em relação às
capitais e RMs, o Mapa de 2012 mostra o acelerado crescimento entre 1980 e
1996, fazendo com que as taxas, nas capitais, passassem de 20,7 para 44,8
homicídios por 100 mil habitantes e, nas RMs, de 18,0 para 43,8, seguido por um
período de estagnação para, a partir de 2003, evidenciar um processo de
decréscimo com algumas oscilações. Como já comentado anteriormente, a magnitude
das quedas em São Paulo e o seu peso na conformação do conjunto das RMs não
foram descartados dessa análise, pois, como afirmado no próprio Mapa da
violência, esses movimentos dos homicídios no país vão ficando cada vez mais
complexos. Das 33 RMs analisadas, apenas sete apresentaram crescimento negativo
e, entre as que cresceram, algumas registraram taxas exorbitantes (WAISELFISZ,
2011).
Outra inovação do Mapa de 2012 (WAISELFISZ, 2011) foi a introdução de uma
análise a partir do tamanho populacional dos municípios, com o objetivo de
melhor caracterizar os fenômenos da disseminação e interiorização da violência
homicida. Para isso os municípios brasileiros foram divididos em oito tipos,
segundo o tamanho populacional.7Entre 1980 e 2000, as taxas de homicídios de
todos os tipos de municípios cresceram, mas naqueles com população superior a
100 mil o aumento foi maior. Entre 2000 e 2010, as taxas dos municípios de 200
mil a 500 mil e 500 mil e mais habitantes diminuíram e aquelas referentes aos
demais tipos se ampliaram, mas o maior crescimento foi observado nos municípios
menores, em especial naqueles entre 20 mil e menos de 50 mil habitantes, com
taxa de crescimento de 4,7% ao ano (WAISELFISZ, 2011, p. 57). Mais uma vez,
aqui é importante chamar a atenção para a distinção entre taxa de crescimento e
as ocorrências, ou a taxa por 100 mil habitantes em cada um desses agrupamentos
de municípios. No último ano da série, 2010, em que essas tendências estariam
mais visíveis, o que se observa é tanto a tendência de inversão nas taxas de
crescimento, como mostrada anteriormente, dos municípios maiores para os
menores, quanto a permanência das taxas por 100 mil habitantes mais altas nos
municípios maiores, em comparação com os menores. Por exemplo, nos municípios
de 20 mil a menos de 50 mil habitantes, onde a taxa média de crescimento 2000-
2010 foi maior, a taxa de homicídios correspondeu a 19,3 por 100 mil
habitantes; já naqueles com mais de 100 mil habitantes, os valores foram sempre
superiores a 30 homicídios por 100 mil, o que leva a concluir que a
concentração nos municípios maiores permanece, ainda que se verifique o
crescimento nos municípios menores, ou seja, uma tendência que deve ser
observada, mas cuja interpretação merece cautela.
Aspectos metodológicos
Os dados sobre homicídios são oriundos do Sistema de Informações sobre
Mortalidade (SIM), sob cogestão da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS/MS) e
do Departamento de Informática do SUS (Datasus/MS), do Ministério da Saúde.
Trabalhou-se, especificamente, com informações associadas à Classificação
Internacional de Doenças ' CID-10, em seu Capítulo XX, em que são definidas as
"causas externas de morbidade e mortalidade". Entre as causas de óbito
estabelecidas pela CID-10, foram utilizados os agrupamentos de X85 a Y09, que
recebem o título genérico de "Agressões". Esse capítulo caracteriza-se pela
presença de agressões ocasionadas por terceiros, que fazem uso de meios
diversos para provocar danos, lesões ou a morte da vítima.
No entanto, evitou-se trabalhar com eventos cuja intenção é indeterminada
(códigos Y10 a Y348). Apesar de Cerqueira (2012) ter observado a coincidência
entre a recente queda nos óbitos por agressões de terceiros no Estado do Rio de
Janeiro e o significativo crescimento de eventos com intenção indeterminada,
fato que gera suspeitas em relação à possível manipulação de dados, não há
evidências de que esta seja uma prática consistente em todo o território
nacional.
Para a produção de taxas brutas anuais, foram utilizados os dados de população
do IBGE das faixas etárias das populações em estudo9(estimativas
populacionais), sendo estes disponibilizados pelo do Datasus/Ministério da
Saúde. Cabe ressaltar que todos os dados coletados referem-se aos anos de 1998
a 2007 para o conjunto de municípios brasileiros.
Após coleta e organização do banco de dados, passou-se para a etapa de
tratamento dos mesmos. O primeiro desafio foi a elaboração de taxas de
homicídios por 100 mil habitantes. Todavia, sabe-se que o fenômeno estudado é
altamente influenciado pela estrutura etária das populações, tendo em vista o
maior risco inerente às subpopulações jovens. Portanto, faz-se necessário uma
padronização da distribuição etária das populações trabalhadas, com o fito de
estabelecer comparações acerca das taxas de risco às quais estão expostas as
diversas populações municipais. Adotou-se para tal a metodologia de
padronização direta codificada por Carvalho, Sawyer e Rodrigues (1998),
utilizando-se a estrutura etária da população brasileira em 2000 como
referência.
De posse das taxas brutas padronizadas, percebeu-se que, principalmente nos
municípios com baixa população, as referidas taxas apresentavam consideráveis
oscilações aleatórias. Na tentativa de minimizar tais oscilações, foram
adotadas médias móveis trianuais com intuito de melhor compreender as
tendências temporais do fenômeno criminal.10 Neste processo o coeficiente
analisado do ano i (Yai) correspondeu à média aritmética dos coeficientes no
ano anterior (i-1), do próprio ano (i) e do ano seguinte (i+1):
Yai= (Yi-1+Yi+Yi+1)/3
Como resultado desse procedimento, os dados referentes a 1998 e 2007, apesar de
serem utilizados no cômputo das taxas corrigidas de 1999 e 2006,
respectivamente, não compõem as análises finais.
A etapa seguinte constituiu-se na elaboração de mapas coropléticos, a fim de
visualizar e analisar a distribuição espacial das taxas médias de homicídios no
país. Dadas as dimensões continentais do Brasil, foi necessário apresentar as
informações cartografadas utilizando-se as Grandes Regiões como escala de
referência. Desta forma, são apresentados mosaicos de cartogramas, cada qual
exibindo a evolução dos homicídios no período analisado. Entretanto, para que
os cartogramas fossem comparáveis entre si, os intervalos das classes
retratadas foram mantidos ao longo do processo.
As análises que se seguem são construídas com base na leitura e interpretação
dos documentos cartográficos. Busca-se, com isso, identificar as variegadas
manifestações do fenômeno no espaço brasileiro, contextualizando e relacionando
essa heterogênea distribuição às características físicas e humanas desses
espaços. Esta abordagem qualitativa diferencia-se do tratamento estatístico dos
dados, uma vez que centra foco na interpretação dos padrões espaciais revelados
pelos mapas.
A nova geografia dos homicídios no Brasil
O Mapa da violência de 2012 (WAISELFISZ, 2011) traz valiosas informações acerca
do processo de reestruturação espacial dos homicídios, mas, ao trabalhar a
cartografia em escala estadual, focando apenas o início e o final do período
analisado, percebe-se que algumas importantes informações foram negligenciadas.
Esta seção visa contribuir com o debate, reduzindo a escala das análises ao
âmbito regional.
Ressalte-se que a noção de interiorização defendida por Waiselfisz (2011)
merece um comentário espacial. Os leitores mais atentos podem questionar o seu
emprego, uma vez que as análises que seguem não revelam um processo de migração
das mortes por homicídio do Atlântico para o interior do país. Na verdade, o
que se verifica é um crescente percolar do processo dos níveis mais altos aos
mais baixos da hierarquia urbana, fenômeno que Hagerstrand (1967) conceituaria
como difusão hierárquica. Por outro lado, como se verá a seguir, ocorre
concomitantemente uma redistribuição espacial sob a forma de clusters
facilmente identificáveis nos documentos cartográficos, caracterizando aquilo
que Hagerstrand (1967) classificou como difusão por contágio. Visando facilitar
a apresentação dos resultados, sua discussão será estruturada de acordo com as
macrorregiões brasileiras definidas pelo IBGE.
Região Norte
Na busca da identificação de padrões espaciais, a análise dos cartogramas
coropléticos representando a evolução das taxas de homicídio na Região Norte
evidencia mudanças substantivas na organização espacial. Destaque-se,
inicialmente, o fato de boa parte dos municípios da região experimentar
acréscimo na ocorrência de homicídios, o que pode ser constatado nos mapas,
comparando-se a proporção de municípios que passaram a figurar nos intervalos
de classe mais elevados ao final do período em estudo (Figura_1 do Anexo). A
análise desses cartogramas qualifica o dado gerado por Waiselfisz (2011), que
indica que a Região Norte foi aquela que apresentou o maior crescimento nas
taxas de homicídio entre 2000 e 2010 (100,9%), revelando que este incremento se
deu de forma generalizada na região.
Ao longo dos anos 2000, o Pará registrou substantivo crescimento de 252,9% em
suas taxas de homicídio (WAISELFISZ, 2011), bem como significativas alterações
em sua geografia dos homicídios, passando a beneficiar de maneira
desproporcional o seu quadrante sudoeste. Formou-se, assim, na intercessão dos
corredores Marabá-Santana do Araguaia (BR 158) e Xinguara-São Felix do Xingu
(PA 279), uma sub-região de intensa mortalidade por homicídios, evidenciando os
vários conflitos sociais prevalentes na área, intensificados pela exploração de
recursos naturais em grande e pequena escalas, conjugados com o avanço da
fronteira agrícola. Outro aspecto de relevo em relação ao Pará diz respeito ao
fato de a RM de Belém, apesar da reorganização espacial identificada, continuar
apresentando papel de destaque no conjunto dos homicídios. Note-se que Belém
possuía, em 2010, a segunda mais alta taxa de homicídios entre as RMs
brasileiras (80,2 por 100 mil habitantes), com um crescimento, ao longo dos
anos 2000, de 325%, ficando atrás somente da RM de Salvador (WAISELFISZ, 2011).
Chama também a atenção a consistência da manifestação criminal nas porções
centro-sul do Estado de Roraima, sub-região cortada pela BR 174, bem como no
corredor que se forma ligando a porção setentrional de Rondônia ao extremo
oriente do Acre, abarcando as capitais Porto Velho e Rio Branco, e também na
área de influência da BR 364.
Ainda em relação à Região Norte, cabe destacar que, além da presença marcante
de Macapá, na porção oriental do Estado do Amapá, especificamente nas
municipalidades cruzadas pela BR 156, também se observa um padrão regular das
taxas de homicídio ao longo do período analisado.
Região Nordeste
A exemplo do que foi verificado no Norte, grande parte dos municípios do
interior dos estados nordestinos experimentou aumento nas taxas de homicídio,
fato nitidamente observável no exame dos cartogramas evolutivos. Também a
exemplo da Região Norte, o Nordeste igualmente apresentou no seu conjunto
substantivo crescimento de 76,4% na manifestação homicida (WAISELFISZ, 2011).
Em relação à sua geografia, observa-se uma intensificação do fenômeno no sul da
Bahia, mais especificamente no triângulo formado por Porto Seguro, Vitória da
Conquista e Itabuna, provavelmente catalisado pela expansão da atividade
turística e pela recomposição da economia do cacau, que gera oportunidades
econômicas, atrai migrantes, evidencia problemas sociais e acirra o potencial
de conflitos (Figura_2 do Anexo). Ainda em relação à Bahia, cabe destacar que a
Região Metropolitana de Salvador continuou a apresentar preponderância na
manifestação criminal, com crescimento de 418,2% nas taxas por 100 mil
habitantes entre 2000 e 2010 (WAISELFISZ, 2011).
Destaca-se também a formação de um núcleo secundário da mortalidade por
homicídios no entorno dos municípios maranhenses de Açailândia e Imperatriz,
postados no extremo ocidental do estado, portanto em contato direto com a
mancha de criminalidade observada anteriormente no oeste paraense, muito
provavelmente sendo contaminada por processos sociais predominantes no estado
vizinho.
No interior do Ceará, mais especificamente na circunvizinhança de Quixeramobim,
nota-se também a formação de uma mancha de homicídios importante desde o início
do período escrutinado.
Por fim, a análise dos mapas indica que o mais consistente padrão espacial
identificado é formado por um corredor que se estende desde a zona da mata
nordestina, passando pelo agreste e chegando até o sertão. O referido corredor
inicia-se nas cidades litorâneas dos Estados de Pernambuco e Alagoas, comandado
pelas cidades de Recife e Maceió, e penetra no interior do Nordeste,
espraiando-se por toda a extensão de Pernambuco, Alagoas e atingindo, ao final
do período analisado, o extremo norte da Bahia e o interior de Sergipe.
No rastro desse processo de espraiamento vale lembrar que as RMs de Maceió e
João Pessoa apresentaram substantivo crescimento nas taxas de homicídio ao
longo dos anos 2000, respectivamente 156,2% e 164,2%, sendo que ambas também
registraram, em 2010, duas das mais altas taxas de mortalidade por homicídios
no Brasil (100,7 e 72,9 por 100 mil, respectivamente). De forma paradoxal, a RM
de Recife, historicamente mais violenta, sofreu diminuição de 34,4% no mesmo
período (WAISELFISZ, 2011).
Região Centro-Oeste
O conjunto de municípios do Centro-Oeste praticamente manteve-se estável ao
longo dos anos 2000, apresentando taxa de crescimento nos homicídios de apenas
2,6% (WAISELFISZ, 2011). Ainda assim, a inspeção da evolução espaço-temporal da
Região Centro-Oeste revela a intensificação de três padrões peculiares. Nota-se
a predominância do fenômeno na porção norte do Mato Grosso, com ligações
diretas com duas outras manchas de homicídio previamente identificadas,
constituindo-se, portanto, em um prolongamento das mesmas: o vetor Porto Velho-
Rio Branco, a leste; e a intercessão dos corredores Marabá-Santana do Araguaia
(BR 158) e Xinguara-São Felix do Xingu (PA 279) a nordeste (Figura_3 do Anexo).
A porção central do Mato Grosso do Sul, especificamente no entorno de Campo
Grande, e a fronteira internacional com o Paraguai também são áreas que se
destacaram no período em análise. Por fim, cabe lembrar o crescimento
importante verificado entre os municípios do entorno do Distrito Federal,
observável tanto no território goiano quanto em Minas Gerais.
Ao contrário do que se verificou entre as RMs do Norte e Nordeste, as
metrópoles do Centro-Oeste registraram crescimento moderado (31,5% em Goiânia e
10,6% em Brasília), ou diminuição (-25,3% em Cuiabá) ao longo dos anos 2000
(WAISELFISZ, 2011).
Região Sudeste
O Sudeste brasileiro foi uma das macrorregiões que sofreu as mais
significativas reestruturações na manifestação dos homicídios. Ao longo dos
anos 2000, a região apresentou diminuição de 48,1% na mortalidade por
homicídio, além de mudanças espaciais de relevo (WAISELFISZ, 2011).
A partir da espacialização dos dados de óbitos por homicídios, podem-se inferir
alguns padrões comportamentais na evolução espacial do fenômeno no Sudeste.
Percebe-se a existência de áreas consolidadas com altas taxas de homicídios,
como as Regiões Metropolitanas do Rio de Janeiro e de Vitória. Por outro lado,
têm-se diferentes dinâmicas entre as RMs de Belo Horizonte, Campinas e São
Paulo (Figura_4 do Anexo). Enquanto a primeira experimentou significativo
acréscimo em suas taxas de homicídios (19,5%), as duas RMs paulistas (Campinas
e São Paulo) obtiveram considerável decréscimo (-63% e -75,6%, respectivamente)
(WAISELFISZ, 2011).
É também notável o aumento dos homicídios entre os municípios das mesorregiões
Vale do Mucuri, no nordeste mineiro, e Vale do Rio Doce, no noroeste capixaba,
formando, ao final do período analisado, um extenso arco criminal, que se
inicia na Região Metropolitana de Vitória, perpassa o litoral norte capixaba e
se interioriza, contaminando os municípios em contato direto e indireto com as
rodovias federais BR 418 e 381. Ressalte-se, ainda, a persistência, ao longo do
período, de um corredor criminal que se estende por toda a faixa litorânea
fluminense, enquanto os outros municípios interioranos de Minas Gerais e São
Paulo apresentam taxas muito aquém dos demais.
Vale também mencionar a crescente mancha de criminalidade que se formou de
forma linear ligando os municípios do norte de Minas (Pirapora, Montes Claros e
Janauba), em direção à mancha identificada nos Vales do Mucuri-Jequitinhonha.
Região Sul
Chama a atenção o fato de a Região Sul ter experimentado crescimento de 53,6%
em suas taxas de homicídio ao longo dos anos 2000, também trazendo uma série de
evidências para a tese da reestruturação espacial.
Outra emblemática evidência do processo de reorganização espacial da violência
vem do Paraná. É notória a expansão do fenômeno na parte centro-ocidental do
estado, com destaque para os municípios localizados ao longo da fronteira com o
Paraguai. Fazem também parte deste processo os municípios do entorno das
cidades médias de Maringá, Londrina e Cascavel. Por outro lado, a Região
Metropolitana de Curitiba continuou a exibir altas taxas de homicídio no
período em tela (Figura_5 do Anexo).
Em relação às RMs da região, cabe destacar que Curitiba registrou a sexta mais
alta taxa de homicídios entre as RMs brasileiras (56,8 por 100 mil habitantes),
com crescimento de 126% ao longo dos anos 2000. Este padrão também é observado
em outras RMs do estado que apresentaram aumento expressivo nesse mesmo
período: Londrina, com 63,2%; e Maringá, com 139,6%.
Esta situação é confrontada com uma relativa estabilidade na organização
espaço-temporal observada em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, tendo a RM
de Porto Alegre experimentado fraco crescimento nas taxas de homicídios (9,9%).
Considerações finais
O que essa análise mais detida dos dados revela é um processo muito mais
complexo e que não deve ser subsumido sob a tese generalista da interiorização
ou da disseminação da violência. Há, sim, uma reorganização da violência no
território nacional ' aqui analisada pelos registros dos homicídios ', mas essa
reorganização obedece a algumas lógicas de aglomeração, com a presença de
claros efeitos de contágio e a formação de clusters de homicídios em áreas que
nos últimos anos apresentaram algum dinamismo econômico ou reorganização do
espaço em virtude de mudanças em suas formas de usos e funções.
Além dos aspectos já discutidos na seção anterior, o mais evidente dos casos
coincide com aquilo que vários autores intitulam "Arco da Destruição", "Arco do
Fogo" ou "Arco do Desmatamento" ' uma vasta área da região Amazônica, formada
por um cinturão de 300 a 500 km de largura, intensamente alterado pelo processo
recente de ocupação. O referido arco compreende as porções sul e leste da
hileia, envolvendo as grandes extensões de cerrado do Mato Grosso, Tocantins e
Maranhão, bem como as áreas desmatadas do sudeste do Pará, de Rondônia e do sul
do Acre (BRASIL, 2008). A dinâmica de povoamento tem sido baseada em processos
sociais altamente excludentes, expropriadores e violentos, fato corroborado
pela alta concentração de homicídios no seu interior.
Outros aglomerados de municípios violentos foram detectados ao longo dos
limites estaduais e internacionais, com destaque para as fronteiras entre
Pernambuco e os Estados da Bahia e Alagoas; além das fronteiras entre Minas
Gerais e os Estados da Bahia e Espírito Santo. Também merece atenção as
fronteiras do Brasil com o Paraguai e a Bolívia, marcadas por altos índices de
homicídio, provavelmente vinculados ao tráfico de drogas e armas, bem como ao
contrabando de mercadorias. Outro cluster que merece destaque é aquele formado
pela inegável concentração de homicídios ao longo da costa brasileira, que se
prolonga desde o Estado do Rio de Janeiro até a Paraíba.
No que toca às RMs, observam-se, como dito anteriormente, crescimento muito
expressivo em alguns estados, como os do Norte e em alguns do Nordeste, e queda
ou estabilização em outros.
Diante desses resultados, fica patente que, apesar da indiscutível
reorganização espacial observada na distribuição dos homicídios no Brasil ao
longo da última década, os processos de interiorização e disseminação não são
generalizados. Afinal, a redistribuição dos homicídios segue nítidos padrões
espaciais de caráter concentrado. Acompanhar esta evolução e entender os
motivos que a impulsiona são importantes desafios para os pesquisadores.