Esterilização cirúrgica feminina no Brasil, 2000 a 2006: aderência à lei de
planejamento familiar e demanda frustrada¹
Introdução
Os anos 1980 e o primeiro quinquênio da década de 1990 foram marcados pela
disseminação da laqueadura tubária como o principal método contraceptivo no
Brasil. Já o decênio entre as Pesquisas Nacionais de Demografia e Saúde da
Criança e da Mulher (PNDS) de 1996 e 2006 foi caracterizado pela diminuição da
proporção de mulheres de 15 a 49 anos em união laqueadas, passando, nesse
período, de 40,1% para 29,1% (CAETANO, 2010), no contexto da vigência da Lei n.
9.263, referente ao planejamento familiar, promulgada em 1996 (BRASIL, 1996) e
sancionada em 1997.
Estudos realizados nos anos que se seguiram à regulamentação da lei do
planejamento familiar indicam que esta, de forma não antecipada, engendrou
obstáculos ao acesso à laqueadura tubária no âmbito do Sistema Único de Saúde
(SUS). Tais obstáculos estariam relacionados com a adoção, por parte dos
serviços e médicos, de critérios de idade e número de filhos mais restritivos
do que os presentes na portaria regulatória, necessidade de obter a anuência
por escrito do cônjuge, demora entre a solicitação e a realização do
procedimento, proibição da laqueadura no parto e pós-parto, além de uma
cobertura territorial limitada de serviços médicos do SUS credenciados para
ofertar a esterilização cirúrgica feminina.
À luz desses estudos, revisados na seção a seguir, este artigo aborda três
questões sobre a prática da laqueadura tubária no Brasil,no período que se
estende de 2000 a 2006. A primeira diz respeito à participação de hospitais do
SUS ou vinculados ao sistema público, em comparação com serviços privados, na
oferta de esterilização cirúrgica feminina e ao grau de aderência às regulações
da Lei n. 9.263 quanto às laqueaduras tubárias realizadas no SUS. A segunda
refere-se à potencial limitação territorial da rede de municípios com hospital
com capacidade para realizar a esterilização cirúrgica feminina e, ao mesmo
tempo, habilitado para provê-la. Por fim, a terceira está relacionada com a
constituição de uma demanda frustrada por laqueadura tubária.
Para responder à primeira questão, dimensionou-se, inicialmente, a oferta de
esterilização cirúrgica feminina em hospitais do SUS ou afiliados a ele, entre
2000 e 2006, por meio das Autorizações de Internação Hospitalar (AIH)2
processadas e pagas, segundo o município de internação. Uma vez dimensionada,
esta oferta foi contraposta ao total ' estimado a partir dos dados da PNDS 2006
' de mulheres entre 15 e 49 anos de idade alguma vez unidas esterilizadas
cirurgicamente em serviços do SUS, cujos procedimentos são compatíveis com a
legislação no que se refere à relação com o parto e ao período mínimo de
aconselhamento.
Utilizando-se as AIH de laqueadura tubária processadas e pagas, segundo o
município de internação, como proxy da existência de serviço credenciado para
prover a esterilização cirúrgica feminina em determinado município, é possível
identificar e comparar o número de municípios, por região, com hospitais do
SUS, ou afiliados ao sistema público, relativamente ao número de municípios com
hospitais em que foram processadas e pagas AIH obstétricas, excetuados os
partos normais, e de clínica cirúrgica, isto é, com capacidade hospitalar
potencial para a realização do procedimento. Este exercício foi feito para 2006
e, como contraponto mais recente, também para 2013. É importante esclarecer que
não se trata de análise espacial stricto sensu, mas sim para estabelecer a
proporção de municípios com serviço médico credenciado de acordo com as
regulamentações da Lei n. 9.263 em relação aos potencialmente aptos a oferecer
o procedimento nos dois anos em questão. Ressalve-se que a ausência de registro
de AIH de laqueadura tubária em um dado município em determinado ano não
significa, necessariamente, que ali não havia serviço credenciado.
Por fim, e como potencial consequência dos obstáculos derivados das
regulamentações da Lei n. 9.263, este estudo identifica e dimensiona a demanda
frustrada por esterilização cirúrgica feminina no país, utilizando as
informações da PNDS 2006 sobre mulheres que tentaram obter o procedimento e não
conseguiram. Estima-se a prevalência do uso dos métodos contraceptivos na
hipótese de que as mulheres unidas de 15 a 49 anos, que tentaram fazer a
esterilização e o serviço procurado negou, que tentaram e não conseguiram sem
especificação da razão e as que os cônjuges não concordaram, foram bem-
sucedidas em seu intento. Além de permitir a estimação desta distribuição
hipotética do uso de métodos contraceptivos entre mulheres unidas de 15 a 49
anos, tais informações são importantes para ampliar o conhecimento sobre as
características das mulheres e sobre os fatores associados ao insucesso da
implantação de uma decisão reprodutiva, embora esta análise não seja objeto
deste artigo.
A Lei n. 9.263 e as portarias que a regulamentam tratam da esterilização
cirúrgica tanto feminina (laqueadura tubária) quanto masculina (vasectomia).
Enquanto a prevalência de esterilização cirúrgica entre mulheres unidas de 15 a
49 anos de idade decresceu entre 1996 e 2006, a participação da vasectomia como
método contraceptivo teve um aumento importante (PERPÉTUO; WONG, 2009).
Ademais, esterilização cirúrgica não implica, necessariamente, a não utilização
de preservativo masculino ou feminino. Fato é que a evolução da prática da
vasectomia no âmbito do SUS merece uma análise específica. Porém, em face dos
objetivos deste artigo, é necessário frisar que a esterilização cirúrgica
feminina por laqueadura tubária realizada no SUS é o objeto e foco exclusivo do
presente estudo. Além disso, diante da natureza dos dados utilizados, a análise
empreendida refere-se ao universo de procedimentos realizados no período 2000-
2006, não tratando, por conseguinte, de diferenciais regionais,
sociodemográficos ou socioeconômicos no acesso à laqueadura tubária.
Na seção que se segue, a literatura pertinente é revisada de forma a
contextualizar e fundamentar as três questões analisadas neste artigo. O
dimensionamento da oferta de laqueaduras tubárias no âmbito do SUS, no período
2000-2006, e a comparação com as informações captadas pela PNDS 2006 são
tratados na segunda seção. Posteriormente, comparam-se, por região, os
municípios com AIH de laqueadura processada e paga em 2006 e 2013 em relação ao
número de municípios com capacidade hospitalar potencial para a realização do
procedimento. Para fins de uma contextualização mais atual, o número de
laqueaduras realizadas no SUS no período 2007-2013 é apresentado e discutido ao
fim desta seção. A estimação da demanda frustrada por laqueadura tubária, a
partir dos dados da PNDS 2006, é o conteúdo da última seção. Este artigo se
encerra com as considerações gerais sobre os achados, à luz da literatura
pesquisada.
Revisão da literatura
A contracepção moderna foi o principal determinante próximo da queda da
fecundidade no Brasil, a partir da década de 1960 (MARTINE, 1996), e a demanda
crescente por regulação da fecundidade foi suprida principalmente pelo aumento
da utilização da laqueadura tubária, a partir de 1980, especialmente nas áreas
mais pobres e nos estratos de baixa renda (PERPÉTUO; WAJNMAN, 1998). Em 1986,
28,2% das mulheres de 15 a 44 anos unidas eram esterilizadas cirurgicamente,
proporção que passou para 40,1%, em 1996, entre mulheres de 15 a 49 anos unidas
(PERPÉTUO; WONG, 2009). Houve, portanto, um aumento substancial, entre 1986 e
1996, de mulheres em idade reprodutiva, em união, esterilizadas.
O aumento da prática de esterilização cirúrgica feminina nos anos 1980
intensificou a preocupação de gestores da saúde, movimentos sociais,
pesquisadores e autoridades públicas com eventuais ações controlistas no Brasil
(GELEDÉS, 1991; PERNAMBUCO, 1992; BERQUÓ, 1993). Suspeitava-se que clínicas de
planejamento familiar financiadas por instituições internacionais estavam
oferecendo laqueaduras gratuitas ou a preços módicos por indicação médica ou
social. Em 1992, o Congresso Nacional instalou Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) para investigar o fenômeno da esterilização cirúrgica feminina
em massa no Brasil (BRASIL, 1993). A comissão estabeleceu nove itens nos quais
focalizou a investigação, entre os quais sobressaíam motivações racistas,
participação de interesses internacionais e a oferta de métodos contraceptivos
reversíveis para a população de baixa renda.
No relatório final, publicado em 1993, a CPI concluiu que a real
disponibilidade de métodos contraceptivos para a população de baixa renda
estava longe de ser efetivo e serviços de planejamento familiar inexistiam ou
eram inacessíveis para a maior parte da população (BRASIL, 1993). De fato,
quase dez anos antes, Barroso (1984) já advertia que determinantes específicos,
tais como a estrutura do atendimento hospitalar e a ausência de políticas
públicas que fizessem face à crescente demanda por contracepção moderna,
levavam as mulheres a elegerem a laqueadura tubária como método de preferência.
Seja como for, neste período a laqueadura tubária não era reembolsável pelo
sistema público de saúde (BERQUÓ, 1995). Para cobrir os custos e acobertar a
intervenção cirúrgica nos hospitais do sistema público de saúde ou afiliados a
ele, passou-se a acoplá-la a uma cesariana ou registrar a realização de outro
procedimento pago pelo SUS (MERRICK; BERQUÓ, 1983; CAETANO; POTTER, 2004). A
combinação dessas características ' pagamento ou favor e acoplamento à
cesariana ou de intervalo ' variava regionalmente conforme o nível de renda e o
peso do setor privado na assistência médica. No Nordeste, a proporção de
laqueaduras de intervalo obtidas gratuitamente como favor político teve um peso
muito maior do que na Região Sudeste (CAETANO; POTTER, 2004).
A partir das análises da PNDS de 1996, as perspectivas que enfatizavam
determinantes específicos deram lugar a abordagens mais complexas, nas quais se
interligavam as deficiências do sistema de saúde, o comportamento dos médicos e
profissionais de saúde, a posição recalcitrante por parte dos parceiros e
maridos em relação à contracepção, desinformação sobre o próprio corpo e sobre
a atuação dos métodos contraceptivos, falta de acesso ao leque de métodos
reversíveis e pobreza (BERQUÓ, 1995; DINIZ et al . , 1998). Permeando todos
esses aspectos estava o reconhecimento de que havia uma grande demanda e
escassas alternativas contraceptivas. Foi esse conjunto de elementos e
acontecimentos que propiciou a aprovação, em 1996, da Lei n. 9.263, conhecida
como lei do planejamento familiar.
Em 20 de agosto de 1997, o então presidente Fernando Henrique Cardoso promulgou
a Lei n. 9.263, aprovada em 12 de janeiro de 1996, tornando a vasectomia e a
laqueadura tubária procedimentos hospitalares ofertados gratuitamente no
Sistema Único de Saúde (SUS), desde que cumpridos os requisitos determinados.
De acordo com a Portaria n. 144, da Secretaria de Assistência a Saúde,
Ministério da Saúde, de 20 de novembro de 1997, que regula a Lei n. 9.263, para
ter direito ao procedimento de esterilização cirúrgica em um serviço público, é
necessário ter capacidade civil plena e no mínimo 25 anos de idade ou dois ou
mais filhos vivos (BRASIL, 1997).3 Em ambas as situações, a demandante deve
apresentar a anuência do parceiro com a respectiva assinatura. Foi
estabelecido, ainda, um período de embargo à laqueadura tubária de 42 dias após
o parto, para coibir a realização de partos cesáreos desnecessários. Somente
são autorizadas laqueaduras pós-parto em casos de indicação médica, aborto e
cesarianas sucessivas (BRASIL, 1999b).
Além disso, todo indivíduo que requeira a esterilização cirúrgica deve passar
por um período de aconselhamento de 60 dias, durante o qual deverá ser
informado sobre o procedimento e suas implicações, bem como sobre os métodos
reversíveis. O serviço deve ser capaz de prover tais métodos. À autoridade
estadual ou municipal com gestão plena do sistema de saúde cabem a aprovação e
o credenciamento do serviço (BRASIL, 1999b; LUIZ; CITELI, 2000). Apenas os
serviços do SUS devidamente certificados podem receber reembolso para os
procedimentos hospitalares de laqueadura tubária e vasectomia.
A realização de laqueaduras tubárias no SUS seguindo as determinações da Lei n.
9.263 teve início efetivo em 1998, com 293 AIH registradas no Sistema de
Informações Hospitalares (SIH/SUS). A partir de então, uma série de pesquisas e
estudos foi realizada com o objetivo de investigar e avaliar o acesso à
esterilização cirúrgica feminina, com ênfase no papel dos médicos, na
perspectiva de gestores e na avaliação de usuários do sistema público de saúde
que requereram a laqueadura tubária ou a vasectomia.
Pesquisa pioneira foi levada a cabo em 1999, para avaliar os efeitos da Lei n.
9.263 na Região Metropolitana de São Paulo (LUIZ; CITELI, 2000). Entre julho e
dezembro daquele ano, foram entrevistados os responsáveis por 23 serviços de
saúde que ofereciam laqueadura tubária e vasectomia. A principal conclusão do
estudo foi que a lei não havia acarretado mudanças significativas na prática de
esterilização cirúrgica feminina. Segundo os entrevistados, a demanda por
laqueadura tubária havia crescido após a aprovação da lei e a provisão dessa
demanda competia com a necessidade devido a condições médicas da paciente.
Segundo as autoras, os entrevistados reportaram que os serviços não tinham
capacidade para suprir a demanda total, o que se intensificou com a proibição
da laqueadura pós-parto em fevereiro de 1999 (BRASIL, 1999a). Além disso, o
estudo sugere que os médicos eram pouco aderentes à legislação, utilizando
critérios próprios, definidos caso a caso.
Berquó e Cavenaghi (2003) analisaram a implementação da nova legislação de
planejamento familiar, especialmente da esterilização cirúrgica voluntária, com
o objetivo de verificar se os direitos reprodutivos de mulheres e homens
estavam sendo atendidos. As autoras realizaram pesquisa longitudinal com uma
amostra de 159 requerentes em Palmas, Recife, Belo Horizonte, São Paulo,
Curitiba e Cuiabá. Do lado da oferta, foram entrevistados profissionais e
gestores de saúde. Após seis meses de acompanhamento, 25,8% das mulheres e 31%
dos homens haviam obtido o procedimento. Pouco mais da metade das mulheres e
dois quartos dos homens que não obtiveram a cirurgia mencionaram a burocracia e
o desrespeito à lei por parte dos serviços e dos médicos como razões para o
insucesso. Segundo as autoras, os resultados indicavam que a prática usual da
esterilização cirúrgica pouco havia mudado após as portarias que regulam a Lei
n. 9.263.
Em estudo realizado por Vieira e Souza (2009), verificou-se que parte dos
solicitantes da esterilização cirúrgica pelo SUS em Ribeirão Preto não obtinha
o procedimento. O insucesso, segundo os autores, poderia ser devido à
desistência ou ao adiamento em decorrência do aconselhamento, ou em razão de
obstáculos originados no sistema de saúde. Vieira e Ford (2004) analisaram
essas hipóteses entrevistando, em 2004, 230 indivíduos que demandaram e não
obtiveram cirurgia de esterilização no período de 1999 a 2004, comparando-os
com 297 indivíduos que a obtiveram. Entre os que não conseguiram a cirurgia,
10% ainda tinham expectativa de obtê-la. Dos 207 restantes, 71% decidiram adiar
e 29% encontraram obstáculos. Segundo os autores, o longo período de
aconselhamento ' em média oito meses entre os que obtiveram a cirurgia ' era a
razão mais provável para 45% desses indivíduos, os quais alegaram falta de
tempo, problemas burocráticos, ter procurado outro serviço e estar aguardando
ser chamado.
Potter et al. (2003) realizaram pesquisa longitudinal nas Regiões
Metropolitanas de Porto Alegre, Belo Horizonte e Natal e no município de São
Paulo. Foram entrevistadas 1.612 mulheres grávidas com idades entre 18 e 40
anos. A amostra foi estratificada segundo a natureza do serviço, se público ou
privado, na proporção de dois para um. As entrevistas foram realizadas no
momento do recrutamento, um mês antes da data marcada para o parto e um mês
depois deste. Mulheres que informaram, em uma das duas primeiras entrevistas,
que não queriam mais filhos foram indagadas sobre como preveniriam futuras
gravidezes. Aquelas que relataram querer a esterilização foram inquiridas se
planejavam obtê-la imediatamente após o parto ou mais tarde. Na fase após o
parto, foi encontrada uma proporção substancial de mulheres que desejavam a
esterilização pós-parto. As pacientes de hospitais públicos apresentaram uma
chance significativamente menor de esterilização se comparadas às pacientes de
hospitais privados. Os autores argumentam que a Lei n. 9.263 não deve ter
reduzido as desigualdades de acesso à laqueadura tubária e, de forma não
antecipada, incentivava a realização de cesarianas desnecessárias.
Com base em pesquisa realizada nos municípios da Região Metropolitana de
Campinas, Carvalho et al. (2007) compararam homens e mulheres que foram
esterilizados cirurgicamente antes e depois da regulamentação da Lei n. 9.263.
Segundo os autores, os resultados, apesar de não conclusivos, indicam que as
mudanças esperadas a partir da vigência da legislação não ocorreram de acordo
com as expectativas, em especial no que se refere à redução de laqueaduras
tubárias acopladas a cesarianas e realizadas no pós-parto imediato. Eles também
identificaram dificuldades importantes para o atendimento da demanda da
esterilização cirúrgica, principalmente no nível de atenção primária. Tais
dificuldades estariam relacionais à "falta de infraestrutura e problemas no
encaminhamento aos serviços de referência", o que tende a gerar um aumento no
tempo de espera tanto para a laqueadura tubária quanto para a vasectomia
(CARVALHO et al., 2007, p. 2914). Deve-se considerar, a este respeito, que o
tempo de espera pelo procedimento associa-se positivamente à chance de
desistência da solicitante no decorrer do processo.
Também na Região Metropolitana de Campinas, Osis et al. (2009) realizaram
estudo qualitativo com profissionais médicos e gestores municipais de serviços
de saúde envolvidos com a provisão de esterilização cirúrgica em quatro
municípios. Entre as percepções dos entrevistados, os autores ressaltam as
críticas aos critérios legais relativos à idade e ao número de filhos. De
acordo com os autores, "a tendência dos profissionais entrevistados foi
considerar que [esses critérios] contribuem para o arrependimento pós-
esterilização, pois permitem que as cirurgias sejam realizadas em pessoas bem
jovens e com poucos filhos", o que seria indicativo de uma postura resistente a
tais critérios por parte desses profissionais (OSIS et al., 2009, p. 632).
Segundo Carvalho et al. (2007, p. 2915), em face de poucas análises sobre
outras regiões, pode-se considerar a Região Metropolitana de Campinas um
parâmetro para o restante do país, pois esta é uma das regiões que "apresentam
os melhores indicadores de atenção à saúde". De fato, é factível supor que os
problemas identificados na Região Metropolitana de Campinas sejam mais
exacerbados em outras áreas do país.
Para estes problemas existirem, é necessário que exista serviço de planejamento
familiar no âmbito do SUS nos termos da legislação, como é o caso da Região
Metropolitana de Campinas. Entretanto, a falta de estímulos para implantação,
no nível municipal, de serviços de planejamento familiar no âmbito do SUS tende
a restringir o acesso à esterilização cirúrgica feminina territorialmente. De
acordo com Amorim et al. (2008, p. 111), apesar de ter ocorrido aumento
importante no número de hospitais credenciados para realização de laqueadura
tubária desde a regulamentação da Lei n. 9.263, passando de 135 hospitais em
outubro de 1999 para 1.395 em janeiro 2007, "os serviços continuaram mais
concentrados nos maiores centros urbanos". Deve-se levar em conta que o aumento
do número de hospitais credenciados não está diretamente relacionado à
ampliação do número de municípios com hospital credenciado. Sobre este ponto, é
importante ter em mente que o foco deste artigo compreende os municípios.
Em síntese, as regulamentações da lei do planejamento familiar tornaram
obrigatória a apresentação do consentimento do cônjuge, estabeleceram um
período mínimo de espera de 60 dias e proibiram a laqueadura tubária no parto e
pós-parto. Do lado da oferta, para o credenciamento do serviço médico-
hospitalar, deve ser organizado um programa de informação e aconselhamento e os
métodos reversíveis devem ser disponibilizados. De acordo com os estudos
examinados, esses requisitos tendem a constituir-se como obstáculos à obtenção
da laqueadura tubária no SUS por eventual oposição do parceiro, por desistência
durante o período de espera, por dificuldade em iniciar o processo mais de um
mês e meio após o nascimento da criança, por discordância do profissional com
os critérios da lei e pela falta de serviço credenciado. Esses fatores são
determinantes para que a prática da laqueadura tubária observada no período
posterior à Lei n. 9.263 não tenha se alterado significativamente e, portanto,
para a constituição de um descompasso, no SUS, entre demanda e oferta dentro
dos critérios da lei.
Laqueaduras tubárias no período 2000-2006: comparação entre Autorizações de
Internação Hospitalar e PNDS 2006
A fim de proceder à comparação entre as AIH de laqueadura tubária processadas e
pagas, segundo o município de internação, e as frequências estimadas de
esterilização cirúrgica feminina a partir dos dados da PNDS 2006 para o período
2000-2006, são necessários esclarecimentos conceituais e metodológicos
concernentes à definição do período de análise, ao registro administrativo e à
expansão de estimativas amostrais para o total da população de interesse.
Com relação ao período de análise, não foram incluídos os anos de 1998 e 1999
para evitar a sobreposição normativa, uma vez que a Portaria n. 48, do
Ministério da Saúde, que veda a laqueadura tubária até 42º dia após o parto,
foi emitida em 11 de fevereiro de 1999 (BRASIL, 1999b). Portanto, a restrição
da análise ao período 2000-2006 visa considerar apenas as esterilizações
tubárias realizadas em hospital público ou particular afiliado ao SUS que não
poderiam ter sido feitas no parto ou no período de 42 dias após o parto.
A Autorização de Internação Hospitalar (AIH) é o registro administrativo
referente a tratamentos e procedimentos clínicos e cirúrgicos e constitui o
pilar do Sistema de Informações Hospitalares (SIH). Para solicitar a AIH, o
profissional que realiza o atendimento necessita providenciar o Laudo para
Solicitação de AIH contendo informações sobre o paciente, exames, resultados de
exames, diagnóstico e justificava para internação (BRASIL, 2012). Gerada a AIH,
o paciente pode ser internado. O número de identificação da AIH do paciente é
exclusivo para a mesma internação (SANTOS, 2009). Ao final do tratamento,
registra-se, no hospital, com base nas regras presentes na Tabela Nacional de
Procedimentos SUS, o atendimento prestado. A tabela de procedimentos
estabelece, também, os valores para o pagamento de diárias, medicamentos,
exames, serviços hospitalares e serviços médicos (BRASIL, 2012).
Entre as informações de identificação da AIH, são registrados o município de
internação e o de residência do paciente. O ano e o mês de processamento
informam o período de referência da AIH, o qual coincide com o mês de
ocorrência da alta, óbito ou transferência.4 Desse modo, as AIH aqui analisadas
são aquelas denominadas Laqueadura Tubária e Parto Cesáreo com Laqueadura
Tubária5 processadas e pagas, segundo o município de internação, nos anos de
referência do período 2000-2006 e em 2013.
Para dimensionar a proporção de laqueaduras tubárias registradas como AIH
processadas e pagas, foram utilizados os dados da PNDS 2006 para as mulheres
alguma vez unidas laqueadas entre 2000 e 2006, aplicando-se os respectivos
fatores de expansão. Os percentuais e as frequências expandidas baseiam-se em
um número relativamente pequeno de casos, o que implica maior imprecisão da
estimativa, isto é, maior dispersão em torno do valor esperado. Tendo em vista
que a amostra da PNDS 2006 é probabilística aleatória com desenho amostral
complexo, é necessário não somente usar o fator de ponderação apropriado, mas
também incorporar o desenho amostral na estimação das medidas de interesse.6 Ao
se considerar o desenho amostral, é possível obter medidas de dispersão que
informam a variabilidade dessas medidas.
Para incorporar o desenho amostral nas estimações, utilizou-se, em todas as
tabulações com dados da PNDS 2006, a informação para conglomerado e estrato.
Para as estimativas em que frequências expandidas foram utilizadas na
comparação com os registros administrativos de AIH, informam-se o intervalo de
confiança de 95% e o coeficiente de variação. O coeficiente de variação é dado
pela divisão do erro padrão da medida amostral pelo seu valor, constituindo-se,
portanto, em um indicador relativo de dispersão (BUSSAB; MORETTIN, 2010). O
erro padrão, de outra forma, é uma medida absoluta de dispersão. A inclusão do
intervalo de confiança e do coeficiente de variação justifica-se porque a
variabilidade informada pelo erro padrão pode ser de pequena magnitude e a
variabilidade relativa ser mais ampla. Além disso, por ser uma medida relativa,
o coeficiente de variação permite a comparação entre as medidas obtidas
(BUSSAB; MORETTIN, 2010). A informação conjunta dessas duas estatísticas de
dispersão permite uma avaliação mais acurada das limitações e do risco ao se
utilizar a frequência amostral expandida.
Aplicando-se o fator de expansão referente à mulher disponibilizado no banco de
dados da PNDS 2006, obtêm-se 3.371.523 mulheres de 15 a 49 anos alguma vez
unidas que foram cirurgicamente esterilizadas no Brasil, entre 2000 e 2006
(Tabela_1). Desse total, 66,2% obtiveram o procedimento em um serviço do SUS,
das quais 5,2% pagaram pelo procedimento. Este resultado indica que os serviços
do SUS foram a fonte de obtenção do procedimento para dois terços das laqueadas
no período analisado. A preponderância do sistema público de saúde como a maior
fonte de obtenção da laqueadura tubária, em 1996, também é observada a partir
dos dados da PNDS 1996 (CAETANO, 2010).
É necessário examinar em que medida as laqueaduras tubárias do período foram
oferecidas de acordo com os critérios estabelecidos na letra da lei. A Tabela_2
apresenta a proporção de laqueaduras realizadas no SUS, sem pagamento, no
período 2000-2006, segundo o período de espera e a relação com o parto.
Observa-se que 45,9% das laqueaduras foram acopladas ao parto cesáreo. Tal
procedimento só seria reembolsável via AIH de parto cesáreo com laqueadura
tubária. Além dessas, 7,2% foram realizadas no pós-parto, o que está em
desacordo com a Portaria n. 48, de fevereiro de 1999.
Além da informação sobre a relação da laqueadura tubária com o parto, a PNDS
2006 permite examinar o tempo decorrido entre a solicitação e a realização da
cirurgia. Observa-se, na Tabela_2, que o período de espera, para 23,1% das
mulheres operadas em serviços do SUS entre 2000 e 2006, foi inferior a 60 dias
entre a solicitação e a operação. Restam, portanto, 492.506 cirurgias de
esterilização cirúrgica feminina realizadas em serviços do SUS, no período
estudado, compatíveis com a lei no que diz respeito ao tempo de espera e à
relação com o parto, o que representa 23,8% do total desses procedimentos
realizados no SUS sem pagamento.
Pode-se inferir que as laqueaduras de intervalo com período de espera entre a
solicitação e a realização superior a 60 dias ocorreram em serviços
autorizados. Do mesmo modo, é factível supor que as laqueaduras realizadas no
parto cesáreo sejam justificadas por cesarianas anteriores ou indicação médica,
o que geraria AIH de parto cesáreo com laqueadura tubária. A soma dessas AIH
com aquelas de laqueadura tubária forneceria o total de procedimentos
processados e pagos no Sistema de Informação Hospitalar (SIH/SUS) no período em
questão.
Assim, as quantidades de AIH de laqueadura tubária e de laqueadura tubária no
parto cesáreo podem ser comparadas às respectivas frequências estimadas a
partir dos dados da PNDS 2006. A Tabela_3 traz o número de AIH de laqueadura
tubária e o de parto cesáreo com laqueadura tubária processados no país no
período analisado e as respectivas frequências estimadas a partir da PNDS 2006
extraídas da Tabela_2. Também são apresentadas as proporções, em termos
percentuais, das frequências de AIH processadas e pagas em relação aos totais
de esterilização cirúrgica feminina estimados a partir dos dados da PNDS 2006.
As AIH de laqueadura tubária constituíram 29,7% do total observado de
procedimentos potencialmente compatíveis com a lei no que se refere ao período
de espera e à relação com o parto, captados pela PNDS 2006 para o período em
questão (Tabela_3). De outra forma, 70,3% das esterilizações cirúrgicas
femininas do subconjunto estimado potencialmente compatível com a lei não
teriam aderência com a regulamentação relativa ao período de aconselhamento.
Ademais, o número de AIH de parto cesáreo com laqueadura tubária significou
4,4%, do total estimado a partir da PNDS 2006. Este resultado indica que o
acoplamento com uma cesariana, à revelia da lei, configurou-se como um
mecanismo importante para a obtenção gratuita da esterilização cirúrgica
feminina no sistema público de saúde.
A soma de AIH de laqueadura tubária e de parto cesáreo com laqueadura tubária
representou 13% das esterilizações no parto cesáreo e de intervalo,
potencialmente compatíveis com a lei, realizadas no SUS de 2000 a 2006. Ainda
que sujeitos a variação amostral, os resultados da comparação entre o número de
AIH de laqueadura tubária e o total de esterilizações cirúrgicas femininas
estimado utilizando os dados da PNDS 2006 indicam que a provisão desse
procedimento em serviços credenciados do SUS esteve muito aquém do total
estimando para o período 2000-2006.
Municípios com serviços credenciados para realização de laqueadura tubária em
2006 e 2013: uma aproximação
Além dos requisitos exigidos para a realização de laqueadura tubária em serviço
autorizado do SUS e de eventuais critérios extralegais de parte dos médicos, a
ausência de serviço no município pode configurar-se como uma dificuldade
primária para obtenção do procedimento. Em outras palavras, a inexistência de
serviço autorizado no município ou em município próximo pode ser determinante
para a realização do procedimento ao largo da legislação e, em última
instância, para o insucesso na obtenção da laqueadura.
Para examinar a presença, por município, de serviços de planejamento familiar
que ofereciam esterilização cirúrgica feminina no âmbito do SUS, foram
utilizadas, novamente, as AIH de laqueadura tubária e de parto cesáreo com
laqueadura processadas e pagas, segundo o município de internação, referentes a
2006 e 2013. O emprego das AIH de 2006 deve-se ao fato de que neste ano, em
comparação aos anteriores, foi registrado o maior número de AIH de laqueadura
tubária, envolvendo o maior número de municípios. Logo, a rede de municípios
com serviço de planejamento familiar era mais ampla em 2006 do que em qualquer
um dos anos entre 2000 e 2005. A análise das AIH de laqueadura tubária
processadas e pagas em 2013 visa apresentar o quadro mais recente para
contrapor à situação de 2006 e oferecer um panorama do período pós-2006.
Em face da inexistência da série histórica de habilitação de hospitais do SUS
autorizados a realizar o procedimento, as AIH de laqueadura tubária processadas
e pagas foram empregadas como proxy da presença, no município, de serviço
credenciado. A utilização desta aproximação deve-se ao fato de que o Datasus
armazena somente a série mais recente de habilitações, não sendo possível
identificar, ano a ano, os hospitais com serviço de planejamento familiar que
foram posteriormente fechados. Neste aspecto, deve-se levar em conta que a
ausência de registro de AIH de laqueadura tubária em determinado ano não
significa, necessariamente, a inexistência de serviço credenciado.
Para identificar a existência de capacidade hospitalar para a realização da
laqueadura foram utilizadas, como proxy, as AIH de clínica cirúrgica e
obstétrica, excetuando-se os partos normais. Se, em um dado município, foi
processada e paga pelo menos uma AIH cirúrgica ou obstétrica em 2006 e 2013,
considerou-se que o mesmo apresentava serviço hospitalar hábil para a
realização da laqueadura tubária no respectivo ano.
A coluna A da Tabela_4 apresenta o total de municípios do país em 2006, por
região. Na coluna B, encontram-se os percentuais de municípios, em relação ao
total de cada região, com pelo menos uma AIH de procedimento cirúrgico ou
obstétrico, exceto partos normais. A coluna C apresenta o resultado de
interesse, ou seja, a proporção de municípios, por região, com registro de AIH
de laqueadura tubária em relação ao total de municípios com AIH obstétrica ou
cirúrgica processada e paga. Em 2006, foram geradas AIH de laqueadura tubária,
isolada ou em parto cesáreo, em 13,8% dos municípios brasileiros com capacidade
potencial para realizar este procedimento cirúrgico. A Região Sudeste detinha a
maior proporção (19,2%), seguida pelo Sul (14,5%) e Centro-Oeste (13,5%), ao
passo que as Regiões Norte e Nordeste apresentaram as menores proporções (9,1%
e 10,1%, respectivamente).
Esses percentuais são indicativos de uma rede de municípios com registro de AIH
de laqueadura tubária restrita, mesmo na Região Sudeste. Se a esses achados
forem acrescentados os anteriores, especialmente o ínfimo total de AIH de
laqueaduras tubárias registrado no período de 2000 a 2006 em relação ao total
de procedimentos realizados no SUS conforme captado pela PNDS 2006, a receita
para a formação de uma demanda frustrada por esterilização cirúrgica feminina
se completa. Pelo menos até 2006.
A Tabela_4 também apresenta essas informações para o ano de 2013. Como se
observa na coluna D, foram criados cinco municípios entre 2006 e 2013.7 Nesse
mesmo período, o número de municípios com pelo menos uma AIH obstétrica ou
cirúrgica processada e paga decresceu em 20,4%, passando de 3.179 para 2.532.
Esta diminuição está relacionada com fatores relativos ao financiamento do SUS,
ao avanço e aprimoramento da atenção básica e à transição do modelo de sistema
de saúde no Brasil (RIBEIRO, 2009; MENDES et al., 2012). De qualquer maneira,
esta queda enviesa a comparação da proporção de municípios com AIH de
laqueadura tubária em relação ao total de municípios da região com capacidade
hospitalar potencial entre 2006 e 2013.
Por este motivo, foram comparados apenas os municípios com registro de AIH de
laqueadura tubária nos anos em questão (colunas C e F, Tabela_4). Como se pode
notar, o número de municípios brasileiros com pelo menos uma AIH de laqueadura
tubária processada e paga cresceu 89,7%, entre 2006 e 2013, passando de 439
para 833. O aumento mais intenso ocorreu nas Regiões Norte (154%) e Centro-
Oeste (132%), devido, basicamente, ao pequeno número de municípios com registro
de laqueadura tubária em 2006. Embora menores do que nessas regiões, os
crescimentos no Sudeste (94,6%) e no Nordeste (81,6%) também foram vigorosos.
Na Região Sul o incremento (54,5%) foi mais modesto, mas ainda assim
importante.
O exame da distribuição intrarregional e intraestadual de municípios com AIH de
laqueaduras tubárias processadas e pagas em 2006 foge ao escopo deste artigo,
mas é razoável supor, conforme Amorim (2008), que, diante da capacidade
hospitalar necessária para efetuar o procedimento cirúrgico, prevalecessem as
capitais, os municípios das regiões metropolitanas e os municípios médios. Mas,
talvez mais importante, a existência de serviços credenciados depende de
iniciativa política, organizacional e operacional dos gestores estaduais da
saúde e, principalmente, dos gestores municipais, bem como de recursos
profissionais e infraestrutura, variando, por isso, de Estado para Estado.
Tomem-se os casos do Ceará e Alagoas a título de exemplo. Dos 1.794 municípios
da Região Nordeste, em 2006 e 2013, 10,3% eram cearenses e 5,7% alagoanos.
Entretanto, do total de municípios nordestinos com registro de AIH de
laqueadura tubária, 23,9% (103), em 2006, e 31,5% (187), em 2013, pertenciam ao
Ceará. Na outra ponta, Alagoas tinha apenas um município, a capital, com
registro de AIH de laqueadura tubária em 2006 e assim permaneceu em 2013.
Vale registrar, também, o que se passou em relação à quantidade de AIH de
laqueadura tubária e de parto cesáreo com laqueadura tubária no período
posterior a 2006. Entre 2007 e 2013, foram processadas e pagas 239.576 AIH do
primeiro tipo e 122.993 do segundo, totalizando 362.569 procedimentos.
Comparando-se esses números com os apresentados na Tabela_4, verifica-se que o
número de AIH de laqueadura tubária cresceu, do primeiro para o segundo
período, 164% e o de parto cesáreo com laqueadura tubária ampliou-se em 294%.
Essas frequências indicam que, entre 2007 e 2013, um terço das laqueaduras
tubárias foi realizado em um parto cesáreo, em comparação a 22,3% no período
2000-2006. Em face de tal incremento, esta é uma tendência na prática da
laqueadura tubária no SUS merecedora de uma análise específica.
De qualquer forma, no âmbito do SUS, o quadro revelado para o período 2007-2013
é mais auspicioso do que o encontrado para o período 2000-2006. Como observado,
aumentaram o número e a proporção de municípios com registro de AIH de
laqueadura tubária em todas as regiões e a quantidade desse procedimento, no
total do país, cresceu substancialmente. Não obstante, a rede de municípios com
registro de AIH de laqueadura tubária, como proxy da existência de serviço
credenciado para ofertar a esterilização cirúrgica feminina nos critérios das
regulamentações da Lei n. 9.263, pode ser considerada limitada também em 2013
e, mais importante, varia sobremaneira a depender do Estado. Além de Alagoas,
também no Acre, Amazonas, Roraima e Piauí houve registro de laqueadura tubária
pelo SUS em apenas um município em 2006. No Maranhão, foram dois municípios. Em
2013, houve registro de AIH de laqueadura tubária em apenas um município nos
Estados de Roraima e Alagoas, em dois municípios no Acre e Piauí e em oito no
Maranhão.
Dada a inexistência de pesquisas sobre saúde reprodutiva e contracepção depois
da PNDS 2006, não é possível avaliar, para o período 2007-2013, a relação entre
o total de esterilizações cirúrgicas femininas e as ocorridas no SUS, bem como
sobre a aderência dessas aos critérios regulatórios da Lei n. 9.263.
Demanda frustrada por laqueadura tubária
Os resultados apresentados nas seções anteriores indicam que o SUS, em relação
ao setor privado de saúde, foi a principal fonte de laqueadura tubária no
período 2000-2006 e que, apesar do declínio da participação desse procedimento
no mix contraceptivo observado entre 1996 e 2006, 76,2% das esterilizações
cirúrgicas femininas não pagas ocorridas no SUS no período estudado foram
efetuadas fora dos critérios estipulados pelas regulamentações da Lei n. 9.263
no que se refere à relação com parto e ao período mínimo de espera para
aconselhamento. Esses achados dizem respeito às laqueaduras concretizadas.
É possível que para casais e mulheres com certas características ou em
determinadas situações esses critérios constituam obstáculos intransponíveis,
tornando a obtenção da laqueadura tubária desejada inalcançável, mesmo à
revelia da legislação. Essa hipótese pode ser examinada a partir do
questionário da PNDS 2006,8 que incluiu dois quesitos que pesquisaram o desejo
e a tentativa efetiva de obter a laqueadura tubária entre as mulheres alguma
vez unidas e não esterilizadas. O quesito 386 inquiriu se a entrevistada
"alguma vez quis fazer esterilização". Para as que responderam "sim", o quesito
seguinte, 387, pesquisou "o que aconteceu que não fez a esterilização". As
opções de resposta eram: (1) não sabia onde conseguir; (2) tentou e o serviço
de saúde não concordou; (3) tentou e não conseguiu; (4) desistiu; (5) o marido
não concordou; e (6) outro.
Para estimar a prevalência contraceptiva que incorpore as tentativas efetivas,
porém frustradas, de obtenção por laqueadura tubária, as mulheres unidas de 21
a 25 anos com pelo menos dois filhos vivos e cujo último nascimento tenha sido
à idade mínima de 21 anos e as mulheres unidas com 26 anos de idade ou mais que
responderam "sim" no quesito 386 e (2), (3) ou (5) no quesito 387 foram
classificadas como se esterilizadas tivessem sido. Como não foi levantada a
idade ou ano em que a tentativa de obtenção foi feita, este procedimento evita,
ao menos, a inclusão de mulheres cuja idade ao nascimento do segundo filho era
inferior ao estabelecido pela Portaria n. 144 para a solicitação da laqueadura
(BRASIL, 1997).
A adoção dos cortes de idade em 21 e 26 anos baseou-se no item 3.4 da Portaria
n. 144 e nas disposições do Código Civil Brasileiro de 1916 e de 2002.9 No que
se refere a capacidade civil, idade e número de filhos, são duas as
possibilidades que imputam o direito à requisição da esterilização cirúrgica no
sistema público de saúde: capacidade civil plena e maiores de 25 anos de idade;
ou capacidade civil plena e pelo menos dois filhos. Até 2002, a capacidade
civil plena era alcançada ao se completar 21 anos de idade, ressalvadas as
condições dispostas nos artigos 5º e 6º do Código Civil de 1916 (BRASIL, 2003).
Ressalvadas as condições dispostas nos artigos 3º, 4º e 5º do Código Civil de
2002, desde 2003 a capacidade civil plena é obtida ao se completar 18 anos de
vida. Portanto, a segunda condição relativa a capacidade civil plena, idade e
número de filhos presente na Portaria n. 144 era preenchida, até 2002, com a
idade completa de 21 anos e pelo menos dois filhos. A partir de 2003, esta
condição passou a ser preenchida com a idade completa de 18 anos e pelo menos
dois filhos.
Diante do exposto, poder-se-ia ter sido mais rigoroso analiticamente,
alterando-se o critério de idade a partir de 2003, inclusive, e considerando
direito de toda mulher com pelo menos 18 anos de idade e no mínimo dois filhos
a obtenção da laqueadura tubária no sistema público de saúde. Não obstante,
como indica a literatura, na percepção e prática dos profissionais de saúde que
atuam na provisão de laqueadura tubária no âmbito do SUS, quanto mais jovem
maior é a chance de arrependimento após a laqueadura (OSIS et al., 2009). Por
esses motivos, adotou-se, neste artigo, o critério mais restritivo de idade,
que vigorava na época da sanção da Lei n. 9.263, em 1997, ou seja, a definição
etária do Código Civil de 1916 ' 21 anos ' para o término da minoridade e
aquisição da capacidade civil plena. Como precaução adicional, adotou-se a
idade de 26 anos completos para a primeira condição.
Utilizando-se esses cortes etários, foi estimada a distribuição percentual da
prevalência contraceptiva hipotética sob a hipótese de que as mulheres unidas
de 15 a 49 anos que responderam "sim" no quesito 386 e (2), (3) ou (5) no
quesito 387 obtiveram a laqueadura tubária. Deve-se considerar que esta é uma
estimativa aproximada, mas conservadora, pois não incorpora 19% das que
tentaram e responderam que desistiram (opção 4 do quesito 387), sem
explicitação da razão. Como discutido anteriormente, é razoável supor que parte
das desistências tenha ocorrido devido à extensão do período de espera
(CARVALHO et al., 2007; VIEIRA; SOUZA, 2009) e que, portanto, essas desistentes
teriam efetivamente tentado.
A primeira coluna da Tabela_5 apresenta a prevalência contraceptiva observada.
Na segunda coluna são acrescentadas as mulheres unidas de 15 a 49 anos de idade
que informaram ter tentado, mas o serviço de saúde não concordou. A terceira
coluna mostra a prevalência contraceptiva relativa incluindo as que informaram
ter tentado e não conseguido, sem especificação do motivo. A prevalência que
seria observada com a incorporação daquelas cujos cônjuges não concordaram
constitui a última coluna da Tabela_5. Assim, as distribuições proporcionais da
prevalência contraceptiva nas colunas 2, 3 e 4 são hipotéticas e cumulativas.
A classificação esterilização feminina como método utilizado para as
entrevistadas que responderam ter efetivamente tentado obter a laqueadura
tubária e para aquelas que seus cônjuges não concordaram leva a participação
deste método no mix contraceptivo de 2006 a 36,7%, ou seja, 26,2% superior à
observada nesse mesmo ano. O componente de maior peso (43,9%) neste aumento é a
não concordância do serviço de saúde, seguido pela não obtenção sem
especificação do motivo do insucesso (41,2%). Os restantes 14,9% devem-se à não
concordância do cônjuge.
Caso essas mulheres tivessem sido esterilizadas, a prevalência dos demais
métodos necessariamente diminuiria em termos relativos. Vê-se, por exemplo, que
a prevalência de contraceptivos orais decresce, relativamente, de 23,4% (coluna
1) para 20,2% (coluna 4), ou seja, torna-se 13,8% menor. O mesmo ocorre com a
prevalência dos métodos tradicionais, que seria 11,5% menor, a de preservativo
masculino, 10,2% menor, e a dos demais métodos modernos, 10,6% menor.
Neste cenário hipotético, a proporção de mulheres entre 15 e 49 anos unidas e
esterilizadas em 2006 seria 3,4 pontos percentuais inferior à observada em 1996
(40,1%) e 7,6 pontos percentuais superior à observada em 2006. Assim, se essas
mulheres que efetivamente tentaram obter a esterilização cirúrgica feminina
tivessem sido bem-sucedidas, a participação deste método no mix contraceptivo
de 2006 estaria mais próxima da proporção observada em 1996 do que daquela
observada em 2006.
Considerações finais
A análise empreendida neste artigo mostrou que dois terços das esterilizações
cirúrgicas femininas ocorridas no Brasil, entre 2000 e 2006, foram realizados
em hospitais da rede pública. Desses, 5,2% dos procedimentos foram pagos. Entre
as esterilizações gratuitas, apenas 23,8% estavam potencialmente compatíveis
com as regulamentações da Lei n. 9.263 no que se refere ao período mínimo entre
a solicitação e a realização da cirurgia e à relação com parto. É verdade que
as laqueaduras no parto cesáreo poderiam ter ocorrido devido a cesarianas
sucessivas ou por indicação médica. No entanto, as AIH geradas para esse tipo
de procedimento representaram somente 4,4% do total de laqueaduras no parto
cesáreo estimado a partir dos dados da PNDS 2006. No cômputo geral, as AIH
envolvendo laqueadura tubária representaram 13% do total estimado de
esterilizações femininas potencialmente compatíveis com a legislação, ocorrido
no SUS nos sete anos em questão. O exame das AIH de laqueadura tubária para
2006 indicou que a rede de municípios com serviços do SUS autorizados a
oferecer a esterilização cirúrgica feminina naquele ano era bastante restrita.
Em consequência das tentativas mal-sucedidas de obtenção da laqueadura tubária,
identificou-se uma demanda frustrada pelo procedimento que, caso houvesse sido
atendida, elevaria a participação deste método no mix contraceptivo brasileiro
de 2006 dos 29,1% observados para 36,7%, mais próxima dos 40,1% observados em
1996.
Os achados para o período 2007-2013 mostram um crescimento importante no número
de laqueaduras tubárias realizadas em serviços do SUS em relação ao período
2000-2006, com aumento significativo do peso de partos cesáreos com laqueadura
tubária. Verificou-se, ainda, uma ampliação no número de municípios com
registro de AIH de laqueadura tubária em todas as regiões brasileiras.
Entretanto, há diferenças regionais e estaduais relevantes e reveladoras, como
indicam os casos do Ceará e Alagoas.
Esses achados colocam em questão a dimensão potencialmente restritiva, não
antecipada, da legislação para a obtenção gratuita da laqueadura tubária no
SUS. A necessidade de apresentar concordância do cônjuge e a proibição da
laqueadura pós-parto tendem a estimular a realização de cesarianas
desnecessárias (POTTER et al., 2003) e de outros procedimentos reembolsáveis
pelo SUS para acobertar a esterilização cirúrgica feminina e cobrir seus
custos, da mesma forma que ocorria antes da Lei n. 9.263 (CAETANO; POTTER,
2004).
A não concordância do serviço em realizar a laqueadura tubária foi a principal
razão para o insucesso das mulheres que tentaram obter o procedimento no SUS. É
possível que a recusa esteja relacionada com a imposição de critérios mais
restritivos do que os requisitos da legislação e com o desconhecimento da mesma
(LUIZ; CITELI, 2000; BERQUÓ; CAVENAGHI, 2003; CARVALHO et al., 2007). A
desistência, por sua vez, tende a estar associada à extensão do período de
espera relacionado ao período de aconselhamento e ao fluxo administrativo-
burocrático desde o atendimento até a realização do procedimento (CARVALHO et
al., 2007; OSIS et al., 2009; VIEIRA; SOUZA, 2009). Em outros contextos, o
empecilho é a inexistência, no município, de hospital do SUS credenciado para
prover a laqueadura tubária nos termos da lei (AMORIM et al., 2008).
No Brasil, como em outros países da América Latina, a provisão de contracepção
moderna foi legislada e incorporada à política de saúde no contexto da
descentralização do sistema público. Assim, a oferta de métodos em serviços
públicos tende a padecer dos mesmos males que as demais áreas da saúde, tais
como disfunção entre o nível central e o nível local, falta de mecanismos de
estímulo para o estabelecimento de serviços e sanção para a não aderência às
normas, descontinuidades derivadas das mudanças dos gestores a cada eleição,
entre outros (CAETANO, 2014).
Ademais, em políticas públicas concebidas centralmente e implementadas
localmente ' a descentralização da saúde e o Programa Bolsa Família são
paradigmáticos ', a regulamentação e as iniciativas centrais buscam induzir a
organização e a melhoria dos serviços essenciais locais (ARRETCHE, 1999). Um
exemplo pertinente é o Índice de Gestão Descentralizada (IGD) no caso da
inclusão de famílias e atualização das informações do Cadastro Único, do
Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome.10
No caso da esterilização cirúrgica feminina, deve-se considerar que a Lei n.
9.263 e as portarias que a regulamentam não estabelecem estímulos para a
organização de serviços de planejamento familiar por parte dos gestores de
saúde municipais. Tampouco foram previstas sanções para o descumprimento da lei
por parte de médicos e serviços (VIEIRA; FORD, 2004). Portanto, a oferta de
laqueadura no setor público, de acordo com a lei de planejamento familiar,
depende da perspectiva e da diligência dos gestores de saúde estaduais e,
mormente, de cada município.
É bastante provável que a legislação do planejamento familiar teve
consequências não antecipadas que tendem a restringir a obtenção da laqueadura
tubária no SUS nos termos da lei. Porém, a mera existência de legislação
específica não tem, por si só, o poder da transubstanciação. Sem mecanismos de
estímulo à implantação de serviços no nível local, bem como sanções para o
descumprimento da legislação, a Lei n. 9.263 e suas regulamentações tendem a
ser apenas letra.