Epidemia de sarampo e trabalho escravo no Grão-Pará (1748-1778)
Epidemia de sarampo
Epidemias marcaram a história do contato entre a população autóctone da América
e europeus, tornando-se um dos fatores que explicam a diminuição significativa
da população americana original (LIVI-BACCI,_2001; GUERRA,_1993; DOBYNS,_1966).
Na Amazônia colonizada pelos portugueses não foi diferente. Ao longo dos
séculos XVII e XVIII, a região deparou-se com diferenciados cenários epidêmicos
(1649-1652, 1661-1662, 1690, 1724-1725 e 1737-1740), o que interferia na
própria organização produtiva, pois afetava o trabalho compulsório e a
composição demográfica das áreas atingidas (CHAMBOULEYRON_et_al.,_2011; GUZMÀN,
2012).
Entre 1748 e 1750, mais uma epidemia aportou no Estado do Maranhão e Grão-
Pará.1 Esse surto ficou conhecido por "sarampo grande", agregando um adjetivo
que destacava sua força quando comparada com epidemias anteriores, como bem
deixou registrado o tenente Teodosio Chremont:
[...] foram vistos lugares naquele rio (Rio Branco) que, sendo antes
habitado de inumerável gentio, então não mostravam outros sinais do
que os ossos dos corpos dos que haviam perecidos [...] Na cidade e em
todo o Estado, fez tal estrago que, por isso, mereceu o distintivo de
ser chamado de o sarampo grande (FERREIRA,_1781, grifo nosso).
Entre as várias vilas, aldeamentos e povoações afetados pelo sarampo, Belém do
Grão-Pará registrou as mais detalhadas lembranças acerca do impacto dessa
epidemia. Lembranças das mortes que deixaram rastros desde os sertões até a
cidade. Lembranças das lamentações e flagelos públicos, imbuídos "para que o
Árbitro do mundo, movido aos empenhos da contrição, e da suplica, abrandado o
rigor de sua justificada vingança, usasse das branduras da sua misericórdia
infinita".2 Lembranças das ordens religiosas que se movimentavam e da cidade
que assistiu um número maior de novenas, missas, procissões, autoflagelos e
emocionantes sermões. Rotina de penitências, em que as ordens religiosas
pareciam disputar quem teria maior capacidade de clamor e sacrifício para
abrandar a fúria da epidemia.3
Além dos rituais católicos, nas ruas de Belém também se viam cadáveres
insepultos, conduzidos para as redondezas da cidade (o Piri e o São José),
jogados nos rios ou nas ruas "expostos à misericórdia dos vivos". Também não
era raro encontrar pessoas acometidas de "terríveis assaltos se congregarão os
impulsos de vômitos de sangue, e diarrheas".4
Ainda outro aspecto poderia compor esse cenário de lembranças: a fome que
assolou Belém, havendo "um excesso de carestia". O então governador do Maranhão
relatou ao rei o estado preocupante da alimentação dos moradores:
[...] o formidável contagio de que dey conta a Vossa Excelencia nos
Navios passados [...] está presente afligindo todos os moradores
desta Capitania [Grão-Pará] com os seus efeitos, pois reduzindo todos
a mayor consternação com a morte dos seus Escravos, não tem quem lhe
apanhe os frutos das fazendas, q são todos os seus haveres, nem que
lhe faça as maes Lavouras [...] e por esta causas se tem
experimentado hua fome considerável de farinha.5
Além da fome, o trecho citado mais uma vez reforça a importância do trabalho
indígena (naquele período, escravo era sinônimo de escravo índio) e ainda
pontua que esse contingente populacional foi o mais atingido pelo sarampo,
gerando desdobramento para a produção de alimentos dos moradores. No rastro da
morte causada pela doença, vinham o desabastecimento de comida, a possível
diminuição dos produtos de exportação e o pedido urgente para inserção da mão
de obra escrava africana.6
Epidemia, mão de obra e reconfiguração de cotidianos
Os impactos da epidemia de sarampo estavam associados a um importante indicador
demográfico: a mortalidade, que tem efeitos sobre a evolução demográfica,
social e econômica de uma região (CANCHO,_1981, p. 24). A demografia histórica
vem destacando as repercussões de epidemias na composição da dinâmica
populacional, principalmente quando articuladas a períodos de fome, o que
corrobora a ideia de que os estudos não devem se resumir ao total absoluto de
mortos, procurando analisar os segmentos (etnia, sexo, idade, ofício...) mais
atingidos pela doença. Também se deve considerar que, embora a epidemia tenha
uma duração relativamente curta, seus efeitos no índice de crescimento de uma
população podem ser mais duradouros (WRIGLEY;_SHOFIELD,_1981, p. 413; GLASS;
EVERSLEY,_1965, p. 52-55).
Livi-Bacci_(2006) problematizou o papel das epidemias, em especial das novas
doenças, na diminuição da população americana, ao afirmar que o alcance de uma
epidemia não se resume a um modelo estático, abrangendo dados específicos como
a razão de contágio, de sobrevivência e a capacidade da sociedade de se
organizar para combater a doença. E mais, o decréscimo da população indígena
pós-contato não pode ser resumido às epidemias, o que seria desprezar elementos
fundamentais da relação entre autóctones e colonizadores: imposição de modelo
produtivo e das guerras de conquistas (LIVI-BACCI,_2006).
O presente estudo parte do pressuposto de que a epidemia de sarampo (1748-1750)
não foi o único fator, mas significou mudanças importantes no cenário
demográfico do Grão-Pará, o que possibilita enveredar pela história da
população da região. As lembranças e notícias do sarampo podem servir para não
resumirmos a região aos desígnios administrativos, nem à exploração das drogas
do sertão, nem à exportação de cacau e de café e nem ao confronto entre ordens
religiosas e colonos. Enfim, trata-se da possibilidade de problematizarmos sua
construção histórica a partir do prisma da dinâmica populacional.
Os relatos e as memórias anteriormente destacados apontam para a presença
importante e cotidiana de um fator populacional: o Estado do Maranhão e Grão-
Pará iniciou a segunda metade do século XVIII enfrentando os impactos
demográficos de uma epidemia de sarampo. No depoimento do governador do Estado,
Francisco Pedro Gurjão, fica bastante claro que o principal desdobramento do,
segundo ele, "formidável contágio" era demográfico. A morte de índios poderia
não só ameaçar a produção exportadora de cacau e café, como também diminuir
dízimos reais, ameaçando a própria subsistência dos moradores.
No Conselho Ultramarino (órgão de fiscalização e uniformização do Império
português), ecoaram as reclamações do governador, que afirmou em maio de 1750:
"o Governador do Maranhão da conta do deplorável estado a que se acham
reduzidas aquelas Capitanias como grande número de índios [grifo nosso] que
devorou o contagio que ali contaminou".7 Não foram encontrados documentos em
que se destacasse a morte de brancos pelo sarampo. A documentação é muita
clara: a maioria significativa de mortos era composta de índios.
Assim, os diferentes relatos apontavam para a diminuição da mão de obra
indígena como consequência imediata da epidemia de sarampo. Uma queixa que
permeava diferentes discursos - de governadores, moradores e religiosos - era o
número de índios mortos. Isso traz problemas metodológicos relacionados à
imprecisão das contagens numéricas da época. Livi-Bacci_(2012) discute a
dificuldade de produzir estudos demográficos acerca das sociedades indígenas na
Amazônia colonial.8
A epidemia em números
Trabalhar com a demografia histórica indígena para o período colonial sempre é
um desafio. Nem mesmo existe consenso acerca do número de índios no Brasil
antes do "descobrimento". Ainda nos dias atuais há "pouco desenvolvimento da
área da demografia dos povos indígenas no Brasil", o que em parte pode ser
explicado pela dificuldade de obtenção de dados relacionados ao passado
indígena (PAGLIARO;_AZEVEDO;_SANTOS,_2005, p. 4).
Embora esse artigo não tenha a intenção de fazer um estudo detalhado da
demografia indígena na capitania do Grão-Pará, é necessário analisar os números
relacionados à alta mortalidade do sarampo, o que, consequentemente, leva à
contextualização da produção das informações, em especial dos números que são
vinculados pela documentação pesquisada.
O primeiro ponto diz respeito ao fundo documental que guarda parte
significativa das fontes analisadas: o Arquivo Histórico Ultramarino Português,
acervo de documentos da capitania do Grão-Pará, em Lisboa. O Conselho
Ultramarino foi criado em 1642, instalado em 1643 e extinto em 1833. Sua
principal finalidade era a uniformização e fiscalização de todo o Império
português, desde a África até a América, passando pela Índia. O Arquivo
Histórico Ultramarino preserva até hoje o acervo riquíssimo de documentos
administrativos produzidos por esse Conselho.
Esse arquivo possibilitou o acesso a uma série de documentos que pautaram a
presente análise. Trata-se de documentos produzidos nos dois lados do
Atlântico, por diferentes agentes. Colonos, religiosos e administradores teciam
suas reclamações e sugestões, tendo como ponto central a epidemia de sarampo.
Por sua vez, os conselheiros apontavam possíveis soluções e criavam alguns
questionamentos. Do Grão-Pará surgia um conjunto de listagens e balanços de
mortos, todos agregados às ininterruptas queixas acerca da epidemia. Tais
anexos traziam na sua composição uma série de contagens de mortos
especificamente relacionados ao sarampo, pois seriam esses dados que
corroborariam os pedidos e lamentos feitos desse lado do oceano. Assim, deve-se
ter claro que tais dados foram arrolados por religiosos, colonos e
administradores, que tinham como objetivo principal comover o Conselho
Ultramarino para permitir a entrada de escravos africanos e/ou autorizar a
intensificação da montagem de Tropas de Resgate.9
Entre as autoridades do período, a mais constante na elaboração de reclamações
era o governador Francisco Pedro Gurjão, que apostava na contagem dos mortos
para legitimar posições políticas de exploração de mão de obra e ocupação de
espaço. Sua correspondência possibilitou, apesar da desconfiança, uma
aproximação das estimativas relacionadas ao impacto da doença. Francisco Pedro
Gurjão era governador do Estado do Maranhão e Grão-Pará (1747-1751) durante a
epidemia, e tinha ligação direta com Lisboa - fidalgo, Cavaleiro da Ordem de
Cristo e nomeado governador pelo rei D. João V. No trecho apresentado a seguir,
fica claro que o governador tentava convencer Lisboa da força do contágio do
sarampo. Nesse sentido, ele apostava numa suposta precisão dos dados, a qual
deparar-se-ia com limites metodológicos - quando comparados com os atuais
métodos de análise demográfica -, pois somente em fins do século XVIII foram
criados os pressupostos essenciais que orientariam os sistemas nacionais de
estatísticas nos países europeus (BANDEIRA,_2004, p. 39).
Apesar dos limites da contagem (por exemplo, não eram apresentados dados da
população total da capitania ou não se trabalhava com percentuais), o
governador Gurjão apostava nos números como ferramenta de convencimento acerca
do impacto do sarampo. Era evidente o confronto com intrigas políticas entre
colonos e religiosos, que tentavam manobrar por interesses próprios as
representações das consequências da doença:
Consta-me que houve quem com sinistras informações movido só de
conveniências particulares quis capacitar a Vossa Majestade de que o
Contagio não tinha sido com aquella vehemencia q Eu representava;
porem Senhor, como a minha obrigação, he muy separada do defeito de
encarecido entrey na deligencia de saber formalmente o numero de
pessoas que morrião [grifo nosso] [...] estou bem certo que todos os
Sugeitos que nesta matéria /como Eu/ falarem sem maiz paxão que a
verdade não são de diferir dessa conta em que procurey com toda a
exacção ser bem informado10
Segundo o governador, na cidade de Belém, contabilizavam-se 10.777 mortes nas
aldeias indígenas e nas fazendas dos religiosos. Somavam-se a esse número 7.600
índios que morreram de sarampo e estavam trabalhando para os moradores da
cidade. E ainda faltaria contabilizar as inúmeras fazendas da capitania e as
Vilas de Vigia, Bragança e Cametá, além das pessoas dispersas pelo "sertão"
[floresta]. E que "somando a todas hão delegar a quarenta mil".11
Esses dados ganharam ressonância na obra do jesuíta João Daniel, que assumiu a
estimativa de 30.000 índios mortos nas missões, como "testemunhou um
governador" (DANIEL,_1975, p. 283). Não foi uma contagem feita pelo próprio
João Daniel, mas sim dados que impregnaram a sua memória a partir dos números
levantados por Gurjão.
Ainda com base na contagem feita pelo governador Francisco Pedro Gurjão,
encontrou-se um número de mortos pelo sarampo restrito aos trabalhadores de
algumas das fazendas de religiosos, além dos escravos indígenas que estavam a
serviço dos moradores da dita cidade. Essa somatória foi chamada pelo próprio
governador de Resumo de Mortos, alcançando o total de 18.377.
Mas Gurjão extrapolou essa contagem e produziu uma estimativa, considerando o
alcance da epidemia em outras regiões da capitania. Ele apresentou à Coroa um
quadro geral mais assustador: 40.000 mortos. Essa informação parece pouco
confiável, pois mais da metade da estimativa apoiou-se em suposição, o que nos
fez descartá-la para efeito de análise quantitativa.
Em outra posição política, poder-se-ia encontrar um dos grupos que se
contrapunham a Gurjão, formado pelos vereadores da cidade de Belém. A Câmara de
vereadores se estabelecia no mundo colonial português enquanto força que,
muitas vezes, limitava a própria ingerência de Lisboa na execução das ordens
reais (BICALHO,_2003, p. 342). A tensão entre esse grupo e o governador, que
representava as diretrizes do Conselho Ultramarino, se dava em função da
solução para a crise de mão de obra instalada pelo sarampo: o governador havia
indeferido o pedido de permissão emergencial para apreensão de índios nos
sertões por meio da montagem de novas Tropas de Resgate. Para a Câmara de
Belém, a solução seria a intensificação da escravização indígena e a entrada de
escravos africanos. Pelo menos no discurso, Gurjão defendia somente a entrada
de braços africanos. Mas ambos concordavam quanto à alta mortalidade gerada
pela doença e aos números como instrumento comprovador desse impacto.
Trabalhar com dados produzidos por um grupo político opositor ao governador
significa, para a pesquisa, a possibilidade de problematizar a contagem
vinculada por Francisco Gurjão. Uma problematização feita à luz de seus
contemporâneos. Assim, em uma carta assinada pelos vereadores de Belém, na
tentativa de legitimar o pedido de formação de expedições para apreensão de
índios no sertão, os oficiais da Câmara da cidade sublinharam a ideia da
gravidade do impacto demográfico da epidemia. Um mês após o envio da carta do
governador Gurjão, eles continuavam reclamando e diziam que somente as Tropas
de Resgate não seriam suficientes:
A mayor parte dos Engenhos, e mais Fazendas se vem hoje despovoadas,
e como este remédio não seja ainda bastante para a reforma de tantos
milhares de escravos que parecerão nesta tão abominável peste rogamos
a Vossa Majestade se digne mandar algum navio de pretos para se
repartirem com os moradores [...]12
Para a análise quantitativa das mortes causadas pelo sarampo, essa carta tinha
um conjunto de dados de suma importância. Os vereadores anexaram à missiva uma
série de listagens elaboradas por diferentes administradores religiosos de
povoações indígenas, em que era especificada a quantidade de mortos pelo
sarampo em suas respectivas povoações. As listagens ajudam a minimizar eventual
hipertrofia do número de mortos e a manipulação política da epidemia, pois
foram produzidas por diferentes religiosos e enviadas entre 1748 e 1750, não
estando sob a tutela de um único administrador. Eram de diferentes formatos.
Algumas eram mais sintéticas, como a elaborada pelo prior de Nossa Senhora do
Monte do Carmo, em Belém: "certifico q´ da peste de sarampo faleceram trezentas
e doze pessoas entre homens, mulheres, rapazes e raparigas todas do gentio da
terra [índio] e do serviço das fazendas q´ tem este Convento".13 Outras
listagens eram bem mais detalhadas. O comissário do Carmo, visitador das
missões dos Rios Negro, Solimões, Cambebas e Japurâ afirmou:
q revendo os livros q servem da lista da gente de q consta haver nas
ditas missões achei ter falecido do contagio de sarampo e dezertado
por cauza do mesmo contagio agente seguinte: Nas aldeyas do Rio Negro
da aldeia de santo Elias do Jaú cento e trinta e oito pessoas entre
pequenos grandes e dezertados na Aldeya de Santa Rita da Pedreira
cetenta e oito mortos, dezertados vinte e três [...]14
Algumas listagens não se limitavam a pontuar os números de mortos, como no caso
daquela produzida pelo frei Apolinário da Natividade, que transcreveu o nome de
438 falecidos da Missão de Jesus do Igarapé Grande:
Da gente q falesceo do Contagio em esta Missão de Jesus do Igarapé
Grande [...] Hilavia, Jacoicá, Catherina, Domingos, Izidoro [...]
Certifico eu Missionário abaixo assignado q revendo o livro que nesta
Missão do Menino Jesus do Igarapé Grande serve dos defuntos digo dos
assentos dos defuntos nelle achei serem estes assima os q desde de
novembro de 1747 em q principiou o contagio nessa Missão apresenta
terem falecidos da vida prezente em fe do q mandei passar a presente
certidão por mim assignada [...] in verbo sacerdotis. Missão de Jesus
20 de agosto de 1750. Missionario Frei Apolinario da Natividade.15
Assim, as listagens se sucediam: ora com mais e ora com menos detalhes, mas
apresentando sempre a preocupação de quantificar o número de mortos pela
epidemia. O trabalho inicial da presente pesquisa foi transcrever todas as
listagens e tabular suas informações no software Excel, possibilitando
totalizar os mortos arrolados, o que incluía a delimitação por localidade. Em
alguns casos também eram vinculadas informações como nome, sexo e idade. Com os
dados tabulados, chegou-se à seguinte soma: 13.146 mortos, mais 392 desertados.
Um número bem diferente dos 40.000 apresentados pelo governador Francisco Pedro
Gurjão.
O problema é que, entre os lugares listados, não figurava a freguesia da Sé - a
mais populosa da capitania. O número de mortos na Sé foi encontrado em outro
documento, datado de 16 de maio de 1750 e anexado a um parecer do Conselho
Ultramarino acerca da crise de mão de obra no Grão-Pará, que arrolava 3.348
mortos.16 Somando-se os números das 80 listagens com os da freguesia da Sé,
tem-se um total de 16.494 mortos pelo sarampo.
Para além dos dados do governador Gurjão, dos vereadores de Belém e dos
religiosos responsáveis por cerca de 80 povoações indígenas, um memorialista
contemporâneo da epidemia vinculou a seguinte informação: "Dezejosos todos de
saberem o numero dos mortos, principiarão a extrahir memorias dos Reverendos
Parochos [...] com a mayor certeza, excede o numero de quinze mil mortos; sem
fazer lembranças dos Certoens, que como vivem incógnitos pela impenetrabilidade
dos matos, parece impossível fazer especifica memoria". Aqui cabe uma ressalva:
a memória referia-se ao período de maio de 1748 a outubro de 1749, deixando de
fora o resto do ano de 1749 e 1750. E ainda "exceptuando todos os escravos dos
Conventos, da Vigia, Cameta, como também das fazendas dos Rios Guamá, Guacará,
Moju, Majuaai, Capim, e outros muitos".17
TABELA 1 Números de mortos pelo sarampo, segundo diferentes fontes Grão-Pará -
1748-1750
Fontes Mortos
Estimativa do governador Francisco Pedro Gurjão 40.000
Resumo vinculado pelo governador Francisco Pedro Gurjão 18.377
Listagens produzidas a partir dos mortos das aldeias e povoaçõe16.494
Notícia do Verdadeiro Contágio (1748-1749) 15.000
Fonte: Projetos Resgate, Grão-Pará, documentos; 13/08/1750, 15/09/1750, 16/05/
1750 e “Noticia verdadeyra do terrivel contagio, que desde Outubro de 1748. ate
o mez de Mayo de 1749. tem reduzido a notavel consternaçaõ todos os Certões,
terras, e Cidade de Bellém, e Graõ Pará, extrahida das mais fidedignas
memorias” / [Manuel Ferreira Leonardo].
Assim, têm-se a estimativa de 40.000 do governador Gurjão, a somatória do
Resumo de Mortos que foi de 18.377, a quantificação a partir das listagens dos
religiosos que correspondeu a 16.494 mortos e a notícia dos 15.000 mortos entre
outubro de 1748 e maio de 1749. Para efeito de análise, consideraremos o menor
valor associado a todo o período da epidemia (1748-1750), que é de 16.494
mortos - antevendo a possibilidade de uso político, por parte de colonos e
administradores, da hipertrofia dos dados.
E o que significariam 16.494 mortos entre 1748 e 1750, quando comparados com a
população total da capitania do Grão-Pará?
Aqui temos um grande problema: ausência de dados acerca do total da população
da capitania do Grão-Pará nos anos da epidemia, o que nos obriga a trabalhar
com dados da população após 1750 - mais uma vez vale destacar que se trata de
um período em que a contagem da população não era regular e nem sob diretrizes
estatísticas bem definidas.
De acordo com o levantamento feito pelo historiador Robin Anderson, a maior
população indígena aldeada da capitania do Grão-Pará, entre 1770 e 1797, não
excedeu a 22.000 índios (ANDERSON,_1999). Esse dado foi corroborado por Mauro
Coelho_(2005), quando faz o levantamento dos índios aldeados entre 1773 e 1798.
Os dois autores se apoiam nos Mapas de População produzidos entre 1773 e
1798.18 Tal resultado significa que os mortos pelo sarampo (16.494)
representariam 75% da contagem da maior população indígena aldeada entre 1770 e
1797 (22.000).
Mas, para além dos Mapas de População, existem outras contagens, como o Rol dos
Confessados de 1765, que pode dar uma ideia do impacto populacional da
epidemia. Segundo esse levantamento, a população da capitania (excetuando-se os
menores de sete anos, quatro localidades e a capitania do Rio Negro)
contabilizava 33.654 pessoas.19 Assim, considerando-se os dados do Rol, os
mortos pelo sarampo equivaleriam a 49% da população total de 1765 (incluindo
livres e escravos).
Além da alta mortalidade do sarampo, destaca-se que a maioria esmagadora
atingida foi de índios - como a própria documentação cita. Mas esse
quantitativo deve ser relativizado, pois o alcance do sarampo não foi homogêneo
para toda a capitania, considerando-se espaço e tempo. Isso é o que será
discutido a seguir e, para tanto, retomam-se as listagens.
Relativizando o impacto
Das 80 listagens, apenas 16 distribuíram o número de mortos por ano. Nelas,
sistematicamente, o ano de 1749 apresentava-se como de maior intensidade de
mortes, embora também fossem mencionados os anos de 1748 e 1750. Houve
referência até mesmo a 1747, como o ano de início do contágio na Missão de
Jesus de Igarapé Grande, onde no total faleceram 438 índios. Mas 1749 foi o ano
em que mais morreram índios acometidos pelo sarampo. Na listagem da Aldeia de
Mortigura, por exemplo, foram indicados 149 índios mortos, sendo 34 homens, 52
mulheres e 63 inocentes (menores de sete anos). Desse total, apenas quatro
homens, seis mulheres e cinco inocentes morreram em 1750, enquanto os demais
faleceram em 1749. Em Sumauma também houve maior concentração de mortos em 1749
(94 índios). Dos 36 homens falecidos, seis morreram em 1750, dois em 1748 e os
demais em 1749.
Além dos anos, há a possibilidade de observar os meses de maior ocorrência de
mortes. Alguns religiosos administradores das localidades não apenas informavam
o número de óbitos, mas também os respectivos nomes dos índios, ano e mês dos
falecimentos. Predominantemente, a maior incidência de morte ocorria em
janeiro, fevereiro e março. Tais meses são marcados com as chuvas de "inverno"
na Amazônia, sendo o segundo semestre do ano o período de menor intensidade
pluviométrica. Ou seja, a sazonalidade das mortes intensificou-se não apenas no
ano de 1749, mas também nos meses de chuva - especialmente janeiro e fevereiro.
Isso em parte pode ser explicado pela maior concentração de índios em espaços
fechados, o que facilitaria a difusão do vírus.20
Como dito anteriormente, os detalhes das listagens permitem pensar a
heterogeneidade do alcance da epidemia: de um lado, tem a questão da
sazonalidade, que elege ano e meses específicos para a intensificação no número
de mortos; de outro, existe a questão espacial, pois a epidemia não atingiu o
vasto território do Grão-Pará de uma mesma forma. Apesar de muitas vezes não
haver acesso ao total da população da localidade, é possível perceber num
rápido olhar a heterogeneidade do impacto da epidemia.
No Resumo dos Mortos foi registrado o número de índios falecidos (7.600) que
serviam aos moradores da cidade de Belém. Nas aldeias da Companhia de Jesus,
ainda de maneira mais geral, foram indicados 3.363 óbitos. Nas aldeias de Nossa
Senhora do Carmo, o número de mortos foi de 2.308. Nas listagens produzidas
pelos religiosos, que possibilitam observar de maneira específica as aldeias,
têm-se, por exemplo, Grupatuba, com 550 índios falecidos, Nossa Senhora de
Caia, com 398 mortos, e Santa Elizeu do Maricuá, com 372 óbitos.
Algumas listagens apresentavam centenas e até mesmo milhares de mortos, mas
outras não ultrapassavam dezenas: missão de Pauxi, com três índios mortos;
Nossa Senhora do Carmo do Camara (no Rio Negro), com 19 mortos; Santo Antonio
do Castelinho (no Rio Negro), com 20 óbitos; Santo Antonio de Inajatiba, com 18
falecimentos; São Joaquim da Caviana, com 16 mortos; Garapiranga, com 19
óbitos; e Nossa Senhora do Carmo do Camará, com 17 mortos. Esses números
mostram a diferenciação do alcance da epidemia.
Embora, na maioria das vezes, não se teve acesso à população total das aldeias,
o número de falecimento aponta para o fato de que algumas localidades sofreram
mais com a mortalidade causada pelo sarampo.
Das 80 listagens, nove indicaram a população total, possibilitando observar que
morreram 27% dos índios no Convento de Santo Antonio, 71% no Convento de
Gurupá, 52% no Hospício de São José de Belém, 31% em São Joaquim da Caviana,
30% em Acarapy, 41% em Nossa Senhora da Conceição das Mangabeiras, 58% em São
Francisco das Goyanazes, 66% em São Francisco de Caya, e 60% em Nossa Senhora
do Igarapé Grande. Aqui também é possível reforçar a ideia de uma
heterogeneidade do alcance da epidemia, mesmo considerando o número total da
população das aldeias e lugares.21 Observa-se, ainda, que Nossa Senhora da
Conceição das Mangabeiras, São Francisco das Goyanazes, São Francisco de Caya e
Nossa Senhora do Igarapé Grande eram aldeias da Província do Marajó. Ou seja,
numa mesma região, como o Marajó, verificam-se diferenças no impacto da
mortalidade da epidemia.
Esses dados ajudam a problematizar a existência de uma razão constante de
mortalidade do sarampo na população autóctone da Amazônia e, ao mesmo tempo,
revelam um dos limites da presente análise: não foram explorados os fatores que
interferiram na produção de diferenciados percentuais de mortos.
Assim, entre 1748 e 1750, a capitania do Grão-Pará foi palco de uma epidemia de
sarampo, que deixou um rastro de mortes e uma memória do desespero. A alta
mortalidade imposta pela doença atingiu fundamentalmente a população indígena,
como aponta a documentação pesquisada. Aliás, deve-se destacar que epidemias de
sarampo e varíola não eram novidades na Amazônia e, em geral, tinham maior
difusão entre os índios. No entanto, a propagação da epidemia não alcançou a
região de maneira homogênea, apresentando variações nos meses, anos e no número
de mortos em diferentes povoações indígenas. Concomitantemente, o então
governador do Estado do Maranhão e Grão-Pará e os vereadores da cidade de Belém
exigiam da Coroa uma solução para o principal efeito da epidemia: crise na
oferta de mão de obra.
Os africanos
Desde meados do século XVII, moradores do Estado do Maranhão reivindicavam a
entrada de escravos negros. As justificativas para o pedido eram duas. A
primeira estava relacionada à solução do problema da escravização e do uso da
força do trabalho indígena, o que constantemente opunha de um lado os moradores
e do outro os religiosos, em especial os jesuítas. A segunda justificativa
estava atrelada à solução das demandas e da qualidade da mão de obra, em que o
Brasil açucareiro emergia como referência (CHAMBOULEYRON,_2004, p. 102).
Entretanto, mesmo aparecendo como uma possibilidade de mão de obra, a
escravidão africana foi utilizada de maneira incipiente ao longo do século
XVII, o que se deveu, em parte, à própria condição econômica dos moradores, que
não tinham recursos para adquirir escravos (CHAMBOULEYRON,_2004, p. 102). A
mudança nessa tendência aconteceu no reinado de D. José I.
A Coroa mantinha-se informada acerca da mortalidade causada pelo sarampo e
tinha clareza que a epidemia poderia afetar a organização da utilização da mão
de obra indígena e exigir a inserção de outros grupos de trabalhadores,
notadamente os escravos africanos. Isso fica claro na instrução secreta que o
novo governador do Maranhão, Francisco Mendonça Furtado (irmão do Marquês de
Pombal), recebeu diretamente do rei de Portugal: "a Epidemia que matou tantos
Indios, os anos passados; dá occasião a mudarem de método, e facilitar-se a
pratica do que vos acima aponto, com o qual os Indios possão gozar da sua
liberdade nos poucos que Restão daquele grande contagio". Ainda segundo o
monarca, a ocasião era para efetivar o combate aos "excessos" na escravização
indígena. Ele reforçava que a liberdade dos indígenas já havia sido matéria de
"varias leys pelos Senhores Reys meos Predecessores". Era necessário persuadir
os moradores do Estado do Maranhão e Grão-Pará "a que se sirvam de Escravos
Negros".22
Em geral a documentação produzida na época aponta para aceitação do impacto da
mortalidade da epidemia e a necessidade de medidas que atenuassem a crise de
mão de obra por ela instalada. Nos dois lados do Atlântico, moradores e
autoridades reivindicavam mais "braços" para combater a decadência que assolava
a produção do Estado do Grão-Pará e Maranhão.
Entretanto havia tensão a respeito do projeto que deveria pautar a solução da
demanda de mão de obra. De um lado postavam-se o rei D. José I, o Conselho
Ultramarino, o Marquês de Pombal e o seu irmão. Esse grupo apostava numa
"solução externa", ou seja, que significaria a inserção de escravos vindos da
África. A proposta pautava-se na criação de uma Companhia de Comércio do Grão-
Pará e Maranhão, financiada pelo capital privado, que deveria fomentar o
tráfico negreiro para a Amazônia (SOUSA_JR.,_2012, p.157-8; CARREIRA,_1969).
O outro projeto era defendido, na maioria das vezes, sob o anonimato, pois iria
de encontro às determinações reais. Essa proposta apontava para uma "solução
interna", ou seja, na ratificação da escravidão indígena, apoiando-se na
autorização e financiamento de Tropas de Resgate e no combate aos mocambos -
abrigos de muitos índios que fugiram das roças dos moradores. A argumentação
desse grupo baseava-se no limite de oferta de escravos africanos, no custo de
aquisição e manutenção desses escravos e na inexperiência que teriam na lida
com a rotina produtiva da Amazônia.
O impacto do sarampo na organização econômica da capitania do Grão-Pará já
havia sido mencionado pelo governador Francisco Pedro Gurjão, em abril de 1749,
quando solicitou a intervenção da Coroa para solucionar a crise de mão de obra.
No esforço de convencimento, o governador Francisco Pedro Gurjão apresentava ao
Conselho Ultramarino as repercussões diretas da ausência de mão de obra: a
diminuição das "rendas de Sua Magestade" e "potencias estrangeyras, q´se
poderão aproveytar da debilidade das nossas forças para se animarem a algum
projecto q´perturbe a nossa conservação".23 Para evitar a "ruína" da capitania
do Grão-Pará, incluindo a possibilidade de uma invasão estrangeira, o próprio
governador apontava uma solução:
fazer neste anno, e nos tres ou quatro seguintes alguas carregaçoens
de escravos da Costa da Mina, Guiné, e Ilhas de Cacheu, com ordem de
serem nestas Capitanias despendidos pelos Moradores à proporção das
Sua Lavouras, e necessidade, ficando obrigados as que os receberem a
pagar logo o custo à Real Fazenda tendo cabedal pronto, e os q´ não
tiverem Hypothecarem as próprias fazendas ao tal pagamento.24
Entretanto, Francisco Pedro Gurjão não acreditava na solução por ele mesmo
apontada. Em carta ao secretário Pedro Francisco da Encarnação, o governador
Gurjão diz textualmente que mentiu: "na dita carta não fallo em Tropa [de
Resgate], por q sey que no Conselho [Ultramarino] falarse hoje nesta matéria
he, além de infrutífera deligencia, arriscar muito o credito, pois entendem que
so serve para utilidade dos q governão, e por esta cauza só aponta o meyo dos
prettos da Costa da Mina".25
Em suas próprias palavras, o governador mentiu deliberadamente para o Conselho
Ultramarino não em relação ao impacto da epidemia de sarampo, mas sim quanto à
solução para a crise de mão de obra por ela causada: ratificou a estimativa de
40.000 mortos. Ele também afirmou que omitiu deliberadamente o fato de apoiar a
intensificação das Tropas de Resgate como solução para a demanda de "braços". E
o fez, ainda segundo ele, para não abalar sua imagem diante do Conselho
Ultramarino - que combatia a escravidão indígena e fomentava a africana.
Continuando sua argumentação, ele afirmava que a medida adotada pela Coroa não
resultaria em solução, pois o número de africanos seria insuficiente para
atender a todos os moradores e pelo fato de que alguns serviços somente os
índios eram capazes de executar.26 Defensor da solução interna, Francisco Pedro
Gurjão reforçava sua argumentação afirmando que somente as Tropas de Resgate
poderiam por fim às incursões dos holandeses no sertão do Rio Negro.
A mentira e o anonimato eram formas de proteção contra possíveis punições
impostas pela Coroa àqueles que se posicionassem contra seu projeto. Uma carta
anônima, escrita provavelmente no primeiro ano de governança de Mendonça
Furtado, apontava que a solução do rei era "inapropriada". O autor se coloca
permanentemente contra a vinda de africanos e diz que a proibição das Tropas de
Resgate só piorava a situação da capitania: primeiro, pelo preço e quantidade
de escravos africanos necessários, que não dariam para atender à demanda de
todos os moradores; e segundo, porque "os pretos não servem mais que para
trabalharem com hua fouce, e machado dandolhe bem de comer, por não terem
habilidade para caçar, e pescar, como fazem os tapuyas para sy, e seus
senhores, q estando nas suas fazendas se sustentão e toda família de peyxe e
caça".27 A experiência que os índios tinham na lida diária da capitania
aparecia como grande trunfo para a autorização das Tropas de Resgate. Os
africanos teriam um custo de manutenção e não poderiam sustentar os moradores
com peixe e caça. Ainda no primeiro ano das atividades da Companhia de Comércio
do Grão-Pará e Maranhão (1756), já se fazia necessário normatizar os preços e a
distribuição dos escravos africanos vendidos na praça de Belém, pois havia
conflitos que envolviam a aquisição de escravos africanos e os moradores da
cidade.28
Solução externa versus solução interna; qual foi o resultado do confronto entre
os dois projetos? Para responder a essa pergunta devem ser consideradas a
criação da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, a legislação que
regulava o uso do trabalho indígena (Diretório) e a entrada de escravos
africanos até 1778, ano da liquidação da Companhia de Comércio. Mas isso não
basta: é necessário ponderar acerca da distribuição de escravos africanos na
capitania do Grão-Pará. Os números apontam para algumas localidades onde a
escravidão africana se tornou presente e efetiva, mas também indicam outras
regiões onde a mão de obra continuou a ser essencialmente indígena.
A média anual de escravos que entraram no Grão-Pará, entre 1680 e 1698, foi de
47 cativos, diminuindo para menos de 25 escravos entre 1702 e 1755. Essa média
aumentou significativamente com a criação da Companhia de Comércio do Grão-Pará
e Maranhão, passando para 801 cativos por ano entre 1756 e 1778, o que
representou um novo patamar no volume de escravos africanos inseridos na
capitania (BEZERRA_NETO,_2012, p. 49; CHAMBOULEYRON,_2004, p. 102).
Mas aqui é necessário chamar a atenção para um ponto: não se pode considerar o
impacto populacional da escravidão africana de maneira homogênea. Mesmo
analisando apenas os escravos introduzidos pela Companhia, emerge o problema da
distribuição de africanos ao longo do tempo. Entre 1756 e 1778, o abastecimento
variou por ano. Partindo do total de 17.627 africanos introduzidos pela
Companhia, há uma grande variação ao longo do tempo: por exemplo, em 1769
entraram apenas 181 escravos; já em 1762 a entrada foi de 2.005 africanos
(BEZERRA_NETO,_2012, p. 210-213). Isso pode evidenciar uma oscilação no
abastecimento, criando variações demográficas ao longo do período da atuação da
Companhia: 2.005 escravos significavam um contingente superior à população
total da maior parte das vilas do Grão-Pará.
Outro aspecto que pode ser destacado é a distribuição espacial dos escravos
africanos, tendo como referência a contagem populacional do Grão-Pará de 1777,
pois foi a contagem de população mais próxima do fim das atividades da
Companhia. Nela, a freguesia da Sé de Belém aparece com 2.000 escravos
distribuídos em 547 fogos, criando uma média aproximada de quatro escravos por
fogo (domicílio). E mais, se comparada com a população de livres (excetuando os
índios) de 4.612 pessoas, tem-se uma média de dois livres para um escravo. Em
outras freguesias essa proporção ganha novos contornos. A vila de Cametá, às
margens do Rio Tocantins e notadamente marcada pela presença da agricultura e
de Engenhos, tinha 4.120 livres (excetuando os índios) para 1.192 escravos,
numa proporção superior a três livres por um escravo.
Ainda segundo o mesmo Mapa de População do ano de 1777, das 75 freguesias e
lugares,29 18 povoações não possuíam nenhum escravo e 15 tinham menos de dez
escravos. Todas as 22 "povoações de brancos" apresentavam um número superior a
dez escravos, embora entre elas houvesse uma variação de 2.000 escravos para a
Sé e 27 para Bujarú. Tais diferenças devem considerar o modelo produtivo da
região e o poder econômico e político dos proprietários, além da intensidade do
impacto do sarampo e da disponibilidade de índios para o trabalho.
Fortalecendo o argumento da variação espacial de distribuição da escravaria,
pode-se considerar a freguesia de Nova Mazagão (no atual Amapá). Esta
localidade atrelou seu desenvolvimento populacional à agricultura, em especial
ao arroz, e teve como um dos principais obstáculos para o aumento da produção a
oferta de mão de obra: "a flutuação maior foi de índios destribalizados que
chegavam a representar 80% dos trabalhadores" (MARIN,_2005, p. 89-90). A
freguesia vizinha, Macapá, tinha uma menor dependência da força de trabalho
indígena: embora tivesse menos "cabeças de família" que Mazagão, possuía 50% a
mais de escravos adultos. E ainda, apenas metade dos colonos se beneficiava de
escravos e créditos ofertados pela Companhia, o que, na prática, significava um
conjunto de desigualdades relacionadas ao lugar político entre colonos, a
dinâmica produtiva de freguesias vizinhas e a própria distribuição da
escravaria africana - seja entre freguesias, seja entre colonos (MARIN,_2005,
p. 89-90).
Assim, é possível pensar inicialmente que, entre 1757 e 1777, o Estado do Grão-
Pará e Maranhão assistiu a um novo movimento populacional: a entrada de
africanos por meio da Companhia de Comércio trouxe um número significativo de
escravos para a Amazônia. Mas aqui não se deve sucumbir ao erro de considerar
essa mudança homogênea.
Considerações finais
Entre 1748 e 1750, a capitania do Grão-Pará foi assolada por uma epidemia de
sarampo. A intensidade da doença foi traduzida na morte de mais de 16 mil
índios na região. Sendo o indígena a principal força de trabalho utilizada
pelos moradores (colonos), religiosos e administradores locais, a alta
mortalidade significou a intensificação do conflito histórico acerca do
controle da mão de obra na Amazônia.
O esforço de efetivar uma solução para a carência de trabalhadores e as tensões
políticas internas entre colonos, religiosos e administradores matizaram dois
projetos. O primeiro buscava intensificar a exploração e escravização dos
índios. O segundo baseava-se na inserção do trabalho escravo africano, por meio
do tráfico negreiro fomentado pela criação da Companhia de Comércio do Grão-
Pará e Maranhão.
A análise dos Mapas de População dos anos finais do reinado de D. José I
mostrou, como resultado dessa disputa, a vitória (ou derrota) pontual dos dois
projetos. Ou seja, para algumas localidades da imensa capitania do Grão-Pará, a
presença de escravos africanos aumentou significativamente, enquanto para
outras vilas ou povoações, mesmo após a epidemia de sarampo e da criação da
Companhia de Comércio, a escravidão africana continuava insipiente ou nula.
1A partir de 1751 o Estado do Maranhão e Grão-Pará, cuja capital era São Luiz,
passa a ser chamado de Estado do Grão-Pará e Maranhão, capital Belém. Não foi
apenas uma mudança de nome, mas também uma valorização administrativa do Grão-
Pará.
2Biblioteca Nacional de Portugal. Noticia verdadeyra do terrivel contagio, que
desde Outubro de 1748. ate o mez de Mayode 1749. tem reduzido a notavel
consternaçaõ todos os Certões, terras, e Cidade de Bellém, e Graõ Pará,
extrahida das mais fidedignas memorias / [Manuel Ferreira Leonardo].
3Biblioteca Nacional de Portugal. Noticia verdadeyra do terrivel contagio, que
desde Outubro de 1748. ate o mez de Mayode 1749. tem reduzido a notavel
consternaçaõ todos os Certões, terras, e Cidade de Bellém, e Graõ Pará,
extrahida das mais fidedignas memorias / [Manuel Ferreira Leonardo].
4Biblioteca Nacional de Portugal. Noticia verdadeyra do terrivel contagio, que
desde Outubro de 1748. ate o mez de Mayode 1749. tem reduzido a notavel
consternaçaõ todos os Certões, terras, e Cidade de Bellém, e Graõ Pará,
extrahida das mais fidedignas memorias / [Manuel Ferreira Leonardo].
5Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal, Projeto Resgate, Capitania do Grão-
Pará, 13 de agosto de 1750, fl. 1.
6Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal, Projeto Resgate, Capitania do Grão-
Pará, 13 de agosto de 1750, fl. 1.
7Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal, Projeto Resgate, Capitania do Grão-
Pará, 16 de maio de 1750.
8O autor afirma que: "se le popolazioni del Grande Fiume [rio Amazonas]
rappresentano um inferno -o um purgatório- per il demógrafo, esse sono um
paradiso pel l’antropologo." (LIVI-BACCI,_2012, p. 143). Isso em parte se
justifica peladispersão da população em um vasto território, pela fluidez na
definição de grupos e pela pouca instrumentação da épocapara produzir contagens
mais confiáveis.
9Tropas de Resgates eram expedições militares que visavam negociar com algumas
tribos aliadas índios que haviam sido presos em guerras intertribais, os
chamados "índios de corda". Com o passar dos anos, tais tropas eram
simplesmente de apreensão de índios dispersos na floresta, fossem ou não
"índios de corda".
10Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal, Projeto Resgate, Capitania do
Grão-Pará 13 de agosto de 1750.
11Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal, Projeto Resgate, Capitania do
Grão-Pará 13 de agosto de 1750.
12Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal, Projeto Resgate, Capitania do
Grão-Pará, 15 de setembro de 1750.
13Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal, Projeto Resgate, Capitania do
Grão-Pará, 15 de setembro de 1750
14Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal, Projeto Resgate, Capitania do
Grão-Pará, 15 de setembro de 1750.
15Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal, Projeto Resgate, Capitania do
Grão-Pará, 15 de setembro de 1750.
16Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal, Projeto Resgate, Capitania do
Grão-Pará, 16 de maio de 1750.
17"Noticia verdadeyra do terrivel contagio, que desde Outubro de 1748. ate o
mez de Mayo de 1749. tem reduzido a notavel consternaçaõ todos os Certões,
terras, e Cidade de Bellém, e Graõ Pará, extrahida das mais fidedignas
memorias" / [ManuelFerreira Leonardo].
18Estes Mapas de População marcam o primeiro esforço de contagem regular da
população da América portuguesa, onde o Estado do Grão-Pará e Maranhão ganhou
papel de destaque, com uma incipiente contagem em 1772 e uma mais bem
estruturada em 1773.
19Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal, Projeto Resgate, Capitania do
Grão-Pará, 30 de novembro de 1765. A contabilização foi feita a partir do Rol
dos Confessados e excluía os seguintes lugares: Marajó, N. Sra. da Conceição da
Cachoeira, Vila de Oeiras, São José de Macapá e a capitania do Rio Negro.
20Um estudo acerca da relação da propagação do sarampo e a pluviosidade, feito
na década de 1940, mostrou que os meses de chuvas da cidade de Belém (janeiro-
abril) corresponderiam a 40,5% das ocorrências de sarampo do ano inteiro, dando
maior destaque, enquanto fator principal de aumento de contágio, ao ajuntamento
de indivíduos num mesmo espaço (BARRETO,_1948, p. 732).
21Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal, Projeto Resgate, Capitania do
Grão-Pará, 15 de setembro de 1750.
22Biblioteca Nacional de Portugal, Coleção Pombalina, F.348, 30 de maio de
1751.
23Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal, Projeto Resgate, Capitania do
Grão-Pará, 26 de abril de 1749.
24Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal, Projeto Resgate, Capitania do
Grão-Pará, 26 de abril de 1749.
25Arquivo Nacional da Torre do Tombo/Portugal, Ministério do Reino, maço 597,
Doc. 02.
26Arquivo Nacional da Torre do Tombo/Portugal, Ministério do Reino, maço 597,
Doc. 02.
27Arquivo Nacional da Torre do Tombo/Portugal, Ministério do Reino, maço 597,
Doc. 03.
28Biblioteca Nacional de Portugal, Coleção Pombalina, F.321, f. 178. Testemunho
do bispo Miguel de Bulhões, que substituiu Mendonça Furtado enquanto este
viajava para a capitania do Rio Negro.
29Incluindo Nova Mazagão e lugares de índios anexos a Bragança, Ourém e Gurupá.