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BrBRHUHu0002-05912012000100004

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National varietyBr
Year2012
SourceScielo

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A experiência afro-americana numa perspectiva comparativa: a situação atual do debate sobre a escravidão nas Américas

Gostaria de retomar um tema que tem sido muito negligenciado nas discussões recentes sobre a diáspora africana nas Américas, que é a comparação das diferenças e semelhanças entre os regimes escravistas e sua influência na integração pós-abolição de africanos e afro-americanos. Este é um tema que remonta aos primeiros estudos modernos sobre africanos nas Américas. De Fernando Ortiz, em Cuba, a Nina Rodrigues, no Brasil, verificou-se, em geral, uma percepção entre os estudiosos latino-americanos de que houve diferenças na forma como os africanos foram integrados nessas diversas sociedades.1 Estudiosos norte-americanos, como Donald Pierson, Frank Tannenbaum, Stanley Elkins e Carl Degler, tentaram colocar a experiência dos Estados Unidos nesse quadro comparativo.2 Durante algum tempo, entre as décadas de 1940 e 1970, verificou-se que a análise comparativa ensejou algumas interessantes questões e debates sobre instituições, culturas e organizações sociais.3 Mas esse debate desapareceu com a rejeição dos estudos comparativos na historiografia norte- americana, por um lado, e, por outro, com a concentração da historiografia latino-americana em detalhados estudos locais. Ambos os movimentos negligenciaram o retorno à questão comparativa.

No passado, para os autores latino-americanos, o duro racismo dos Estados Unidos, no período pós-escravidão, resultara de um regime escravista mais restritivo do que outros nas Américas. O modelo bir-racial encontrado nos Estados Unidos, o sistema legal racista extremamente severo do século XIX, a que Ortiz se referiu como a "lei de ferro da escravidão",4 a duradoura hostilidade para com os negros libertos e sua marginalização entre as pessoas livres, no sul do país, na era segregacionista, foram tomados no sentido de que os Estados Unidos seriam diferentes da maioria das sociedades latino- americanas. Isso não quer dizer que esses autores não reconhecessem o racismo inerente a todos os sistemas pós-escravistas nas Américas, mas que consideravam os Estados Unidos como um caso à parte.

Quase tanta hostilidade quanto a norte-americana em relação ao ex-escravo e sua condição de livre pode ser percebida nas leis das colônias e estados do norte e do sul dos Estados Unidos desde o século XVIII. Nenhum estado do sul, e apenas alguns do norte, permitia o voto de libertos no século XIX.5 A maioria dos estados do norte e do sul proibia liberto(a)s de se casarem com branco(a)s e dissolvia qualquer tipo de organização negra que porventura surgisse.6 Além disso, todos os estados adotaram a regra de um quarto de sangue se um dos avós fosse negro ou mulato, a pessoa seria mulata , e todos os mulatos eram tratados da mesma forma que os negros. Libertos (mulatos ou negros) não podiam atuar como testemunhas em processos judiciais envolvendo brancos,7 eram severamente punidos por atacar brancos, e em diversos tipos de crimes eram tratados como escravos e podiam até ser chicoteados. Finalmente, como os escravos, receberiam a pena capital pelo estupro de mulher branca.8 Muitos estados exigiam a saída de escravos recém-libertos dos seus territórios,9 e a maior parte do sul e alguns estados do norte proibiam sua migração de outros estados.10 Alguns proibiram, ainda, o retorno de quaisquer libertos neles nascidos se os tivessem deixado por qualquer motivo.11 Ainda em meados do século XVIII apareceram as primeiras limitações severas à emancipação (Virgínia proibiu todas as alforrias particulares entre 1723-1759), e até mesmo a primeira de muitas proibições temporárias, mas totais, de alforria;12 e todos os estados do sul, progressivamente, tornaram a concessão da liberdade mais difícil, exigindo dispendiosos processos nos tribunais, e muitos estados proibiram a qualquer proprietário conceder alforrias post-mortem.13 Alguns estados, como Geórgia em 1801, Mississipi em 1805, Carolina do Sul em 1820, e Virgínia em diversos períodos, foram tão longe a ponto de exigir que somente os deputados locais pudessem aprovar qualquer ato de liberdade, subtraindo este poder totalmente das mãos dos senhores. Houve estados do sul que proibiram aos libertos até mesmo o acesso ao ensino público ou a pregar uma religião.14 Ao longo do século XIX, eles foram cada vez mais limitados na sua mobilidade profissional, com restrições às atividades econômicas que podiam desenvolver. Em 1860, a Carolina do Sul chegou a exigir que negros livres usassem distintivos gravados com seus nomes, ocupação e um número de registro.15 Ao examinar essas leis, que se tornaram cada vez mais draconianas depois de 1800, um estudioso concluiu que os brancos tinham empurrado os negros livres para um lugar de permanente inferioridade jurídica. Como os escravos, os negros livres ficaram, em geral, sem direitos políticos, foram impossibilitados de se deslocar livremente, proibidos de depor contra os brancos, e muitas vezes foram punidos com o chicote.16 A severidade dessas leis foi reconhecida até mesmo por estudiosos norte- americanos, mas sua relevância para uma análise comparativa foi rejeitada. Os ataques, após os anos setenta, à escola comparativa vieram de acadêmicos dos Estados Unidos que, enquanto celebravam o "excepcionalismo" da história do país em outras áreas, o negaram no caso da escravidão. O trabalho de Eugene Genovese foi crucial neste contexto. Seu argumento foi de que os duros códigos legais não expressavam a verdadeira natureza do sistema escravista, que teria sido na verdade atenuado pelo paternalismo num regime que pouco se diferenciou do de outras sociedades escravistas nas Américas.17 Outros estudiosos, como C. Van Woodward, argumentariam que o crescimento demográfico natural da população escrava nos Estados Unidos, contra um decréscimo nas sociedades escravistas no resto das Américas, era clara evidência de que o tratamento dado aos escravos foi melhor nos Estados Unidos e que, portanto, as sociedades latino-americanas tiveram um sistema escravista mais severo.18 Mas, a existência daquelas leis nos estados do Sul deve ser explicada, e elas de fato significaram muito sobre a realidade das ideias, crenças e ações. Elas realmente tiveram um profundo impacto na definição da posição das pessoas livres negras nas sociedades americanas que emergiram da escravidão. O argumento demográfico, do melhor tratamento, desaparece quando as variações de mortalidade e fecundidade são examinadas. Ambos, brancos e negros, no resto das Américas, tiveram padrões de mortalidade e fertilidade diferentes dos norte- americanos. Ademais, a intensidade do tráfico atlântico de escravos e seu impacto sobre a idade e o sexo de africanos desembarcados, juntamente com as diferentes condições de saúde e variadas práticas de aleitamento, influenciaram a mais baixa fertilidade e a maior mortalidade dos escravos fora dos Estados Unidos, o que teve pouco a ver com o "melhor" ou "pior" tratamento da população escrava.19 A escravidão foi torpe e brutal em todas as sociedades, e o trabalho arrancado de todos os escravos em toda parte foi duro e muito mais exigente do que se exigiu de trabalhadores assalariados livres. Foi também em geral arrancado, indiscriminadamente, pelo uso de castigos corporais.

Esta falsa concentração no suposto "melhor" ou "pior" tratamento aos escravos tirou o foco das instituições e as práticas sociais e econômicas e levou a uma rejeição total da escola comparativa como um modelo viável de debate historiográfico, pelo menos na historiografia norte-americana. Exceto pelas tentativas de lidar com "comunidade escrava" numa perspectiva comparativa,20 poucas novas discussões sobre este tema, com a assunção pela maioria dos estudiosos na América do Norte de que todos os sistemas escravistas foram iguais e que, de algum modo, os latino-americanos foram "piores".21 Eu argumentaria que, de fato, existiram importantes diferenças entre os regimes escravistas nas Américas, e essas diferenças tiveram importantes consequências sociais, econômicas e políticas para as populações afro-americanas. Vamos iniciar esta análise comparativa examinando o que é semelhante em todos eles.

Para começar, quase todos os principais sistemas escravistas criados nas Américas tiveram a mesma finalidade econômica. Num mundo onde a terra era barata e o trabalho era caro, e para onde o trabalhador europeu não se sentiu atraído pela realidade salarial americana, os africanos foram utilizados como a alternativa mais barata de força de trabalho. Mas, devido ao seu ainda elevado custo, os africanos eram geralmente associados, na maioria dos casos, aos setores mais avançados de exportação, produzindo, nas sociedades em pauta, para um mercado mundial. A única variação importante nesse modelo foi a escravidão mais doméstica e urbana praticada pelos espanhóis nas regiões fortemente ameríndias, onde os africanos ficaram concentrados no serviço doméstico, e a produção artesanal de bens para consumo e a exportação era feita pelos indígenas. Escravos africanos foram usados em algumas atividades mineradoras, na maioria ouro e cobre, mas em geral as minas de prata foram tocadas, exclusivamente, com o trabalho indígena.

Com exceção do Caribe inglês e das Antilhas francesas, quase todas as principais sociedades escravistas pareciam iguais, com cerca de um terço de sua população constituída por escravos e outro terço por pessoas livres que possuíam escravos. Embora a maioria dos senhores tivesse apenas um escravo, a norma da propriedade escravista era da ordem de cinco a dez escravos por proprietário, e seu tamanho médio no setor agrícola-exportador era de aproximadamente 50 a100 escravos. Foram as ilhas açucareiras não-hispânicas que se destacaram como diferentes, com uma maioria da sua população escravizada em propriedades agrícolas com várias centenas de escravos.22 Mas houve pouca diferença na organização do trabalho escravo nas lavouras de exportação. Todas elas, independentemente do seu produto ou tamanho, organizaram o trabalho de forma semelhante. Os trabalhadores eram agrupados com base na idade e capacidade física, independentemente do sexo. Esses grupos de trabalho rural eram supervisionados por feitores que administravam as tarefas rotineiras com o uso de chicotes, criando as chamadas "fábricas no campo", um tipo próprio de organização do trabalho. Nesses grupos, mulheres e homens, igualmente, executavam as tarefas básicas do plantio, manutenção e colheita das culturas. Além do campo, todos tinham algum trabalho a fazer alhures, não importando a idade ou o sexo. Esses sistemas de trabalho escravo foram incomuns, com uma população economicamente ativa maior do que todas as populações trabalhadoras da época, na ordem de 80% de todos os escravos ocupados todo o tempo em alguma função econômica, em comparação com os cerca de 50-60% entre a maioria dos camponeses das sociedades de então.23 Havia, é claro, diferenças nos regimes agrícolas baseadas na tecnologia de produção. O açúcar teve um regime de trabalho mais duro para os escravos do que o café, as lavouras que tinham três safras anuais exigiam mais trabalho do que aquelas que tinham duas ou menos, e assim por diante. Algumas culturas, como o açúcar, necessitavam de uma grande quantidade de trabalho técnico e outras, como o tabaco e o café, demandavam poucas tarefas especializadas para chegar ao produto final, e isso influenciaria os níveis relativos de qualificação na população escrava. Todos os regimes tenderam a reservar o trabalho qualificado nas plantações para os escravos do sexo masculino, embora no trabalho fora das plantações as mulheres escravas realizassem uma grande variedade de atividades qualificadas, sendo especialmente importantes no setor têxtil e no comércio.

Esses regimes de trabalho servil rural, portanto, compartilham características comuns em todas as sociedades, e um viajante do século XIX teria notado pouca diferença, exceto nas rotinas de execução das tarefas, nas plantações de qualquer lugar nas Américas.

Embora o trabalho em grupo e a disciplina dos escravos fossem semelhantes em toda parte, ainda algumas importantes diferenças econômicas entre esses regimes escravistas. O nível de habilidade e a disponibilidade de tais ocupações qualificadas para os escravos muitas vezes dependia da relativa escassez ou da oferta da mão de obra branca ou indígena. Se os negros e os mulatos, livres e cativos, fossem maioria entre trabalhadores em uma dada sociedade, eram frequentemente melhor treinados para as tarefas que exigiam habilidades, do que nas sociedades onde havia a concorrência de artesãos brancos. Nessas sociedades, que não tinham a concorrência de grandes grupos de trabalhadores brancos, índios ou mestiços livres, e que podiam importar um grande número de africanos, era mais comum encontrar escravos em muito mais ocupações do que naquelas em que havia mais competição de trabalho não-negro. O Brasil, é claro, destaca-se como um ótimo exemplo onde os cativos podiam ser encontrados em praticamente todas as ocupações e em todos os níveis de habilidade. Havia até escravos marinheiros afro-brasileiros e africanos nas tripulações de navios indo para a África para adquirir escravos.24 Mas em todos os centros urbanos da América Latina, desde o século XVI até o início do XIX, afro-latino-americanos encontravam-se bem representados na maioria dos principais ofícios e, embora provavelmente estivessem mais propensos a serem aprendizes e diaristas do que os trabalhadores brancos, eles foram também considerados mestres em muitos ofícios.25 Tão importante quanto o capital humano envolvido nesses ofícios, era a necessidade dos donos de escravos de oferecer recompensas para obter um bom serviço. Como vários estudos da escravidão moderna e clássica têm mostrado, o trabalho não qualificado era rotineiro e controlado pela força, de modo a produzir ganhos com relativa eficiência. Mas o trabalho especializado não pode ser rotinizado e nem o trabalhador chicoteado para ser obediente.26 Assim, em Minas Gerais, escravos mineiros itinerantes, que trabalhavam sozinhos à procura de aluviões de ouro, foram pagos nesse metal e autorizados a comprar sua liberdade, enquanto os escravos utilizados nas conhecidas jazidas operadas por sistemas hidráulicos trabalhavam em grupos e não recebiam qualquer tipo de incentivos.

Esta abertura do mercado de trabalho para escravos e pessoas livres de cor faz uma diferença crucial no funcionamento de regimes escravistas, uma vez que em um país como o Brasil, por exemplo, apenas cerca de um terço dos escravos estavam nas fazendas e engenhos, de acordo com o primeiro censo nacional de 1872, enquanto a maioria se encontrava em atividades variadas, de trabalho urbano não qualificado à produção agrícola rural, do transporte de mulas à pesca de baleia.27 Muitos trabalhavam em unidades familiares, com as famílias dos próprios senhores, ou ao lado de lavradores livres. Esse mesmo modelo também podia ser encontrado em Cuba e Porto Rico.28 Tudo isso contribuiu para um mercado de trabalho mais complexo do que na América do Norte. Embora os escravos rurais permanecessem relativamente isolados, em qualquer outro setor trabalhadores escravizados podiam ser encontrados misturando-se com trabalhadores livres negros, branco, índios e mestiços. Assim, a importância relativa do trabalho escravo rural e urbano é tão relevante na determinação do uso ocupacional destinado aos escravos quanto o é o trabalho, agrícola ou não, na determinação dos tipos de ocupação na zona rural. Em termos de emprego do trabalho escravo e de concentração na grande lavoura, os Estados Unidos eram mais parecidos com o Caribe não-hispânico do que com os outros regimes escravistas do continente americano e das ilhas hispânicas.29 Os escravos eram utilizados em todas as tarefas imagináveis e necessárias para o funcionamento dessas sociedades. Eles eram, em grande número, alugados, empregados como aprendizes, e tinham até mesmo permissão para viver por conta própria. Embora o aluguel de escravos e a escravidão urbana existissem nos Estados Unidos, ocorreram em menor escala do que na maioria dos países latino- americanos, e tornaram-se progressivamente mais reduzidos ao longo do tempo.

Além disso, enquanto nos Estados Unidos o controle do governo e dos senhores sobre os escravos urbanos tornou-se cada vez mais rigoroso no século XIX, parecia ficar cada vez mais frouxo na América Latina como o passar do tempo. Os governos municipais na América Latina estavam sempre reclamando da negligência dos senhores urbanos em disciplinar, abrigar e alimentar seus escravos, mas pouco foi feito para controlá-los.30 Em contraste, na América do Norte oitocentista houve um controle eficaz e crescente do Estado sobre a vida dos escravos urbanos, que ficaram restritos a morar nas casas de seus senhores.31 Essas mudanças não estiveram relacionadas com eficiência econômica. De fato, economicamente, era mais eficaz permitir ao trabalho escravo na cidade a maior mobilidade possível para que fosse rentável. Permitir aos escravos fazer contratos, organizar as próprias moradias, o vestuário e os alimentos, reduzia os custos de manutenção para os proprietários. Reduzir o espaço de manobra dos proprietários, aumentar as suas despesas de manutenção, tudo em nome da segurança, foi de fato uma política econômica. Invertendo o modelo de Elkins, que fala da "dinâmica do capitalismo sem oposição" nos Estados Unidos, poderíamos dizer que Brasil e Cuba foram as verdadeiras sociedades capitalistas, e que os Estados Unidos estavam dispostos a sacrificar a racionalidade econômica a outros fins preferenciais, neste caso, controle social.

Como o Estado e suas leis responderam a essas emergentes e diferentes realidades americanas? Todos os sistemas legais escravistas têm muito em comum.

Como Orlando Patterson demonstrou, todos eles têm que legalmente destruir os direitos dos escravos para que estes sejam economicamente "móveis": em toda parte, os senhores puderam disciplinar seus escravos, usá-los em qualquer ocupação que quisessem, e vendê-los a alguém. Em todos os casos, os seus direitos como senhores eram apoiados pelo Estado.32 No entanto, quando chegou o século XIX, algumas diferenças emergiram nos regimes escravistas americanos. A maioria dessas diferenças desenvolveu-se a partir de práticas consuetudinárias que alteraram os direitos dos proprietários de escravos. Se os escravos vivessem por conta própria e provessem seus senhores com uma renda, tinham que fazer contratos e cuidar de suas próprias finanças. Embora como escravos não pudessem, legalmente, ter propriedade ou fazer contratos, os escravos urbanos e, mesmo em menor número, também do campo , de fato, tenderam a ter propriedades e a fazer contratos independentemente de seus senhores. Em todas as propriedades rurais, escravos produziam muito dos seus próprios alimentos e, com frequência, vendiam para ambulantes que circulavam em torno das fazendas e engenhos uma questão bastante comentada acerca de Cuba. Assim, escravos vendiam alimentos e outros bens que produziam nos seus próprios lotes, embora não tivessem direitos legais para fazê-lo. Na verdade, se não de direito, estas hortas eram muitas vezes consideradas propriedade dos escravos que as cultivavam. Escravos que possuíam propriedades ou poupança logo seriam autorizados pelo Estado a comprar a liberdade, um sistema que evoluiu do direito consuetudinário para logo se tornar plenamente elaborado nos códigos escravistas locais. No Brasil e em Cuba, a compra da própria alforria era um ato comum que, com o tempo, ganhou suporte legal. A partir de 1871, com a chamada Lei do Ventre Livre, o escravo no Brasil podia comprar sua alforria, mesmo contra a vontade do senhor, e foi autorizado a acumular dinheiro para tal. Este foi o caminho principal para a liberdade de escravos africanos e crioulos, e a compra da própria alforria representou cerca de um terço de todas as alforrias.33 A alforria também foi facilitada por vários meios legais, desde testamentos e legados, reconhecimento de paternidade na pia batismal, a cartas formais de liberdade, e foi considerada uma parte normal do sistema escravista nessas sociedades.34 Parece que, no século XVIII, todos os sistemas escravistas nas Américas produziram aproximadamente a mesma proporção de escravos alforriados. Em todas as sociedades, pais libertaram filhos e parceiros afetivos escravizados, e senhores, por razões religiosas ou morais, libertaram escravos, pois a lealdade, muitas vezes, era recompensada com a alforria. A compra da própria alforria se verificou em todos os regimes escravistas. Tudo isso começou num ritmo lento e produziu uma modestamente crescente classe de pessoas de cor livres. Mas, no século XIX, algumas sociedades escravistas começaram a fechar esses caminhos para a alforria, enquanto outras progressivamente ampliaram o direito de compra e incentivaram outros processos de alforria. As leis e os tribunais aceitaram todos esses procedimentos de alforria e os protegeram. Por sua vez, em alguns lugares, esses incentivos legais para a alforria levaram a uma expansão cada vez mais rápida da população de cor livre, que logo excedeu a de escravos no século XIX. Até o primeiro censo nacional do Brasil, em 1872, dezesseis anos antes da Abolição, por exemplo, havia 4,2 milhões negros e mestiços livres e apenas 1,5 milhões de escravos. Para os Estados Unidos em 1860, os valores foram invertidos com quase quatro milhões de escravos e menos de meio milhão dos livres de cor. Em nenhuma outra importante sociedade escravista foram eles tão numerosos e tão importantes quanto no Brasil. Mas, em todo o mundo ibero-americano, na primeira parte do século XIX, eles ou se igualaram em número aos escravos ou rapidamente ultrapassaram-nos em importância. Nada disso aconteceu nas nações e colônias francesas ou inglesas.35 Na América do Norte, a legislação do século XIX progressivamente restringiu esse processo de alforria e tentou isolar, e até mesmo expulsar, os negros e mulatos livres e libertos de seus territórios. Senhores foram progressivamente restringidos no seu direito de alforriar escravos dentro das fronteiras americanas, nenhuma sustentação legal foi dada aos acordos de compra de alforria, e para os afro-americanos livres havia cada vez mais restrições, e até a mobilidade física foi cerceada.36 Essa legislação foi bem-sucedida, e essa população foi mantida numa proporção baixa em relação ao que era antes de 1860. Além disso, mais da metade dessas pessoas viviam fora dos estados escravistas do sul. Estima-se que em 1860, apenas 3% da população livre nos estados do sul eram negros e mulatos libertos ou livres.37 Esse medo crescente de alforria, que foi dominante nos Estados Unidos, no século XIX, tem, até agora, recebido pouca atenção e vale a pena ser estudado. se sugeriu que essa hostilidade em relação aos libertos era vista como um reforço à legitimidade do sistema escravista pelos agricultores norte-americanos, que foram aos poucos elaborando a defesa da escravidão como única condição adequada para afro-americanos. Por que outras sociedades escravistas não perceberam isso da mesma maneira? Por que uma grande e emergente classe de cor livre na América Latina não ameaçou as tradicionais relações senhor - escravo? Uma grande parte dessa diferença de atitudes para com os libertos pode ser vista também nos diferentes papeis político, econômico e social das pessoas de cor livres em cada uma das sociedades escravistas. Uma vez livres, os afro- americanos desempenharam papeis muito mais importantes em suas respectivas sociedades latino-americanas do que nas nações e colônias inglesas. Tanto na América espanhola quanto na portuguesa (e depois no Brasil independente) organizaram a população negra e mestiça em unidades militares coloniais e usaram-na para lutar em guerras internacionais e rebeliões internas. Na América espanhola, os índios foram proibidos de servir na milícia, mas unidades de mulatos e negros foram organizadas e desempenharam papel respeitável. Em muitos casos, essas tropas foram usadas, mesmo fora de seus territórios de origem, pelos governos imperiais. No caso do Brasil, as unidades de pardos e pretos eram a norma até 1830, e, mesmo após a criação de uma Guarda Nacional unificada sob o Império, os negros foram vitais dentro da instituição militar, a exemplo dos Voluntários da Pátria (também conhecidos como Zuavos Negros) na Guerra do Paraguai, em meados da década de 1860. Assim, em toda a parte, aos homens de cor livre foi concedido o direito de portar armas, e eles usaram-no para ampliar seus próprios direitos particulares. Em todos os países os milicianos tinham acesso privilegiado a tribunais militares, e no México eles conseguiram escapar de impostos cobrados especificamente aos afro-mexicanos livres, assim como aos índios. Ao mesmo tempo, uma elite de homens dessa classe adquiriu poder como oficiais nessas unidades. Isso não quer dizer que esses militares não tivessem sido discriminados em termos de postos no exército ou na execução das piores tarefas. Mas, é claro que eles representavam uma parte importante do aparelho de Estado desde o início da escravidão.38 Na verdade, muitos dos líderes revolucionários dos movimentos de independência, no início e fim do século XIX, em países como México e Cuba vieram dessa classe.

A população afro livre na América Latina teve poucos obstáculos à sua mobilidade geográfica, os mesmos que todas as pessoas livres dentro de suas sociedades. No Brasil, deslocaram-se livremente entre áreas urbanas e rurais, e de província para província, como evidenciado pelos registros judiciais da época. As restrições draconianas à mobilidade geográfica desenvolvidas na América do Norte no século XIX não ocorreram na América Latina. Aqui as pessoas livres, independentemente da cor, podiam morar em qualquer lugar em que pudessem se dar ao luxo de viver. Estudos sobre padrões residenciais, em cidades como México e San Juan de Porto Rico, também têm demonstrado que negros livres moravam ao lado e, muitas vezes, misturados com famílias de brancos e mestiços, e era tão comum para eles alugar cômodos em suas casas para brancos, como era, muitas vezes, para os brancos alugar quartos para eles.39 Embora os guetos urbanos dos Estados Unidos sejam usualmente tidos como originários da era pós-abolição, é, no entanto, revelador que nenhuma mistura sistemática de raças em moradias individuais tivesse sido apontada nos Estados Unidos.40 Todas as ocupações estavam abertas à população de cor livre, à exceção daquelas tipicamente da elite, e mesmo as restrições a estas diminuíram ao longo do período colonial e foram totalmente eliminadas no século XIX nas repúblicas latino-americanas. De Lima à Cidade do México, inúmeros exemplos de pessoas dessas camadas que obtiveram autorização régia para se estabelecer em ocupações de elite que lhes eram oficialmente negadas. Isso incluía desde posições no governo e na Igreja, até ofícios mecânicos a elas vetados por lei.

Uma minoria das pessoas negras e mestiças livres até possuía escravos, um fenômeno que ocorreu em todas as sociedades escravistas, incluindo os Estados Unidos.41 No caso do Brasil, onde esses senhores pardos e negros têm sido bem estudados, eles representavam uma significativa minoria entre os proprietários de escravos, na maior parte das regiões, e eram em sua maioria artesãos trabalhando em pequenas oficinas. Neste contexto, as mulheres eram um protagonista muito significativo entre esses proprietários de escravos. Nos Estados Unidos eles representavam uma proporção muito menor dos proprietários de escravos do que no Brasil.42 Os escravos e as pessoas de cor livres e libertas, nas áreas rurais e urbanas da América Latina, se misturavam mais ou menos livremente com os brancos.

Embora a maioria das manifestações religiosas africanas, como o candomblé e a santeria, fossem semiclandestinas no período escravista e muitas vezes violentamente reprimidas, havia inúmeras festividades e outras manifestações públicas onde negros e brancos se misturavam, e encontramos até escravos aparecendo nesses locais. Os registros judiciais da América Latina estão cheios de escravos que conviviam com os brancos e pessoas de cor livre nas numerosas tabernas, que eram importantes locais de sociabilidade. também numerosos casos de escravos fugindo para as cidades para viver como livre, embora também acontecesse que gente negra livre ou liberta fosse frequentemente tomada por escravo e como tal perseguida e presa.

Embora tenha sido sugerido que as rebeliões de escravos foram mais numerosas e mais violentas na América Latina do que na América do Norte, estes eventos foram poucos e distantes uns dos outros na maioria das sociedades escravistas.

Além disso, escravos fugitivos eram comuns em todos os regimes escravistas.

Mas, no que as sociedades da América Latina, e até mesmo do Caribe, diferem da América do Norte é no tamanho e extraordinário número de quilombos, nas primeiras, e sua escassez nesta última. O mapa do Brasil está repleto de dezenas de locais chamados quilombo, e as comunidades de cimarones, por toda a América espanhola e ilhas do Caribe, foram muito importantes e numerosas. As causas para a importância relativa dessas comunidades fora da América do Norte foram principalmente as condições ecológicas, tais como terrenos montanhosos com vegetação tropical e semitropical, onde comunidades isoladas podiam se manter com sucesso. Também o constante desaparecimento de escravos no seio da população negra livre era muito mais comum na América Latina do que na América do Norte, devido à existência, naquela, de grandes afro-comunidades livres, e de mais centros urbanos, que deram cobertura significativa aos escravos fugidos. Além disso, uma vez estabelecidas ao longo de várias gerações, a maioria dos quilombos, de fato, converteram-se em comunidades agrícolas autônomas e se tornaram parte da paisagem do mundo rural livre.

Possivelmente devido à sua importância econômica, ou a sua incapacidade de influenciar seriamente a política das elites, aos negros e mestiços livres fosse oferecida uma ampla gama de direitos que lhes foram negados na América do Norte. Eles podiam votar mas no Brasil somente se nascidos ali, e não na África se tivessem renda ou propriedade que os qualificasse para tal, portar armas, viver onde pudessem encontrar trabalho e moradia e, por volta do século XIX, tiveram poucas restrições em suas profissões ou oportunidades educacionais.

Embora o Estado tivesse às vezes tratado mais duramente os negros e pardos livres do que seus pares mestiços e brancos, eles, no entanto, foram tratados de forma bastante diferente de seus irmãos escravos.43 Eles podiam comparecer diante de um tribunal, como testemunhas e como querelantes, e fazer contratos legais. Como Tannenbaum costumava dizer, eles foram "cidadãos" em todos os países, formados ao longo do Oitocentos, em que viveram.44 Isso não quer dizer que negros e mestiços fossem iguais aos brancos, ou que não existisse qualquer tipo de discriminação dos que nasceram livres em relação àqueles que foram libertados ao longo de suas vidas e seus descendentes. A imensa maioria dos negros libertos saiu da escravidão sem uma poupança, e levou consigo somente o capital humano em termos de conhecimento, idiomas e habilidades para o trabalho. Assim, formaram a base da camada de pobres em todas as sociedades latino-americanas, posição que compartilharam com uma minoria de brancos empobrecidos e mestiços. Tem sido sugerido, em estudos sobre a Cidade do México, por exemplo, que a discriminação entre os pobres era bastante limitada e a cor uma marca muito fluida que podia mudar no decorrer de uma vida. Para aqueles que subiam na escala econômica e social, a discriminação claramente se acentuava tanto quanto mais alto subissem.45 Os casos de filhos processando pais pelo direito de casar, no final do século XVIII, na América espanhola, mostram que os brancos que ocupavam uma posição intermediária na sociedade foram altamente discriminadores em relação aos negros e mulatos.46 No seio da própria elite, se um negro ou mestiço chegasse tão longe e bem poucos fora das Antilhas francesas chegaram a essas posições elevadas a discriminação era provavelmente menos pronunciada, uma vez que a classe formava uma barreira muito mais rígida do que a raça. Mas mesmo esse status não garantia igualdade, e os lavradores de cor livres de Saint Domingue (futuro Haiti) enfrentaram uma amarga hostilidade da elite rural branca, o que foi um dos principais fatores que preparam o caminho para a rebelião de escravos de 1791.47 Não se tratava de uma elite branca amedrontada a atacar gratuitamente os de cor como um elemento perigoso a suas sociedades, como ocorreu no caso da suposta conspiração de La Escalera, em Cuba, no início da década de 1840.48 A cor era claramente um indicador de status na sociedade latino-americana, mas a definição de classe, status e de identidade envolvia mais indicadores do que apenas a cor da pele.

Isso constituiu um nítido contraste com os Estados Unidos e as colônias inglesas, onde a cor da pele era a única marca usada para discriminar as pessoas, tornando assim mais fácil o funcionamento do preconceito.

E quanto à vida religiosa e social dos escravos e das pessoas livres de cor? Embora os países católicos batizassem os escravos africanos, desde os primeiros dias de sua chegada nas Américas, a Igreja teve um impacto apenas moderado sobre seus cotidianos. Descanso nos feriados religiosos e domingos eram geralmente obrigatórios, e a muitos escravos eram ensinados os princípios básicos do cristianismo. Não houve nenhuma hesitação da Igreja romana na incorporação dos africanos como seus membros, em contraste com as igrejas protestantes que retardaram a aceitação destes por um longo tempo. Todos os escravos recebiam os sacramentos e participavam dos rituais da Igreja, desde que um sacerdote estivesse acessível a eles. Mas havia relativamente poucos padres e em geral a vida do escravo cruzou apenas moderadamente com a eclesiástica, especialmente nas áreas rurais. Mas a Igreja obrigava os feriados e muitos católicos respeitavam esses dias sem trabalho. A Igreja foi também um local de alforrias (na pia batismal) e muitas evidências do seu apoio aos escravos que eram casados. Todos os escravos tomavam parte nos sacramentos e quase todos usavam os rituais de compadrio para reforçar laços sociais, tanto na comunidade escrava quanto na dos livres e libertos. Finalmente, no Brasil, provas abundantes, na região Sudeste, de casamentos legais de escravos, juntamente com os esforços sistemáticos da Igreja para garantir que os casais permanecessem juntos, mesmo que filhos adolescentes não fossem sempre protegidos da separação familiar por venda, doação, partilha ou outros métodos.

Embora casamentos de escravos pudessem acontecer no México e em outras sociedades latino-americanas, eles foram relativamente mais importantes no Brasil.49 Onde a Igreja teve um impacto maior foi entre as pessoas de cor livres e libertas. Foram estas que organizaram as famosas irmandades religiosas e até conseguiram construir suas próprias igrejas, como pode ser visto em muitas cidades brasileiras. Toda cidade tinha uma irmandade do Rosário em algumas cidades grandes, como Salvador, cada freguesia tinha uma e muitas eram inicialmente referenciadas na origem africana específica de seus membros.

Estudos recentes têm sugerido que uma minoria significativa dos escravos e negros livres eram membros dessas irmandades. Elas claramente serviram também como eficazes sociedades funerárias, que se encarregavam dos enterros de seus membros. Isso não quer dizer que a atividade religiosa não fosse importante nas sociedades protestantes, mas a autonomia das irmandades foi formalmente reconhecida pelo clero e elas eram uma parte fundamental da sociedade tanto dos brancos quanto dos negros e mestiços livres. Como as milícias, as irmandades religiosas também representaram importantes vias de ascensão e reconhecimento sociais para estes setores livres e libertos, e mesmo escravos.50 É evidente que a mais longa história do tráfico da maior região escravista foi um fator fundamental na transmissão e na sobrevivência das ideias religiosas e dos cultos africanos na América Latina, comparada com as rotas de tráfico menos intensas para a América do Norte.51 Mas a sobrevivência das práticas religiosas africanas, tão importantes para as comunidades afro-americanas na América Latina, foi também, em parte, devida à sua capacidade de "sincretizar" com as práticas populares católicas, algo menos viável dentro da religiosidade protestante.52 Então, o que podemos dizer, comparativamente, sobre as semelhanças e diferenças entre todas essas sociedades? Parece-me que a maioria das grandes sociedades escravistas continentais, até 1800, movia-se mais ou menos na mesma direção em termos de organização do trabalho, preços de alforria, importância relativa de escravos e senhores e dimensão das escravarias. Cuba e Porto Rico compartilharam a maioria das características desses regimes continentais, e o Caribe inglês e as Antilhas francesas, devido a uma invulgar estrutura demográfica, representaram modelos bastante alternativos. Porém, depois de 1800, os Estados Unidos começaram a se mover em uma direção diferente e, essencialmente, começaram a se opor a tendências correntes de abertura do sistema através do aumento no número de alforrias concedidas e a incorporação dos libertos como membros da sociedade livre.

Como isso aconteceu é fácil de ver, mas responder ao "porquê" é muito mais complicado. Em vez de permitir a evolução econômica e social do regime escravista, como estava ocorrendo em todos os países latino-americanos no século XIX, a elite escravista dos Estados Unidos decidiu que o sistema tinha que ser completamente fechado, negando aos escravos o acesso a alfabetização e liberdade, em uma escala crescente de rigidez. Não é por acaso que os Estados Unidos foram a única sociedade a apresentar uma defesa categórica da escravidão.53 Pode ser que nas sociedades democráticas, elites brancas e trabalhadores livres brancos se sentissem mais assustados com a potencial mobilidade social e econômica das pessoas de cor livres. Esse medo do escravo emancipado provavelmente existiu também na América Latina, mas nunca foi forte o suficiente para criar barreiras rígidas contra o funcionamento econômico normal das economias de mercado. O que é mais estranho nisso é que os norte- americanos estavam lidando com uma população de ascendência africana muito menor, e que de fato teve menos africanos do que era o padrão em outras partes em meados do século XIX. Também não era uma população escrava ameaçada de extinção. Os escravos norte-americanos estavam se reproduzindo em mais de 2% ao ano uma taxa, a propósito, igual ao crescimento de negros e mestiços livres no Brasil no século XIX de modo que nos Estados Unidos a mão de obra escrava poderia ter perdido 1% desse crescimento com alforrias, e a escravidão e a população escrava ainda poderiam ter sobrevivido.

Também é claro que, quando finalmente emancipado, o negro norte-americano desempenhou um papel muito menos decisivo no mercado do que suas contrapartes na América Latina.54 Pequenos agricultores e artesãos brancos bloquearam a integração dos negros de várias maneiras no sul dos Estados Unidos. Mesmo após a Guerra Civil, tem sido sugerido que o mercado de terras no sul do país permaneceu fechado para a maioria deles.55 Se na América Latina um sistema de auxílio mútuo mais estável garantiu a efetiva educação e a capacitação ocupacional aos escravos, pouca dúvida sobre a capacidade que tiveram ex- escravos de transferir com sucesso suas habilidades profissionais para o mercado de trabalho livre, algo que era muito mais difícil de conseguir nos Estados Unidos, onde uma classe artesã branca se sentia ameaçada pela competição negra. Com a restrição à sua mobilidade física, bem como uma ativa concorrência dos brancos, e provavelmente com treinamento mais rudimentar nas suas tarefas agrícolas, era extremamente difícil para os ex-escravos levar suas habilidades profissionais para além da barreira da liberdade na América do Norte.

Este fechamento de oportunidades para os ex-escravos foi ainda mais evidente quando a emancipação final ocorreu nos Estados Unidos, em 1865. Até 1900, na verdade, bem mais de 90% dos afro-americanos ainda residiam no sul do país e a discriminação contra eles era onipresente.56 Em contraste, no Brasil, por exemplo, poucos ex-escravos podiam ser encontrados no centro das áreas de café e de engenho de açúcar nas planícies do Oeste Paulista após a emancipação, enquanto muitos partiram em busca de terra nas regiões de fronteira ou outras regiões agrícolas decadentes, ou migraram para as cidades em busca de emprego.

O trabalho escravo após 1888 foi completamente substituído pelo trabalho do imigrante europeu em todas as regiões cafeeiras. Embora, obviamente, algumas famílias de escravos tivessem permanecido nas áreas de origem, e houvesse distritos no Brasil com índices elevados de moradores negros e pardos, os ex- escravos podiam ser encontrados em todo lugar após a Abolição. De fato, a mobilidade geográfica era a norma em todas as sociedades latino-americanas, tanto antes como após a Abolição. Em contraste, a imobilidade geográfica dos ex-escravos no sul dos EUA durou até o início do século XX.

Embora reconhecendo que os libertos, em todos os lugares, eram os mais pobres em todas as sociedades escravistas e ex-escravistas, é, no entanto, evidente que as leis e atitudes que promoveram ou rejeitaram a alforria, e aceitaram ou se opuseram à mobilidade econômica e geográfica dos libertos antes da emancipação foram cruciais em demarcar a condição dessas populações afro- americanas muito depois do fim da escravidão. Se faz sentido este argumento sobre as diferenças fundamentais em relação a variáveis chaves, então é evidente que podemos explicar as diferenças e seus fatores causais através de trabalho comparativo mais detalhado sobre as atitudes da elite escravista branca em cada sociedade e a natureza dos mercados de trabalho locais. O porquê de uma classe escravista temer a mudança da condição do escravo e outro grupo aceitar a mudança sem medo de perda de controle pode dever-se a uma série de diferentes fatores políticos e demográficos. Regimes democráticos são mais racistas do que os não-democráticos? As sociedades com menos imigração europeia são mais dispostas a confiar no trabalho qualificado e não qualificado dos afro-americanos do que aquelas que experimentaram a constante imigração de trabalhadores livres brancos? Valores culturais católicos fazem senhores de escravos aceitarem mais a alforria do que a cultura protestante? Como as Antilhas francesas se encaixam nesse esquema? Claramente, acredito que para responder a essas questões sobre diferenças comparativas entre regimes escravistas várias áreas que vale a pena investigar em detalhe. Para começar, o papel econômico dos escravos, o capital humano que eles acumularam sob a escravidão e a disponibilidade de papeis alternativos dentro da escravidão que pudessem permitir o acesso às habilidades, o distanciamento do controle diário do senhor e outras formas de autonomia social e econômica, fossem elas individuais ou coletivas, religiosas ou civis. Ainda a ser considerada é a taxa de crescimento e a importância da alforria e o apoio legal e eficaz que lhe foi dada pela classe senhorial.

Finalmente, precisamos considerar o papel das pessoas de cor livre bem antes da emancipação final dos escravos. Como elas surgiram, qual a sua proporção em relação aos brancos e escravos, onde viviam, quais e como eram as suas instituições e comunidades, e quanto de suas habilidades aprendidas sob a escravidão estava disponível para elas como libertas. Qual era a natureza do racismo e como funcionou por classe e cor? Tudo isso requer um estudo da natureza da concorrência entre brancos e negros no mercado de trabalho livre, e da atitude da classe trabalhadora branca em relação a seus pares afro- americanos. Também nos obriga a estudar a elite e sua atitude frente à escravidão, os escravos e os negros livres e libertos no seu meio. Como defendi durante muitos anos, precisamos examinar as pessoas de cor livres no tempo da escravidão para entender completamente os regimes escravistas. Estas são apenas algumas das áreas a explorar, se quisermos explicar as diferenças óbvias que existiram entre as sociedades escravistas nas Américas. Além disso, explicar tanto as características comuns quanto as diferenças nas sociedades escravistas americanas, e a posição dos negros e mestiços livres nestas, será percorrer um longo caminho para fazer entender os diferentes padrões de integração de todos os afro-americanos no período pós-escravista.


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