Sujeito e ordem: romantismo e decisionismo no pensamento de Carl Schmitt
Uma das características mais significativas do pensamento de Carl Schmitt1 nos
anos 20 é o papel que a controvérsia desempenha na elaboração das suas idéias.
Com efeito, como ele próprio observa em um texto de 1931, "todo conceito
político é um conceito polêmico. Ele tem em vista um inimigo político e está
determinado na sua posição espiritual, na sua força intelectual e no seu
significado histórico pelo seu inimigo" (HP:5).
Um leitor atento dos trabalhos de Carl Schmitt não terá dificuldade em
constatar que essa descrição da natureza dos conceitos políticos pode ser
aplicada à própria atividade intelectual do autor. O conjunto da sua obra
possui um caráter marcadamente polêmico e para cada um dos seus textos
importantes é possível, com relativa facilidade, identificar um antagonismo
concreto como motivo. Nesse sentido, o trecho citado não deixa de ser um
testemunho da maneira como Schmitt encara sua própria obra jurídico-política e
pode ser visto como uma espécie de declaração de princípios.
De fato, essa obra é polêmica porque a imagem de que as relações políticas
estão determinadas pela possibilidade extrema da hostilidade entre grupos
humanos se incorpora à própria estrutura de argumentação. A inimizade, em Carl
Schmitt, é uma condição da elaboração da reflexão política, da sua construção
polêmica a partir de um antagonista. Schmitt pensa contra um adversário, mas
também por seu intermédio. Sendo assim, o inimigo não é apenas alguém, por
assim dizer, situado fora, uma realidade exterior com a qual o pensamento se
defronta. A inimizade tem um papel estrutural, ela é um ponto de vista
epistemológico que, como tal, é interno ao processo de conhecimento. Nesse
sentido, pode-se dizer que a atitude polêmica que marca a obra de Carl Schmitt
resulta de uma concepção política do conhecimento. Em outros termos, a polêmica
não é apenas a forma que esse pensamento assume ao se dirigir às circunstâncias
políticas em que está inserido, não é apenas a maneira pela qual responde às
questões do seu tempo e se confronta com o seu contexto intelectual; ela é uma
atitude epistemológica por meio da qual a natureza da agonística da vida
política se incorpora ao próprio ato do conhecer e se torna uma condição de
possibilidade da criação teórica2.
Mais do que um dado da realidade empírica, o inimigo apresenta-se como um
objeto do pensamento,como uma construção intelectual contra a qual Schmitt
procura definir a sua própria posição teórica. O exercício de elaboração das
próprias idéias exige, segundo esse ponto de vista, um colocar-se frente a
frente com as idéias de um antagonista que é, antes de tudo, uma criação do
próprio pensar. A determinação do inimigo é aqui uma premissa da criação
teórica. Sob diversos aspectos, ele é uma espécie de duplo invertido da teoria
política de Carl Schmitt, de modo que a forma da oposição binária implica não
só a definição das características do inimigo em função da concepção da
política apresentada por Schmitt, como também a definição desta última em
contraposição àquelas características.
Este artigo pretende explorar essa concepção política do conhecimento político
em Carl Schmitt, tomando como referência a constelação de conceitos que se
articulam em torno da sua abordagem do romantismo e do decisionismo. Como
espero mostrar ao longo da minha exposição, romantismo e decisionismo
constituem, em Schmitt, universos conceituais contrapostos. Quero crer que a
discussão de ambos em conjunto permitirá não só lançar luz sobre alguns
aspectos do processo de construção do pensamento desse autor, como também sobre
os vínculos estreitos entre a sua reflexão jurídico-política nos anos 20 e a
crítica da civilização liberal-burguesa como expressão da modernidade.
A ORDEM DO SUJEITO
"Mas então, que se tornará o homem, sem Deus,
sem imortalidade? Tudo é permitido,
por conseqüência, tudo é lícito?"
Dostoievski ' Os Irmãos Karamázovi
Publicado em 1919, o livro Politische Romantik3 (Romantismo Político) é o
primeiro de um conjunto de importantes textos que Carl Schmitt irá publicar ao
longo dos anos 20 e início dos 30. Nele, Schmitt já exibe atributos que iriam
consagrá-lo como uma das principais figuras do cenário intelectual da Alemanha
desse período: o tom polêmico; o estilo conciso, aparentemente simples da
escrita; a originalidade, a ousadia na criação de conceitos; a erudição; a
peculiar, e muitas vezes desorientadora, fusão de influências intelectuais do
tradicionalismo político e religioso com uma aguda percepção da especificidade
do mundo moderno; o pensar a partir do extremo.
Outros traços distintivos do "estilo intelectual" de Schmitt
presentes no livro poderiam ser indicadas; prefiro, no entanto, deter-me por
aqui e destacar o último ponto mencionado, pois acredito que ele ofereça uma
porta de entrada para o texto sobre o "romantismo político". O livro,
em certa medida, é um exercício de "história intelectual": analisa um
tema da história das idéias políticas do século XIX, o romantismo político,
tomando como ponto de partida uma tentativa de definição histórica e conceitual
do movimento romântico. Ainda que essa caracterização não deixe de corresponder
ao conteúdo do livro, ela é insuficiente. Esse mesmo exercício de história
intelectual é também uma polêmica contra o romantismo e, em particular, contra
o romantismo político. Uma polêmica que vê nesses dois movimentos a expressão
de uma época, a época moderna, e que pretende pensar os fundamentos da ordem
liberal-burguesa a partir de uma "situação limite", de um "caso
extremo".
Essas duas perspectivas ' a primeira mais propriamente histórica e a outra,
digamos por ora, de caráter epocal ' se cruzam e interpenetram ao longo do
texto e, em última análise, se reúnem na maneira de Schmitt abordar o
romantismo. Segundo ele, a "estrutura do espírito romântico"4 deve
ser considerada "no contexto da situação espiritual" (PR:62). Para
tanto, seria preciso apreender o "centro" (PR:8, 10) do romantismo,
identificar sua "especificidade histórica" como "movimento
espiritual" (PR:8). Aos olhos de Schmitt, isto significa "tomá-lo a
sério, tanto do ponto de vista metafísico quanto moral, nãocomo exemplo de uma
tese abstrata, mas como uma realidade [Wirklichkeit] histórica concreta no
contexto deum processo histórico" (PR:8).
Essa tentativa de evidenciar o "centro" do romantismo como
"movimento espiritual" é própria da abordagem de Schmitt tanto da
história intelectual quanto da vida política. Trata-se de tornar patentes as
premissas últimas sobre as quais se funda uma ação, seja ela intelectual ou
política, expondo seus pressupostos metafísicos. Por esse motivo, para Schmitt,
a "explicação autêntica" do romantismo será aquela que for capaz de
chegar à "fórmula metafísica" (PR:17)sobre a qual esse movimento
estaria baseado.Nessa perspectiva, o privilégio concedido à "realidade
histórica concreta" é mais, digamos, do que uma tentativa de reduzir o
problema às suas variáveis sociológicas. Quando ele insiste na necessidade de
se abordar o romantismo como uma "realidade histórica concreta no contexto
de um processo histórico", o que está em jogo não é tanto a análise das
determinações sociais desse movimento, mas uma tentativa de considerar sua
"estrutura ideal"5como um fator de conformação da experiência
histórica. Trata-se, portanto, de reconhecer na "estrutura ideal" do
romantismo as premissas metafísicas que organizam uma certa experiência
histórica. Ao pretender determinar a "atitude perante o mundo" (PR:
17) distintiva do romantismo, Schmitt tem em vista não só a sua
inteligibilidade como fenômeno histórico, mas também seu significado como
"manifestação na esfera do espírito" (PR:3). Dessa forma, o exercício
de história intelectual que ele nos propõe se desdobra em considerações sobre a
natureza da Geistesgeschichte ("história do espírito") moderna. O
privilégio concedido por Schmitt à "situação espiritual" como
contexto de análise representa um esforço de caracterização histórica da
"estrutura do espírito romântico" e, ao mesmo tempo, uma tentativa de
apreender seu significado à luz da experiência moderna ' em particular, como
veremos, à luz da sua versão liberal-burguesa. Ou, caso se prefira, constitui
uma forma de pensar a especificidade da "situação espiritual" do
mundo moderno através da determinação da "estrutura e atitude
metafísicas" (PR:19) que distinguem o movimento romântico.
Assim, para abordar o romantismo como uma "realidade histórica
concreta", Schmitt retorna ao que, a seu ver, constituiria o começo da
Geistesgeschichte moderna. Ele se volta para Descartes e busca no seu
pensamento a cisão que distinguiria a experiência moderna do mundo6. Para
Schmitt, "duas grandes transformações" estariam associadas ao início
da história intelectual moderna: com Copérnico, a Terra teria deixado de ser o
centro do Universo; com a filosofia de Descartes, se iniciaria o "abalo do
antigo pensamento ontológico" (PR:62). Isto porque
"[...] o seu argumento cogito ergo sum remeteu o homem para um
processo subjetivo e interno, para o seu pensamento, em lugar da
realidade [Realitåt] do mundo externo. A ciência natural deixou de
ser geocêntrica e buscou o seu centro fora da Terra, o pensamento
filosófico tornou-se egocêntrico e buscou o seu centro em si mesmo. A
filosofia moderna é dominada por uma dissociação entre pensamento e
ser, conceito e realidade, espírito e natureza, sujeito e objeto, que
nem mesmo a solução transcendental de Kant remediou" (PR:62-63).
Schmitt não se detém sobre a natureza desse "antigo pensamento
ontológico". E, como observa Luiz Costa Lima (1993:147-148), esse silêncio
é revelador do seu alvo principal: ele demonstra muito mais preocupação em
considerar os desdobramentos do "abalo" provocado pelo cogito
cartesiano do que em caracterizar a realidade que o precedera. No entanto, essa
antiga ontologia como que comparece em negativo no seu texto, seja pela
insinuação daquilo que o mundo de Descartes já não é, seja por oposição àquilo
que ele veio a ser. Nesse sentido, a julgar pelo que Schmitt afirma no trecho
citado, o impacto destrutivo do cogitocartesiano sobre o "antigo
pensamento ontológico" implicaria um duplo movimento: ele remete o homem
para o seu próprio pensamento e, com isso, o dissocia de uma ordem externa da
qual ele anteriormente se concebera como parte integrante. Dessa forma, o
cogito cartesiano seria presa de uma espécie de círculo vicioso: ao mesmo tempo
que rompe com a unidade homem-mundo precedente, procura superar a incerteza da
experiência das coisas daí resultante, recompondo a realidade dessa experiência
no próprio sujeito, no seu pensamento. Ao buscar o seu centro em si mesmo, o
pensamento já não encontraria legitimidade no fato de ser coextensivo à ordem
do mundo externo e seria obrigado a se defrontar com o problema da sua
adequação ao próprio mundo. O "egocentrismo" da reflexão filosófica
inaugurado por Descartes desembocaria, portanto, em uma "dualidade entre o
conceito abstrato e o ser concreto" (PR:64). A dissociação entre
pensamento e ser, conceito e realidade, espírito e natureza, sujeito e objeto,
de que nos fala Carl Schmitt, decorreria do fato de que a própria substância
das coisas já não se apresentaria como algo transparente para o entendimento
humano. Assim, ao desligar-se do mundo e centrar-se no sujeito, a filosofia
moderna viveria sob o signo de uma "recherche de la realitè"7.
Como já se pode entrever pelo que se disse anteriormente, essa "busca de
um centro em si mesmo" que, segundo Carl Schmitt, marcaria o
"egocentrismo" da filosofia na modernidade, traria consigo um outro
resultado. O abalo da ontologia tradicional a que ele se refere não apenas
remete o homem para dentro de si, "para um processo interno e
subjetivo", como também esvazia a "realidade do mundo externo"
da sua substância. A própria ordem do mundo torna-se um problema e, em última
instância, pode ser vista como algo irracional ou inexplicável. Assim, os
termos do que Schmitt chama de "problema filosófico da época" ' ou
seja, "a oposição entre pensamento e ser e a irracionalidade do real[des
Realen]"8 ' seriam a expressão de uma decisiva transformação na
"imagem teológica e metafísica do mundo"9. Mais especificamente, a
busca da certeza da experiência das coisas no interior do próprio sujeito e o
"egocentrismo" filosófico daí resultante têm um preço: eles custam à
ontologia tradicional a perda da sua própria realidade. Se Descartes, como quer
Schmitt, inaugura a "história intelectual" moderna, esse ato de
fundação traz consigo uma questão que irá acompanhar a trajetória do
"espírito moderno", qual seja, o de uma "realidade
[Realitåt]inacessível ao racionalismo abstrato" (PR:64)10.
Schmitt, contudo, revela-se menos interessado nos termos da solução que
Descartes oferece para essa questão' a certeza das idéias claras e distintas da
matemática e a prova da existência de Deus na consciência de si mesmo ' do que
nos problemas suscitados pelo racionalismo cartesiano. Na verdade, ele não se
aproxima desses temas na condição de filósofo ou sequer como um historiador da
filosofia, mas como alguém interessado em retraçar algumas linhas de força da
trajetória do "espírito moderno". Nesse sentido, Descartes é um ponto
de partida e, ao mesmo tempo, um emblema das questões colocadas pela dissolução
das premissas da ontologia tradicional e pela emergência do sujeito no
horizonte do pensamento moderno. Em outras palavras: mais do que uma
"história intelectual", no sentido propriamente disciplinar de uma
"história das idéias filosóficas", pode-se dizer que Schmitt tem em
vista alguns desdobramentos daquilo que talvez caiba denominar de uma
"história da razão moderna", e, em particular, o lugar central que
nela ocupa a referência ao sujeito individual.
Portanto, a desestabilização dos fundamentos transcendentes da ordem está
associada, na análise de Schmitt, à constituição do sujeito moderno. Ainda que
nem sempre Schmitt o explicite para o seu leitor, a emergência do sujeito é um
elemento central no seu argumento. Ela compõe uma espécie de figura de fundo,
nem sempre evidente, mas cujo desenho, mais ou menos nítido, torna possível que
outras figuras se destaquem. Permite pensar não só o "egocentrismo"
da filosofia, como também o esvaziamento da "realidade" da ontologia
tradicional e o conjunto de dissociações daí resultantes. Dessa forma, a
emancipação do sujeito em relação a uma ordem externa das coisas se apresenta
na sua exposição como um resultado e, ao mesmo tempo, um fator de desagregação
da antiga"imagem teológica e metafísica do mundo".
Nesse sentido, a "recherche de la realitè" inaugurada pelo
cogitocartesiano não se resumiria a uma mera "aspiração filosófica"
(PR:64): seria reveladora de um impulso de fundamentação metafísica da
experiência ao qual a modernidade tampouco teria escapado.Ela significaria a
permanência de uma "atitude metafísica" para além da ruptura do elo
que ligava o mundo humano ao seu fundamento transcendente. Nas palavras do
próprio Schmitt,
"[...] a realidade [Realitåt] mais elevada e segura da antiga
metafísica, o Deus transcendente, estava eliminada. Mais importante
do que a controvérsia dos filósofos foi a pergunta por quem assumiu a
sua função como a realidade [Realitåt] mais elevada e segura e,
portanto, como o ponto último de legitimação na realidade
[Wirklichkeit] histórica" (PR:68).
Portanto, ao procurar definir o romantismo através da "especificidade da
sua situação espiritual" (PR:62), Schmitt realiza um duplo movimento. Por
um lado, vai caracterizá-lo historicamente como uma das formas de reação ao
racionalismo moderno; uma reação que, ao lado de contramovimentos do mesmo
gênero, se distingue pelo seu caráter emocional-estético. Por outro, tentará
estabelecer a "fórmula metafísica" na qual se basearia o romantismo,
apresentando-o como um ocasionalismo subjetivizado. Esquematicamente, pode-se
dizer que esses dois níveis da análise de Schmitt correspondem às exigências
que, como observei anteriormente, governariam a sua tentativa de determinação
do "núcleo" do romantismo, ou seja: a sua inteligibilidade como tema
da história intelectual e o seu significado como"manifestação na esfera do
espírito". Na verdade, esses dois planos do argumento não estão separados:
para Schmitt, o romantismo representa não apenas uma modalidade de reação ao
racionalismo moderno, mas também um desdobramento e uma exacerbação dos
dualismos inaugurados por este último. Romantismo e racionalismo deixam de ser
vistos apenas como movimentos antagônicos e podem ser compreendidos também como
realidades solidárias cujo sentido estaria associado a um mesmo processo
histórico-espiritual. Este ponto se torna mais claro quando consideramos qual
é, para Schmitt, a natureza da atitude romântica perante o mundo.
Segundo Schmitt, o racionalismo moderno teria suscitado diferentes
contramovimentos que, por vias distintas, buscariam recompor a unidade da
experiência11. Para ele, a peculiaridade do romantismo estaria no fato de que
na sua reação ao racionalismo ele busca "transformar as oposições que vê
em uma equilibrada harmonia estética. Em outras palavras, não conduz os
dualismos a uma unidade, mas reduz as oposições a contrastes estéticos ou
emocionais, para então fundi-los" (PR:65-66).
Para Schmitt, a "equilibrada harmonia estética" realizada pelo
romantismo significa uma tentativa de dissolução daquilo que se apresenta como
problema, transformando-o em um objeto de fruição estética pelo sujeito
individual. A estetização romântica não resolve as oposições com que se
defronta, simplesmente as suspende. Segundo ele, essa atitude constitui, em
última análise, uma forma de evasão da realidade e dos seus constrangimentos.
Ao se evadir da realidade e de seus limites, o sujeito romântico migra para a
esfera do estético onde o mundo pode se tornar objeto de fruição pelo eu
individual. Nesse âmbito, ele estaria em condições de desempenhar o "papel
do eu criador do mundo" (PR:77), transformando a realidade como um todo no
objeto de uma experiência subjetiva. Por essa razão, não se trata, para ele, de
uma recusa da realidade em nome de alguma outra coisa, mas de um jogo com a
realidade, um "ludus globi" (PR:111). O sujeito romântico
instrumentaliza o real e evita as suas imposições para fazer dele o material da
sua própria fantasia.
Como observa Guy Oakes (1986:XX), Schmitt vê no romantismo uma espécie de
"esteticismo ontológico". Nele, as coisas perdem toda e qualquer
qualidade objetiva e existem apenas em função do interesse e da experiência
estética que são capazes de suscitar. O mundo do romântico seria o mundo da
lírica, onde a realidade somente adquire vigência como a mera projeção dos
estados emocionais do indivíduo12. Com o romantismo, nos diz Schmitt, "o
estético é absolutizado e alçado ao centro". Por outro lado, essa evasão
para a esfera do estético traria consigo um outro resultado: "a
estetização generalizada, considerada sociologicamente, serve apenas para
também privatizar através do estético as outras esferas da vida
espiritual"(PR:17). Assim, à rejeição da realidade objetiva do mundo
provocada pela estetização generalizada corresponderia uma fragmentação da
existência social resultante do processo de privatização.
O romantismo reagiria aos dualismos do racionalismo moderno conferindo validade
absoluta a um dos pólos em que este teria dissociado o mundo: o sujeito. De
certa forma, a atitude romântica consagra e radicaliza a emancipação do sujeito
em relação à "realidade do mundo externo" iniciada pelo cogito
cartesiano. Sob a forma de uma reação estético-emocional ao racionalismo
moderno, o romantismo, na verdade, partilharia das mesmas premissas filosóficas
e da mesma "estrutura ideal": tanto para um quanto para outro, o
sujeito apresenta-se como o eixo a partir do qual se constrói a experiência da
realidade13. Em última análise, o romantismo consumaria a tendência, inaugurada
por Descartes, de buscar em um "processo subjetivo e interno" o
fundamento último da experiência da realidade. Quando considerada à luz dos
seus resultados extremos, essa tendência acabaria por suprimir todo fundamento
objetivo da experiência. Tal seria o caso do romantismo. Daí a necessidade de
isolar o seu núcleo central e colocar em evidência os desdobramentos lógicos da
sua atitude perante o mundo. Assim, para Schmitt, a imagem de uma subjetividade
auto-referida e do seu "ludus globi" revelaria seu caráter
dissolvente se associada à idéia de occasio.
Segundo ele, a transformação do mundo em objeto de uma experiência individual '
ou, o que não deixa de ser o mesmo, em uma realidade subjetiva ' implica o
abandono de toda regularidade objetiva das coisas. A hipertrofia do sujeito tem
como contrapartida o "esvaziamento da realidade do mundo[Entwirklichung
der Welt]" (PR:85). A condição para o jogo romântico com a realidade e
para a expansão dos caprichos solipsistas da imaginação estaria, portanto, na
rejeição da idéia de causa. O mundo aos olhos do romântico se ofereceria como
uma mera ocasião para o exercício da fantasia e para a realização de uma
experiência estética. Tudo o que existe, repete Schmitt insistentemente, se
transforma no "início de um romance infindável", em motivo de um
"diálogo sociável" (PR:92), no qual o tema nada mais é do que um
veículo para um "jogo de palavras" e para o prazer experimentado na
conversação (cf. PR:92)14. Por isso, nos diz ele, a definição da natureza do
romantismo não pode ser derivada dos objetos para os quais se dirige a
produtividade estética do sujeito individual. Em última análise, o que desperta
o seu interesse "reside de tal forma no subjetivo, naquilo que o eu
romântico por si só acrescenta, que, a rigor, não se pode mais falar de objeto
ou coisa, porque o objeto se torna puro pretexto', começo', ponto elástico',
incitação', veículo' ou como quer que soem as paráfrases [Umschreibung] da
occasio nos românticos" (PR:93).
O fator determinante para uma caracterização do romantismo se encontraria,
segundo Schmitt, na atitude do sujeito diante do mundo, na sujeição de todos os
objetos às exigências do seu interesse estético. A "poetização"
romântica ignora o conceito de causa, pois "tudo que dá à vida e aos
acontecimentos coerência e ordem [...] é incompatível com a imagem do mero
ocasional" (PR:18). Com isso, a fuga da realidade mostra-se infensa a toda
regularidade normativa e a todo posicionamento ou julgamento efetivo. O
romântico, nos diz Schmitt, é incapaz, em última análise, de qualquer decisão
política ou juízo moral, pois isto lhe exigiria renunciar à sua "reserva
subjetiva" (PR:83) e ceder aos imperativos do real. Um dos traços
distintivos do romantismo estaria na sua ironia. A ironia romântica não se
restringe, no livro Romantismo Político, a um simples recurso de expressão
artística, mas possui um significado claramente metafísico. Ela seria uma
manifestação da atitude romântica perante o mundo, uma forma de preservação de
uma distância em relação à realidade. A ironia é "o instrumento
intelectual do sujeito que mantém a sua reserva em relação à objetividade"
(PR:82)15. Com isso, o indivíduo romântico conservaria em relação à efetividade
limitada do real uma infinidade de possibilidades subjetivas.
Assim, a maneira pela qual o romantismo encara o mundo, como algo absolutamente
disponível, permitiria defini-lo como uma espécie de ocasionalismo. Schmitt
toma essa caracterização da filosofia de autores como Geraud de Cordemoy,
Geulincx, Malebranche que teriam procurado resolver os dualismos do pensamento
cartesiano buscando em Deus a verdadeira causa de todas as coisas. Em lugar da
cisão entre corpo e alma, entre res extensa e res cogitans, haveria um
"terceiro fator abrangente[umfassendes Drittes]" (PR:96) no qual
essas divisões revelariam seu caráter ilusório. O mundo dos ocasionalistas
torna-se, observa Schmitt, um mundo sem consistência própria, já que aos olhos
de Deus ele é uma mera ocasião para a realização da sua vontade. No entanto, o
fato de Deus permanecer como causa primordial e unidade superior impediria que
esses efeitos dissolventes se atualizassem. Sua força desintegradora seria
anulada pela preservação da divindade como princípio objetivo.
O mesmo já não ocorreria com o romantismo. Ele conservaria a atitude
ocasionalista, eliminando o fundamento objetivo sobre o qual, em última
análise, aquela teria se baseado. Ou melhor, o romantismo como que
multiplicaria indefinidamente a figura de Deus do antigo ocasionalismo,
colocando no seu lugar o sujeito individual. Enfim, no romantismo, o
ocasionalismo acabaria por ser subjetivizado: "a especificidade do
ocasionalismo romântico está em que ele subjetiviza o principal fator dos
sistemas ocasionalistas: Deus. No mundo burguês e liberal, o indivíduo
desvinculado, isolado e emancipado torna-se o centro, a instância última, o
absoluto" (PR:105)16.
Gostaria de me deter sobre essa questão, pois ela permite reunir diversas
pontas do meu argumento que até agora estiveram soltas. Através da descrição do
romantismocomo um ocasionalismo subjetivizado, Schmitt apresenta a imagem de um
mundo em que o sujeito individual se torna o "ponto último de
legitimação". Daí a importância da sua referência ao "indivíduo
isolado do mundo liberal burguês". Esta não deve ser entendida apenas como
uma forma de explicitação das condições sociológicas da atitude romântica. Na
verdade, esse tipo de sociologia do conhecimento não é estranho a Schmitt, como
ele mesmo observa no prefácio de 1924 à segunda edição do livro, "o
portador do movimento romântico é a nova burguesia" (PR:14). Entretanto,
acredito que essa conexão entre ocasionalismo romântico e ordem liberal-
burguesa ganha em significado quando nos lembramos que, ao definir o romantismo
pela idéia de occasio, Schmitt pretende pôr em evidência a "fórmula
metafísica" capaz de qualificar a natureza da atitude romântica perante o
mundo. E não só: ele quer ponderar sobre o seu significado como
"manifestação na esfera do espírito" e, portanto, como expressão da
Geistesgeschichte moderna. Ora, se faz sentido a interpretação que até agora
procurei sustentar, Schmitt oferece-nos uma imagem dessa "história do
espírito" em que a emancipação do sujeito em relação à "realidade do
mundo externo" é uma das linhas de força dominantes. Ao centrar-se em si
mesmo, o sujeito moderno torna problemática a própria ordem do mundo que fora
consagrada pela antiga ontologia. O romantismo, tal como Schmitt o analisa,
inverte os termos da questão: ele é uma tentativa de fundamentara ordem no
próprio sujeito. E, nesse sentido, realiza um movimento análogo ao da promoção
do indivíduo no mundo burguês. A ordem burguesa, observa Schmitt, "isola o
indivíduo na esfera do espírito, o remete para si mesmo e lhe atribui o
conjunto da carga que outrora estava distribuída hierarquicamente por
diferentes funções em uma ordem social" (PR:20).
Essa analogia, insisto, não se esgota em uma sociologia do conhecimento, mas
pretende tornar manifesta a correspondência entre a estrutura conceptual última
do romantismo e a do mundo burguês17. Formulado em outros termos, o
ocasionalismo romântico é uma representação radicalizada da privatização da
experiência levada a cabo na ordem liberal-burguesa. Ambos são tributários de
uma metafísica do sujeito que se sustenta na imagem do indivíduo que encontra o
seu centro em si mesmo. Da mesma forma que na sociedade burguesa o indivíduo
vem a ser "o seu próprio sacerdote", o romantismo tem "no
sacerdócio privado" a sua "raiz última" (PR:20-21). Para
Schmitt, a situação-limite da afirmação dessa subjetividade auto-referida e
autárquica está na subjetivização do próprio princípio da ordem. O
ocasionalismo romântico pode ser visto como o caso extremo dessa metafísica do
sujeito. Nele, o princípio de ordem transforma-se em fator de fragmentação e
dispersão.
Assim, o mundo que Schmitt deduz da atitude romântica perante a realidade '
seria possível dizer que Schmitt deriva como resultado último da moderna
metafísica do sujeito ' é um mundo onde a ordem se tornou um problema, um mundo
sem fundamento objetivo. Através da privatização, "se dissolve a
hierarquia da esfera do espírito" (PR:17) e uma estrutura social
hierárquica e tradicional transforma-se em uma "sociedade dissolvida
individualisticamente" (PR:20). Como afirmei há pouco, a imagem que
Schmitt nos apresenta do romantismo leva ao extremo e dramatiza esse processo
de dissolução de uma ordem objetiva das coisas. A hipertrofia do sujeito
individual anula toda e qualquer regularidade do mundo externo (a
Entwirklichung der Weltà qual me referi anteriormente). A transformação da
realidade em uma ocasião para o exercício da fantasia individual, a estetização
generalizada fazem com que "toda norma apare[ça] como tirania anti-
romântica" (PR:126). O mundo do romantismo não conhece "nem
distinções lógicas, nem juízos morais de valor, nem decisões políticas"
(PR:130). Paradoxalmente, a hiperatividade subjetiva desemboca em uma postura
passiva18. Para Schmitt, a elevação do indivíduo a "ponto último de
legitimação na realidade histórica" conduz à diluição de todo princípio
objetivo da ordem e, finalmente, à impotência epistemológica, ao niilismo moral
e ao imobilismo político. O ocasionalismo romântico e o seu movimento de
"secularização de Deus no sujeito genial" (PR:165)seriam a expressão
mais acabada dessas tendências.
Com a secularização de Deus no indivíduo, o romantismo levaria às últimas
conseqüências uma atitude metafísica que, longe de dar alguma consistência ao
mundo, lhe subtrai todo fundamento objetivo. Na metafísica do sujeito
consagrada pelo romantismo, a estrutura metafísica de pensamento e a
necessidade de remeter a ordem a um fundamento último seriam
"preenchidas" por um princípio, o sujeito individual, incapaz de
assegurar algum tipo de estabilidade ao mundo. Para Carl Schmitt, a metafísica
do sujeito sustenta-se sobre uma ilusão: ela eleva a princípio último da ordem
um fator que no final das contas a inviabiliza. Como ele próprio observa,
"o sujeito genial, quando levou a sério a sua autarquia divina, não
tolerou mais uma comunidade" (PR:75). Imerso na sua condição de Deus
secular, o sujeito moderno instrumentaliza o mundo sem, no entanto, lhe
conferir coerência interna. A metafísica sobre a qual se ergue a ordem liberal-
burguesa transforma a vida social em algo de contingente e precário não só
porque subjetiviza a instância última, pulverizando-a e multiplicando-a, mas
também porque se ilude ao acreditar na possibilidade de uma ordem resultante da
autonomia do sujeito individual. Disso redunda, nos diz Schmitt, "um mundo
ocasional, um mundo sem substância e sem vínculo funcional, sem direção fixa,
sem conclusão e sem definição, sem decisão, sem tribunal último, que segue
adiante interminavelmente, guiado apenas pela mão mágica do acaso, the magic
hand of chance" (PR:19-20).
O romantismo se apresentaria, portanto, como uma renúncia radical à própria
possibilidade de uma ontologia. Na modernidade, segundo Schmitt, a História e a
Humanidade, nas suas diferentes figuras, teriam se apresentado como princípios
de uma "nova ontologia", como os "novos demiurgos" de uma
ordem puramente secular. Em ambos os casos, tratava-se de princípios
"objetivos e evidentes na sua validade supra-individual" (PR:68),
para os quais se pretendia reivindicar o lugar ocupado por Deus na metafísica
tradicional. Com a entronização romântica do eu, o que se elimina é justamente
esse ponto de referência objetivo e supra-individual e, dessa forma, deixaria
de fazer sentido a idéia de uma ontologia, ainda que uma ontologia secular.
Portanto, o romantismo, insisto, levaria às suas últimas conseqüências a
dissolução dos fundamentos tradicionais da ordem ' ou, para utilizar os termos
do próprio Schmitt, a desagregação da "hierarquia da esfera do
espírito". Ele realizaria em toda a sua extensão uma possibilidade contida
na própria "imagem metafísica do mundo" inaugurada pela modernidade.
No mundo romântico, a realidade se vê despojada do seu arcabouço ontológico;
trata-se de um mundo que não possui forma própria, já que a produtividade do
sujeito individual não seria capaz de conferir qualquer regularidade e direção
à experiência concreta.
Essa incapacidade de dar forma à realidade se traduziria no caráter
problemático que a própria arte tenderia a assumir no romantismo. Para Schmitt,
a natureza dissolvente da estetização romântica tem, em última análise, um
caráter autofágico, ela absolutiza a arte e, com isso, acaba por tornar
problemática a própria expressão artística. No romantismo, todas a formas
artísticas se convertem em mero pretexto para as expansões da subjetividade e,
com isso, a criação estética "tem que se distanciar de toda forma, assim
como da realidade concreta" (PR:20). O caráter ocasional da arte romântica
se evidenciaria na impermanência e no vazio das suas formas, já que estas
seriam, acima de tudo, um meio de expressão da fantasia subjetiva. Em lugar de
assegurarem algum tipo de fixação da experiência, as formas se tornariam elas
mesmas um "veículo" a serviço da instrumentalização da realidade
pelos caprichos da imaginação individual. O romantismo, nos diz Schmitt,
apropria-se de formas das mais diferentes épocas, sem jamais consolidar uma
forma própria. Esse processo de "romantização das formas alheias"
(PR:15) seria característico da dissolução dos conteúdos objetivos da realidade
resultante da primazia do sujeito individual. Ao se dobrar às exigências
expressivas de um eu desligado de todo vínculo normativo, a arte romântica só
conheceria "formas sem substância [que] se deixam relacionar a qualquer
conteúdo" (PR:86-87). A arte romântica, nessa perspectiva, seria "uma
arte sem publicidade e sem representação [Repråsentation]" (PR:16).No
entanto, para Schmitt, este não é um traço exclusivo da arte romântica. O
romantismo, nesse ponto, é um exemplo ' certamente um exemplo extremo ' de uma
"situação espiritual" mais abrangente, que diz respeito às premissas
últimas sobre as quais se funda a própria modernidade. Segundo Schmitt, o
romantismo "é, como um todo, a expressão de uma época que, na arte assim
como em outras esferas do espírito, não introduziu nenhum grande estilo e que,
em um sentido preciso, não é mais capaz de representação[Repråsentation]"
(PR:16).
Permanece em aberto o conteúdo mais exato da idéia de "representação"
nesse trecho. Para tanto, seria preciso acompanhar a análise de Schmitt sobre o
conceito de Repråsentation no livro Römischer Katholizismus und politische Form
(Catolicismo Romano e Forma Política)19. Para efeito deste trabalho, é
suficiente indicar que essa crítica à incapacidade de representação não se
restringe ao terreno da discussão estética. A despeito de uma certa nostalgia
que atravessa o texto de Schmitt, não me parece estar em jogo aqui apenas a
defesa de uma idéia tradicional de representação como reflexo ou a simples
tentativa de restaurar uma concepção substancialista de ordem20. Para ele, a
perda de capacidade representativa está diretamente associada à renúncia a uma
dimensão normativa. Em última análise, o romantismo e, por conseguinte, a ordem
liberal-burguesa e a própria época moderna não estariam em condições de dar
forma e direção à realidade humana. Assim, por meio da polêmica contra o
romantismo, a crítica de Schmitt aos princípios da ordem liberal-burguesa
reúne-se a uma crítica da modernidade. A rigor, as duas perspectivas não estão
separadas. Não custa insistir: ao buscar definir a "fórmula
metafísica" sobre a qual se baseia o romantismo, Schmitt tem em vista, ao
mesmo tempo, a "imagem metafísica" da época moderna. Em última
análise, o romantismo, a ordem liberal-burguesa, a modernidade são tributários
da mesma "estrutura ideal" e participam da mesma "situação
espiritual".
Entretanto, para Schmitt, a sustentação da imagem de uma ordem fundada na
autarquia do indivíduo tem limites precisos. Ela pressupõe a existência de um
estado de coisas, de uma situação concreta em que seria possível sustentar a
crença no caráter naturalmente positivo da produtividade do sujeito individual;
uma situação, portanto, em que os efeitos dissolventes dessa produtividade
poderiam ser ignorados. Não é por outra razão que Schmitt insistirá na idéia de
que "o romantismo é psicológica e historicamente um produto da segurança
burguesa" (PR:107). Da segurança burguesa teria se alimentado uma atitude
perante o mundo baseada na crença no "sacerdócio privado" como base
da existência coletiva. Contudo, observa Carl Schmitt em uma chave nitidamente
polêmica, essa já não seria a realidade do século XX: "durante o século
XIX se realizou de forma ininterrupta e com grande rapidez a dissolução da
antiga sociedade em direção à atual democracia de massas, por meio da qual
foram eliminadas precisamente toda dominação da burguesia liberal e sua cultura
[Bildung]" (PR:15).
A impossibilidade de sustentar a ilusão que a ordem liberal-burguesa construiu
a respeito de si mesma nos conduz a uma última questão: a crítica de Carl
Schmitt à inoperância política do romantismo. Neste ponto se concentra grande
parte da energia polêmica do seu livro. Em uma realidade que já não é mais a da
"segurança burguesa", não só a imagem de mundo a ela associada se
demonstraria finalmente insustentável, como também os seus perigos inerentes
seriam potencializados. Com isso, a insistência de Schmitt na nulidade política
do romantismo deve ser considerada em função de uma estratégia que pretende
avaliar, à luz de uma perspectiva-limite, os desdobramentos da metafísica
romântica. A identificação do ocasionalismo subjetivizado como o
"centro" do romantismo é indissociável do seu juízo sobre a política
romântica, pois é através do reconhecimento desse núcleo metafísico que Schmitt
irá derivar e deduzir suas conseqüências práticas e políticas. A impotência
política do romantismo é, em última análise, resultado da sua própria atitude
perante o mundo. Dessa forma, a busca de uma "explicação autêntica"
não se distingue, para Schmitt, de um parti pris, no sentido mais literal da
expressão; pelo contrário, é até mesmo condicionada por ele.
Para Schmitt, quando transposta para a vida política, a atitude romântica
resultaria em uma paralisia da ação. Por isso, insiste ele, "onde se
inicia a atividade política se encerra o romantismo político" (PR:165). O
fato de este último estar baseado na produtividade estética do sujeito
individual anula seu significado prático. Recusando os imperativos do real em
nome do jogo da fantasia, o romântico subtrai-se a toda posição para preservar
sua autarquia subjetiva. A estetização romântica revelaria seu caráter
dissolvente no distanciamento irônico do sujeito em relação à efetividade do
real, na suspensão do juízo e no abandono da ação; o indivíduo como que se
torna um simples espectador da realidade. Nesse contexto, de acordo com
Schmitt,
"[...] nem decisões religiosas, nem morais, nem políticas, nem
conceitos científicos são possíveis no domínio do puramente-estético.
Todavia, todas as contraposições e distinções objetivas [sachlichen],
bom e mau, amigo e inimigo, Cristo e Anticristo, talvez possam se
tornar contrastes estéticos e meios da trama de um romance e se
acomodar esteticamente no efeito global de uma obra de arte"
(PR:17).
O imobilismo, a postura passiva e, por fim, a incapacidade de decisão seriam a
contrapartida no campo da vida prática dos efeitos dissolventes do
ocasionalismo romântico. Para o romantismo político, a realidade política nada
mais é do que uma mera ocasião para a produtividade subjetiva. A eliminação dos
pontos de referência objetivos e a instrumentalização da realidade
corresponderiam à renúncia antecipada a toda e qualquer intervenção no mundo.
Por isso, em uma de suas afirmações caracteristicamente axiomáticas, Schmitt
considera que "o romantismo político é uma emoção de acompanhamento
[Begleitaffekt] do romântico para um acontecimento político" (PR:166).
Dessa maneira, Schmitt apresenta-nos um quadro em que a indefinição política do
romantismo se acrescenta à indefinição ontológica resultante da sua atitude
perante o mundo.
Portanto, ao se propor como teoria política, o romantismo não iria além de
"uma espécie de paráfrase[Umschreibung]lírica da experiência" (PR:
165). Na sua rejeição a todo posicionamento substantivo, acabaria por se
combinar com as mais diferentes posições políticas, sem aderir a nenhuma delas.
Essa combinação indiscriminada com diversas perspectivas políticas seria
resultado da sua própria natureza ocasional. O romantismo, na análise de
Schmitt, não possui conteúdo próprio, pois a condição da liberdade sem limites
do sujeito individual estaria no seu desligamento de toda substância objetiva e
de toda posição determinada. Nesse sentido, "não existem idéias
românticas, mas apenas idéias romantizadas" (PR:149). Em última instância,
a atividade de estetização conduz a um envolvimento puramente formal com os
seus objetos. Daí, a adaptabilidade do romantismo aos mais diferentes conteúdos
políticos. As formas vazias da experiência estética constituiriam para o
sujeito romântico a única "moldura" da sua independência individual.
Ao instrumentalizar a realidade em função do seu próprio deleite estético, ao
se relacionar com o mundo de maneira exclusivamente formal, o sujeito romântico
se recusaria a colocar a questão dos fins, ele seria incapaz de oferecer uma
direção à sua própria experiência. Todavia, observa Schmitt, por ser incapaz de
um posicionamento substantivo, o romantismo ficaria à mercê das decisões
políticas de forças alheias (cf. PR:168).
Assim, para Schmitt, a suposta superioridade do gênio romântico se mostraria a
um olhar mais atento como impotência. Com efeito, nos diz ele, "a raiz da
sublimidade [Erhabenheit]romântica é a incapacidade de decisão" (PR:120).
Isso lhe permite configurar uma situação em que a carência de fundamento do
mundo não encontra nenhum tipo de contrapartida. Pelo contrário, na atividade
autocentrada do sujeito romântico se verificaria a renúncia a regras e valores
comuns, a dissolução de todo princípio normativo sobre o qual fundar uma ordem:
"[...] uma emoção que não ultrapassa a esfera do subjetivo não
pode fundar nenhuma comunidade, a embriaguez da sociabilidade não é
base de um vínculo duradouro, ironia e intriga não são pontos de
cristalização social e não se pode erguer uma ordem social sobre a
necessidade de não estar sozinho, mas de pairar na agitação de uma
conversação animada. Porque nenhuma sociedade pode encontrar uma
ordem sem um conceito do que é normal e do que é Direito [Recht]. O
normal é, por definição, não-romântico, porque toda norma destrói a
independência ocasional do romântico" (PR:167).
Para Schmitt, o processo de emancipação do sujeito em face dos pressupostos da
ontologia tradicional não só desestabiliza a possibilidade de uma fundamentação
substancial dos princípios normativos, como implica a renúncia da própria idéia
de uma ordem normativa. Expressão extrema daquele processo, o romantismo não
teria como oferecer uma contrapartida política para a dissolução individualista
da "hierarquia da esfera do espírito". Assim, sua nulidade política
não se distingue da sua impotência normativa. Se o sujeito romântico, como
repete Schmitt insistentemente, não é capaz de nenhuma decisão, é porque ele
não admite se sujeitar a um posicionamento normativo diante da realidade. A
incapacidade romântica de decisão seria, em última análise, a incapacidade de
estabelecer uma ordem fundada em parâmetros de normalidade partilhados e
minimamente estáveis.
O SUJEITO DA ORDEM
"Disse-lhe Pilatos: 'Que é a verdade'?"
João 18, 38
O problema da norma e da ordem, ou, caso se prefira, a questão de uma ordem
normativa, também ocupa um lugar central em dois livros publicados por Schmitt
no início dos anos 20. Refiro-me a Die Diktatur (A Ditadura), de 1921, e
Politische Theologie (Teologia Política), de 1922. Muito próximos entre si,
ambos podem ser interpretados como um contraponto, no terreno da reflexão
jurídico-política, a alguns dos problemas colocados pela análise do romantismo
político no campo da história das idéias e da crítica cultural. Não pretendo
expor separadamente, como fiz com Politische Romantik, cada um dos textos.
Gostaria de considerá-los em conjunto, a partir do seu confronto com alguns dos
eixos centrais da discussão sobre o romantismo. Nesse sentido, interessa-me
considerar em que medida a discussão sobre o fundamento de uma ordem normativa
nesses dois livros pode ser pensada à luz de três questões centrais da crítica
de Schmitt ao pensamento romântico. Mais especificamente: a recusa do real, a
renúncia à decisão e a relação entre sujeito e ordem.
Tomemos como ponto de partida um trecho extraído do livro Legalitåt und
Legitimitåt (Legalidade e Legitimidade), de 1932: "nenhuma norma [...] se
interpreta ou se aplica, se protege ou se defende a si mesma; nenhuma validade
normativa se faz valer a si mesma; e também não existe ' caso não queiramos nos
estender em metáforas e alegorias ' nenhuma hierarquia de normas, apenas
hierarquias de homens e de instâncias concretas" (LL:53).
Este trecho é, sob diversos aspectos, exemplar, seja pela insistência com que
Schmitt faz afirmações semelhantes em diferentes momentos da sua obra21, seja
porque, em alguma medida, sintetiza em uma fórmula sua crítica ao problema do
fundamento de uma ordem normativa. Para Schmitt, como se pode ver, o fundamento
de validade de um sistema normativo não é jamais algo evidente em si mesmo. Em
última análise, nenhuma norma contém em si o princípio da sua própria validade.
Mais ainda: não haveria como derivar a validade de uma ordem normativa de uma
suposta universalidade ou racionalidade dos seus conteúdos. Para que isto fosse
possível, seria necessário pressupor a existência no interior da vida social de
um quadro de valores incontroverso, de algum tipo de consenso normativo. Na
ausência deste, seria preciso instituir as condições factuais em que as normas
pudessem ter vigência, ou seja, em que a sua validade viesse a ser
"universalmente" reconhecida. Nesse caso, porém, a universalidade de
semelhante reconhecimento já não seria uma decorrência da natureza em si mesma
universal e incontestável dos princípios normativos, mas o resultado da criação
de um "meio homogêneo" (D:133; PT:19). A impossibilidade de um
consenso fundado em critérios universais e objetivos traria consigo a exigência
de uma instância de validação da norma. Noções como "bem comum",
"justiça", "paz", "ordem pública",
"liberdade", na medida em que carecem de um sentido unívoco e
socialmente partilhado, não se tornam efetivas sem que uma interpretação
específica se imponha. Elas precisam se revestir de um significado concreto
para ter algum tipo de validade22. Se um imperativo moral ou jurídico precisa
ser interpretado para ganhar efetividade, se a sua validade não está
automaticamente dada por seu conteúdo, se é necessário criar as condições da
sua vigência, a questão, para Schmitt, transfere-se do plano de um juízo ético
ou jurídico ' incondicionado e puramente normativo ' para o plano do conflito
político.
Para Carl Schmitt, a impossibilidade de um conteúdo normativo se tornar efetivo
por si mesmo se revelaria em toda a sua amplitude à luz do tema da exceção. Em
uma situação anormal, seria possível reconhecer as condições de validade de uma
norma. Segundo ele, essa validade não é, como uma perspectiva racionalista
gostaria de crer, incondicional: a norma não pode valer em uma situação de
exceção, ou seja, em uma situação fora da norma, na qual, por princípio, ela
não se aplica. Dessa forma, observa Schmitt,
"[...] quem parte da idéia de estar em presença de uma situação
anormal ' ou porque contempla o mundo em um estado de anormalidade
radical, ou porque apenas considera uma dada situação como anormal '
resolverá o problema da política, da moral e do direito de forma
distinta de quem está convencido da sua normalidade de princípio,
somente transtornada por pequenas perturbações"23.
O ponto de vista da "normalidade de princípio"seria incapaz de
resolver a questão do fundamento de validade de uma norma, pois tomaria a
própria situação normal como algo antecipadamente garantido, ou seja,
conceberia as condições em que uma norma é válida como previamente dadas. No
entanto, pensa Schmitt, "toda norma geral exige uma configuração
[Gestaltung] normal das relações de vida"(PT:19). Em face da perspectiva
do estado de exceção, diante da possibilidade de uma situação concreta em que a
validade de um sistema normativo é necessariamente suspensa, seria preciso
admitir que a "normalidade factual [faktische]"não é apenas um
"pressuposto externo", mas sim algo que diz respeito à"validade
imanente" (PT:19)24 de uma norma. Nessa perspectiva, afirma Schmitt
categoricamente, "todo direito é direito situacional'
[Situationsrecht]" (PT:19). A vigência de um sistema normativo precisaria
ser concebida em termos das condições concretas em que uma proposição é
publicamente reconhecida como norma. Com isso, a reflexão jurídica de Schmitt
abre-se, necessariamente, para uma consideração da realidade histórica e
política, sem que isto signifique, para ele, uma simples redução do direito aos
seus condicionamentos concretos. Pelo contrário, como espero fique claro na
seqüência da minha exposição, ele procura pensar as condições do governo
normativo da realidade a partir da situação-limite em que a aniquilação do
direito se confunde com a sua própria criação. Daí a importância de se
considerar a realidade a partir do"caso-limite [Grenzfall]" de uma
situação anormal ' em que a suspensão das normas e da normalidade colocaria o
problema da sua própria instauração ', e não a partir do "caso
normal" (PT:13) ' em que a vigência das normas se faria enganosa. A
aparente naturalidade daquilo que é tido como normal seria apenas fruto de
"generalizações de algo que se repete de forma ordinária[des
durchschnittlich sich Wiederholenden]" (PT:21). Uma vez que a norma não se
apresenta como evidente em si mesma e capaz de se auto-instituir, dada a
impossibilidade de pressupor um consenso em torno de princípios normativos, a
questão passa a estar nas condições de instauração da normalidade.
Assim, o problema da normalidade e o conceito de "normal", em
Schmitt, não se definem em termos normativos, mas acima de tudo políticos25. A
estabilidade e a normalidade de uma dada situação não podem ser concebidas in
abstracto, elasdependem, em última análise, da definição de uma
"hierarquia de homens e instâncias concretas". Portanto, a questão da
validade de uma ordem normativa não se resolve em função do conteúdo das
normas, mas, nas suas próprias palavras, "é preciso criar um ordenamento
[Ordnung] para que o ordenamento jurídico[Rechtsordnung] tenha um sentido"
(PT:19)26. Com isso, norma jurídica e ordem política vêm a ser conceptualmente
separadas, ao mesmo tempo que se estabelece uma dependência estreita entre as
regras do direito e uma "configuração normal das relações de vida".
Como Schmitt observará mais adiante na sua Verfassungslehre (Teoria da
Constituição), de 1928, a validade do dever-ser do direito não pode ser
dissociada do ser político concreto que, em última análise, constitui "o
essencialmente existencial[das wesentlich Existenzielle]desse fundamento de
validade" (VL:76, ênfases no original). Dessa forma, ele procura afirmar a
primazia das relações políticas em face da vigência das normas do direito e
insiste na idéia de que a existência de unidade política constitui o
pressuposto da validade e da unidade do próprio ordenamento jurídico. Nesse
contexto, a constituição de uma situação normal implica a exclusão das
situações alternativas:
"[...] a unidade política é a unidade suprema, mas não porque
dita todo-poderosa ou porque nivela todas as demais unidades, mas
porque decide e pode impedir que, no seu interior, todos os outros
agrupamentos antagônicos se dissociem até a extrema inimizade (ou
seja, a guerra civil). Lá onde ela está presente, os conflitos
sociais dos indivíduos e grupos sociais podem ser decididos, de forma
que existe uma ordem, ou seja, uma situação normal. Ou a unidade mais
intensa está presente ou não está; ela pode se dissolver, então a
situação normal deixa de existir. Mas inevitavelmente ela é sempre
unidade, porque não existe pluralidade de situações normais"27.
Contudo, a insistência na primazia da existência política sobre o ordenamento
jurídico não significa uma recusa da dimensão normativa e o simples
reconhecimento da prioridade das relações de força e de poder sobre o direito.
Na verdade, trata-se, por um lado, de afirmar a impossibilidade de esgotar o
direito na imanência do sistema de legalidade. Por outro, está em jogo a
possibilidade do estabelecimento de uma ordem normativa dotada de efetividade.
Para Schmitt, a insistência no tema da exceção está diretamente associada ao
tema da "realização do direito" [Rechtsverwirklichung]28. O que ele
rejeita, portanto, é a generalidade abstrata de uma norma contida em si mesma e
desligada de toda situação concreta. Com efeito, nos diz ele, em um texto de
1934: "a norma ou a regra não cria a ordem; em vez disso, ela tem apenas,
com base numa dada ordem e no interior dela, uma certa função reguladora, cuja
validade é, em uma medida relativamente restrita, autônoma e independente da
situação das coisas" (DarD:11).
Para que uma norma possa assumir um caráter geral e se elevar para além das
circunstâncias particulares a serem reguladas, é preciso introduzir algum grau
de calculabilidade e regularidade na própria situação que ela pretende
governar. Com isso, o problema transfere-se da generalidade da norma para a
relativa estabilidade da situação concreta (cf. D:163). Uma norma geral,
reconhece Schmitt, tem que possuir uma certa dose de independência em relação
aos casos particulares; trata-se de uma premissa da sua própria validade.
Todavia ela não pode se elevar demasiadamente acima do estado de coisas
específico que tem por tarefa dirigir. Sua autonomia é restrita, pois, em
última análise, "a regra segue a situação mutante para a qual foi
definida" (DarD:20, ênfase no original).
Nada mais característico dessa imagem de dependência da esfera normativa em
relação à realidade concreta do que a análise de Schmitt sobre o conceito de
ditadura. A ditadura, para ele, não se confunde com o despotismo, já que os
poderes extraordinários exercidos pelo ditador têm como objetivo criar as
condições concretas para que o direito possa ter vigência. Em última análise, a
ditadura visa à sua própria supressão. Ela envolve uma ação orientada para a
realização de um fim específico e a obtenção de um resultado concreto: a
eliminação dos obstáculos à efetivação do direito na vida social. No entanto,
observa Schmitt, a natureza de tais impedimentos não pode ser definida
antecipadamente, não há como regulamentá-la. Tal fato impediria, por sua vez, a
delimitação jurídica precisa do conteúdo dos poderes ditatoriais. Nesse
sentido, a ditadura apresenta-se, em Schmitt, como uma "comissão de ação
determinada pela situação das coisas [Sachlage]" (D:134). Justamente por
estarem "determinadas pela situação das coisas", a competência e a
esfera de ação do ditador seriam incondicionadas, ou seja, se definiriam
essencialmente de forma concreta, tendo em vista os fatos a serem enfrentados.
Os recursos de poder e os meios necessários para a consecução dessa tarefa
dependeriam da sua própria deliberação, de uma avaliação das circunstâncias e
do reconhecimento da necessidade de estabelecer "exceções de acordo com a
situação das coisas" (D:38). Dessa forma, a ditadura é pensada em Schmitt
como um instituto do direito público cujo conteúdo, alcance e competência não
podem, em última análise, ser delimitados juridicamente. Com efeito, observa
Schmitt, o "conteúdo preciso"da ação ditatorial depende da
"[...] noção de um adversário concreto, cuja eliminação deve ser
o que há de mais próximo de uma delimitação do objetivo da ação [das
nåchstumschribene Ziel der Aktion]. A delimitação [Umschreibung] de
que se trata aqui não é uma apreensão dos fatos através dos conceitos
do direito, mas uma determinação puramente factual [ist keine
tatbestandmåßige Erfassung durch Rechtsbegriffe, sondern eine rein
tatsåchliche Pråzisierung]" (D:132).
A questão da ditadura traria consigo o reconhecimento da impossibilidade de
conter o conjunto da realidade no interior de um sistema normativo. Na ação do
ditador, segundo Schmitt, o respeito às normas do direito precisa ser suspenso
para que se criem as condições factuais de validade do próprio direito. Trata-
se de uma ação, portanto, que encontra a sua referência imediata na realidade
concreta e que extrai os seus critérios da própria "situação das
coisas". Ao contrário do que se observaria em um quadro de normalidade, no
qual se poderia pressupor que os fatos seriam governados pelas normas do
direito, na ditadura, os fatos determinariam os rumos da conduta da autoridade
pública. Nessa perspectiva, observa Schmitt, "se justifica tudo que é
necessário do ponto de vista do resultado concreto a ser alcançado" (D:
XVIII). Com isso, a ditadura reveste-se, a seu ver, de um caráter claramente
técnico, ela se apresentaria como um meio para alcançar um fim específico29. Em
última análise, o que torna a comissão do ditador incondicionada do ponto de
vista das normas do direito é o seu condicionamento pela "imediata
atualidade de uma situação a ser eliminada" (D:133). Todavia, é preciso
insistir, o reconhecimento das determinações factuais da ditadura e, portanto,
do arbítrio pessoal inerente aos poderes extraordinários do ditador não
significa uma simples defesa da arbitrariedade. Como já observei anteriormente,
a análise de Schmitt parte da idéia de que a racionalidade de uma ordem
normativa não se resolve em si mesma, mas exige para a sua própria efetivação a
consideração de um elemento que, por assim dizer, lhe é "estranho",
um dado "irracional". Portanto, não está em jogo aqui a exaltação
irracionalista do "concreto" e da "atualidade imediata",
mas a tentativa de estabelecer uma relação entre o abstrato e o concreto, entre
o dever-ser da norma e o ser da realidade. Essa relação, em Schmitt, não é
concebida simplesmente sob a forma da subsunção de um termo no outro ou da sua
exclusão recíproca, mas como uma tensão em que os dois extremos se mostram
mutuamente referidos. Trata-se, caso se prefira a expressão, de um vínculo
dialético. Em outras palavras, a questão da ditadura, em Schmitt, está ligada à
pergunta sobre fundamento concreto de uma ordem normativa abstrata.
Sendo assim, a suspensão dos obstáculos jurídicos e normativos que singulariza
os poderes extraordinários do ditador se orienta por considerações de natureza
normativa, muito embora não se baseie em nenhuma norma do direito. Ela se
justifica, segundo Schmitt, em função de uma determinada "tarefa
jurídica" (D:133), ou seja, a supressão de um estado de coisas que
inviabiliza a vigência do direito. O estabelecimento de uma situação de exceção
seria o resultado da necessidade de eliminar um "adversário [que] não se
atém às normas do direito que o ditador reconhece como fundamento jurídico e
como medida[für maßgebend]" (D:133). Na ditadura, portanto, se verificaria
o paradoxo de que a defesa e a afirmação do direito possam exigir o
reconhecimento de uma situação de fato em que as regras do direito simplesmente
não se aplicam. Por esse motivo, Schmitt pode afirmar que "o problema da
ditadura seria [...] o problema da exceção concreta" (D:XVIII)30. Por
outro lado, a idéia de que a ditadura tem em vista a possibilidade de
efetivação concreta do direito põe em evidência o fato de que, "como
exceção, ela se mantém em uma dependência funcional em relação àquilo que
nega" (D:XVII)31. Na análise de Schmitt, a afirmação da dignidade teórica
e jurídica da questão da ditadura está diretamente associada à perspectiva de
que não é possível pressupor uma correspondência imediata entre justiça
normativa e realidade concreta. Se a ditadura se faz necessária, é exatamente
porque precisam ser criadas as condições efetivas em que a ordem jurídica possa
se concretizar. Nisso reside, aos olhos de Schmitt, a sua própria justificação:
"ela ignora, é certo, o direito, mas apenas para realizá-lo [zu
verwirklichen]" (D:XVIII). Nesse sentido, a referência ao adversário
parece-me central. Como já observei anteriormente, para Schmitt, não existe
ordem normativa sem o estabelecimento de algum consenso em torno de princípios
comuns. Todavia, a possibilidade-limite do estado de exceção tornaria evidente
que as condições desse consenso não se criam mediante a persuasão racional.
Dessa forma, o problema da ditadura traz consigo a questão do conflito e da
violência como meio de concretização da ordem normativa. O fato de a vigência
dessa ordem exigir a eliminação daqueles que não reconhecem os seus fundamentos
normativos significa, para Schmitt, que o direito para se tornar efetivo não
pode prescindir da sua própria negação32. Segundo ele,
"[...] entre a dominação da norma a ser realizada [Herrschaft
der zu verwirklichenden Norm] e o método da sua realização
[Verwirklichung] pode, portanto, existir uma oposição. De um ponto de
vista jurídico-filosófico, aqui está a essência da ditadura, mais
especificamente, na possibilidade geral de uma separação entre as
normas do direito e as normas de realização do direito
[Rechtsverwirklichung]" (D:XVII).
Essa característica da ditadura permite considerar de forma mais precisa o
conceito de exceção no pensamento de Schmitt. Pelo que disse até agora, espero
que esteja claro que, na exceção, a suspensão da ordem normativa não é o mesmo
que uma renúncia à possibilidade de fundamentar juridicamente a experiência.
Aqui, segundo Schmitt, a revogação da normalidade e, portanto, da vigência da
ordem jurídica "é sempre algo de diferente de uma anarquia e de um
caos" (PT:18)33. Longe de ser um estado de coisas que ignora toda
fundamentação jurídica, a exceção se apresentaria como a situação extrema de um
"nada normativo" (DarD:24) em que o direito, sem dar lugar à mera
factualidade do real, reconhece, por assim dizer, a sua incapacidade de
governá-la de acordo com a racionalidade das normas. Nessa perspectiva, segundo
Giorgio Agamben (1997:26), o estado de exceção configuraria um caso-limite de
indiferenciação entre uma situação de fato e uma situação de direito. No estado
de exceção, as normas do direito emudecem, o que não significa que o seu lugar
seja tomado pela crueza imediata de relações de força indiferentes a toda
mediação jurídica. Por isso, Schmitt pode se referir à exceção ditatorial como
"um problema da realidade concreta [konkreten Wirklichkeit], sem deixar de
ser um problema jurídico" (D:133-134). Com efeito, na sua reflexão, o
reconhecimento da "realidade concreta" é a condição para o
estabelecimento de uma ordem igualmente concreta. Nesse quadro, o tema da
exceção representa a tentativa de pensar uma situação em que o direito
experimenta o seu limite ou então, como quer Carlo Galli (1996), se confronta
com a sua origem não racional34.
No tema da exceção está, com certeza, um dos eixos do "realismo
político" próprio do pensamento de Carl Schmitt. Por um lado, trata-se de
uma situação extrema construída intelectualmente, que oferece um ponto de vista
privilegiado para se pensar a questão do fundamento da ordem jurídica. Mas não
só. A busca de um fundamento concreto está indissoluvelmente ligada, no seu
pensamento, à afirmação do caráter não normativo e, portanto, indeterminado da
vida social e política. Em última análise, ele concebe a "realidade
concreta" a partir do problema da exceção. Como o próprio Schmitt observa,
"justamente uma filosofia da vida concreta não pode se retrair diante da
exceção e do caso extremo, mas deve se interessar por ele na mais alta medida
[...]. Na exceção, a força da vida real [wirklich Lebens]rompe a crosta de uma
mecânica entorpecida na repetição" (PT:21).
Dessa forma, em oposição à generalidade abstrata do dever-ser normativo, o ser
da "vida real" em Schmitt apresenta-se como algo que possui, por sua
própria natureza, um caráter potencialmente excepcional, extraordinário. A
"realidade concreta" é o terreno do imponderável e do contingente,
daquilo que não obedece a nenhum critério racional de calculabilidade e
dedutibilidade, não podendo ser delimitado e previsto com antecipação35. Nesse
sentido, é significativa a imagem que Schmitt nos propõe da exceção: ela é,
segundo ele, "o não-subsumível" (PT:19), o que "perturba a
unidade e a ordem do esquema racionalista" (PT:20). Na exceção, a
"vida real" mostra-se como algo que não pode ser contido dentro dos
parâmetros de uma racionalidade normativa, mas que, ao mesmo tempo, precisa ser
governada juridicamente. Assim, a premissa da falta de correspondência imediata
entre justiça normativa e realidade concreta desdobra-se em uma reflexão sobre
o potencial desestabilizador e, ao mesmo tempo, inovador da vida política. No
pensamento de Schmitt, a existência política não possui fundamento ou, para
empregar os termos de Roberto Racinaro (1986:160), não se apresenta
"ontologicamente fixada'", manifestando-se, na exceção, sob a forma
da crise, de uma ruptura da aparente naturalidade do continuumda vida
ordinária. A questão do "concreto" em Schmitt está associada à
impossibilidade de fundar a vida comum sobre bases incontroversas e à afirmação
da necessidade de que a ordem reconheça o seu próprio fundo de desordem.
Esse caráter potencialmente excepcional e não normativo do conceito de
konkreten Wirklichkeit (realidade/efetividade concreta) ganhará mais tarde no
pensamento político de Carl Schmitt uma feição claramente existencial. Nesse
sentido, sua discussão sobre o "conceito do político'" pode ser
considerada como um desdobramento da sua análise a respeito do tema da exceção.
Não por acaso, no livro Der Begriff des Politischen(O Conceito do Político), o
caso de exceção (Ausnahmefall) será associado ao caso crítico (Ernstfall) do
conflito entre amigos e inimigos (cf. BP:35, 39). À luz dessa perspectiva, a
questão do "político" mostra-se indissociável da tentativa de
incorporar à reflexão jurídica os problemas da "realidade concreta".
O "existencialismo político" de Schmitt está diretamente ligado à sua
preocupação com as condições da ordem e da sua validade concreta. O
reconhecimento da natureza existencial e impermeável a toda mediação normativa
da inimizade política constitui, a seu ver, a premissa de uma ordem mediada
normativamente.
Ao mesmo tempo, a insistência de Schmitt na natureza extraordinária da idéia de
"realidade concreta" permite qualificar de forma ainda mais precisa o
sentido da recusa romântica da seriedade do real. A "Entwirklichung der
Welt" ("esvaziamento da realidade do mundo") promovida pelo
romântico está diretamente associada à sua crença na possibilidade de fundar
toda a experiência das coisas em uma vivência subjetiva. Se o sujeito romântico
pretende ser superior à realidade ou mesmo evadir-se dela é porque, nos diz
Schmitt, ele se quer um "criador de mundos". Nisso, a produtividade
estética do romantismo, a despeito da sua incompatibilidade com todo tipo de
norma, se aproximaria do racionalismo normativista. A presunção de reduzir a
"vida real" à abstração de um sistema normativo é, sob determinados
aspectos, análoga ao despojamento da substância da realidade pela fantasia
ocasional do indivíduo. Em ambos os casos, o mundo parece adquirir ordem e
coerência interna, se resolvendo na produtividade estética do indivíduo ou na
universalidade de um sistema normativo. Ao buscar no sujeito o fundamento
prévio e a garantia da experiência, o romantismo ignora a contingência da vida
concreta: sua evasão das determinações do real é, antes de tudo, uma recusa da
indeterminação concreta da vida social e política.
Além disso, como observa Giacomo Marramao36, a ênfase de Schmitt na natureza
existencial da "vida real" reveste o conceito de exceção de uma clara
ambivalência. Ao pensar a exceção como algo irredutível às generalizações
normativas, Schmitt a associa a um efeito de choque, de quebra da continuidade
do tempo ordinário37. Ela traria consigo a possibilidade do novo, de uma
experiência única e imediata, que, como tal, perturbaria a aparente evidência
da regra que se repete no cotidiano. Não por acaso, Schmitt reconhece na
exceção jurídica uma analogia com o milagre na esfera da religião. Em ambos os
casos, dar-se-ia uma ruptura que, em razão da sua radical alteridade, do seu
caráter absolutamente singular e extraordinário, abalaria a aparente
naturalidade da norma geral e da vida cotidiana, apontando para um
"além" da mera identidade da experiência ordinária consigo mesma38.
Nessa perspectiva, a insistência de Schmitt na incomensurabilidade da exceção
em relação ao geral é indissociável de uma valorização da sua natureza
potencialmente inovadora39. Por outro lado, a suspensão das normas do direito
pode ser interpretada em termos puramente defensivos, como um meio de
preservação da ordem ameaçada.
Uma vez mais, a análise de Schmitt sobre a ditadura é ilustrativa dessa
ambigüidade da exceção. Segundo ele, é possível distinguir dois tipos de
ditadura: ditadura comissarial, em que a suspensão da ordem jurídica e os
poderes extraordinários do ditador têm em vista a proteção de uma constituição
sob ameaça. A exceção visa, aqui, liberar o terreno dos obstáculos jurídicos
que impeçam o recurso às medidas necessárias ao restabelecimento da
normalidade, ou seja, de uma situação de ordem e segurança públicas em que a
constituição possa ter vigência. A ditadura comissarial, portanto, depende de
uma constituição já existente, embora sua ação não esteja baseada na legalidade
constitucional. O ditador pode suspender as normas vigentes e o exercício
regular dos poderes constituídos, sem no entanto revogá-los. Ela é, nas
palavras de Schmitt, uma "comissão de ação incondicionada de um pouvoir
constitué" (D:143).
O mesmo já não ocorreria com o outro tipo de ditadura analisado por Schmitt: a
ditadura soberana. Dessa vez, não se trata de salvaguardar a constituição
existente, mas de criar uma nova. Estamos diante de uma ditadura de caráter
revolucionário. Não por acaso, Schmitt reconhece na atuação da Convenção
Nacional durante a Revolução Francesa, entre 1792 e 1795, o primeiro exemplo
histórico de uma ditadura soberana. A exceção, nesse caso, não implica a mera
suspensão da constituição vigente, mas a sua revogação. Como ele mesmo observa,
"[...] a ditadura soberana vê no conjunto da ordem existente a
situação que ela quer eliminar através da sua ação. Ela não
suspendeuma constituição existente graças a um direito fundado nela '
portanto, graças a um direito constitucional ', mas busca criar uma
situação em que seja possível uma constituição que ela considera como
a verdadeira constituição. Ela não invoca uma constituição existente,
mas uma constituição a implementar" (D:134).
A ditadura soberana, como se pode ver, não se baseia em poderes constituídos,
já que ela age no sentido de uma ruptura com a ordem existente. Nesse caso, a
ação do ditador encontra sua razão de ser e sua "fundamentação
jurídica" (D:134) na existência de um poder não constituído, mas que,
segundo Schmitt, é a fonte da própria ordem constitucional: o poder
constituinte. Para ele, onde há poder constituinte há um "mínimo de
constituição" (D:142). Dessa forma, a eliminação das condições adversas à
expressão da vontade do pouvoir constituant é equivalente à criação de um
estado de coisas em que o direito possa ter vigência, ainda que este não se
apresente sob a forma de uma constituição instituída. Na ditadura soberana,
portanto, o estado de exceção constitui-se em relação à própria ordem jurídica
a ser implementada e tem em vista criar uma situação em que seja possível o
livre exercício do poder constituinte40. Aqui, observa Schmitt,
"primeiramente, devem ser criadas para [o] próprio povo as condições
exteriores a fim de que o seu poder constituinte possa se tornar atual"
(D:142). O ditador, portanto, atua na condição de comissário do povo, ele age
em nome da vontade constituinte, para eliminar as resistências políticas ao
estabelecimento da nova ordem. Os poderes de exceção exercidos pelo ditador
revolucionário apresentam-se igualmente sob a forma de uma comissão, no
entanto, e esse é o ponto significativo: sua relação com o comitente se
transforma.
Schmitt,na esteira do pensamento de Sieyès, concebe o pouvoir constituant como
uma "força originária[Urkraft]" (D:139) do direito, capaz de gerar
ordem e formas jurídicas, mas que não se deixa jamais fixar a si mesma. Ele
seria, por definição, "informe" (D:140); caso contrário, estaríamos
diante um órgão constituído. Tendo em vista sua superioridade em relação a
todas as formas estabelecidas, o poder constituinte se apresentaria como
"o organizador inorganizável" (D:139)41. A vontade constituinte do
povo, nessa perspectiva, não pode exibir um conteúdo preciso, sem deixar de ser
ilimitada e incondicionada. Assim, apesar da total dependência em relação ao
seu comitente, o comissário do povo, segundo Schmitt, faz algo mais do que
simplesmente transmitir uma vontade já definida, ele deve "formá-la
[formieren]" (D:140)42. Em última análise, o conteúdo dessa comissão não
pode ser delimitado e, devido à própria natureza da sua tarefa de formação da
vontade constituinte, o ditador desfruta do "pleno poder absoluto, diante
do qual todas as competências existentes desaparecem" (D:114). Daí que a
comissão do ditador assume, ainda que provisoriamente, um caráter soberano e,
ao mesmo tempo, democrático. Estamos diante de "um comissário imediato do
povo, um ditador que dita inclusive ao seu mandante, sem deixar de se legitimar
por ele" (D:XIX)43.
Na ditadura revolucionária, a eliminação dos obstáculos à efetivação do direito
acaba por se confundir com a criação do próprio direito. Se for verdade, como
Schmitt insiste, que a ditadura nega a norma que tem por função realizar, aqui,
paradoxalmente, a norma que se nega ainda está por ser criada. O ditador, para
usar os seus termos, age em nome de uma "constituição ideada
[vorgestellten]" (D:146). Com isso, realiza-se, por assim dizer, uma
passagem da esfera jurídica para a existencial e política. Já não é, como no
caso da ditadura comissarial, a preservação do direito constituído que
justifica a ruptura do direito, mas a existência política do poder constituinte
do povo como fonte originária do direito44. Ao mesmo tempo, na ditadura
soberana se evidenciaria com toda a clareza a fonte da legitimidade da ação
ditatorial. Ainda que o ditador aja em nome de uma constituição existente ou
por instituir, ainda que, portanto, o fim da sua ação seja "correspondente
a uma representação normativa" (D:XVII), os meios para a realização desse
fim, os seus poderes extraordinários, não se legitimam em termos de qualquer
norma jurídica. Pelo contrário, eles significariam a negação dessas normas.
Para Schmitt, essa legitimidade só pode ser o resultado da existênciade
"uma autoridade suprema, juridicamente capaz de suspender [aufzuheben] o
direito e autorizar uma ditadura, ou seja, capaz de permitir uma exceção
concreta" (D:XVIII).
Na ditadura revolucionária, essa dimensão político-existencial, concretizada na
figura do poder constituinte, assume, como apontei anteriormente, o lugar da
inovação e, cabe agora acrescentar, o papel de fundamento último de validade da
própria ordem jurídica. Porém, esse mesmo fator que funda a ordem contém em si
um potencial de desestabilização e a torna problemática. A natureza informe e
"efetivamente inconstituível" (D:140)do poder constituinte é
característica desse paradoxo. Ele é a fonte de todas as normas jurídicas, mas
nunca se esgota nas formas que origina, as quais, como assinala Schmitt,
"a qualquer momento pode romper" (D:139). Exige uma atividade de
formação, mas não pode ser fixado em uma moldura constitucional. Ao afirmar a
indeterminação e a excepcionalidade da "vida real", o pensamento de
Schmitt equilibra-se de maneira instável e tensa entre o reconhecimento da
ausência de fundamento da "realidade concreta" e a exigência de
constituição de uma ordem; entre a afirmação da natureza informe da existência
política e a necessidade da sua formação; entre a defesa da irredutibilidade da
exceção à regra e a busca de uma condução normativa da vida social e histórica.
Nesse contexto, a singularidade absoluta e a indeterminação concreta da
"vida real" apresentam-se, simultaneamente, como a condição e o
obstáculo para a construção de uma ordem. É também nesse contexto que o tema da
decisãoassume importância central. Vejamos este ponto.
Como observei anteriormente, para Schmitt, o ponto de vista da exceção nos
mostraria que nenhuma norma pode conter em si mesma o fundamento da sua
validade. A situação-limite da suspensão do direito no estado de exceção
colocaria o problema da instauração da própria ordem normativa. Nesse quadro, a
questão da validade já não poderia ser pensada em termos da auto-suficiência da
norma, mas traria consigo a pergunta pela instância de validação da ordem. A
possibilidade de situações que escapam a toda delimitação normativa imporia a
necessidade de uma decisão que estivesse em condições de ditar concretamente as
fronteiras do direito. Aqui, insiste Schmitt, "a decisão se liberta de
todo vínculo normativo e se torna absoluta em um sentido próprio" (PT:18).
Decidir, nessa perspectiva, seria algo mais do que a mera aplicação de uma
norma. Pelo contrário, pois "de um ponto de vista normativo, a decisão
nasce de um nada" (PT:37-38). Este fato se deveria a duas razões
fundamentais: em primeiro lugar, em uma situação de conflito, no "nada
normativo" do estado de exceção, não haveria nenhuma possibilidade de um
consenso em torno de princípios últimos que servissem de fundamento para uma
decisão. Nesse caso, nos diz Schmitt,
"[...] naturalmente, todos querem apenas o direito, a moral, a
ética e a paz; ninguém quer cometer injustiças; mas a única questão
in concretointeressante é sempre: quem vai decidir no caso concreto o
que é o direito? onde está a paz? o que é uma perturbação ou ameaça
da paz? com que meios elas são eliminadas? quando é que uma situação
está normal e pacificada'? etc."45.
Uma vez que, para Schmitt, o conflito não pode ser resolvido em nome de uma
norma reconhecida por todos como incondicionalmente válida, o fundamento último
da decisão não obedeceria a critérios de certeza racional. Pelo contrário, ela
"se torna nesse momento independente de uma fundamentação argumentativa e
adquire um valor autônomo" (PT:37). A decisão é, ao mesmo tempo, um ato de
interpretação, capaz de atribuir significado concreto aos conceitos que
estruturam a vida coletiva. Todavia, semelhante interpretação é, antes de tudo,
um ato de autoridade. Não se trata do simples reconhecimento de algo já dado,
mas contém em si um "momento constitutivo" (PT:37). A construção da
ordem pública seria indissociável de um processo de produção e imputação de
sentido, através do qual se eliminariam possibilidades alternativas de
interpretação. Como o próprio Schmitt observa, tratando-se de
"[...] conceitos políticos decisivos, interessa justamente quem
os interpreta, define e aplica; quem, através da decisão concreta,
diz o que é paz, desarmamento, intervenção, ordem pública e
segurança. Trata-se de uma das mais importantes manifestações da vida
jurídica e espiritual da humanidade em geral o fato de que aquele que
possui o verdadeiro poder também pode determinar por si mesmo os
conceitos e palavras. Cæsar dominus et supra grammaticam: César
também é senhor da gramática"46.
Em segundo lugar, não haveria como subsumir as diferentes situações que
concretamente exigem uma decisão na generalidade abstrata de um preceito moral
ou de um princípio jurídico. A existência de uma norma geral seria aqui de
pouca utilidade, porque, em última análise, "a circunstância que torna
necessária uma decisão permanece um momento determinante e independente"
(PT:36). Para Schmitt, a circunstância de uma autêntica decisão desafia toda
delimitação normativa. Aceitar o ponto de vista da exceção significaria,
portanto, reconhecer o caráter literalmente extraordinário da decisão, a qual
se situaria, antes de tudo, no domínio daquilo que não pode ser previsto,
daquilo que não pode ser antecipado. Na ótica racionalista da "normalidade
de princípio", a ruptura com a ordem normal se apresentaria como algo
infenso à compreensão racional. Para Carl Schmitt, porém, o fato de que a
situação fora da norma implica uma ruptura com a ordem tornaria patente o papel
da decisão no estabelecimento de uma "situação ordinária". Assim, a
premissa da impossibilidade de uma correspondência imediata entre norma e
realidade característica do conceito de exceção teria como outro lado da moeda
a função mediadora da decisãocomo a condição da efetividade de uma ordem
normativa.
A análise da questão da validade da ordem em termos da decisão tem alguns
desdobramentos no pensamento de Schmitt que, a meu ver, merecem ser
considerados.
Em primeiro lugar, ao afirmar que a vigência do direito não pode ser dissociada
das condições concretas da "normalidade factual", Schmitt transforma
a decisão em um fator de estabelecimento de uma situação normal. Decidir, nessa
perspectiva, implica criar e impor uma "configuração normal das relações
de vida" em que as regras jurídicas possam ser válidas. A decisão assume,
com isso, um caráter eminentemente político. Ela nasce de um nada normativo e
tem no conflito a premissa da sua própria efetividade. Assim, ao aproximar,
como já vimos, o caso de exceção e a possibilidade extrema do conflito
político, ele associa igualmente a decisão sobre a exceção e a decisão sobre o
inimigo. A eliminação do inimigo e a construção de um consenso por exclusão
acabam por se apresentar como condições de criação da própria normalidade47.
Em segundo lugar, ao insistir na idéia de que a decisão cria a situação normal
em que as normas podem ter validade, Schmitt recusa, como já observei em
diversas oportunidades, a imagem de princípios normativos incondicionalmente
válidos. Dessa maneira, o problema transfere-se do fundamento da decisão para a
decisão como fundamento. Esta concepção decisionista do direito estaria
sintetizada em uma fórmula extraída do capítulo 26 do Leviatã, retomada
insistentemente por Schmitt: "Auctoritas, non veritas facit legem"
("A autoridade, não a verdade, faz a lei"). Assim, ao se originar de
um "nada normativo", a decisão funda, de uma forma literalmente
autoritária, a própria ordem normativa. Ao criar as condições concretas de
vigência do direito, ela cria o próprio direito. Segundo Schmitt, para que o
direito possa governar a realidade, é preciso ' já assinalei este ponto ' que a
situação seja calculável e que exista alguma estabilidade das "relações de
vida"; é preciso, portanto, instituir concretamente uma ordem normal e
pacífica. No entanto, o estabelecimento de semelhante ordem não se dissocia de
uma decisão sobre o que é o direito, o interesse público, a paz. A criação de
uma normalidade factual não é um dado anterior à aplicação do direito aos
fatos, mas constitui um ato de conformação jurídica da realidade. No entanto,
como não existe norma prévia que sirva de fundamento da decisão, esse ato de
conformação jurídica da realidade se confunde com um ato de vontade. A
existência de uma vontade pública capaz de decidir sobre o que é e onde está a
ordem passa a ser condição de validade dessa mesma ordem. Com o decisionismo,
portanto, a pergunta pelas condições de validade de uma ordem normativa
desdobra-se em dois temas estreitamente associados. Por um lado, a idéia da
primazia da decisão sobre a norma tende a ser formulada em termos da
anterioridade da existência da unidade política em relação aos seus aspectos
normativos (cf. PT:18-19), ou então, de maneira ainda mais abstrata, como a
"superioridade do existencial sobre a pura normatividade" (VL:107).
Por outro lado, trata-se de saber quem é o sujeito dessa vontade capaz de criar
a ordem. Um pouco mais à frente, retornarei a esta última questão.
Por fim, parece-me necessário considerar o significado ontológico que o tema da
decisão possui no pensamento de Schmitt. Para ele, a existência de uma decisão
capaz de se impor publicamente e dotada de legitimidade apresenta-se como uma
maneira de conferir algum tipo de determinação à indeterminação da vida social
e política. A decisão é, nessa perspectiva, um ato que extrai a sua força da
contingência da "realidade concreta" e, ao mesmo tempo, interrompe a
sua deriva, criando um estado de coisas em que seja possível a constituição
normativa da vida comum. Retomando termos já empregados, acredito que a decisão
pode ser pensada como um fator de"fixação ontológica"da realidade
concreta.
A essa altura, imagino que já esteja claro para o leitor como a análise da
decisão, em Carl Schmitt, se coloca no extremo oposto da sua caracterização do
romantismo. Enquanto a produtividade estética do sujeito romântico aprofundaria
a indeterminação da realidade concreta, criando um mundo inteiramente ocasional
e desprovido de qualquer ponto de referência fixo, a decisão implicaria o
reconhecimento de uma instância última e de uma vontade pública capazes de
instituir ordem no mundo. Portanto, à privatização, ao imobilismo, à
passividade, à indefinição, ao niilismo, ao "eterno diálogo" (PT:59)
romântico, Schmitt contrapõe uma imagem da decisão como a ação política por
excelência; uma ação que se confronta com a necessidade de uma intervenção
pública na realidade, de uma direção substantiva da experiência concreta, de
uma condução normativa da vida social. Por outro lado, ainda que a decisão em
Schmitt possa ser concebida como um contraponto à contingência da "vida
real", ela não significa a recuperação de um estado de coisas
ontologicamente garantido. É evidente a natureza assumidamente paradoxal da
tentativa de buscar na decisão uma via política que assegure consistência
ontológica a um mundo sem substância. A decisão, já sabemos, emana de um vazio
normativo e, embora seja o fundamento de validade da ordem, não possui em si
mesma nenhum fundamento. Ao conceber a decisão desprovida de fundamento,
Schmitt transforma o reconhecimento da indeterminação em um pré-requisito da
determinação da própria ordem.
No estado de exceção, portanto, a ação humana ocorreria sem nenhum parâmetro e
seria levada a se confrontar com a sua absoluta precariedade e, ao mesmo tempo,
com o seu próprio potencial criativo. "Liberta de todo vínculo
normativo", a decisão no estado de exceçãopode ser pensada como uma ação
que implica a incertezae o riscoe, ao mesmo tempo, o máximo do arbítrio humano.
Na falta de pontos de apoio seguros, o papel do arbítrio e da capacidade de
deliberação pessoal seria levado ao extremo e, por assim dizer, se apresentaria
em "estado puro", pois aqui não haveria lugar para se conceber a ação
como derivada de conteúdos normativos prévios, ou seja, como uma "auto-
aplicação da norma vigente" (DarD:23). Com isso, o problema da exceção, no
pensamento de Schmitt, está acompanhado de uma espécie de elogio da
produtividade da ação humana, entendida, acima de tudo, como uma decisão
pessoal em uma situação de colapso das referências normativas. Nesse contexto,
a ação é, antes de tudo, "uma decisão pura, absoluta, que não argumenta
[nicht råsonierende], não discute, não se justifica e, portanto, criada a
partir do nada" (PT:69). No entanto, ao contrário da arbitrariedade
distintiva da produtividade ocasional do sujeito romântico, a ação do sujeito
da decisão em Schmitt é criadora de ordem; trata-se de uma ação dotada de
eficácia pública. Sob determinados aspectos, parece-me possível dizer que o
ponto de vista do estado de exceção radicaliza a indeterminação das sociedades
modernas para evidenciar o lugar constitutivo do sujeito e de uma decisão
pessoal na criação da ordem pública. Todavia, sujeito da decisão não é um
agente qualquer, mas alguém que, segundo Schmitt, possui competênciapara tanto
(ele emprega os termos Zuståndigkeit, Befugnis, Kompetenz). Mesmo assim, uma
pergunta permanece: afinal, em que consiste essa competência do sujeito da
decisão? Esta questão nos conduz inevitavelmente ao tema da soberania no
pensamento de Carl Schmitt.
Até aqui, procurei analisar o problema do fundamento de uma ordem normativa na
reflexão jurídico-política de Schmitt tendo em vista os temas da exceção e da
decisão. Essas duas questões, como havia afirmado no início da discussão, podem
ser interpretadas a partir do seu contraponto com a recusa romântica do real e
sua renúncia à decisão. No entanto, um ponto central continua por ser
explorado, muito embora já venha se insinuando ao longo da minha exposição:
trata-se da questão da soberania e, por conseguinte, do sujeito da decisão. Na
verdade, a análise, como procurei fazer, tratando separada e sucessivamente dos
temas da exceção e da decisão, não pode nos iludir quanto ao fato de que
Schmitt os pensa em conjunto e em função do tema da soberania. A decisão
genuína, para ele, é sempre uma decisão soberana, e a verdadeira decisão
soberana é aquela que remete ao estado de exceção. Mais precisamente:
"soberano é quem decide sobre o estado de exceção" [Souverån ist, wer
über den Ausnahmezustand entscheidet] (PT:13).
Esta afirmação categórica, que, como uma espécie de decisão prévia, abre o
capítulo inicial de Teologia Política, merece maior atenção. Todavia, não
pretendendo retomar a análise precedente, gostaria apenas de me concentrar em
dois problemas específicos: o primeiro refere-se ao "quê" da decisão
soberana ' o que está em jogo na idéia de uma "decisão sobre o estado de
exceção"? O segundo diz respeito ao "quem" da soberania '
afinal, quem é o soberano?
Schmitt concebe a noção de soberania como um Grenzbegriff, um conceito-limite48
construído a partir de um ponto de vista extremo. Para ele, ela se refere a uma
instância de decisão última em um quadro de falência das referências
normativas, ou seja, no "nada normativo" do caso de exceção. Em uma
situação em que todas as decisões tendem a se tornar equivalentes, o
"monopólio da decisão última" (PT:19) pelo soberano significaria a
possibilidade de sustar a multiplicação de interpretações sobre a natureza do
interesse público e acabar com o conflito em torno dos princípios da própria
ordem, instituindo autoritariamente a normalidade e os parâmetros da existência
coletiva. Daí, a idéia de que "a questão da soberania é a questão da
decisão de um conflito existencial" (VL:371), ou seja, de um conflito que
não pode ser solucionado em função de critérios normativos, mas cuja resolução
é, ela mesma, a origem de padrões normativos. Nesse sentido, pode-se dizer, com
perdão da redundância, que a decisão do soberanoé decisiva, pois, como observa
Schmitt, comentando Hobbes, ela "cria o direito, ao decidir a luta em
torno do direito" (D:21). O ponto de vista extremo da exceção tornaria
patente a importância da soberaniacomo esse lugar de decisão sobre a natureza
da própria ordem pública. O fato de a ação do soberano se dar em um quadro de
colapso dos fundamentos normativos não se confunde, para Schmitt, com o
exercício arbitrário da força. Como ele nos diz, para o decisionista, "a
fonte de todo direito', ou seja, de todas as normas e ordenamentos que daí
decorrem, não é o comando [Befehl] como comando, mas a autoridade e a soberania
de uma decisão última, que está associada ao comando" (DarD:21).
O caráter último da decisão soberana lhe confere uma autoridade que não permite
reduzi-la ao simples exercício da força, ou seja, ela não se resume a um estado
de fato, mas seria, por assim dizer, conforme o direito. No entanto, uma
questão continua sem resposta: o que confere força de direito à decisão
soberana já que a sua expressão mais acabada se verifica no "nada
normativo" do estado de exceção? Na ausência de um fundamento prévio e
sendo equivalentes todas as decisões alternativas, o que torna efetivamente
última a decisão soberana é a sua capacidade de se impor sobre as demais e
conquistar reconhecimento público. Com isso, Carl Schmitt é levado a formular o
seu problema em termos, eu diria, deliberadamente aporéticos: a decisão
soberana tem a força do direito porque cria as condições de vigência do próprio
direito e não porque se funda em um direito antecedente. Ou, para empregar o
paradoxo que ele nos propõe em Teologia Política: "a autoridade [...] não
precisa ter direito, para criar o direito" (PT:19). Ao agir, o soberano
realiza um movimento de conformação da "vida real" e, embora a sua
decisão nasça de uma exceção concreta, não se deixa diluir na natureza informe
e imediata desta última49.
Para Schmitt, essa natureza última da decisão soberana e, portanto, a sua
capacidade de instituir as condições concretas de vigência do direito se
evidenciariam na sua competência para a revogação da ordem vigente: se o
soberano decide sobre a natureza da ordem é porque ele está em condições de
decidir sobre o estado de exceção. Porque não pode ser subsumida, circunscrita
ou antecipada, a exceção precisa ser declarada, ou melhor, decidida. Mais
precisamente: a exceção, já sabemos, não pode ser deduzida de nenhum princípio
geral, não há parâmetro algum a partir do qual seria possível reconhecer
antecipadamente uma determinada situação como excepcional. Por isso, a decisão,
para Schmitt, jamais tem um significado meramente declarativo, ela, pelo
contrário, constitui o estado de exceção. Não se trata do simples
reconhecimento de um certo estado de coisas: é o soberano quem decide quando as
normas não mais se aplicam, quem determina o momento em que uma ordem
normativa, por não dar conta da "vida real", precisaria ser suspensa.
Ele decide sobre(über) o estado de exceção. Nesse sentido, ao instituir o
estado de exceção, o soberano faz algo mais do que constatar uma situação de
conflito que escapa à normalidade, ele se torna parte do próprio conflito e o
assume como a condição de estabelecimento da ordem. A sua ação tornaria
evidente que a norma não é universalmente válida e que não contém em si o seu
próprio fundamento. A contraface, por conseguinte, da decisão sobre o estado de
exceção é a decisão sobre a normalidade. O mesmo soberano que estabelece o
estado de exceção, definindo uma situação como anormal, estaria em condições de
determinar em que consiste a ordem pública, quando ela foi restabelecida,
restaurada. Dessa forma, como o próprio Schmitt observa, o soberano,
contraditoriamente, "está fora do ordenamento jurídico normalmente em
vigor, todavia, faz parte dele, porque é competente [zuståndig] para a decisão
sobre se a constituição in toto pode ser suspensa" (PT:14).
Assim, a analogia entre exceção e milagre ganha uma qualificação adicional. Em
ambos os casos, a ruptura com a continuidade da experiência cotidiana pressupõe
"o reconhecimento de uma ação e de uma intervenção extraordinárias,
semelhantes àquelas do a deo excitatus"50.A exceção traria consigo a
imagem de uma instância externa à própria ordem das coisas, capaz de suspender
o seu funcionamento corriqueiro e, com isso, instaurar uma situação
excepcional. Por outro lado, essa ruptura assume um caráter demiúrgico: aquele
que rompe com as regras existentes é, ao mesmo tempo, capaz de criar a ordem a
partir do nada. A suspensão das normas no estado de exceção permitiria pensar o
sujeito da decisão como alguém que, à imagem e semelhança de Deus, decide sobre
o que é e onde está a ordem51.
Portanto, a crítica à metafísica do sujeito moderno como um fator de dissolução
da ordem não é incompatível com o papel que Schmitt atribui a uma decisão
pessoal no estabelecimento da ordem pública. O que ele recusa, na verdade, é a
idéia de que a crise dos fundamentos da vida coletiva se possa resolver através
da sua fundamentação no sujeito individual e na esfera do privado. Na verdade,
como venho observando, sua reflexão sobre o problema da ordem jurídico-política
é indissociável da pergunta pelo lugar do sujeito da decisão. No pensamento de
Schmitt, o soberano pode ser visto como o antípoda da absolutização do
indivíduo no mundo liberal burguês. Tanto em um caso como no outro, estamos
diante de figuras secularizadas de Deus. Todavia, enquanto a transformação do
sujeito individual em ponto último de legitimação da realidade aniquila todo e
qualquer fundamento, pulveriza e, finalmente, anula o Deus tradicional da
metafísica cristã, a decisão soberana, mal ou bem, significa, para Carl
Schmitt, um caminho de volta até ele. O soberano, nessa perspectiva, pode ser
visto como um "metassujeito" (Jay, 1993:52), supra-individual e
público, como um lugar de decisão pessoal a ser ocupado no interior da ordem
jurídico-política e, ao mesmo tempo, situado acima dela.
No entanto, para fazer jus à complexidade da reflexão de Schmitt, é preciso
reconhecer que esse lugar de decisão última que distingue a soberania não
implica uma posição previamente definida e assegurada. Tentarei ser um pouco
mais claro: se for verdade que a soberania envolve uma instância de decisão
última, por outro lado, como insiste Schmitt em diferentes oportunidades, a
competência do soberano não pode ser circunscrita e definida previamente. A
ação do soberano remete à situação de exceção e, como tal, não pode ser
antecipada e regulamentada. Sua competência é "por princípio,
ilimitada", pois diz respeito à "suspensão do conjunto da ordem
existente" (PT:18). Com isso, a questão das atribuições da soberania
converte-se na pergunta pelo sujeito da soberania52. Mais precisamente:
"quem decide sobre as competências não reguladas constitucionalmente, ou
seja, quem é competente quando o ordenamento jurídico não dá resposta alguma à
pergunta pela competência?" (PT:17).
Imagino que não será difícil reconhecer que, para Schmitt, essa pergunta só
pode ter uma resposta política. Em última análise, a competência do soberano
depende da sua capacidade de se impor no estado de exceção e instaurar um
quadro de normalidade. Sua decisão é última, já assinalei este ponto, porque
exclui todas as decisões alternativas. Formulando a questão nos termos que
Schmitt utilizará posteriormente para caracterizar o "político": a
competência do soberano está associada à sua capacidade de monopolizar a
diferenciação entre amigo e inimigo. Dessa forma, o lugar da soberania, da
instância de decisão última no ordenamento jurídico, é um lugar a ser ocupado,
ou melhor, é um lugar que se define existencial e politicamente através da
própria decisão soberana. O soberano não existe como entidade jurídica
previamente constituída, mas se constitui no próprio ato de decisão. Nesse
contexto, me parece que Giuseppe Duso tem razão quando afirma que, em Schmitt,
"a subjetividade se manifesta na decisão em ato, esta coincide com a
crítica do sujeito como fundamento, como substância que se determina antes e
independentemente da decisão e da política" (1981:63)53. Dessa forma, a
crítica de Schmitt ao sujeito romântico pode ser ampliada em relação àquilo que
eu disse há pouco. Não se trata apenas de uma crítica antiindividualista à
privatização da experiência no mundo liberal burguês, mas também uma crítica à
idéia mesma de um fundamento prévio da ordem. Por oposição à moderna metafísica
do sujeito que privatiza e subjetiviza o princípio de ordem, a soberania
oferece um princípio "objetivo" de ordem. Porém, o fato de a
competência do sujeito da soberania depender da cisão instituída pela própria
decisão impõe o reconhecimento de que essa subjetividade política nasce de uma
fratura e conserva em si a memória dessa fratura54. A unidade e a identidade do
sujeito da decisão depende da sua abertura para o imponderável da exceção e
para o imperativo da exclusão, que continuamente negam as idéias mesmas de
identidade e unidade.
NOTAS
1.Legenda dos textos de Carl Schmitt citados:
Der Begriff des Politischen ' BP
Die Diktatur ' D
Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus ' GlhP
Hugo Preuss. Sein Staatsbegriff und seine Stellung in der Deutschen Staatslehre
' HP
Legalitåt und Legitimitåt ' LL
Politische Romantik ' PR
Politische Theologie ' PT
Positionen und Begriffe ' PuB
Über die drei Arten des rechtswissenschaftlichen Denkens ' DArD
Verfassungslehre ' VL
2.Karl Löwith já havia sublinhado essa questão, ao destacar que "as
exposições de Schmitt são essencialmente polêmicas', ou seja, não se dirigem
apenas casualmente a isso ou àquilo para clarificar criticamente a sua opinião,
mas a sua própria exatidão' baseia-se totalmente naquilo contra o qual se
dirigem" (Löwith, 1960:63).
3.Cito a partir da segunda edição revista, publicada em 1925. A esta segunda
edição Carl Schmitt acrescentou um importante prefácio e incorporou um ensaio
de 1920 denominado "Politische Theorie und Romantik" ("Teoria
Política e Romantismo"), que veio a ser a terceira parte do livro.
4."A estrutura do espírito romântico" ("Die Struktur des
romantischen Geistes") é o título do capítulo central do livro de Schmitt.
5."Der Begriff der modernen Demokratie in seinem Verhåltnis zum
Staatsbegriff" (1924), inPuB:27.
6.Segundo Schmitt, a análise do romantismo "deve, assim como toda situação
importante da moderna história do espírito [Geistesgeschichte], começar com
Descartes" (PR:62).
7.Este é o subtítulo que Schmitt dá à primeira parte do seu capítulo sobre a
"estrutura do espírito romântico".
8.Os trechos citados correspondem ao subtítulo que Carl Schmitt dá, no índice
do seu livro, à parte onde ele discute as questões suscitadas pela filosofia de
Descartes: "O problema filosófico da época: a oposição entre ser e
pensamento e a irracionalidade do real" (PR:23).
9."Staatsethik und pluralistischer Staat", inPuB:153. Em PT, Schmitt
fala da "imagem metafísica que uma determinada época faz do mundo"
(PT:50).
10.Michele Nicoletti, comentando a análise de Carl Schmitt sobre o racionalismo
moderno no livro Romantismo Político, formula a questão nos seguintes termos:
"o racionalismo [...] tende a pôr-se como chave explicativa do real, mas
esse racionalismo, na análise schmittiana acaba por conduzir a um fracasso: ao
invés de lançar uma ponte entre ser e pensamento, ele encerra o pensamento em
um formalismo abstrato e entrega a realidade a um mecanicismo bruto"
(Nicoletti, 1990:113). Essa "realidade", que escapa ao racionalismo
moderno, mas à qual ele em última análise aspira, geralmente aparece no texto
designada pela palavra de origem latina Realitåt. Com isso, pode-se dizer que
Schmitt tende a estabelecer uma distinção conceitual entre
"realidade" entendida como "substância ontológica",
normalmente designada como Realitåt, e "realidade" no sentido mais
empírico, normalmente designada pela palavra de origem germânica Wirklichkeit'
ainda que esta não seja uma distinção rígida e o uso destes conceitos possa
variar ao longo do texto.
11.Segundo Schmitt, seria possível reconhecer quatro reações diferentes ao
racionalismo: uma de natureza filosófica, em que se destacariam Spinoza e
Hegel; uma de perfil místico e antifilosófico, associada às figuras de Madame
Guyon e Antoinette Bourignon e a filósofos como Fénelon e Poiret; uma oposição
histórico-tradicionalista, que encontraria em Vico o seu principal
representante; e, por fim, um movimento de caráter emocional-estético, ao qual,
como afirmei há pouco, o romantismo pertenceria.
12.Para a referência à lírica como a forma de produtividade própria ao
sentimento romântico da vida e da natureza, ver PR:66.
13.Nesse sentido, concordo com Catherine Colliot-Thélène, quando ela observa
que, na análise de Schmitt, o subjetivismo constitui o "fundo comum do
racionalismo moderno e do romantismo" (Colliot-Thélène, 1992:284).
14.As expressões "romance infindável" e "jogo de palavras"
pertencem a Novalis. Schmitt recolhe a primeira do seguinte fragmento de
Novalis: "todos os acasos da nossa vida são matéria com a qual podemos
fazer o que quisermos, tudo é o primeiro elo de uma cadeia interminável, o
início de um romance infindável" (apud PR:92).
15.Segundo Catherine Colliot-Thélène, essa caracterização da ironia romântica e
a própria imagem do romantismo como uma recusa do mundo objetivo em nome da
independência subjetiva mantêm evidentes pontos de contato com a crítica de
Hegel aos românticos (cf. Colliot-Thélène, 1992).
16.Para a noção de "ocasionalismo subjetivizado", ver PR:18-19.
17.A referência aqui é a idéia de uma "conceptualidade radical[radikaler
Begrifflichkeit]" (PT:50), que Schmitt apresenta no seu livro Politische
Theologie, de 1922. Essa idéia implicaria, em linhas gerais, uma análise dos
conceitos que levasse em conta o seu núcleo metafísico e teológico e, dessa
forma, "descobr[ir] a estrutura última, radicalmente sistemática e compar
[ar] essa estrutura conceitual com a elaboração conceptual da estrutura social
de uma determinada época" (PT:50). Nesse sentido, concordo com a
observação de Carlo Galli de que a remissão de Schmitt à ordem burguesa
"não é tanto um dado sociológico, quanto metafísico"(Galli, 1996:
198). É com base nessa perspectiva "metafísica" ou, caso se queira,
"teológico-política" que se entende, a meu ver, a aproximação que
Schmitt estabelece entre romantismo, liberalismo, racionalismo. Não se trata da
afirmação de uma mera equivalência e identidade, ou seja, Schmitt não nos diz,
por exemplo, que romantismo e liberalismo são a mesma coisa. Trata-se, isso
sim, de reconhecer nesses diferentes movimentos a presença da mesma
"estrutura ideal". Uma vez mais, penso que Carlo Galli formulou o
problema de maneira precisa ao dizer que "o que Schmitt critica no nexo
que aproxima romantismo, racionalismo e liberalismo é o fato de que esses
complexos histórico-políticos [...] pressupõem, mais ou menos abertamente, que
o sujeito seja a instância última da política e da realidade, e que exista uma
espécie de garantia a priori de que através do diálogo entre sujeitos (e da
relação entre o sujeito e o mundo) possa se realizar plenamente uma ordem"
(idem:200).
18.Segundo Schmitt, "no núcleo dessa fantástica superioridade do sujeito
encontra-se a renúncia a toda transformação ativa do mundo real, uma
passividade" (PR:167; ver, também, PR:119).
19.O livro sobre o catolicismo foi publicado em 1923, ou seja, no ano anterior
ao prefácio à segunda edição de Romantismo Político (o prefácio traz a data de
setembro de 1924), do qual foram extraídas as citações referentes à questão da
Repråsentation.
20.Essa é a leitura que Luiz Costa Lima, na seqüência de Karl Heinz Bohrer, faz
da crítica de Schmitt ao caráter não representativo da arte romântica (cf.
Costa Lima, 1993:150). Para a idéia de que a crítica de Schmitt está marcada
pela nostalgia de uma ordem em que as referências da vida social estão
asseguradas de antemão e "autoritariamente fixadas", ver Colliot-
Thélène (1992:279).
21.Para observações do mesmo gênero, ver, por exemplo: DarD:14; BP:72; VL:9,
56, 90.
22.Cf. "Zu Friedrich Meineckes Idee der Staatsråson" (1926), inPuB:
57; LL:33; VL:37. Como observa George Schwab, em Schmitt, "toda afirmação
religiosa, filosófica ou moral precisa de interpretação" (Schwab, 1989:
46)./
23."Zu Friedrich Meineckes Idee der Staatsråson" (1926), inPuB:53.
24.Em DArD, de 1934, Schmitt reafirma esse ponto: "a normalidade da
situação concreta, regulada pela norma, e do tipo concreto por ela pressuposto
não é, portanto, apenas um pressuposto externo, a ser desconsiderado do ponto
de vista da ciência jurídica, mas uma característica jurídica essencial,
interna, da validade da norma e uma determinação normativa da própria norma.
Uma norma pura, desligada de toda situação e tipo[situationlose und typenlose],
seria um absurdo jurídico" (DarD: 20). Um dos alvos dessa insistência na
importância normativa do caráter concreto da "normalidade factual" é
a "teoria pura do direito", do jurista austríaco Hans Kelsen. O
normativismo de Kelsen é uma das principais referências de Schmitt na sua
discussão sobre o fundamento de validade de um sistema normativo. Sobre Schmitt
e Kelsen, pode-se consultar entre outros: Hofmann (1999); Portinaro (1982);
Caldwell (1997); Kervégan (1995); Beaud (1993); Araujo (1990).
25.Hasso Hofmann considera que o conceito de "normal" no pensamento
de Schmitt é "sociológico", pois "ele não pensa que a situação
concreta esteja sujeita à validade absoluta de um valor, mas indica a
efetividade de um princípio unitário de estrutura da realidade social"
(Hofmann, 1999:96). Creio, no entanto, que essa caracterização da normalidade
como um conceito sociológico pode induzir a equívocos, já que, como veremos,
para Schmitt, esse "princípio de estruturação" é constituído pela
ação política. Nesse sentido, parece-me preferível qualificar essa normalidade
de política. Essa é a perspectiva, por exemplo, de Heiner Bielefeldt, que
afirma que Schmitt pensa a "normalidade política como base da
normatividade legal" (Bielefeldt, 1996:383).
26.Como o próprio Schmitt observa, no estado de exceção, "os dois
elementos do conceito 'Rechts-Ordnung' se defrontam e demonstram a sua
independência conceptual" (PT:19). Essa insistência na separação entre
ordenamento e ordenamento jurídico tem, entre outros alvos, a redução do Estado
ao direito realizada por Hans Kelsen.
27."Staatsethik und pluralistischer Staat", inPuB:159-160.
28.Para uma discussão da centralidade do problema da realização do direito no
pensamento jurídico de Carl Schmitt com referência aos seus textos anteriores a
1919 (com particular destaque para Der Wert des Staates und die Bedeutung des
Einzelnen), ver Hofmann (1999); Nicoletti (1990); Duso (1988).
29.Segundo Schmitt, "se, em tempos normais, o meio concreto para alcançar
um resultado concreto (por exemplo, o que a polícia está autorizada a fazer
para a manutenção da segurança pública) pode ser calculado com uma certa
regularidade, no caso de necessidade [Notfall], pode-se apenas dizer que o
ditador está autorizado a fazer precisamente tudo o que é necessário conforme a
situação das coisas. Aqui não importam mais as considerações jurídicas, mas
apenas o meio adequado para um resultado concreto no caso concreto. Aqui também
o procedimento [Vorgehen] pode ser falso ou correto, mas essa apreciação se
refere apenas ao fato de se as medidas [Maßnahme] são corretas num sentido
técnico-objetivo [sachtechnischen], isto é, se elas são adequadas ao fim
[zweckmåßig]" (D:11).
30.Em outra oportunidade, Schmitt irá afirmar que a "a ditadura é
necessariamente estado de exceção'" (D:XVI).
31.Cf., também, D:146. Em função disso, Schmitt afirma que "em um sentido
geral, pode-se denominar de ditadura toda exceção em relação a uma situação
concebida como justa" (D:146). Esse, não custa insistir, é o ponto que
separa, aos olhos de Schmitt, a ditadura do despotismo. Segundo ele, "uma
ditadura que não dependa de um resultado correspondente a uma concepção
normativa, porém a se realizar concretamente, que não tenha por objetivo se
fazer supérflua é um despotismo qualquer" (D:XVII).
32.A referência ao adversário a ser eliminado é central em um outro aspecto.
Segundo Schmitt, a tendência do Estado de Direito liberal seria cada vez mais
regulamentar o exercício dos poderes de exceção. Com isso, a ditadura torna-se
sinônimo de "estado de sítio" e a constituição não é suspensa, mas
apenas alguns dos direitos de liberdade. Como observa Grigoris Ananiadis, aos
olhos de Schmitt, o equívoco de semelhante situação reside no fato de que, no
estado de sítio do mundo liberal, os adversários da ordem jurídico-política
continuam a ser tratados como cidadãos e não como inimigos a serem eliminados
(cf. Ananiadis, 1999:125); para uma discussão histórica do problema do
"estado de sítio", ver o cap. VI de D).
33.Cf., também, PT:20.
34.Hasso Hofmann faz uma observação semelhante ao dizer que Schmitt
"confronta a doutrina do Estado com o seu fundo niilístico e
irracionalístico" (1999:112).
35.Nessa discussão, acompanho algumas idéias de Racinaro (1986).
36.Sigo aqui de perto as considerações de Marramao (1990). Pode-se consultar
também Marramao (1981) (posteriormente recuperado, com algumas alterações, como
capítulo do livro Poder e Secularização); Marramao (1995; 1997) (estes dois
últimos textos recuperam e reelaboram o texto de 1990).
37.Para a aproximação entre o conceito de exceção e as idéias de "choque,
agora, subitaneidade [suddenness]", próprias das vanguardas artísticas e
intelectuais do começo do século XX, ver Bredekamp (1999:253). Para esse
intérprete, uma das razões da atração de Walter Benjamin pelo pensamento de
Schmitt estaria justamente nessa imagem da exceção como um evento único, que
não se enquadra na sucessão ordinária dos acontecimentos e produz uma
"cessação do tempo ordinário" (ibidem). Segundo Jacob Taubes, a
experiência da história tanto em Benjamin quanto em Schmitt estaria determinada
pela idéia de Jetztzeit (cf. Taubes, 1996:38).
38.Para a aproximação entre exceção e milagre, cf. PT:43.
39.Como observa Marramao, a afirmação por Schmitt da natureza existencial da
vida concreta traz consigo uma ênfase no "momento inovador', de ruptura
beneficamente catastrófica" (Marramao, 1990:35). No final do primeiro
capítulo de PT, Schmitt reproduz um longo trecho de um "teólogo
protestante" do século XIX (trata-se de Kierkegaard), que é significativo
dessa valorização da exceção em face do geral: "a exceção explica o geral
e a si mesma. E, caso se queira estudar o geral corretamente, é necessário
procurar por uma real exceção. Ela traz à luz tudo muito mais claramente do que
o próprio geral. Há muito estamos fartos do eterno palavrório sobre o geral;
existem exceções. Se elas não podem ser explicadas, também não é possível
explicar o geral. Freqüentemente não se nota a dificuldade, por que o geral
sequer é pensado com paixão, mas com uma cômoda superficialidade. A exceção,
pelo contrário, pensa o geral com uma paixão enérgica" (PT:21).
40.Segundo Schmitt, "na ditadura revolucionária, a constituição a ser
implementada pela ditadura assim como pelo sempre presente pouvoir constituant
está suspensa" (D:142). Um pouco mais adiante, Schmitt observa que
"no estado de coisas por meio do qual a ditadura se justifica, o conteúdo
em si problemático do poder constituinte não está efetivamente presente
[aktuell nicht vorhanden], segundo seus próprios pressupostos"(D:142-143).
41.Mais adiante, Schmitt afirma: "do abismo infinito e inabarcável do seu
poder se originam sempre novas formas, que a qualquer momento ele pode romper e
nas quais o seu poder jamais se delimita definitivamente. Ele pode querer o que
lhe aprouver, o conteúdo do seu querer tem sempre o mesmo valor jurídico do
conteúdo de uma determinação constitucional. Ele pode, portanto, intervir como
bem entender através da legislação, da administração da justiça ou de meros
atos fáticos [faktischen]. Ele se torna o titular ilimitado e ilimitável dos
jura dominationis, que nem sequer no caso de necessidade [Notfall] precisam ser
limitados. Ele jamais constitui a si mesmo, mas sempre constitui os
outros" (D:139). Essa concepção do poder constituinte será um dos pilares
do livro Teoria da Constituição,de 1928.
42.Não por acaso, Schmitt considera que a paradoxal figura do législateur, no
Contrato Social de Rousseau, embora não concebida em termos de uma comissão,
seria distintiva do processo de transição do tipo clássico de ditadura
comissarial para a ditadura soberana (cf. cap. III de D).
43.Sobre esse ponto, ver, também, VL:59-60. A afirmação por Schmitt da
compatibilidade entre democracia e ditadura tem como contraface a dissociação
entre liberalismo e democracia, que será insistentemente afirmada em GlhP. Na
ditadura soberana, assinala Schmitt referindo-se a um discurso de Barère, de
1793, "o povo, na verdade, exerce a ditadura sobre si mesmo" (D:148).
No apêndice da segunda edição de 1928, "Die Diktatur des Reichspråsidenten
nach Artikel 48 der Weimarer Verfassung" ("A ditadura do presidente
do Reich segundo o artigo 48 da constituição de Weimar"), Schmitt retoma a
discussão sobre a ditadura soberana e qualifica a própria atuação de uma
assembléia constituinte como um caso de ditadura soberana. Segundo ele,
"enquanto semelhante assembléia não concluir o seu trabalho, a
constituição, ela detém toda competência imaginável. Todo o poder do Estado
[Staatsgewalt] está reunido em suas mãos e pode se apresentar imediatamente sob
a forma que quiser. Uma normação [Normierung] e uma repartição exaustivas das
competências e das funções estatais ainda não existem; o poder constituinte do
povo ainda não se vinculou a limites constituídos e a assembléia constituinte
pode, portanto, de acordo com o seu próprio juízo fazer valer a plenitudo
potestatis" (D:236). O mesmo ponto de vista é desenvolvido em VL:59-60.
44.Nesse sentido, parece-me que Carlo Galli tem razão quando afirma que, na
ditadura soberana, a "a exceção não é jurídica, mas político-
existencial", de tal forma que "o problema jurídico da
Rechtsverwirklichung atinge o extremo ' tornando-se problema político"
(Galli, 1996:579).
45."Zu Friedrich Meineckes Idee der Staatsråson" (1926), inPuB:57.
46."Völkerrechtliche Formen des modernen Imperialismus" (1932),
inPuB:202.
47.Cf. "Staatsethik und pluralistischer Staat", inPuB:159-160.
48.Para a idéia de Grenzbegriff, cf. PT:13.
49.Nesse sentido, Michele Nicoletti identifica um componente pragmático no
pensamento de Schmitt. Segundo ele, em Schmitt, "a verdade de um fato não
está na sua coerência em relação a uma ordem interior ou exterior preexistente
de tipo natural ou metafísica [...], mas em relação a uma finalidade histórica
e socialmente posta (não a uma finalidade ideal), em relação à sua capacidade
de instituir e realizar uma ordem concreta" (Nicoletti, 1990:20-21).
50."Zu Friedrich Meineckes Idee der Staatsråson" (1926), inPuB:53. A
expressão "a deo excitatus" pode ser traduzida como "impelido
por Deus".
51.Posteriormente, no momento em que Schmitt tende a se distanciar da
perspectiva decisionista, esse caráter demiúrgico da soberania receberia uma
formulação ainda mais enfática: segundo ele, o decisionismo pressupõe "a
representação consciente de uma total desordem, de um caos, que só se
transforma em lei e ordem através de uma pura decisão" (DarD:22). Nessa
perspectiva, observa ele, para o decisionista, "a decisão soberana é
começo absoluto, e o começo (no sentido de "DP0) não é nada mais do que
decisão soberana"(DarD:24). A referência à expressão grega arché é
significativa, pois esta palavra tanto pode significar princípio no sentido de
começo, como princípio no sentido de fundamento.
52."O caso de exceção, o caso não definido no ordenamento jurídico
vigente, pode na melhor das hipóteses ser designado como caso de extrema
necessidade, de ameaça à existência do Estado, ou algo semelhante, mas não pode
ser delimitado de acordo com os fatos [tatbestandmåssig]. Só este caso torna
atual a pergunta pelo sujeito da soberania, ou seja, a pergunta pela soberania
em geral"(PT:13-14, ênfases minhas).
53.Logo adiante, o mesmo comentador observa:"a subjetividade não [está]
acima e fora da função da decisão, e, por isso, não se [pode] individuar
abstratamente e a priori um sujeito legitimador da decisão" (idem:63).
54.Para uma associação entre decisão e corte a partir da própria etimologia da
palavra, ver o texto já citado de Marramao (1990:36).