Por que se importar com a desigualdade
As crescentes desigualdades socioeconômicas das duas últimas décadas têm
despertado intenso interesse acadêmico e não acadêmico, como atestam as
prolixas literaturas universitária, de organismos internacionais oficiais e de
organizações não-governamentais. Não obstante, à exceção da Europa Nórdica onde
figuram com destaque na agenda pública, as desigualdades estão notavelmente
ausentes como objeto explícito de políticas públicas nacionais, mesmo quando,
como no caso europeu ocidental, essas políticas têm efeitos redistributivos.
Há uma série de razões para essa elipse. Em diversos países da Europa
Ocidental, por exemplo, apesar de crescentes as desigualdades, o seu nível é
ainda relativamente baixo, enquanto em países do continente africano, a
insuficiência absoluta de recursos, mais do que sua distribuição, é certamente
o problema mais agudo. Além disso, uma tendência que envolve a grande maioria
dos países, independentemente de sua rendaper capita, regime político e
políticas públicas específicas, pode bem ter sua origem em eventos que ocorrem
em escala global, e requerer reparação a este nível, como a crise da dívida dos
anos 80 (Galbraith, 2002) e o movimento especulativo de capitais que a ela se
seguiu, com os subseqüentes efeitos perversos sobre a distribuição interna de
riqueza e renda. Em outras palavras, inexperiência, urgência e globalização
financeira fariam com que políticas públicas explicitamente orientadas para a
redução das desigualdades parecessem singularmente não atraentes.
Contudo, razões respeitáveis escasseiam quando se trata de países com níveis de
desigualdade persistentemente elevados. Este é o caso da maioria dos países
latino-americanos e, em particular, do Brasil, que não apenas ostenta,
possivelmente, a pior distribuição de renda do mundo como tem uma dispersão de
renda próxima à que existe no mundo1; mas também dos EUA, que se destacam a
esse respeito entre os países desenvolvidos pelo menos há duas décadas. Aqui,
ocorrem-me duas razões de respeitabilidade duvidosa para a referida elipse,
muito embora proferidas na intimidade dos pequenos círculos nem por isso
desprovidas de poder de fogo: 1) a convicção de que enfrentar a desigualdade
não é politicamente realista; 2) a crença de que falido o socialismo as we know
it, não há horizonte normativo que seja ao mesmo tempo respeitável e factível.
Em conjunto, estas duas razões recomendariam o deslocamento do foco do
interesse público para os problemas mais urgentes de exclusão social e pobreza
extrema, e para o apoio a políticas sociais orientadas para o seu alívio. A
desigualdade existiria, como negar?, mas essencialmente não contaria.
Neste ensaio, pretendo inventariar e examinar argumentos e evidências
disponíveis na literatura especializada contemporânea que desacreditam as duas
suposições acima. Estes essencialmente indicam que, se, de um lado, mesmo o
alcance sustentável de objetivos "mais realistas", como o combate à
pobreza extrema, pode requerer a promoção da desigualdade para o primeiro plano
da agenda pública, de outro, há à disposição dos interessados um elenco de
opções sérias, como atestam algumas perspectivas igualistaristas pós-
rawlsianas.
A estrutura do texto é a seguinte. Na seção 1, justifico a abordagem e
apresento um resumo dos argumentos. Nas seções 2 e 3, onde reporto com
brevidade resultados encontrados na literatura, apresento as conseqüências
previsíveis das desigualdades extremas sobre os objetivos consensuais do
cenário "politicamente realista". Na seção 4, que lida essencialmente
com as opções normativas e onde se concentra o maior esforço interpretativo
deste ensaio, discuto as desigualdades como resultados previsíveis e
imprevisíveis de instituições, respectivamente, injustas e justas. A seção 5
conclui com os comentários finais.
PRELIMINARES
Realismo Político ' Designarei como "politicamente realista", no
contexto do problema da desigualdade, um conjunto específico de objetivos
passíveis de apoio generalizado, no sentido mínimo de o seu endosso, por parte
de indivíduos e grupos, ser independente da posição destes na distribuição de
renda, e, em particular, não requerer dos mesmos um ethos igualitarista. Esse
conjunto incluiria os seguintes objetivos: redução da pobreza, crescimento
econômico, coesão social e democracia. A sugestão é que, na medida em que essas
finalidades razoavelmente consensuais são bloqueadas quando ocorrem níveis
elevados de desigualdade econômica, o apoio a políticas públicas orientadas
para a redução das desigualdades é mais provável. Portanto, o primeiro passo é
examinar as relações causais entre desigualdade econômica extrema e déficit na
realização de objetivos não distributivos. Exame da literatura indica que, de
fato, a desigualdade nesse caso importa e muito, e importa por suas
conseqüências sobre coisas que importam intrinsecamente.
Note, entretanto, que meu argumento é conseqüencialista, mas não se restringe a
assinalar efeitos para o bem-estar ou vantagens diretas para indivíduos e
grupos. Portanto, não é o mesmo que apelar ao interesse próprio de indivíduos e
grupos, para ganhar a adesão deles a políticas redistributivas, por conta dos
efeitos esperados sobre o seu bem-estar direto. Esses argumentos, a meu ver,
enfrentam dois problemas: uma definição ultralimitada de interesse próprio
(excluindo, por exemplo, do conjunto de preferências dos indivíduos interesses
outros que não sua vantagem direta)2 e a postulação de inexistência de
informação incompleta e de problemas cognitivos de natureza diversa na
percepção dos "verdadeiros" interesses dos atores sociais (que
tomaria, por exemplo, como auto-evidente o apoio dos menos favorecidos a
políticas redistributivas)3. Meu argumento "igualitarista"
conseqüencialista, alternativamente, depende das seguintes suposições:
suspendendo juízo com relação ao conteúdo das preferências dos indivíduos,
supõe que o possível apoio àqueles objetivos gerais seja relativamente
independente da posição do indivíduo na estrutura de distribuição; supõe ainda
que o conhecimento de possíveis nexos causais no mundo social afete tanto as
crenças das pessoas quanto suas preferências. Conclui que preferências não
igualitaristas podem conduzir a uma escolha social relativamente igualitarista,
uma vez esclarecidos os nexos conectando a satisfação daquelas preferências a
políticas redistributivas. Portanto, a atribuição de irrealismo político à
expectativa de apoio amplo (i.e., não condicionado pela posição do indivíduo na
estrutura de distribuição) a políticas redistributivas depende de supostos mais
heróicos do que os que adoto aqui, em particular, que os indivíduos agem
exclusivamente segundo o imperativo de vantagens diretas para si, e que suas
escolhas são instantaneamente bem informadas.
Horizonte Normativo ' Quanto à suposição relativa à inexistência de opções
normativas respeitáveis e factíveis, o ensaio avalia a alternativa
contemporânea mais completa disponível, a teoria rawlsiana de justiça, a partir
de sua potencialidade para minimizar as desigualdades. Conclui que esta teoria
apresenta, do ponto de vista da questão da desigualdade, problemas não fatais,
para a solução dos quais as ciências sociais, em seu presente estado, tem muito
a contribuir. Segundo essa teoria, as desigualdades importam se e somente se
elas são injustas. Desigualdades justas são aquelas que, resultando da
distribuição igual de liberdades e oportunidades (justas), promovem a melhoria
da situação dos menos favorecidos (Kerstenetzky, 1999). Aqui há dois problemas
que eu gostaria de mencionar. Por um lado, a teoria rawlsiana repousa em
preferências mais estritas que as postuladas no cenário "politicamente
realista", na medida em que supõe que a articulação de nosso senso de
justiça resultaria em uma ordenação única de preferências e valores que, por
sua vez, do ponto de vista da distribuição de renda e riqueza, indicaria
prioridade para a situação dos menos favorecidos. Presume, por assim dizer, um
ethos "igualitarista-prioritarista". O resultado é uma combinação de
igualdade de oportunidades com monitoramento de resultados (tendo em vista que
um subconjunto dos resultados possíveis é excluído, qual seja, o conjunto de
distribuições onde as vantagens para os mais favorecidos vêm desacompanhadas de
vantagens para os menos favorecidos). Essa dificuldade pode ser mitigada desde
que a prioridade aos menos favorecidos seja compreendida como uma instância do
(menos viesado distributivamente) princípio da eficiência, como proponho na
seção 4.
Por outro lado, essa teoria gera uma certa indeterminação com relação aos
níveis de desigualdade toleráveis, revelando-se permissiva a qualquer
distribuição que resulte daquela prioridade ' o que ensejou intenso debate em
torno à sua sensibilidade à demanda por incentivos por parte dos mais ricos,
como contrapartida à contribuição destes à melhoria da situação dos mais pobres
(G. A. Cohen, 1992; 1995; 1997; Williams, 1998; Estlung, 1998; Pogge, 2000; J.
Cohen, 2002). Ela aprovaria, por exemplo, a atual dispersão de renda e riqueza
vigente no Brasil, uma vez que, ainda que muito discretamente, a situação dos
menos favorecidos teria melhorado nas últimas décadas, contra um pano de fundo
de expansão generalizada de direitos e oportunidades (Quadro_1). Essa
indeterminação, por sua vez, pode trazer problemas em termos da efetivação dos
objetivos consensuais do cenário "politicamente realista" ' redução
significativa da pobreza, retomada do crescimento econômico, coesão social,
consolidação da democracia ', que retém prioridade também na justiça rawlsiana.
Ora, se a persistência de altos níveis de desigualdade econômica em uma
sociedade "corrigida" por instituições rawlsianas pode estar
associada à demanda por incentivos por parte dos mais ricos, já que nela,
grosso modo, não se restringe o domínio das preferências dos indivíduos
(interpretação privilegiada por G. A. Cohen), pode também resultar de
conseqüências não pretendidas das instituições desenhadas para justificá-la ou
mesmo minorá-la. A primeira hipótese, da demanda por incentivos, sublinha a
necessidade de um ethos igualitarista, para se alcançar justiça igualitária,
como requisito complementar ou talvez alternativo ao desenho de instituições
igualitaristas de justiça. Pode-se adiantar, contudo, que sem uma teoria aqui,
uma "ethologia", a postulação desse ethos tanto "resolve" a
justiça igualitária quanto sua ausência a torna inconcebível. Por este motivo,
favorecerei (cf. seção 4) a segunda hipótese, a de que possivelmente a economia
das desigualdades rawlsianas seja inadequada, e os efeitos de composição não
estejam sendo devidamente considerados.
Se este for o caso, a sugestão (apenas) encaminhada neste trabalho é que os
igualitaristas têm pelo menos duas opções aqui: permanecendo rawlsianos (isto
é, excluindo a alternativa de engenharia do ethos e concentrando-se no papel
das instituições da chamada "estrutura básica" da sociedade), devem
observar os impactos das desigualdades residuais sobre os objetivos
consensuais, para resolverem a indeterminação de sua teoria ' e, portanto,
calibrarem as desigualdades residuais tendo em vista o dano que podem causar
aos objetivos consensuais. Ou então, moverem-se francamente para alternativas
mais atentas à sensibilidade das desigualdades a resultados não pretendidos da
ação de instituições justas, como parece ser a proposta de instituição de uma
renda básica incondicional, a maior possível, de Phillipe van Parijs (1995;
2001).
A ironia é que as conseqüências também importam quando a desigualdade importa
intrinsecamente: na calibragem da desigualdade bem como na escolha do estilo de
igualitarismo. De qualquer modo, essa situação tem como efeito o reconhecimento
dos limites dos princípios normativos e da importância, raramente reconhecida,
das teorias sociais, políticas e econômicas, que constituem os supostos
factuais daqueles princípios. Essa interação entre teoria social lato sensu e
teoria normativa parece essencial para emprestar respeitabilidade e
exeqüibilidade a princípios de justiça no debate sobre prioridades e políticas
públicas. Passo, agora, ao detalhamento dos argumentos.
DESIGUALDADE COMO CAUSA (I): POBREZA E CRESCIMENTO ECONÔMICO
Pobreza
Durante um longo inverno, reinou entre os economistas a crença de que as
desigualdades eram necessárias à eliminação da pobreza, em virtude de seus
reconfortantes efeitos sobre o crescimento da riqueza. A história é simples: as
desigualdades de remuneração pela utilização dos diferentes recursos econômicos
funcionariam como incentivo ao esforço produtivo, levando, na ausência de
imperfeições e incompletudes do mercado, ao crescimento. Cedo ou tarde os
efeitos do crescimento econômico se fariam sentir em todas as camadas sociais,
chegando aos mais pobres especialmente pela geração de emprego e renda
decorrente do uso produtivo dos recursos econômicos (Smith, 1983; Kerstenetzky,
2000). No entanto, a evidência de processos de crescimento econômico, e mesmo
de crescimento acelerado, que não eliminaram a pobreza, provocou uma importante
onda revisionista na literatura econômica, qualificando o automatismo suposto
nas relações entre crescimento e eliminação da pobreza.
O caso do Brasil é particularmente notável. Como é bem conhecido, especialmente
a partir da ampla divulgação entre nós dos resultados da pesquisa empírica de
Ricardo Paes de Barros, algo em torno de 1/3 dos brasileiros é pobre, muito
embora o país seja relativamente rico quando sua renda per capita é colocada em
perspectiva internacional e tenha passado por fases relativamente recentes de
crescimento acelerado (Barros et alii, 2000a). Na verdade, a crer-se nos mesmos
resultados, o patamar de pobreza revelou-se pouco sensível ao crescimento
econômico em duas décadas. Em particular, uma das simulações revela que,
mantida a distribuição de renda, a eliminação da pobreza requereria cerca de
três décadas de crescimento contínuo anual de 5% de nossa renda per capita.
A explicação para a persistência da pobreza em um país relativamente rico, de
novo, parece simples: grosso modo, a renda das pessoas deriva da utilização dos
ativos que possuem. Como no Brasil a propriedade de ativos valiosos ' capital
físico, terra, educação, ativos financeiros ' é, historicamente, muito
concentrada, seguem-se os persistentemente baixos níveis de renda dos mais
pobres. (A evidência empírica para o caso da educação ' "capital
humano" ' é significativa, sobretudo quando se considera a desigualdade
salarial (idem).) O pobre brasileiro, como o americano, aliás, trabalha '
"é digno", deserving ', mas, em função de sua destituição dos ativos
que têm valor, ganha miseravelmente pouco: ele integra o contingente de
trabalhadores "informais" que hoje responde por cerca de metade de
todo o mercado de trabalho no país. Ademais, sua capacidade de endividamento '
de oferecer colateral por exemplo ', para financiar o acesso aos ativos
valiosos que poderiam libertá-lo de sua pobreza, é nula. Não parece haver outro
meio de prover acesso a esses ativos senão promover algum tipo de política
redistributiva: educação pública, crédito subsidiado, saúde pública, reforma
agrária etc.
Crescimento Econômico
O reconhecimento de que a pobreza pode decorrer da desigualdade extrema de
riqueza (posse dos ativos valiosos) não questiona diretamente a microeconomia
dos incentivos, essencial à visão de que desigualdades são cruciais para o
crescimento econômico. Poderia acontecer a situação em que a redistribuição de
riqueza financiada através de taxação sobre salários e lucros produzisse
desincentivos ao trabalho e à poupança que ulteriormente afetassem, de modo
negativo, o crescimento, piorando a situação de todos, pobres e ricos (Epstein,
2002; Hayek, 1993). Mas se as oportunidades de geração de renda ' a posse de
riqueza ' se encontram tão mal distribuídas, pode bem ser o caso de as perdas
econômicas incorridas pela taxação aos mais ricos serem mais do que compensadas
pelos ganhos decorrentes da abertura de oportunidades aos menos favorecidos. De
fato, esta é a aposta de um conjunto crescente de economistas que estão
constituindo um novo cânone na teoria econômica nas últimas décadas (Aghion et
alii, 1998; Benabou, 1996; Ferreira, 1999; 2000). Segundo eles, a desigualdade
extrema de acesso a ativos valiosos, de oportunidades de geração de renda,
traria danos importantes ao processo de crescimento econômico em virtude da
utilização ineficiente dos recursos econômicos.
Segundo Philippe Aghion, por exemplo, os argumentos pró-concentração de
riqueza, por conta de seus efeitos sobre a acumulação de capital, supõem, em
geral, indivíduos idênticos e mercados de capitais perfeitos. Porém, as
hipóteses mais relevantes de heterogeneidade dos indivíduos (sobretudo
diferenças na dotação de capital humano) e imperfeições no mercado de capitais
(cujo acesso, na prática, é diferenciado, dependente da riqueza) não
garantiriam a ligação virtuosa entre concentração de riqueza e crescimento.
Nesse cenário, e na vigência de retornos decrescentes, a concentração extrema
de riqueza distorceria o acesso às oportunidades de modo perverso ao
crescimento. Quando o crédito não está disponível, a redistribuição de riqueza
em favor dos mais pobres, ou seja, os indivíduos com os retornos marginais mais
altos ao investimento, promoverá crescimento (Aghion et alii, 1998:18). Além
disso, a concentração extrema de riqueza não computaria os possíveis efeitos
positivos sobre o crescimento associados à redução do risco moral, por conta da
posse de riqueza por parte dos menos favorecidos (o que os incentivaria a
aumentar seu esforço produtivo)4. Em síntese, nesse cenário de indivíduos
heterogêneos e crédito determinado pela riqueza, a desigualdade extrema de
riqueza desvirtuaria não apenas o acesso a oportunidades promotoras de
crescimento, como distorceria os incentivos ao esforço produtivo dos mais
pobres, igualmente promotores de crescimento. Há dois recursos para os quais a
evidência pró-distribuição por conta de seus efeitos sobre o crescimento parece
decisiva: capital humano e terra.
Na literatura brasileira, alguns trabalhos empíricos avaliam o impacto de
desigualdades de oportunidades educacionais (ver, p. ex., Barros et alii,
2000b) e desigualdade de acesso à terra sobre o crescimento econômico. No caso
da terra, contrariando a tese de que a grande propriedade é necessariamente
mais produtiva (o que de todo modo não exclui a hipótese de propriedade
coletiva como as cooperativas agrícolas), e que, portanto, a reforma agrária é,
quando muito, uma política social orientada para a correção de uma injustiça
social, estudos recentes assinalam ganhos de produtividade associados à
distribuição da terra em benefício da pequena e média agricultura familiar
voltada para a produção de alimentos (Barros et alii, 2000c; Guanziroli, 1999).
No âmbito de organismos internacionais como o Banco Mundial e o FMI, cresce a
convicção quanto à necessidade de enfatizar processos de crescimento
consistentes com o chamado pro-poor growth, essencialmente centrados na
redistribuição de terra e no combate à pobreza rural (Birdsall e Londono,
1997).
Cabe observar ainda que a evidência empírica para a relação positiva entre
desigualdade de renda e crescimento parece particularmente fraca em estimativas
para sete democracias ricas em 1998. Ainda que nada seja definitivo a respeito
de qualquer estatística, é interessante notar que a economia americana, a mais
desigual e a mais rica (e também a que mais trabalha), não aparece, entretanto,
como a mais eficiente (relação produto/hora trabalhada), sendo superada, neste
particular, pelas mais igualitárias França e Alemanha. Neste caso, a diferença
de produto parece estar relacionada a distintas preferências, de americanos e
europeus, entre trabalho e lazer, ou entre consumo e lazer (Jencks, 2002)
(Quadro_2).
Finalmente, além de não necessárias ao crescimento e provavelmente prejudiciais
a ele quando extremas, as desigualdades parecem resistir igualmente a outro
mito da teoria econômica: de que com o progresso econômico elas tenderiam a
diminuir depois de terem sido funcionais em uma etapa inicial. A assim chamada
hipótese de Kuznets cederia diante da evidência das últimas décadas (Deininger
e Squire, 1998; Aghion et alii, 1998; Ferreira, 1999). Também em países
desenvolvidos, as desigualdades de renda estão crescendo; elas não tendem a
cair automaticamente com o desenvolvimento, e, de fato, sem a intervenção do
Estado de Bem-Estar teriam sido bem maiores (Quadro_3).
Em resumo, desigualdade extrema de riqueza gera pobreza e crescimento
deficiente, e a eficiência econômica não está, de modo inequívoco,
positivamente associada à desigualdade de renda. Além disso, as desigualdades
de renda não tendem a desaparecer automaticamente no horizonte do longo prazo
econômico.
DESIGUALDADE COMO CAUSA (II): COESÃO SOCIAL E DEMOCRACIA
Coesão Social
Esta seção discute o conflito, senão real ao menos potencial, entre dois
fenômenos modernos: de um lado, a crença na igualdade moral entre os indivíduos
e os efeitos desta sobre as expectativas desses indivíduos de alcançar certos
objetivos na sociedade em que vivem; de outro, a realidade das desigualdades
socioeconômicas na forma que Charles Tilly (1998) denomina "desigualdades
duráveis". Trata-se de desigualdades que se repetem historicamente, entre
grupos sociais, étnicos, de certas localidades, de gênero, de tal modo que ter
nascido em um determinado grupo, local, etnia ou gênero revela-se o melhor
preditor das chances de "sucesso" de um indivíduo dentro da
sociedade, ou da quantidade de opções reais diante dele. Chame essas
expectativas de "expectativas de posição". As expectativas que assim
se formam são fixas, em contraste com as variáveis prometidas pela noção de
igualdade moral, vale dizer, as "expectativas legítimas". A economia
desse conflito não requer, creio, grande imaginação: pode resultar em
conformismo, desespero, violência, suicídio social, e tantas formas de anomia,
em outras palavras, "desperdício" de recursos sociais. A política
desse conflito pode resultar tanto em sociedades segmentadas (Rae, 1999) quanto
em conflito explícito e violência. A evidência americana, por exemplo, registra
maiores índices de criminalidade nas metrópoles com maiores desigualdades
econômicas (Jencks, 2002).
Minimamente, pode-se afirmar que a coesão social é função inversa do conflito
entre expectativas legítimas e expectativas de posição5. Em face de
desigualdades resilientes e extremas, esse conflito pode ser minimizado de uma
entre três maneiras: ou cedem as expectativas legítimas dos menos favorecidos
de modificar sua situação (como parece ser o caso das democracias segmentadas),
contaminadas por expectativas de posição que são reforçadas ao longo do tempo
por efeito ou inoperância de instituições sociais; ou modificam as expectativas
de posição em resposta a uma reformulação da regra de distribuição de
oportunidades dentro da sociedade; ou, ainda, ambas se alteram. De todo modo,
caso o ajuste seja feito sobre as expectativas legítimas, o "sucesso"
do modelo de sociedade vai estar dependente do sucesso da segmentação:
condomínios fechados, espaços privados, TVs a cabo etc.
Democracia
Parte das expectativas de igualdade moral poderia ser satisfeita pelos sistemas
legal e político, por intermédio do reconhecimento de direitos civis e
políticos iguais, como consubstanciado no regime democrático. Interessa, nesse
contexto, saber em que medida a igualdade de direitos civis e políticos é
afetada por desigualdades socioeconômicas. Aparentemente, a associação é tão
óbvia que cientistas políticos como Arend Lijphart tomam a desigualdade
econômica como proxy da desigualdade política, "mais difícil de se
observar diretamente" (1999:282), seguindo Robert Dahl em sua afirmação de
que recursos econômicos podem ser convertidos em recursos políticos (1996:645).
Estas observações podem ser traduzidas em uma fórmula tão trivial quanto
pétrea: a efetividade da igualdade de direitos civis e políticos é perturbada
pela desigualdade econômica.
Quanto aos direitos políticos, como observa O'Donnell (1999), seu exercício
pleno, em uma democracia estabelecida, não se esgotaria no voto ou na
elegibilidade, mas guardaria ainda relação com condições menos formais, tais
como a capacidade dos indivíduos de expressarem opiniões, deliberarem,
participarem de partidos políticos e de campanhas eleitorais. Sem negar a
importância de outros fatores, notadamente motivacionais, essas capacidades são
singularmente vulneráveis à disponibilidade de recursos, como informação, tempo
e dinheiro, cuja distribuição, pois, importa uma vez que afeta a conversão de
direitos políticos formais em direitos políticos efetivos. Além disso, o maior
peso do dinheiro na política contemporânea parece condicionar de modo
particular tanto a participação quanto a agenda (Jencks, 2002)6. De modo geral,
a relação entre desigualdade socioeconômica e "apatia" política
comparecem com alguma freqüência na literatura de ciência política e
sociologia, especialmente a partir dos anos 80, e a avaliação geral é
claramente negativa, sobretudo considerando o impacto da não-participação dos
menos favorecidos sobre a legitimidade da democracia, em termos da supressão de
agendas e perspectivas (Bennett, 1986; De Luca, 1995; Patterson, 2000).
Finalmente, cabe notar que, mesmo quando a desigualdade política decorrente da
desigualdade econômica pode ser mitigada por instituições políticas e
legislação específica, como a lei de financiamento de campanhas, evidências
recentes como a reforma da legislação americana apontam uma certa resiliência
do sistema político como um todo a essa inovação (Oppel Jr., 2002).
Do ponto de vista dos direitos civis, trabalhos como os de O'Donnell (1999) e
Santos (2001) chamam a atenção para uma importante deficiência no assim chamado
"componente liberal" da democracia ' a igualdade de direitos civis '
em democracias recentes, ocasionada por desigualdades socioeconômicas extremas.
O'Donnell argumenta que, mesmo tendo concluído de modo razoavelmente
satisfatório a transição para regimes democráticos, e, portanto, alcançado
progresso significativo do ponto de vista da extensão de direitos políticos,
diversos países da América Latina têm falhado notavelmente na implementação de
direitos civis iguais, pois a "lei" revela-se de fato uma para os
poderosos locais, outra para os despossuídos. A evidência é farta, no acesso
desigual a processos judiciais justos, em condições carcerárias desiguais, no
tratamento desigual por parte das múltiplas burocracias públicas, em cargos
públicos acumulados pelos mais favorecidos, afetando a intermediação de seus
conflitos com os menos favorecidos, na repressão desigual a iniciativas de ação
coletiva e no estigma de grupos sociais (Santos, 2001).
Parece lícito, pois, concluir que se as democracias reais representam a
realização maior ou menor de ideais de igualdade de cidadania civil e política,
esta realização é tanto mais remota, inter alia, quanto maior for o grau de
desigualdade socioeconômica tolerado pelas sociedades.
DESIGUALDADE COMO CONSEQÜÊNCIA PREVISÍVEL E NÃO PREVISÍVEL
Muitas das desigualdades socioeconômicas atuais se originaram de
diferenciações, possivelmente associadas a características físicas, como sexo e
idade, e habilidades ou inabilidades individuais indutivamente generalizadas a
grupos étnicos, cujo propósito inicial era resolver problemas de coordenação e
que, tendo extrapolado de modo não pretendido este intento, se incorporaram em
práticas sociais, normas e instituições (Tilly, 1998; Barrington Moore Jr.,
1999). Outras tantas se teriam estabelecido por meio de processos violentos de
expropriação (como o cercamento de terras) e coerção (como a escravização), e
se perpetuaram por meio de processos legais (Polanyi, 1980; Marx, 1970-71;
Arendt, 1970). Algumas desigualdades vigentes, por exemplo, no mercado de
trabalho premiariam diferenciadamente esforços, sacrifícios, apostas, escolhas,
características individuais, expressando, ao fim e ao cabo, a variedade humana
e as múltiplas liberdades de escolha por parte de produtores e consumidores
(Hayek, 1993). Reparar todas essas desigualdades supõe duas coisas: em primeiro
lugar, que todas elas devem ser reparadas; em segundo, que é possível modificar
as tradições, o sistema legal e o mercado de modo a eliminá-las. A monstruosa
engenharia social envolvida para obter, de todo modo, um resultado apenas
duvidoso parece desaconselhar esta opção.
Alternativamente, tomarei como ponto de partida, no discernimento das
desigualdades econômicas, entre as que devem ou não ser reparadas, a idéia de
John Rawls (1971) de desigualdades injustas ' as desigualdades socioeconômicas
que tiveram sua origem em distribuição desigual de liberdades e oportunidades.
Esta, aliás, me parece ser a linha demarcatória nas teorias normativas
contemporâneas ' a idéia razoavelmente tautológica de que as desigualdades que
resultam das escolhas dos indivíduos são legítimas uma vez que estes tenham
sido expostos a chances razoavelmente iguais de fazer aquelas escolhas.
Colocada nestes termos, a questão é: como interpretar a noção de "chances
iguais"?
A interpretação sugerida por Hayek é tomar chances iguais como conotando
aleatoriedade ou impessoalidade, o domínio, por assim dizer, do princípio da
indiferença. Nesse sentido, toda e qualquer desigualdade gerada pelo mercado (e
amparada pela legalidade necessária ao seu funcionamento normal) é legítima, na
medida em que o mercado é um mecanismo distributivo cego, indiferente à
identidade dos agentes econômicos, e que liga os resultados dos indivíduos
exclusivamente à utilidade dos seus talentos, habilidades e recursos para a
sociedade (e não, por exemplo, a critérios hierárquicos ou discriminatórios).
Diante da incerteza quanto aos resultados futuros (os valores específicos que a
sociedade atribuirá aos bens que os indivíduos levam ao mercado), o mercado é o
mecanismo que maximiza a igualdade de chances de sucesso dos indivíduos, na
medida em que os produtores, dotados das informações fornecidas pelo sistema de
preços (que os informa como a sociedade presentemente valoriza os resultados
dos diferentes trabalhos e investimentos), são deixados livres para tomar suas
decisões de produção. As desigualdades que, por ventura, resultam são, do ponto
de vista dos agentes econômicos, razoavelmente imprevisíveis, aleatórias e,
nesse sentido, "justas".
O que essa interpretação de igualdade de chances como liberdade econômica de
escolha ignora é o problema da desigualdade de risco: o fato de que os
produtores ' os diversos grupos de trabalhadores e empresários ' não enfrentam
a incerteza quanto aos resultados futuros com o mesmo nível de vulnerabilidade,
e que este é uma função, entre outras coisas, da riqueza à disposição desses
indivíduos e grupos. Mas não apenas: pode-se acrescentar talentos e habilidades
(mais ou menos dependentes do grupo social e do ambiente familiar em que os
indivíduos estão inseridos), recursos sociais que podem ser mobilizados para
diminuir essa vulnerabilidade ("capital social" e "capital
coletivo"), recursos econômicos herdados, recursos cognitivos e simbólicos
etc. Na verdade, Hayek, nos seus primeiros escritos de filosofia política,
notadamente em The Road to Serfdom, mostra uma certa preocupação com a
possibilidade de a desigualdade de riqueza afetar desigualmente as
oportunidades de indivíduos e grupos, e revela uma certa ambigüidade quanto às
implicações desse problema para a sua filosofia política. De um lado, há uma
indicação forte da necessidade de planejar uma sociedade de mercado, em que os
resultados econômicos são os máximos consistentes com uma noção de justiça não
apenas como liberdade de escolha, mas também como liberdade de oportunidades
(dentro, pode-se dizer, de uma agenda de pesquisa rawlsiana) (Hayek, 1979:102).
Por outro, existe, já, a formulação de um argumento que se revelará vitorioso
em sua filosofia política posterior: que a justiça distributiva conduz a dois
resultados coletivamente muito ruins, tirania e ineficiência econômica. Porém,
como ensina Popper, justiça distributiva leva à tirania apenas se a alternativa
democrática é descartada, ou ainda se "democracia" é entendida como a
vontade da maioria, e não como um regime político onde a prestação de contas é
máxima em comparação com as alternativas. Além disso, lembra Popper em famosa
discordância com Hayek, também o poder econômico é coercitivo e requer
controle, de modo que "liberdade" anseia por alguma forma de
"justiça distributiva" (Popper, 1971; Kerstenetzky, 2002)7.
Finalmente, a associação entre justiça distributiva e ineficiência depende de
corroboração empírica, e a teoria econômica recente parece pender mais e mais
para a associação simétrica entre justiça distributiva e eficiência econômica
(cf. seção 2).
A tese rawlsiana (na verdade Rawls-Tilly), em contraste, interpreta
"chances iguais" não apenas como liberdade de escolha, tal qual
assegurada por mercados livres dentro dos marcos de um Estado de Direito, mas
também como igualdade substantiva de oportunidades, a partir da observação de
que a aleatoriedade hayekiana recobre uma certa regularidade nos processos de
discriminação e exclusão. Nas sociedades em que prevalecem mercados livres, os
indivíduos entram em transações econômicas conhecendo o fato de que suas
chances de sucesso são substancialmente desiguais, e que os melhores preditores
dessas chances são as posições que esses indivíduos ocupam nessas sociedades:
classes, lugares de moradia, gênero, cor. As desigualdades são, do ponto de
vista dos indivíduos e grupos, substancialmente previsíveis. Para restaurar a
aleatoriedade hayekiana, e assim tornar as desigualdades justas, seria
necessária a correção dessas desigualdades de oportunidades. Estas, de fato,
interferem na efetivação das liberdades iguais dos indivíduos (não apenas
econômicas, mas também civis e políticas) e nas chances de eles satisfazerem
expectativas que são reconhecidas como legítimas nas sociedades modernas.
Simplificadamente, essas chances de sucesso (C) são uma função direta C = f (L,
O, R), onde L são as liberdades, O, as oportunidades, R, renda e riqueza. Para
impedir tradeoffs, como por exemplo a troca de liberdade por renda, Rawls
estabelece uma ordenação lexicográfica8 dos argumentos da função, onde L> O>
R9, e as seguintes regras de distribuição para cada um deles, que deveriam
prevalecer em uma sociedade justa: L devem ser maximamente iguais (incluem,
além do Estado de Direito, entre outros aspectos, legislação específica
contendo os efeitos da concentração de riqueza sobre a igualdade de direitos
políticos); O devem ser aproximadamente iguais, o que implica distribuição
reparatória (essencialmente, oportunidades educacionais financiadas
publicamente e restrições à concentração excessiva de riqueza e à herança que
possam distorcer demasiadamente as oportunidades de realização); quanto à R, a
dispersão em sua distribuição deve trazer ganhos para todos (em particular para
os menos favorecidos)10. Na verdade, o chamado princípio da diferença, segundo
o qual a desigualdade econômica se justificaria se viesse em benefício dos
menos favorecidos, é o princípio da eficiência aplicado a uma distribuição de
vantagens econômicas previamente ajustada por liberdades e oportunidades
razoavelmente iguais: ele exclui todas as distribuições (corrigidas por
igualdade de liberdades e aproximadamente de oportunidades) que não tragam
vantagens para todos, em particular para os menos favorecidos11. Em contraste
com o princípio da indiferença à Hayek, o princípio da diferença rawlsiano
reconhece a desigualdade de risco ou de exposição ao risco, incorporando as
retificações necessárias para que os indivíduos confrontem chances
razoavelmente iguais12.
Em termos práticos, a justiça rawlsiana implicaria a consolidação do Estado de
Direito, várias legislações restringindo os efeitos deletérios do poder
econômico sobre direitos políticos, instituições clássicas do Estado de Bem-
Estar Social, com especial ênfase na expansão das oportunidades educacionais
financiadas pelo Estado, regulações várias para conter o poder de mercado de
grandes empresas, restrições ao direito de herança e doações, garantia de um
mínimo social etc13. A justiça rawlsiana acomodaria, pois, a eficiência
econômica, a estabilidade social e a democracia em um referencial de justiça, o
qual operaria como restrição aos arranjos econômicos eficientes e condição de
possibilidade da estabilidade social e da democracia. Em particular, a justiça
rawlsiana não requer nenhuma paideia específica que incida sobre, ou restrinja
demasiadamente, as preferências dos indivíduos. As desigualdades injustas, que
demandam retificação, são, ao fim e ao cabo, efeitos esperados de instituições
injustas, ou insuficientemente justas, que inibem a importância das
"escolhas individuais"14 na determinação dos resultados econômicos;
trata-se, por conseguinte, de corrigir essas instituições usando como guia os
princípios de justiça rawlsianos a partir de uma teoria de como essas
desigualdades são geradas.
Mas, e se as desigualdades que emergem de sociedades corrigidas por
instituições de justiça rawlsianas são, ou parecem ser, ainda muito grandes,
colocando em risco, inclusive, objetivos razoavelmente consensuais, como coesão
social, eficiência, democracia, que essas instituições buscavam também
proteger? Nada a fazer? Segundo G. A. Cohen (1992), esse resultado indesejável
apenas prova a inocuidade de uma noção de justiça que se baseia em
instituições, em face da recalcitrância de um ethos ferozmente egoísta. Se o
próprio ethos não for colocado em questão ' as intenções e motivações dos
indivíduos, as "preferências", por exemplo, dos executivos de grandes
empresas por remunerações especialmente elevadas, como representadas na
inelasticidade de suas funções de oferta de trabalho ', restringindo desta
feita o domínio das preferências dos indivíduos, sua "liberdade de
escolha" (algo a que Rawls não subscreveria), pouco se avançará em relação
à inócua justiça rawlsiana em termos de redução das desigualdades. Segundo J.
Cohen (2002), contudo, a justiça rawlsiana possui recursos para lidar com esse
problema, sobretudo se assumirmos que também o ethos é, em última instância,
afetado por instituições, em uma versão institucionalista forte da justiça
rawlsiana: instituições justas devem influir tanto na oferta de qualificações
(atenuando o poder de barganha dos detentores de altas remunerações) quanto nas
disposições e atitudes dos indivíduos.
Em favor de Rawls (e contrariando G. A. Cohen) e sua ênfase nas instituições,
pode-se argumentar que a capacidade de executivos (e trabalhadores qualificados
de modo geral) para demandar e comandar incentivos (altas remunerações) depende
não apenas de suas preferências como de condições objetivas dos mercados em que
operam. Se a oferta de talentos e qualificações aumenta é razoável supor que
aquela capacidade fica enfraquecida. E é aqui que a justiça institucional
rawlsiana pode operar de modo bem-sucedido: estendendo a oferta de
oportunidades educacionais de modo a ampliar a oferta de qualificações, e assim
reduzir o poder de barganha dos bem qualificados. Entretanto, como casos
recentes de corporações americanas têm evidenciado, a capacidade de executivos
de grandes corporações fazerem o mercado para suas qualificações, agindo,
portanto, também sobre o lado da demanda pelo tipo de trabalho que oferecem, na
medida em que, por exemplo, produzem a ilusão contábil de que seu talento é
único, seu "produto" (alta rentabilidade das empresas que comandam,
conforme reportam aos acionistas), diferenciado, faz com que ações
exclusivamente do lado da oferta de qualificações se tornem relativamente
inócuas (Krugman, 2002) (Quadro_4)15. A pergunta é: como democratizar esse tipo
de oportunidade ou regular sua exploração? Pode bem acontecer (e as evidências
são abundantes de que o processo já está em pleno curso) que o eventual poder
de mercado dos agentes econômicos sirva de incentivo para inovações (como
maquiagens contábeis, p. ex., o caso Enron, ou corrupção de objetivos de firmas
de auditoria e análise de investimentos, como os casos recentes envolvendo a
Arthur Andersen e a Merrill Lynch) de eficiência mais que duvidosa do velho
ponto de vista da promoção de "vantagens para todos". Em que medida a
regulação econômica é capaz de controlar o desvio de recursos para fins que
aumentam as vantagens de alguns, mas que não trazem benefícios generalizados, e
sim perdas ' de empregos, de pensões, de ações, de capital físico ', é algo
para o qual a evidência é ainda insuficiente. Parte substancial da regulação
apóia-se em auditorias e estas parecem necessitar de auditagem também De todo
modo, democratizar a educação não parece ser a estratégia adequada para conter
esse gênero de "desigualdades ineficientes".
Ao lado das inovações ruins, como a maquiagem contábil e a corrupção de
objetivos, há igualmente as boas inovações, de processos, produtos e
organização, que aumentam a riqueza e que estão no core do capitalismo
contemporâneo. Contudo, a mudança tecnológica também destrói empregos e
capitais, como ensina um Schumpeter agora redivivo no core da teoria econômica
(Baumol, 2002). E ainda que fortemente baseada em "qualificações" (a
postulação de expansão das igualdades educacionais é, pois, progressista),
torna-as rapidamente obsoletas, como a um grande número de empregos e capitais.
O crescimento econômico baseado em mudança tecnológica rápida tem ocasionado,
nos últimos quinze anos, maiores níveis de desigualdade econômica (Aghion et
alii, 1998). A natureza dessas "desigualdades eficientes", causadas
por inovações "boas" (que trazem crescimento), é algo que necessita
exame. De um lado, os ganhos extras dos inovadores que viram oportunidade de
ganhos onde ninguém mais viu (estavam no "lugar certo, na hora
certa"); de outro, processos técnicos tornados prematuramente obsoletos,
destruição de capital e empregos, perdas financeiras dos acionistas (que se
encontravam no "lugar errado, na hora errada"). Parece claro que a
expansão de oportunidades educacionais pouco pode fazer para restringir também
esse tipo de desigualdade. Ao contrário, é em um ambiente onde a massa crítica
de qualificações é atingida que é mais provável surgirem inovações (idem). Na
medida em que os sistemas econômicos funcionam segundo o modelo de mudança
técnica rápida, a equalização de oportunidades no sentido "antigo"
vai ser sempre deficiente, cuidando no máximo do aspecto
"hereditário" da desigualdade. O que certamente não é desprezível,
mas a desigualdade interpessoal vai seguir sendo elevada e preocupante. A
principal evidência desse fenômeno é a economia americana: a que possui tanto o
maior nível de igualdade educacional entre as democracias ocidentais
desenvolvidas quanto o maior nível de desigualdade econômica (Jencks, 2002;
Devroye e Freeman, 2001).
Em síntese, o aumento em importância das desigualdades como conseqüência, agora
imprevisível, da operação de instituições sociais e econômicas parece debilitar
o potencial retificador das instituições. E uma vez que as desigualdades
aumentam, são colocados em risco objetivos consensuais que estão no core de
teorias da justiça como a de Rawls, tais como eficiência, estabilidade social e
democracia. Como enfrentar essas dificuldades? Nas conclusões sugiro algumas
alternativas, para reflexão futura.
CONCLUSÕES
Este exercício conclui com duas observações:
1) Um igualitarismo de tipo conseqüencialista é altamente recomendado se as
desigualdades econômicas são percebidas como causando males sociais, políticos
e econômicos. Neste caso, as desigualdades importam, e devem, sim, constituir
objeto de preocupação das políticas públicas, na medida em que afetam objetivos
"consensuais" ou não distributivos, como redução da pobreza,
eficiência econômica, coesão social e democracia. É, pois, politicamente
realista enfrentá-las. Argumentos e evidências parecem particularmente fortes
para os objetivos econômicos e persuasivos para os problemas de coesão social e
baixa qualidade da democracia.
2) Se as desigualdades incomodam porque são injustas, há uma certa
indeterminação a ser resolvida. E aqui parece relevante refletir sobre as
desigualdades não tanto como causa de males, mas como conseqüência de processos
e procedimentos. As desigualdades podem ser pensadas tanto como conseqüência
principalmente previsível de instituições injustas (mundo A), quanto
principalmente imprevisível (perversa, não-pretendida) de instituições justas
(mundo B). Em termos da justiça rawlsiana, stricto sensu, o mundo B não é
injusto. Entretanto, se as desigualdades resultantes do mundo B são ainda muito
grandes, podem comprometer coisas que também têm valor, e valor maior, para a
justiça rawlsiana, como estabilidade social, democracia e eficiência. Rawls
espera, portanto, creio eu, estar operando no mundo A, no qual seus princípios
de justiça institucional devem ser efetivos. A decisão quanto ao estilo de
igualitarismo deverá, pois, depender de qual dos mundos possíveis, A ou B, irá
prevalecer. Enquanto o mundo A aconselha a justiça rawlsiana, o mundo B
recomenda pelo menos duas opções: ou algo na linha da alternativa libertária de
Phillipe van Parijs com institucionalidade mínima (o mercado cuida da geração
de riqueza, o Estado, da redistribuição, sobretudo na forma da instituição de
uma renda universal básica, a maior possível), ou ainda uma justiça rawlsiana
(com típica ênfase na educação) modificada por intenso monitoramento direto das
desigualdades (via taxação sobre renda e riqueza), de modo a garantir que os
objetivos consensuais também embutidos na justiça rawlsiana não sejam
danificados pelas desigualdades, agora, justas.
NOTAS
1.Considerando-se a razão entre a renda média dos 10% mais ricos e a dos 40%
mais pobres, a posição do Brasil é a pior do mundo conhecido (Barros et alii,
2000a). Além disso, enquanto o coeficiente de Gini brasileiro é de cerca de
0,60, o do mundo como um todo, incluídos os miseráveis da África subsaariana e
os super-ricos da nova economia, é de cerca de 0,66 (Milanovic, 1999
apudTherborn, 2001).
2.Sigo aqui uma boa tradição da teoria da escolha social, que se inicia com o
trabalho pioneiro de Kenneth Arrow (1963 [1951]), para a qual, em sua ordenação
de preferências entre estados sociais alternativos, indivíduos racionais
consultam não apenas seu estômago, mas também seus valores.
3.Para problemas desse gênero, ver Shapiro (2002). Não há evidência clara, p.
ex., de que os menos favorecidos apóiem políticas redistributivas. Há várias
razões para isso, sobretudo de natureza cognitiva (cf. idem). Por outro lado, o
ethossocial pode desempenhar um papel importante na disposição maior ou menor
dos mais favorecidos em sustentar políticas redistributivas. Um argumento que
liga o auto-interesse dos mais favorecidos ao destino dos menos favorecidos é o
que enfatiza o problema da deterioração ambiental (externalidades negativas
associadas à desigualdade, como saúde pública, violência, degradação do meio
ambiente, degradação cultural) (Patterson, 2002). Mas, o grau em que esses
efeitos apelam ao interesse próprio dos mais favorecidos depende da capacidade
de estes privatizarem os bens públicos: condomínios fechados, carros blindados,
TVs a cabo, subtração de sua presença do espaço urbano comum etc.
4.Um terceiro argumento referido por Aghion et alii (1998:23-28) é a associação
direta entre desigualdade extrema de riqueza e volatilidade macroeconômica.
Comparar com argumentos que propõem uma ligação indireta, através da
instabilidade institucional e política (cf. Alesina e Perotti, 1996).
5.Coesão social, trivialmente, por oposição à segmentação ou ruptura social
violenta. A idéia é que, em sociedades onde não seja pervasiva a crença na
igualdade moral entre os indivíduos, como, por exemplo, nas sociedades de
castas, a existência das desigualdades duráveis, no sentido de Tilly, não
deveria ser especialmente problemática do ponto de vista da coesão social, como
o é em sociedades onde aquela crença é nutrida.
6.Mesmo em termos de participação eleitoral, o aumento da desigualdade nos EUA,
ao longo dos anos 80, coincide com o declínio da participação eleitoral dos
menos afluentes e a subseqüente inércia do sistema político em relação à
desigualdade (Jencks, 2002).
7.Para uma comparação entre Hayek e Popper a respeito da esfera legítima de
intervenção do governo, ver Kerstenetzky (2002). Ver, também, Popper (1971,
esp. cap. 7, vol. I: The legal and the social system). Neste capítulo,
encontra-se também a (menos famosa) concordância entre Popper e Marx quanto à
distinção entre liberdade formal e liberdade real ou substantiva.
8.Isto é, análoga à ordenação alfabética das palavras em um dicionário.
9.O símbolo " >" indica prioridade absoluta.
10."First Principle: Each person is to have an equal right to the most
extensive total system of equal basic liberties compatible with a similar
system of liberty for all. [ ] Second Principle: Social and economic inequality
are to be arranged so that they are both: (a) to the greatest benefit of the
least advantaged, consistent with the just savings principle [the difference
principle], and (b) attached to offices and positions open to all under fair
equality of opportunity." (Rawls, 1999)
11.A interpretação do princípio da diferença que aqui proponho encontra apoio,
sobretudo, na afirmação de Rawls de que este selecionaria o ponto de maior
eficiência na curva de contribuição (cf. Rawls, 2001:68; ver, também, idem:52).
12.O princípio da diferença destina-se a regular as desigualdades econômicas
residuais, permitindo apenas aquelas que tragam vantagens para ricos e
"pobres", e reconhecendo: (1) a incompletude da igualdade de
oportunidades; (2) que as diferenças individuais (talentos, habilidades,
ambiente familiar) podem gerar importantes desigualdades socioeconômicas; (3) o
efeito imponderável da sorte.
13.Em Justice as Fairness: A Restatement, Rawls distingue o Estado de Bem-Estar
Social do ideal que endossa, seguindo James Meade: a democracia de
proprietários (property-owning democracy). Em suas palavras: "the
background institutions of property owning democracy work to disperse the
ownership of wealth and capital, and thus to prevent a small part of society
from controlling the economy, and indirectly, political life as well. By
contrast, welfare-state capitalism permits a small class to have a near
monopoly of the means of production. Property owning democracy avoids this, not
by the redistribution of income to those with less at the end of each period,
so to speak, but rather by ensuring the widespread ownership of productive
assets and human capital (that is, education and trained skills) at the
beginning of each period, all this against a background of fair equality of
opportunity." (2001:139)
14.Rawls não restringe significativamente o domínio das
"preferências" dos indivíduos, em termos dos diferentes estilos de
vida que eles desejam realizar. Mais adiante, no presente artigo, restrições à
escolha, no sentido acima, aparecem embutidas na crítica de G. A. Cohen a
Rawls. Na penúltima seção, a própria relevância da dimensão de escolha
individual é questionada, em uma abordagem menos determinista dos resultados
socioeconômicos dos indivíduos. Mas a dimensão de não-liberdade de escolhas
significativas é tratada apropriadamente por Rawls, na medida em que ele
reconhece a influência de liberdades e oportunidades, em sentido amplo, sobre o
alcance das escolhas.
15.Ver Krugman (2002) para o aumento das desigualdades salariais nos Estados
Unidos, estando estas relacionadas com o poder de mercado dos executivos e a
cultura da maximização do valor das ações.