Emancipação política, direito de resistência e direitos humanos em Robespierre
e Marx
What a terrible illusion it is to have to recognize and sanction in
the rights of man modern bourgeois society, the society of industry,
of universal competition, of private interest freely pursuing its
aims, of anarchy, of self-estranged natural and spiritual
individuality, and at the same time to want afterwards to annul the
manifestations of the life of this society in particular individuals
and simultaneously to want to model the political head of that
society in the manner of antiquity! (Karl Marx apud Furet e Calvié,
1988:138, ênfases no original)
INTRODUÇÃO
O estudo da relação teórica entre Marx e Robespierre encontra-se no âmbito da
história do pensamento ou da historiografia política sob a forma de uma leitura
da continuidade necessária entre 1789 e 1848, entre França e Rússia ou, mais
especificamente e tal como celebrado nas palavras de Furet (1978a:28) e
Mathiez1, entre jacobinismo e bolchevismo. Ao lado dessa visão que busca uma
aproximação, há aquela que se centra sob uma suposta contradição: a despeito de
a Revolução ser encarada como um fenômeno histórico homogêneo, o Terror parece
ser visto por outros interlocutores da crítica marxista como instrumento de
realização do liberalismo e dos interesses da burguesia2.
Este artigo não objetiva envolver-se com essa problemática, nem buscar um
alinhamento com algumas das matrizes interpretativas mencionadas e tampouco
destrinchar as possíveis fronteiras entre jacobinismo e bolchevismo ou analisar
Robespierre e Marx no que concerne ao tema da Revolução. Seu objetivo é
responder a uma provocação: a afirmação de que a defesa contemporânea dos
direitos humanos e, especificamente, de sua universalização, pode ser ancorada
em Marx. Por conseguinte, o objeto deste artigo é, afinal, analisar a crítica
de Marx ao tema dos direitos humanos, tomando-se para tanto como referencial
seus escritos a respeito da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789
3.
É no seio dessa discussão que se encontra o embate necessário entre Robespierre
e Marx ao qual pretendo aludir. Minha premissa inicial é a de que, no que tange
aos direitos humanos, há aproximações e contradições entre esses dois autores.
Para argumentar a favor da aproximação, escolhi um conteúdo específico da
Declaração de 1789: os conceitos de liberdade e de resistência. Para demonstrar
a contradição, analisarei o que os dois autores pensam sobre a forma dos
direitos humanos. Em outras palavras, em um primeiro momento, meu objetivo será
mostrar como o conceito de liberdade defendido por Robespierre afasta-se do de
liberdade negativa proposto na Declaração, aproximando-se da concepção de
liberdade como não-dominação presente em Marx. Além disso, tentarei demonstrar
como o conceito de resistência à opressão, tal como desenvolvido por
Robespierre, não corresponde ao que foi incorporado à Declaração definitiva,
isto é, a de 1789. Este argumento nos levará a buscar uma aproximação entre
aquele conceito e o de emancipação política, tal como formulado por Marx.
Em um segundo momento deste texto, abordarei as contradições existentes entre,
de um lado, a defesa da abstração e da universalidade dos direitos humanos
empreendida por Robespierre e, de outro, a crítica marxista da concretude e do
particularismo desses mesmos direitos. Este ponto é essencial para nos levar à
conclusão deste artigo, qual seja, a da impossibilidade e inadequação do
recurso a Marx na defesa contemporânea dos direitos humanos e de sua
universalização.
QUESTÕES PRELIMINARES
Robespierre confundia antiguidade e modernidade, acreditava Marx. Segundo ele,
o líder dos jacobinos acreditava ter encontrado nos direitos humanos
característicos da sociedade moderna uma democracia no estilo clássico. O que
confirma essa idéia é a presença das constantes alusões à Grécia e a Roma
feitas por Robespierre em seus discursos na Assembléia Nacional Francesa. No
mundo moderno, a cidadania não era mais coextensiva à liberdade, mas os
jacobinos, com o Terror, pareciam não aceitar isso. Na crítica de Marx, os
jacobinos confundiam a França do século XVII com a Roma antiga e, ao não
distinguir sociedades, faziam de sua ideologia um anacronismo (Furet, 1988:21-
22).
O jacobinismo, ou ainda o robespierrismo, consiste, aos olhos de Marx, na
verdadeira realidade da Revolução, uma vez que representa em sua mais completa
forma a ilusão da prioridade do político sobre o social (Furet e Calvié, 1988:
15). Se o Terror se justifica pela necessidade de a burguesia realizar a sua
revolução, o jovem Marx via o evento Revolução Francesa como uma dialética
entre o Estado e a sociedade civil, na medida em que a emancipação política
levada a cabo pela burguesia revolucionária francesa consistiu na emancipação
da sociedade civil em relação à política. O erro irrecuperável dos
revolucionários, contudo, foi declarar a vida política como simples meio, cujo
fim é a vida da sociedade burguesa. Os privilégios feudais são substituídos
pelo direito - este passa a mediar a relação entre os homens, exacerbando a
separação em relação a si próprios e à sociedade. O homem egoísta, membro
típico da sociedade burguesa, se torna a base, a premissa do Estado político,
e, como tal, é reconhecido nos direitos humanos. É tendo isso em vista que Marx
afirma que
"[...] é óbvio que a prática revolucionária está em contradição
flagrante com a teoria [...] mas este fato torna-se ainda mais
estranho quando verificamos que os emancipadores políticos rebaixam
até mesmo a cidadania, a comunidade política ao papel de simples meio
para a conservação dos chamados direitos humanos" (2000 [1844]:38).
Os revolucionários franceses, portanto, confundem o fim com o meio e o meio com
o fim, confundem a teoria com a prática e a garantia dos direitos humanos com a
sua finalidade.
Será então que a Revolução Francesa pode ser tomada como exemplo acabado de um
processo de emancipação política? Ou tratou-se apenas de uma tentativa -
tentativa esta que se tornou malsucedida ao positivar, literalmente, no
direito, limites reais à emancipação humana, da qual a emancipação política é
apenas uma parte? Há um trecho de A Questão Judaicaque parece conter esta
resposta: "o homem não se libertou da religião; obteve, isto sim, liberdade
religiosa. Não se libertou da propriedade, obteve a liberdade de propriedade.
Não se libertou do egoísmo da indústria, obteve a liberdade industrial" (idem:
41).
Ora, sabemos que, para Marx, liberdade e libertação (ou emancipação) são
conceitos bem distintos, assim como são irreconciliáveis suas idéias de lei e
liberdade. Os revolucionários franceses não obtiveram a libertação almejada por
Marx, o que eles fizeram foi apenas conter na forma da lei o conceito burguês -
e hoje já podemos dizer também, liberal - de liberdade. Trata-se esta
liberdade, antes de tudo, da liberdade individual. Não é à toa que, ao
dissertar sobre a Declaração de Direitos de 1789, Marx afirma que "é um pouco
estranho que um povo que começa precisamente a libertar-se, que começa a
derrubar as barreiras entre os distintos membros que o compõem, a criar uma
consciência política, que este povo proclame solenemente a legitimidade do
homem egoísta, dissociado de seus semelhantes e da comunidade [...]". Esta
mesma crítica prossegue, tendo em vista a Declaração de 1795: "e, ainda mais,
que repita esta mesma proclamação no momento em que só a mais heróica abnegação
pode salvar o país" (idem:37). Chama a atenção aqui o fato de que Marx não
incorporou nessa crítica a Declaração jacobina de 1793. Uma possível resposta
para essa ausência talvez esteja justamente em um argumento que defenderei mais
adiante, qual seja, o de que o projeto de declaração elaborado por Robespierre,
em grande parte incorporado na Declaração de 1793, apresentava uma idéia de
libertação (e não meramente de liberdade) consubstanciada no direito de
resistência à opressão, que em muito se aproxima do conceito marxista de
emancipação política. Quem sabe a crítica de Marx aos direitos humanos não
seria diferente se a Declaração definitivamente adotada pela Revolução e pela
História fosse a de 1793 e não a de 1789?
Os direitos humanos em sua forma autêntica, escreve Marx, são os direitos
humanos tal como declarados por "seus descobridores norte-americanos e
franceses". De acordo com ele, esses direitos são em parte direitos políticos,
isto é, "direitos que só podem ser exercidos em comunidade com outros homens".
Seu conteúdo é a "participação na comunidade" e, concretamente, "na comunidade
política, no Estado". Esses direitos políticos se inserem, segundo Marx, "na
categoria de liberdade política, na categoria dos direitos civis". Marx, assim,
dá a entender que esta é apenas uma parte dos chamados direitos humanos (droits
de l'homme), parte esta distinta dos chamados direitos do cidadão (droits du
citoyen). Além dos direitos humanos contidos na categoria "direitos ou
liberdades políticas" estão aqueles como a liberdade de culto e de expressão,
vale dizer, direitos que não requerem a comunidade para a sua realização:
trata-se afinal dos clássicos direitos individuais - nas palavras de Marx, os
"direitos humanos em geral" (idem:32-33). Com efeito, Marx enxerga uma
separação entre o cidadão e o homem e, dentro desta, entre o seu aspecto civil
e o seu aspecto político. A Declaração de 1789 não considera como autêntico e
verdadeiro o homem enquanto cidadão, senão enquanto burguês: "O homem real só é
reconhecido sob a forma de indivíduo egoísta; e o homem verdadeiro, somente sob
a forma do citoyen abstrato" (idem:42) e, por isso, "os direitos humanos, ao
contrário dos direitos do cidadão, são só direitos do membro da sociedade
burguesa, do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade" (idem:
34)4.
De acordo com Furet, o conceito de direitos humanos em Marx é inseparável de
uma filosofia do sujeito tal como elaborada pelo jusnaturalismo ou por Kant.
Sob o conceito de liberdade, diz Furet, Marx via exposto o poder do dinheiro e
do mercado. Já Balibar acredita que a posição de Marx, no que tange à
interpretação dos direitos humanos, evoluiu visivelmente a partir de seus
textos de juventude (como é o caso de A Questão Judaica, de 1944). Naquele
momento, segundo Balibar, Marx se encontrava fortemente influenciado por Hegel,
Babeuf e os comunistas igualitários. Hegel seria assim o responsável pela
crítica da abstração metafísica dos direitos humanos compreendidos como eternos
e universais, enquanto Babeuf e seus companheiros responderiam pela crítica
marxista do caráter burguês do homem universal. Amadurecido Marx, sua crítica
aos direitos humanos também amadurece, afirma Balibar. Assim é que, nos
Grundrisse, Marx identifica a equação liberdade-igualdade com uma representação
idealizada da circulação das mercadorias e do dinheiro e, em seguida, no
Capital, esta relação se mantém na crítica da universalização da propriedade
enquanto expressão da essência do homem, tal como promovida pela política
burguesa. Assim, a crítica da Declaração Francesa iniciada em A Questão
Judaicapersiste e se repete até o Capital,acompanhando a evolução das reflexões
de Marx (Balibar, 1993:90-95). Esta parece ser em parte também a opinião de
Shlomo Avineri (1968:185 e ss.), de acordo com quem Marx teria consolidado seu
modo de pensar a Revolução Francesa desde 1843, mantendo-o íntegro ao longo de
sua trajetória intelectual5.
Com efeito, se é possível, de um lado, afirmar que A Questão Judaica continha
já o substrato da crítica de Marx aos revolucionários franceses e aos direitos
humanos, é preciso ainda, de outro lado, ressaltar o estatuto específico que os
escritos de juventude de Marx - dentre os quais se insere A Questão Judaica-
possuem no corpo de sua obra. Conforme demonstra Maximilien Rubel, a partir da
análise quase exegética que fez dos então desconhecidos textos de Marx que
foram revelados e publicados por Riazanov somente a partir de 1927, A Questão
Judaica situa-se de certa forma como um marco no percurso da formação
intelectual de Marx. Tanto este texto como a Introdução à Crítica da Filosofia
do Direito de Hegel, que compõem os chamados Manuscritos Econômico-Filosóficos
de 1844, foram escritos quando, de acordo com Rubel, a economia política ainda
era para Marx uma terra desconhecida (Rubel, 1974:305-306). De fato, o que a
análise feita por Rubel dos cadernos de estudo de Marx datados de 1844 (os
"cahiers parisiens") indica é que o então jovem estudante de filosofia teria se
impressionado profundamente com um artigo sobre economia política publicado por
Engels em fins de fevereiro de 1844 nos Anais Franco-Alemães("Esquisse d'une
Critique de l'Économie Politique"), juntamente com seus A Questão Judaica e
Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Rubel afirma que, a
partir desse momento, os cadernos de anotações de Marx passam a ser
inteiramente povoados por estudos sistemáticos sobre economia política, os
quais, como sabemos, não serão jamais abandonados (idem:306). Na verdade, Rubel
acredita que Marx já teria iniciado tais estudos e esboçado as suas primeiras
críticas às teorias do capital, alguns meses antes da publicação dos Anais
Franco-Alemães(e, portanto, de A Questão Judaica), quando ainda se encontrava
na Alemanha, prestes a se dirigir para Paris. Desse modo, A Questão Judaica,
além de constituir um marco no processo de formação intelectual do jovem Marx,
contém já a expressão de sua crítica à ordem econômica por meio da crítica à
Revolução Francesa e à concepção de direitos humanos por ela consagrada. Embora
essa intenção não apareça ainda na forma explícita que adquirirá em seus
escritos posteriores, é certo que, nos Manuscritos de 1844, conforme adiciona
Miguel Abensour, "a crítica da economia política se metamorfoseia em uma
crítica unitária da sociedade moderna" (1997:31)6.
RESISTÊNCIA À OPRESSÃO X EMANCIPAÇÃO POLÍTICA, LIBERDADE NEGATIVA X LIBERDADE
COMO NÃO-DOMINAÇÃO
Os revolucionários franceses - e dentre eles, os constituintes - dividiam-se
entre inúmeras e diferentes opiniões no que tange à Declaração de 1789. Entre
essas querelas estavam as dúvidas sobre a oportunidade de uma Declaração e
sobre a forma de sua promulgação, isto é, se deveria ser isolada ou na forma de
um preâmbulo à Constituição. A conveniência de uma declaração de deveres, ao
lado da dos direitos, era também discutida com afinco pelos membros da
Assembléia. O debate na Assembléia Nacional que antecedeu e deu feição à
Declaração durou quinze dias, de 11 a 26 de agosto, quando finalmente foi
proclamada. Foram vários os projetos apresentados e, com o fim de coordená-los,
foi nomeada, em 12 de agosto, uma comissão de cinco membros. Em 15 de agosto,
Mirabeau, um dos membros da comissão, apresentou um anteprojeto com dezenove
artigos, elaborados a partir de vinte propostas previamente apresentadas pelos
demais membros da Assembléia. Em 18 de agosto, o projeto apresentado por
Mirabeau sofreu forte contestação, sendo, então, abandonado e substituído por
um projeto anônimo elaborado pelo Sexto Grupo da Assembléia. Entre 20 e 26 de
agosto, os 24 artigos desta proposta foram discutidos e reduzidos aos dezessete
proclamados no tão famoso dia 26 de agosto de 1789.
O artigo 4º é o que define a liberdade: "A liberdade consiste em poder fazer
tudo o que não prejudique os outros: assim, o exercício dos direitos naturais
de qualquer homem não tem limites senão aqueles que asseguram aos outros
membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos. Estes limites não podem ser
determinados senão pela lei"7. Essa definição de liberdade estabelece como
limite para a ação humana a alteridade, isto é, o outro, e não apenas a lei -
tida desde Montesquieu como parâmetro clássico da liberdade. Os revolucionários
franceses de 1789 definiram, assim, a liberdade como um direito, o direito de
"poder fazer tudo o que não prejudique os outros", mas, por outro lado,
limitaram esse direito justamente com a lei, de modo que o resultado disso é
que o seu conceito de liberdade acaba por ter o mesmo significado daquele
proposto por Montesquieu. Em outras palavras, a concepção de liberdade que está
aqui em jogo é eminentemente negativa, isto é, permite-se aos indivíduos tudo
aquilo que o Estado, através das leis, não proíbe8. Vale dizer, a isenção do
Estado define a esfera de ação livre dos homens, mas, ressalte-se, o Estado não
deixa aqui de ser uma espécie de mediador entre os homens e a sua própria
liberdade: é o Estado que concede a liberdade aos homens ao se eximir de
promulgar leis que a restrinjam. Trata-se de um conceito de liberdade que
pressupõe o Estado, e mais, que depende dele. Isso faz com que a liberdade
promulgada na Declaração de 1789 se encontre antagonicamente situada em relação
ao conceito de libertação ou emancipação política, tal como proposto por Marx.
Marx analisa e critica, em suas obras de juventude, o conceito de liberdade tal
como definido na Declaração de 1789. Esta crítica recai sobre a existência de
um limite à ação humana e, principalmente, sobre o fato de este limite se
constituir em uma lei. Valendo-se de uma analogia entre a definição
revolucionária de liberdade e aquela de propriedade, Marx diz: "o limite dentro
do qual todo homem pode mover-se inocuamente em direção a outro é determinado
pela lei, assim como as estacas marcam o limite ou a linha divisória entre duas
terras" (Marx, 2000 [1844]:35). A lei é, portanto, uma estaca que delimita a
esfera de ação - a liberdade - dos homens e entreos homens. Esta é, portanto, a
liberdade burguesa, a liberdade tal como definida na Declaração: a liberdade do
homem isolado, do homem-mônada, do homem que se dobra sobre si mesmo.
O conceito de liberdade tal como cunhado pelos revolucionários (ou burgueses)
franceses implica a desunião dos homens, a separação destes em face dos seus
semelhantes. Como nos mostra Marx, a liberdade é o direito a esta dissociação,
"o direito do indivíduo delimitado, limitado a si mesmo" (ibidem). Convergente
com esta idéia está a definição de propriedade contida na Declaração. Ou
melhor, o direito à propriedade privada é, segundo Marx, nada mais do que a
aplicação prática do direito de liberdade, desse direito de liberdade
consagrado na Revolução Francesa. A propriedade privada é o "direito do
interesse pessoal", é o direito de desfrutar e dispor arbitrariamente do
patrimônio sem atender aos demais homens, isto é, de forma independente da
sociedade.
São justamente os conceitos de liberdade e de propriedade privada, tal como
esculpidos na Declaração de 1789, que constituem, de acordo com Marx, o
fundamento da sociedade burguesa. A Revolução Francesa, portanto, consolida a
emancipação política da burguesia, ou ainda, engendra em si a irrupção desta
classe, sob a forma que ela se revestirá no mundo moderno. Os direitos humanos,
em cujo vértice se encontram a liberdade e a propriedade privada, consistem na
garantia que a burguesia busca consolidar para tornar e manter estável a sua
própria afirmação. O desejo de universalização da Declaração de Direitos
francesa é, antes, a ambição, ao mesmo tempo, universalista e universalizante
da burguesia, de seu modo de vida, de sua hegemonia, de sua necessidade de se
manter estável, de sua própria garantia enquanto classe e enquanto a classe que
detém o poder e a produção estatal de direitos.
A crítica de Marx ao individualismo inerente às definições de liberdade e
propriedade estende-se aos outros direitos humanos. Assim é que o conceito de
igualdade, afastado de seu sentido político, "nada mais é senão a liberdade da
liberté, a saber: que todo homem se considere igual, como mônada presa a si
mesma". Do mesmo modo, a segurança "é o conceito social supremo da sociedade
burguesa, o conceito de polícia, segundo o qual toda sociedade somente existe
para garantir a cada um de seus membros a conservação de sua pessoa, de seus
direitos e de sua propriedade" (idem:37). A segurança é, portanto, a
preservação do egoísmo burguês, e jamais a sua superação. A segurança é a
garantia do livre exercício do egoísmo e do interesse pessoal sob a forma de
garantia dos direitos humanos, é a garantia da garantia da burguesia.
Em Robespierre, contudo, encontramos um conceito de liberdade distinto daquele
positivado em 1789. Em seu discurso sobre a nova declaração de direitos a ser
adotada em 1793, ele propõe a seguinte definição de liberdade: "a liberdade é o
poder que o homem tem de exercer como quiser todas as suas faculdades. Tem como
regra a justiça, e como limite os direitos de outrem; tem por princípio a
natureza, e por salvaguarda a lei" (Robespierre, 1999 [1793]:91)9. Temos aqui,
portanto, duas diferenças importantes em relação à primeira Declaração. Em
primeiro lugar, a liberdade deixa de ser definida como direito e passa a ser
definida como poder. Isto implica que a liberdade deixa de ser pensada como uma
faculdadee, mais, deixa de ser pensada como uma faculdade concedida pelo Estado
aos homens. Em segundo lugar, e talvez mais importante, a lei deixa de ser um
limite à liberdade, passando a ser apenas instrumento de sua salvaguarda.
Apesar de a definição de liberdade proposta por Robespierre ser mais próxima da
idéia de libertação de Marx (ou de seu conceito de liberdade como não-
dominação) do que aquela consolidada pelos constituintes revolucionários de
1789, não é a partir dela que busco demonstrar essa aproximação. O argumento
que desejo defender aqui é o de que Robespierre possuía um conceito de
liberdade como não-dominação à semelhança de Marx, e à semelhança de seu
conceito de emancipação política. Essa concepção ampla de liberdade acredito
estar contida no conceito robespierrista de resistência à opressão.
Com o intuito de demonstrar a peculiaridade e especificidade deste conceito de
Robespierre, estabelecerei, nas próximas páginas, uma pequena tentativa de
analisar comparativamente o conceito de resistência à opressão, tal como
proposto no projeto de declaração de Robespierre, e a configuração final que
esse mesmo direito recebeu nas Declarações de 1789, 1793 e 1795.
O direito de resistência à opressão figurava em vários dos projetos
apresentados pelos membros da Assembléia Nacional em 178910. Ele foi assim
incorporado na Declaração promulgada naquele ano, sendo positivado no artigo 2º
ao lado dos outros "direitos naturais e imprescritíveis do homem". É curioso
constatar, contudo, que esta previsão se deu em conjunção com a aprovação do
artigo 7º, o qual, se por um lado proíbe e pune o exercício arbitrário do
poder, por outro restringeo direito de resistência definido no artigo 2º, uma
vez que torna culpável o cidadão que resistir à convocação ou detenção
determinadas em virtude da lei. Vejamos no Quadro_1, abaixo, como essa
contradição foi inscrita na Declaração de 1789:
O artigo 7º, portanto, anula o valor da previsão da resistência à opressão
entre os principais direitos mencionados no artigo 2º, ao situar a lei como um
limite desse direito. A previsão da lei como limite ao exercício da resistência
é um fato muito curioso, uma vez que nem o governo nem a lei podem garantir o
direito de resistência, esta ainda menos do que aquele. A resistência é um
corolário da obrigação política, contudo, a coexistência simultânea desses dois
conceitos é rigorosamente impossível. A resistência opõe-se frontal e
diametralmente à obrigação. É justamente a ausência ou o esgotamento do
reconhecimento da autoridade política e da lei que desencadeia o direito de
resistência. Este tutela os demais direitos da Declaração, mas nenhum outro
direito ou garantia tem o condão de tutelá-lo. Há, efetivamente, uma
impossibilidade prática de o direito positivo promover essa tutela, mas a
presença do direito natural é tamanha entre os revolucionários franceses que,
se o fundamento da resistência nele se encontra, sua legitimidade transcende a
legalidade. No caso da Declaração de 1789, como vimos acima, a lei é ao mesmo
tempo parâmetro e limite da resistência. Isto é, se, por um lado, a sua
violação legitima a resistência, por outro, é esta mesma lei que estabelece os
limites do exercício legítimo desse direito. Em outras palavras, a resistência
deve se dar no âmbito da lei, como se isto não fosse uma contradição em termos.
Vejamos agora, no Quadro_2, como essa situação muda no projeto de Robespierre e
no texto final da Declaração de 1793:
Como podemos verificar acima, a Declaração de 1793, que incorporou largamente o
projeto de Robespierre, flexibiliza amplamente o entendimento de que a lei
consiste em um limite ao direito de resistência. Com efeito, a Declaração
jacobina parece desconhecer os mesmos limites que aquela que a precedeu, no que
tange ao exercício da resistência. Mesmo a insurreição, que pode ser encarada
como modalidade coletiva de resistência, é legitimada pela declaração liderada
por Robespierre (artigo 29 no projeto de Robespierre e artigo 35 no texto final
da Declaração). Com efeito, Robespierre tende a inverter a fórmula anterior,
uma vez que, além de não prever limite algum à resistência, chega mesmo a
afirmar que sujeitá-la a formas legais constitui tirania (artigo 31). Essa
previsão, contudo, não foi incorporada no texto final da Declaração de 1793.
Muito pelo contrário, esta última, apesar de ter incorporado vários artigos
ampliadores do direito de resistência, manteve, em seu artigo 10, a
possibilidade de serem considerados culpados aqueles que exercem o seu direito
de resistência em desconformidade com a "autoridade da lei". Robespierre,
portanto, vai muito além daquilo que logrou positivar na segunda Declaração
francesa. Para ele, a lei jamais pode ser parâmetro ou limite para a
resistência e, além disso, a sujeição deste direito à forma da lei é por si só
causa legitimadora da resistência.
François Furet afirma que, quando Robespierre morre, a Revolução morre com ele
(Furet, 1978b:96). Que a Revolução Francesa não se finda nesta data, todos
sabemos. Alguns pensadores, inclusive, defendem a idéia de que há de se falar
em uma única revolução unindo 1789 e 1848. No entanto, talvez seja pertinente
afirmar, no contexto de nossa presente discussão, que o verdadeiro espírito
revolucionário, aquela radicalidade imanente ao ato e ao sujeito
revolucionário, esmorece com Robespierre. O que nos impulsiona a tal afirmação
é a variação drástica, no que concerne ao direito de resistência, que se
encontra entre a Declaração de 1793 e a de 1795. Esta última subverte a fórmula
de Robespierre, que retirava da esfera da lei todo e qualquer desdobramento do
direito de resistência. Vejamos o Quadro_3, abaixo:
A Declaração de 1795 aniquila, portanto, não apenas todas as considerações de
Robespierre a respeito do direito de resistência à opressão, como também deixa
de incorporar todos os artigos que as Declarações de 1789 e 1793 continham
sobre ele. Em perspectiva diametralmente oposta, a Declaração de 1795 parece
refletir com exclusividade uma preocupação básica do contratualismo do século
XVII, qual seja, a de fundamentar a obrigação política. Sai de cena, no texto
da Declaração, a resistência (ou desobrigação), e entra a obrigação. Se hoje em
dia podemos lamentar o fato de a Declaração jacobina não ter sido a definitiva,
por outro lado, podemos também abençoar o fato de não ter sido a Declaração
thermidorana a ter permanecido.
A confrontação do tema do direito de resistência entre as três declarações
francesas serve para destacar a peculiaridade e a especificidade do conceito de
resistência à opressão formulado por Robespierre. Este conceito, acredito,
aproxima-se daquilo que Marx entende por liberdade, ou em seus próprios termos,
libertação ou emancipação.
Em A Questão Judaica, Marx aborda o problema da emancipação, indo além do ponto
de partida teológico que marcava sua discussão com Bruno Bauer. Ele nos mostra
nessa obra que "a contradição em que se encontra o crente de uma determinada
religião com sua cidadania nada mais é do que uma parte da contradição secular
geral entre o estado político e a sociedade burguesa" (2000 [1844]:31, ênfases
no original). Ao emancipar-se politicamente, o homem o faz por intermédio de um
subterfúgio, através de um meio, mesmo que seja um meio necessário. O Estado é
esse meio. O Estado é o mediador entre o homem e a sua liberdade: o homem
liberta-se através do Estado; liberta-se politicamente de uma barreira ao se
colocar em contradição consigo mesmo, ao sobrepor essa barreira de modo
abstrato e limitado, de modo parcial. A emancipação política tem limites,
encontra em si mesma algumas limitações. Esta limitação ou parcialidade se
explica na medida em que a emancipação política é um modo, uma parte da
emancipação humana, e, ainda, não é um modo radical e isento de contradições da
emancipação humana (idem:21). Em outras palavras, a emancipação política não é
a última etapa da emancipação humana em geral, ela é apenas a última etapa da
emancipação humana dentro do contexto do mundo presente. Essa emancipação é
real, é prática, nos explica Marx11.
A emancipação política converte o direito público em direito privado. Como
afirma Marx: "a cisão do homem na vida pública e na vida privada, o
deslocamento da religião em relação ao Estado, para transferi-la à sociedade
burguesa, não constitui uma fase, mas a consagração da emancipação política"
(Marx, 2000 [1844]:25). A desintegração do homem em homem (e no caso de A
Questão Judaica, o homem em sua faceta religiosa) e cidadão é a própria
emancipação política ou o modo político de emancipação. Como nos explica ainda
Furet, "a emancipação política não significa a reunificação do homem, sua
reconciliação com a sua espécie, sua natureza, mas, ao contrário, sua divisão
entre homem público e homem privado, na esfera do Estado e naquela da sociedade
civil" (Furet, 1988:16).
A emancipação política, portanto, não implica a emancipação humana. As
contradições e limites da emancipação humana residem na essência e na própria
categoria de emancipação política12. Nos resta concluir este ponto com uma
dúvida acerca da emancipação promovida pelos revolucionários franceses. Se o
que estava em jogo era a emancipação da burguesia, Marx parece não deixar
dúvidas. Se essa emancipação era, de fato, uma emancipação política, já
mencionamos esta dúvida acima, na seção 2. Se essa emancipação era uma
emancipação humana, isto é, uma emancipação completa, disso também duvido.
CONCRETUDE X ABSTRAÇÃO, UNIVERSALISMO X PARTICULARISMO
A crítica da abstração (ou do excesso dela) dos direitos catalogados na
Declaração de 1789 é talvez uma das mais freqüentes, indo desde De Maistre,
passando por Taine e chegando até Hegel. De certo modo - e há aqueles como
Mirabeau que defendem essa posição -, cada um dos direitos e liberdades
esculpidos na Declaração podem ser lidos como a representação de uma espécie de
antítese de tudo aquilo que os revolucionários desejavam combater em seu
contexto histórico. E, evidentemente, o ímpeto revolucionário, ou pelo menos o
desejo de seus personagens, transcendia não apenas a sua época, mas também o
seu território. O que estava em jogo na França de 1789 transcendia o tempo e o
espaço. O mundo novo almejado pelo espírito da Revolução, se é que podemos
pensar em uma abstração como essa, era, realmente, um mundo novo.
Robespierre, sobre quem Furet afirmou que "o que faz dele uma figura imortal
não é o fato que ele reinou sobre a Revolução durante alguns meses, mas que a
Revolução fala através dele o seu discurso ao mesmo tempo mais trágico e mais
puro" (Furet, 1978b:102), encarna muito bem esse papel, entre inúmeros motivos,
também pela forma que assume a sua defesa dos direitos humanos. Trágico ou
puro, o que é contudo inegável é a influência claramente iluminista e
rousseauniana do discurso de Robespierre nessa matéria13. Tais influências
explicam e justificam o grau de abstração que atingem os direitos humanos nas
propostas e nos discursos de Robespierre14. A forte presença da crença no
direito natural, compartilhada por muitos revolucionários, é também forte prova
- e motivo - dessa constatação. Em sua proposta de declaração de direitos, em
1793, palavras como natureza, existência, fraternidade, universo, direito
natural, progresso, entre outras, cumprem justamente o papel de declarar
direitos para o homem, um homem abstrato, qualquer homem.
Já em Marx, temos talvez o principal expoente da crítica oposta, qual seja, a
da excessiva concretudeda Declaração. Esta era para o jovem Marx tão
historicamente determinada que impossibilitava qualquer defesa do homem em
geral. O homem da Declaração era, segundo Marx, um homem concreto, ou
concretamente um homem: o burguês. Este homem colocado no centro da Declaração
se preocupava com a sua própria emancipação, ou melhor, com a emancipação de
sua classe, a burguesia, contra a aristocracia. Os direitos esculpidos na
Declaração, definitivamente, não eram os direitos do quarto estado, mas os
direitos do homem burguês, do homem egoísta e isolado dos outros homens e da
comunidade, do homem-mônada, fechado em si mesmo. Para confirmar essas idéias,
basta recordar um dos mais célebres parágrafos de A Questão Judaica: "os droits
de l'homme, os direitos humanos, distinguem-se, como tais, dos droits du
citoyen, dos direitos civis. Qual o homme que aqui se distingue do citoyen?
Simplesmente, o membro da sociedade burguesa. Por que se chama membro da
sociedade burguesa de "homem", homem por antonomásia, e dá-se a seus direitos o
nome de direitos humanos? Como explicar o fato? Pelas relações entre o Estado
político e a sociedade burguesa, pela essência da emancipação política" (Marx,
2000 [1844]:34). Em outras palavras, para emancipar-se politicamente, a
burguesia revolucionária francesa dividiu Estado e sociedade e separou
definitivamente homem e cidadão. Como nos explica ainda Balibar, "os direitos
humanos, isolados dos direitos do cidadão, aparecem então como a expressão
especulativa da cisão da essência humana, entre a realidade das desigualdades e
a ficção da comunidade" (1993:90).
Este talvez tenha sido, na perspectiva de Marx, um dos principais erros dos
revolucionários franceses: ver no homem apenas o cidadão e neste apenas o
burguês. A partir do momento em que o cidadão é declarado servo do homem
egoísta, degrada-se a esfera pública em favor da esfera privada: os direitos
humanos, tal como criados e declarados pelos franceses, remetem ao plano dos
interesses e não ao da cidadania real. O homem possuidor de direitos da
Declaração, aos olhos de Marx, era apenas e nada mais do que o homem-cidadão,
ou o cidadão-burguês: "o conflito entre o homem, como crente de uma religião
especial e sua cidadania, e os demais homens enquanto membros da comunidade
reduz-se ao divórcio secular entre o Estado político e a sociedade civil". E
prossegue explicando, "a diferença entre o homem religioso e o cidadão é a
diferença entre o comerciante e o cidadão, entre o trabalhador e o cidadão,
entre o latifundiário e o cidadão, entre o indivíduo vivendo e o cidadão"
(Marx, 2000 [1844]:23-24).
Ao lado da abstração, temos também como elemento constantemente presente nas
análises sobre a Declaração de 1789 - seja como referência positiva, seja como
motivo de crítica - o universalismo. Aqueles que defendem a universalização dos
direitos humanos tomam a Declaração como ponto de partida e principal
referencial para a sua defesa. Mais do que a Declaração americana, que possui
indubitavelmente um caráter muito mais contextual e histórico, é a Declaração
francesa que vai se tornar o baluarte da reivindicação universalista dos
direitos humanos. Afinal, para os franceses, era o homem, indivíduo abstrato,
que estava em jogo. Como acabamos de ver acima, os revolucionários não
enxergavam nesse homem a cisão que Marx enxergava e tampouco a crítica que ele
antecipava por causa desta percepção. A Declaração de 1789 é tida como o
primeiro passo para a universalização dos direitos humanos. A crença neste fato
parece reforçar-se cada vez mais contemporaneamente. Foi, afinal, a Declaração
de 1789 que serviu de parâmetro e principal fonte inspiradora da Declaração
Universal dos Direitos do Homem proclamada pela ONU em 1948.
Robespierre, como todos os seus companheiros influenciados pela doutrina do
direito natural e pelo Iluminismo, era um árduo defensor do universalismo. Não
é preciso evocar aqui nada mais do que o seu projeto de Declaração jacobina.
Todos os seus discursos são permeados não apenas pelo ideal do homem abstrato,
como mostrei anteriormente, mas também pela forte crença de que esse homem
abstrato era universal. As palavras universo e humanidade, por exemplo, são
mais do que recorrentes em seus discursos sobre os direitos humanos. Resta
compreender como um homem que desejava estender "para todos os povos da Terra"
os direitos humanos combatera com tanto afinco os "inimigos externos" de sua
"nação".
Carece de interesse dissertar sobre o que a história revela como obviedade, a
defesa revolucionária da universalização dos direitos humanos, tão bem
representada por Robespierre. O que interessa agora é abordar imediatamente a
questão que nos provocou a escrever este pequeno artigo: por que tantas pessoas
enxergam em Marx o desejo da universalidade dos direitos humanos? Por que
tantas pessoas o usam como referência para defender, hoje, a universalização
dos direitos humanos?
Marx jamais acreditou na universalidade dos direitos humanos. Tampouco - e
principalmente - daqueles direitos declarados pelos revolucionários franceses.
De acordo com ele, os direitos da Declaração de 1789 não constituem a expressão
de princípios universais, mas dos interesses de determinada classe, a
burguesia. A humanidade, ou universalidade, que Marx vê na Declaração se resume
meramente e apenas a um indivíduo. E este indivíduo é egoísta e burguês.
Segundo Marx, a Declaração de 1789 foi inspirada em uma concepção
individualista de sociedade. Desta sociedade individualista, fundada nos
interesses particulares, o Estado moderno surge como foi visto emergir da
Revolução Francesa, na forma de um Estado democrático representativo que sucede
o Estado monárquico. Este caráter representativo reflete a separação da
sociedade e do Estado, e seu caráter supostamente democrático (universal)
reflete a abstração da cidadania igualitária em relação às situações
verdadeiras dos membros individuais do corpo social (Furet, 1988:13-14). A
soberania foi colocada pelos franceses no indivíduo singular - mais uma das
contradições daqueles que eram, em sua gênese, fortemente influenciados por
Rousseau.
Marx concorda com Benjamin Constant (a quem leu com veemência, como atesta
Furet) na afirmação de que o indivíduo privado é uma invenção típica da
civilização moderna. Nesse sentido, Marx compartilha o mesmo pressuposto do
pensamento liberal: o individualismo como essência da modernidade e o homem
moderno definido como o centro de uma rede de interesses privados que fazem
dele um ser auto-suficiente e isolado dos demais homens. De acordo com Furet, o
que vai afastar Marx decisivamente desta filosofia política liberal é a crítica
rousseauniana que introduz neste tema. A partir deste ponto, o significado da
Revolução Francesa vista por Marx repousa na sua invenção da forma política da
sociedade moderna: um espaço imaginário no qual o Estado é o locus de sua
necessária unidade fictícia, o espaço da cidadania e da igualdade democrática
(idem:17).
A crítica do individualismo da Declaração, de De Maistre a Burke, em alguma
medida parece indicar que a justificação da democracia como uma boa forma de
governo depende de uma concepção individualista de sociedade. O que nos recorda
a insistência de Marx em afirmar que a essência do Estado democrático
constituía a essência da Revolução. O fato é que a cidadania moderna transforma
a antiga noção de representação e nasce junto da propriedade privada. Os
direitos humanos na perspectiva marxista seriam assim, de acordo com Balibar,
ao mesmo tempo a linguagem com a qual se mascara a exploração e aquela na qual
se exprime a luta de classe dos explorados (Balibar, 1993:92). Mais do que
negar o caráter individualista dos direitos, Marx preocupava-se em negar o seu
fundamento - ou a "negação da negação" -, a propriedade privada.
Nos resta concluir este ponto transcrevendo um trecho de Marx que não apenas
corrobora as afirmações acima, como também inibe que outras sejam feitas em seu
lugar:
"Nenhum dos chamados direitos humanos ultrapassa, portanto, o egoísmo
do homem, do homem como membro da sociedade burguesa, isto é, do
indivíduo voltado para si mesmo, para seu interesse particular, em
sua arbitrariedade privada e dissociado da comunidade. Longe de
conceber o homem como um ser genérico, estes direitos, pelo
contrário, fazem da própria vida genérica, da sociedade, um marco
exterior aos indivíduos, uma limitação de sua independência
primitiva. O único nexo que os mantém em coesão é a necessidade
natural, a necessidade e o interesse particular, a conservação de
suas propriedades e de suas individualidades egoístas" (Marx, 2000
[1844]:37).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
"Os direitos do homem não nos farão abençoar o capitalismo. E é
preciso muita inocência, ou safadeza, a uma filosofia da Comunicação
que pretende restaurar a sociedade dos amigos ou mesmo dos sábios,
formando uma opinião universal como 'consenso' capaz de moralizar as
nações, os Estados e o mercado. Os direitos do homem não dizem nada
sobre os modos de existência imanentes do homem provido de direitos.
E a vergonha de ser um homem, nós não a experimentamos apenas nas
situações extremas descritas por Primo Levi, mas nas condições
insignificantes, ante a baixeza e a vulgaridade da existência e de
pensamentos-para-o-mercado, ante os valores, os ideais e as opiniões
de nossa época."
(Deleuze e Guattari, 1992:139-140)
Atualmente, assiste-se, seja no plano da teoria política contemporânea, seja no
da prática política mundial, a uma insistente e ampliadora defesa da
universalização dos direitos humanos. Curiosamente, o que parece estar por trás
de discursos acadêmicos que vão de John Rawls a Jürgen Habermas e, ao mesmo
tempo, nos discursos políticos norte-americanos, é o mesmo: uma espécie de nova
faceta do liberalismo. Exemplo paradoxal que une, de forma curiosa, estes dois
tipos de discursos é a recente defesa pública de Habermas à suposta
"intervenção humanitária" dos Estados Unidos em Kosovo (Habermas, 2002). Essa
intrigante aliança, bem como o ressurgimento na teoria contemporânea de
conceitos típicos do berço moderno do liberalismo, como são os casos do
contratualismo e da teoria do consenso, merece ser estudada com maior afinco.
Infelizmente, este pequeno artigo não comporta o espaço necessário para tal
tarefa. Resta-nos apenas sugerir, deixando no ar, essa agenda de estudos.
Resta-nos refletir a respeito de uma muito reveladora constatação de um dos
maiores expoentes do neoliberalismo teórico, Thomas Nagel: "O liberalismo
reveste-se de várias formas, mas todas elas incluem um sistema de direitos
individuais contra interferências de certo tipo, juntamente com limitados
requerimentos positivos de guarda mútua, todos institucionalizados e efetivados
sob o Estado de Direito (rule of law) em um regime democrático" (Nagel, 1995:
57, ênfases minhas).
Tão paradoxal como as curiosas - para não dizer irônicas - constatações acima,
parece ser a afirmação de que a defesa da universalização dos direitos humanos
se justifica e sustenta com Marx. Esta me pareceu ser, à primeira vista, uma
afirmação, no mínimo, intrigante. O objetivo deste artigo foi, portanto, buscar
uma confrontação entre os escritos de Marx e de Robespierre que propiciasse uma
resposta àquela curiosidade inicial que me moveu até aqui. Minhas leituras
sobre o assunto, bem como esta primeira tentativa de sistematizá-las, indicam
que, se, por um lado, o conceito de emancipação política de Marx e a concepção
de direito de resistência de Robespierre os aproxima, por outro, a compreensão
que ambos têm dos direitos humanos os afasta definitivamente. Em outras
palavras, enquanto os dois autores convergem em relação ao conteúdo específico
que os direitos humanos podem assumir - o que se manifesta, sobretudo, em torno
do conceito de liberdade, conforme vimos -, eles divergem quanto à forma que
esses mesmos direitos efetivamente assumem. Ao passo que Robespierre encarna
exemplarmente os ideais revolucionários de abstração e de universalização dos
direitos humanos, Marx mostra, ao contrário, que o excesso de concretude com
que a Declaração de 1789 foi escrita depõe contra a desejabilidade de sua
universalização.
É assim que retorno ao meu ponto de partida, qual seja, à dificuldade de se
sustentar, contemporaneamente, a universalização dos direitos humanos com base
em Marx. O único e singular universal que me pareceu ser encontrável em Marx é
o trabalho. E, ressalte-se, o trabalho, simplesmente, e não aquilo que se
convencionou chamar de direito do trabalho. Mas este também é assunto para
outra conversa, para não dizer outro trabalho...